Formação democrática dos precedentes judiciais

June 4, 2017 | Autor: O. Vignoli Neto | Categoria: Precedentes vinculantes, Novo Código De Processo Civil Brasileiro
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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Direito

Orlando Vignoli Neto

FORMAÇÃO DEMOCRÁTICA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS

Belo Horizonte 2016

Orlando Vignoli Neto

FORMAÇÃO DEMOCRÁTICA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direto. Orientador: Prof. Fernando Gonzaga Jayme

Belo Horizonte 2016

Orlando Vignoli Neto

FORMAÇÃO DEMOCRÁTICA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direto.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________ Prof. Fernando Gonzaga Jayme (Orientador) - UFMG

____________________________________________

____________________________________________

Belo Horizonte, ____ de ___________ de 2016.

RESUMO O presente trabalho tem por objetivo estudar os requisitos para formação e aplicação democrática dos precedentes judiciais no ordenamento jurídico brasileiro. O crescimento da litigiosidade de massa é um dos principais imbróglios atuais do judiciário. Essa explosão de litígios cria problemas no aspecto da segurança jurídica e da isonomia, vez que casos semelhantes passam a ter decisões diferentes. Um dos motivos que colabora diretamente nesse crescimento da litigiosidade é o uso do judiciário como espaço contramajoritário para viabilizar direitos, por meio da chamada Litigância de Interesse Público e das demandas pseudoindividuais. Essas demandas, apesar de serem individuais, possuem natureza jurídica coletiva, tendo em vista os direitos que são demandados. Na tentativa de desafogar o judiciário e zelar pela isonomia e segurança jurídica, o direito jurisprudencial ganha força, com a padronização judicial por meio de precedentes, verificando-se essa tendência com a promulgação do Novo Código de Processo Civil. Contudo, essa padronização decisória quando feita de forma preventiva, sem esgotar o debate jurídico, não levando em consideração efetivamente os argumentos das partes, evita o desenvolvimento das teses discursivas e, por consequência, não forma os parâmetros argumentativos característicos dos precedentes judiciais. Assim, empobrece-se o discurso jurídico e se cria uma discursividade hegemônica que não leva em conta os argumentos das minorias, em razão da maior capacidade de estratégica dos litigantes habituais, representados pelas grandes corporações e pelo poder público. Portanto, esse trabalho projeto busca os requisitos democráticos necessários para o fortalecimento do direito jurisprudencial no Brasil por meio dos precedentes. Palavras-chave:

Formação

democrática

hegemônica. jurisprudencial.

Novo

dos

código

precedentes. de

processo

Discursividade civil.

Direito

RÉSUMÉ Ce travail a comme objectif étudier les exigences pour la formation et application démocratique des précédents judiciaires dans l’ordre juridique brésilienne. La croissance du nombre des litiges massives est un des principaux imbroglios actuels du judiciaire. Cette explosion des litiges crée des problèmes au domaine de la sécurité juridique et de l’isonomie, vue que les cas similaires commencent à avoir des décisions différentes. L’un des motifs qui découle dans cette croissance des litiges c’est l’utilisation du judiciaire comme espace contre-majoritaire pour rendre des droits, parmi la Public Interest Litigation et des demandes « pseudo-individuelles ». Ces demandes, malgré qu’elles soient des demandes individuelles, elles ont une nature juridique collective, vue les droits qu’elles demandent. Pour essayer à décharger le judiciaire et sauvegarder l’isonomie et la sécurité juridique le droit jurisprudentiel gagne de la force avec la standardisation parmi les précédents, comme l’on observe dans le Nouveau Code de Procédure Civile. Cependant, cette standardisation, tandis que’elle est faite de façon préventive, sans épuiser le débat et sans considérer tous les arguments des parties, coupe le développement des thèses juridiques et, alors, ne forme pas les paramètres argumentatifs caractéristiques des précédents. Donc, on appauvrit le discours juridique et on crée une discursivité hégémonique qui n’observe pas les arguments des minorités, en fonction de la capacité stratégique des litigants habituels, représentés par les grands entreprises et le pouvoir publique. Pour conclure, ce travail cherche les exigences démocratiques nécessaires pour la fortification du droit jurisprudentiel au Brésil parmi les précédents. Mots-clés:

Formation

démocratique

des

précédents.Discursivité

hégémonique.Nouveau code de procédure civile.Droit jurisprudentiel.

LISTA DE ABREVIATURAS ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade CNJ - Conselho Nacional de Justiça CPC - Código de Processo Civil IPDMS - Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais IRDR - Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas NCPC - Novo Código de Processo Civil OAB - Ordem dos Advogados do Brasil PLS - Projeto de Lei do Senado Federal QO - Questão de Ordem STF - Supremo Tribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justiça TJMG - Tribunal de Justiça de Minas Gerais UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8 2 OS PRECEDENTES JUDICIAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO .... 10 2.1 Processo constitucional democrático ............................................................. 10 3 PRECEDENTES E DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................. 14 3.1 Litigância de Interesse Público e demandas pseudoindividuais .................. 14 3.2 Profusão de demandas, igualdade e segurança jurídica: desafios do direito processual brasileiro .............................................................................................. 15 4 O USO DOS PRECEDENTES NO BRASIL........................................................... 19 4.1 Fenômeno de convergência entre os sistemas jurídicos de civil law e common law............................................................................................................. 19 4.1.1 A origem dos sistemas .................................................................................. 19 4.1.2 A convergência entre os sistemas e sua aplicação no Brasil .................... 20 4.2 O stare decisis e o direito jurisprudencial ...................................................... 22 4.3 A aplicação dos precedentes no direito brasileiro ......................................... 24 5 FORMAÇÃO DEMOCRÁTICA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS ....................... 28 5.1 O caráter argumentativo do direito .................................................................. 28 5.2 Padronização decisória e discursividade hegemônica.................................. 29 5.3 Participação social na formação dos precedentes ........................................ 32 6 OS PRECEDENTES NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL........................ 36 6.1 Contraditório, fundamentação das decisões e interpretação dos precedentes ............................................................................................................. 36 6.2 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas .................................... 40 7 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 44 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 47

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1 INTRODUÇÃO O uso da jurisprudência como mecanismo de controle e padronização das decisões judiciais ganha força nos últimos anos. A igualdade é elemento indissociável do Estado Democrático de Direito, estando fortemente grifado na Constituição Federal. Contudo, a imprevisibilidade das decisões judiciais, por não estarem vinculadas a determinados precedentes, configura uma quebra da isonomia processual a partir do momento em que casos iguais são decididos de formas desiguais, sem justificativa razoável para tanto1. A referida uniformidade de tratamento das decisões judiciais é igualmente imprescindível para a segurança jurídica. Vista como estabilidade e continuidade da ordem jurídica e previsibilidade das consequências jurídicas de determinada conduta, seria indispensável para a conformação do Estado de Direito2. Além disso, o crescimento do número de demandas judiciais é inquestionável e apontado anualmente nos relatórios do CNJ. Muitas dessas demandas estão relacionadas à denominada Litigância de Interesse Público (Public Interest Litigation)3. Esse fenômeno denota a estratégia de utilizar a via processual para garantir direitos fundamentais que não são efetivados pelo poder público, principalmente em razão da carência de políticas públicas. Também, as demandas pseudoindividuais, que consistem na litigância individual que visa ao aproveitamento de bens coletivos, colocando o Poder Judiciário diante de demandas repetitivas. Assim, a partir do momento em que essas demandas não são solucionadas de maneira coletiva pelos espaços públicos majoritários como o Executivo e o Legislativo, a sua propositura individual abarrota o Judiciário. Visto que toda pessoa individualmente considerada é sujeito de direito, se atribui, a entes individualizados situações jurídicas com conteúdo relacionado ao aproveitamento de bens coletivos4. Passa-se a demandar individualmente a tutela de bens de natureza jurídica coletiva, 1

MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. Processos Coletivos, Porto Alegre, vol. 2, n. 2, 01 abr. 2011a. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2015. 2 Idem. 3 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Litigância de interesse público e execução comparticipada de políticas públicas. Revista de Processo, ano 38, n. 224, p. 122-152, out. 2013. 4 LIMA, Bernardo. As demandas pseuindividuais e o regime jurídico do novo CPC. In: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira; CÂMARA, Alexandre Freitas (Coord.). Novo CPC: reflexões e perspectivas. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.

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como a saúde, educação, saneamento básico, entre outros. Nesse cenário de multiplicação de demandas individuais pedindo a tutela do mesmo bem jurídico, inevitável não apenas a explosão de litígios, como também a existência de decisões díspares. Contudo, o dimensionamento dessas técnicas de padronização decisória deve ser feito com cautela. Não se pode por meio de um paradigma de eficiência quantitativa formar padronizações em massa que desconsiderem a argumentação das partes. Esse modelo tem impacto principalmente nos litigantes ocasionais e hipossuficientes, que não possuem a capacidade estratégica de litigantes organizacionais para influenciar as decisões judiciais e os precedentes delas decorrentes. O novo Código de Processo Civil (NCPC) aposta no fortalecimento e ampliação dos precedentes judiciais obrigatórios para dirimir esses problemas, tutelando direitos fundamentais, garantindo a isonomia e a duração razoável do processo. Esse fortalecimento do direito jurisprudencial brasileiro deve ser conjugado com a aplicação de determinados requisitos democráticos, sob pena de não se levar devidamente em consideração a discursividade não hegemônica. Portanto, o trabalho tem como objetivo analisar o uso do direito jurisprudencial no Brasil e os requisitos para o seu uso democrático.

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2 OS PRECEDENTES JUDICIAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

2.1 Processo constitucional democrático O desenvolvimento histórico do processualismo teve ao longo dos séculos XIX e XX dois grandes modelos: o liberalismo processual e a socialização processual. Aquele, desenvolvido a partir do paradigma de Estado Liberal em que o processo era visto como “coisa das partes”, consagrando o princípio dispositivo e a autonomia das partes, e este, desenvolvido a partir do paradigma de Estado Social, marcado pelo avanço da oralidade e do protagonismo judicial. Esse modelo consagra a autonomia da disciplina do direito processual, que não se confunde mais com o direito substancial ou material. O processo não é mais um direito da qual as partes podem dispor livremente, mas instrumento para a concretização de direitos. O processo, que antes buscava apenas uma verdade formal, passa a buscar, a partir de uma perspectiva dialética do processo, a verdade dita processual, a partir da atuação do juiz por impulso oficial. Com a Constituição de 1988, que marca a transição para o paradigma do Estado Democrático de Direito, o processo civil é constitucionalizado. A Constituição possibilita um uso “emancipador” e “contra-hegemônico” de até então um direito tradicionalmente pensado apenas para servir aos (já) integrados nos sistemas social, econômico ou mesmo jurídico5. Essa nova concepção de processo é chamado de processualismo constitucional democrático. Nas palavras de Theodoro Júnior, Nunes e Bahia6: Tal concepção [processualismo constitucional democrático], “busca subsidiar uma concepção da processualização dos direitos não sob a ótica do protagonismo do juiz, mas do debate interdependente de todos os interessados na decisão, dentro de seus papéis, inclusive com o potencial chamamento de órgãos governamentais com adequada expertise para participação (direta ou como amicus curiae) para viabilizar um quadro mais próximo do adequado nos potenciais efeitos decisórios. Para além de uma aposta no papel da magistratura ou nos padrões decisórios dos Tribunais Superiores para dimensionamento da litigância repetitiva (em especial, de interesse público) aposta-se no processo (com coletivização adequada) e com um contraditório dinâmico e concentrado para subsidiar melhores e mais eficientes decisões”.

Dessa forma, supera-se o paradigma do liberalismo processual, centrado no 5 6

THEODORO JÚNIOR; NUNES; BAHIA, op. cit. Ibid., p. 124.

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princípio dispositivo, e também o paradigma do socialismo processual, que preconiza a intervenção inquisitória do juiz. O debate processual assume papel de extrema relevância para a construção do provimento de forma comparticipativa. Atribui-se importância à participação equilibrada de todos os sujeitos processuais, de maneira policêntrica. O processo se torna instrumento ou instituição constitucional que tem por objetivo tutelar direitos fundamentais, e tem como ponto central a participação dos sujeitos processuais por meio de sua argumentação. A concepção de devido processo legal se materializa na ideia de processo justo, que para isso deve se adequar a realizar o melhor resultado concreto, em face dos desígnios do direito material7. Como explica Nunes8: Já nessa tese se defende que o procedimento é constitutivo de todo o processo de decisão, de modo que para o aqui defendido processualismo constitucional democrático a comparticipação e o policentrismo são institutivos de um processo normativamente disciplinado pelos direitos fundamentais, que garantirá uma formação adequada dos provimentos, sem que estes possuam conteúdos fixos pré-determinados, ao se aplicarem as normas (princípios e regras). Tal procedimento respeitará e fomentará a participação e contribuição de todos os envolvidos nas esferas decisórias.

Dessa forma, a discursividade assume relevância inquestionável e é reforçada cada vez mais com a conformação, pela doutrina, de uma teoria normativa dos precedentes judiciais9. Esses precedentes judiciais serão formados a partir da interpretação das normas jurídicas com base na argumentação trazida pelas partes no processo. Por isso, essa participação deve ser dinâmica, de maneira que o direito seja aplicado na prática social. Os precedentes devem ser sistematicamente (des)construídos pela aplicação da norma nos tribunais. Essa é a importância de se adotar uma teoria dos precedentes judiciais que seja coerente com a teoria normativa dos precedentes, aplicando-se o mootness principle (princípio da vinculação ao debate), que leve verdadeiramente em conta os argumentos trazidos pelas partes no processo10.

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THEODORO JÚNIOR, Humberto. A constitucionalização do processo no Estado Democrático de Direito. In: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira; CÂMARA, Alexandre Freitas (Coord.). Novo CPC: reflexões e perspectivas. Belo Horizonte: Del Rey, 2014. 8 NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e policentrismo: horizontes para a democratização processual civil. 2008. 217f. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito, p. 104. Disponível em: . Acesso em: 8 jan. 2016. 9 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do Precedente Judicial: A justificação e a aplicação das regras jurisprudenciais. 1. ed. São Paulo: Noeses, 2012. 10 DERZI, Misabel de Abreu Machado; BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. O efeito vinculante e o princípio da motivação das decisões judiciais: em que sentido pode haver precedentes vinculantes

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Contudo, no Brasil, na tentativa de adequar o processualismo à Constituição de 1988 e ao contexto econômico do país, no final da década de 1990, cria-se o chamado modelo neoliberal de processo. Esse modelo não oferecia risco ao mercado, delineando-se um protagonismo judicial peculiar, em que se defenderia o reforço do papel da jurisdição e o ativismo judicial, mas não se assegurariam as condições institucionais para um exercício ativo da perspectiva socializante11. Esse modelo neoliberal irá garantir uma uniformidade decisional que assegura alta produtividade decisória, de acordo com padrões de eficiência, e a defesa máxima da sumarização da cognição, enfraquecendo a importância do contraditório e da estrutura comparticipativa processual. Portanto, aproveitou-se do discurso socializante para produzir decisões em larga escala, sem uma preocupação real com

a

aplicação

social

do

Direito

ou

com

a

produção

de

respostas

constitucionalmente adequadas12. Esse discurso da produção de decisões judiciais em larga escala está na raiz das últimas reformas do Código de Processo Civil, e não foi abandonado com a promulgação do Novo Código de Processo Civil. Apesar de realizadas a partir do discurso da garantia dos princípios constitucionais, enfraquece-se o viés garantista do processo em detrimento de concepções funcionais e de eficácia13. Visualiza-se a partir do relatório do CNJ realizado pelo grupo de pesquisa coordenado pelo Prof. Thomas da Rosa Bustamante da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que a prática forense não tem levado a discursividade das partes em consideração. Isso decorre de uma aplicação equivocada dos institutos de padronização decisória aliada a não aplicação de uma teoria dos precedentes judiciais nos tribunais brasileiros. A opção pelo Estado Democrático de Direito traz a necessidade de um modelo de processo constitucional democrático. Assim, este não deve ser visto como mero instrumento formal que viabiliza a aplicação do direito com máxima eficiência,

mas

como

garantia

fundamental,

de

estrutura

normativa

no direito brasileiro?. In: FREIRE, Alexandre et al. (Org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o projeto do novo CPC. 1. ed. Salvador: Jus Podivm, 2013, v. 1, p. 333-362. 11 MOTTA, Francisco José Borges; HOMMERDING, Adalberto Narciso. O que é um modelo democrático de processo?. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 73, p. 183-206, jan./abr. 2013. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2015. 12 Idem. 13 Idem.

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constitucionalizada, apta a viabilizar provimentos jurisdicionais construídos a partir da dialógica processual, para a tutela de direitos.

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3 PRECEDENTES E DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.1 Litigância de Interesse Público e demandas pseudoindividuais Em face da inoperância dos poderes Executivo e Legislativo para dar concretude às normas constitucionais, notadamente no que diz respeito aos direitos fundamentais, passamos a vivenciar o fenômeno da judicialização de diversas temáticas, fruto em alguma medida da garantia de amplo acesso à Justiça trazida pelo Texto Maior14. Essa judicialização é chamada de Litigância de Interesse Público (Public Interest Litigation). De acordo com a doutrina de Theodoro Júnior, Nunes e Bahia15: A expressão public interest encontra amplo respaldo na literatura jurídica norte-americana. Nos Estados Unidos as expressões public interest law e public interest litigation são utilizadas quando o direto é relacionado ao interesse de uma coletividade em oposição a normas de interesse individual e também para indicar a advocacia em defesa dos necessitados minoritários na sociedade.

Assim, essa modalidade de litigância exige a efetivação de políticas públicas. A forma como ela tem se desenvolvido nos últimos anos nos Estados Unidos alterou significativamente o padrão processual tradicional, de um modelo que consagrava o protagonismo judicial para um modelo comparticipativo de processo 16. Entretanto, apesar dos instrumentos processuais de litigância coletiva, muitas das vezes essa litigância de interesse público ocorre de forma individualizada. E não poderia ser diferente, vez que toda pessoa individualmente considerada possui direito às políticas públicas constitucionalmente garantidas, como a saúde e a educação. Por consequência, existe uma profusão de demandas dessa natureza no poder judiciário, que colocam um grande desafio, notadamente aos magistrados. Os juízes não podem prever os impactos de todas as suas decisões em temáticas de interesse público, pois não possuem formação em todas as áreas do conhecimento em questão. Imperativo, portanto, abandonar o solipsismo judicial e que todas as partes eventualmente interessadas sejam chamadas a participar do processo e que seus argumentos sejam efetivamente levados em consideração. Outro termo adotado pela doutrina é o de demandas pseudoindividuais, 14

THEODORO JÚNIOR; NUNES; BAHIA, op. cit. Ibid., p. 129. 16 THEODORO JÚNIOR; NUNES; BAHIA, op. cit. 15

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cunhada por Kazuo Watanabe. As demandas pseudoinviduais consistem na litigância individual que visa o aproveitamento de bens coletivos. Isso ocorre porque o sistema jurídico atribui a entes individualizados situações jurídicas que possuem um conteúdo relacionado ao aproveitamento desses bens coletivos. Exemplo dessa situação é o art. 1.277 do Código Civil, que prevê que “o proprietário ou possuir de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização da propriedade vizinha”17. Essa possibilidade e, eventualmente, a necessidade de litigar individualmente, demandando a efetivação de uma política pública no caso da Litigância de Interesse Púbico, ou o aproveitamento de um bem coletivo, no caso das demandas pseudoindividuais, cria uma profusão de demandas que abarrota o Judiciário. Além disso, essa demanda individualizada pode acarretar em provimentos jurisdicionais diferentes, mesmo quando os casos sejam semelhantes. Isso se torna problemático na medida em que podem gerar iniquidade, ao se tratar de maneira diferente situações semelhantes.

3.2 Profusão de demandas, igualdade e segurança jurídica: desafios do direito processual brasileiro Como dito, a profusão de demandas, criada em razão da estratégia de utilização do Poder Judiciário como espaço contra-majoritário para a tutela de direitos e garantias individuais, tanto na Litigância de Interesse Público quanto nas demandas pseudoindividuais, pode acarretar provimentos jurisdicionais diferentes para casos semelhantes. Isso se torna um problema, na medida em que os princípios da igualdade e a segurança jurídica são basilares para um Estado Democrático de Direito. A consagração do princípio da igualdade permite que o tratamento desigual apenas seja utilizado quando necessário para a realização da própria igualdade, isto é, quando existem fatores que justificam e impõem o tratamento desigual. Assim, são rechaçadas possíveis discriminações

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LIMA, Bernardo. As demandas pseuindividuais e o regime jurídico do novo CPC. In: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira; CÂMARA, Alexandre Freitas (Coord.). Novo CPC: reflexões e perspectivas. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.

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gratuitas, não fundadas em elementos ou critérios capazes de, lógica e substancialmente, imporem um tratamento desigual18. Tanto o Estado quanto os particulares estão vinculados ao princípio da igualdade, sofrendo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a mesma incidência do princípio. No âmbito do Poder Judiciário, atualmente ele se submete ao princípio apenas no que diz respeito ao tratamento das partes de forma igualitária no interior do processo. Tanto é que a consagração desse princípio está sempre vinculada à consagração do contraditório e da “paridade de armas” no processo19. Entretanto, não se pode conceber a aplicação do princípio da igualdade ao Poder Judiciário apenas na igualdade no processo, mas também nos âmbitos de igualdade ao processo e igualdade diante das decisões judiciais. De fato, é uma grande ingenuidade supor que o texto legal somente possa ter um significado ou uma interpretação. Por mais perfeita que seja construção linguística do texto legal, a norma tem, em menor ou maior latitude, significado equívoco e indeterminado, e, assim, abre oportunidade a uma ampla variedade de interpretações, o que, por si só, já fundamenta um sistema de precedentes. Contudo, é preciso impedir que haja uma multiplicidade de normas jurídicas para casos iguais, gerando insegurança e desigualdade20. A igualdade ao processo seria a igualdade de acesso à jurisdição e igualdade de procedimentos e de técnicas processuais. Trata-se de uma igualdade ligada ao acesso à justiça aos hipossuficientes21. Nesse aspecto, a legislação brasileira avança com mecanismos diferenciados de acesso à Justiça, seja por meio da criação de Defensorias Públicas, seja por meio de procedimentos diferenciados como os dos Juizados Especiais. Mas, ainda há uma grave lacuna diante da ausência de uma garantia de igualdade diante das decisões judiciais. Afinal, a igualdade no interior do processo e a igualdade ao processo só fazem sentido porque elas têm por objetivo provimentos jurisdicionais coerentes, como afirma Marinoni22 Ora, o acesso à justiça e a participação adequada no processo só tem sentido quando correlacionados com a decisão. Afinal, esta é o objetivo daquele que busca o Poder Judiciário e, apenas por isso, tem necessidade 18

MARINONI, op. cit. Idem. 20 Idem. 21 Idem. 22 Idem. 19

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de participar do processo. Em outros termos, a igualdade de acesso, a igualdade à técnica processual e a igualdade de tratamento no processo são valores imprescindíveis para a obtenção de uma decisão racional e justa.

Dessa forma, o direito ao processo justo é satisfeito quando observados determinados direitos fundamentais de natureza processual, como o direito à efetividade da tutela jurisdicional e o direito ao contraditório. Mas, a legitimidade da jurisdição não depende apenas da observância destes direitos e nem pode ser alcançada somente pelo procedimento em contraditório e adequado ao direito material. É imprescindível pensar em direito ao processo justo por meio da legitimação em razão do conteúdo da decisão23. Assim, quando se fala em processo justo, não se trata apenas de um procedimento instrumentalmente justo, mas também em decisões justas. E não é possível falar em decisões justas quando casos iguais são decididos de forma diferente sem justificativa razoável para tanto. A segurança jurídica pode ser vista como previsibilidade e estabilidade da ordem jurídica sendo indispensável para a conformação do Estado Democrático de Direito. Trata-se da segurança que o particular tem de que o Estado e os terceiros se comportarão de acordo com o direito e de que os órgãos incumbidos de aplicá-lo o farão quando desrespeitado. Por outro lado, a segurança jurídica também importa para que o cidadão possa definir o seu próprio comportamento, ao conseguir prever as consequências de suas ações24. Dessa forma: Em outra perspectiva, a segurança jurídica reflete a necessidade de a ordem jurídica ser estável. Esta deve ter um mínimo de continuidade. E isso se aplica tanto à legislação quanto à produção judicial, embora ainda não haja, na prática dos tribunais brasileiros, qualquer preocupação com a estabilidade das decisões. Frise-se que a uniformidade na interpretação e aplicação do direito é um requisito indispensável ao Estado de Direito. Há de se perceber o quanto antes que há um grave problema num direito variável de acordo com o caso.25.

Esse grave problema ocorre quando casos semelhantes não são decididos de formas semelhantes. A aplicação do direito varia de acordo com o caso sem a coerência e a integridade necessárias à racionalidade do provimento jurisdicional, criando uma situação de imprevisibilidade das decisões judiciais. 23

Idem. MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da segurança jurídica. Processos Coletivos, Porto Alegre, vol. 2, n. 2, 01 abr. 2011b. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2015. 25 Idem. 24

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Para que exista previsibilidade é necessário conhecer as normas jurídicas, que já são inúmeras. Contudo, como as normas jurídicas são passíveis de interpretação, além de conhecê-las, seria preciso também conhecer a interpretação dessas normas e que essas interpretações sejam estáveis, caso contrário, torna-se impossível essa previsibilidade. Assim, o que propõe Marinoni26 é que a interpretação das normas jurídicas se aproxime do ideal de previsibilidade. Isso não quer dizer que a eliminação da dúvida interpretativa é factível, mas sim que se pode e deve minimizar, na medida do possível, as divergências interpretativas acerca das normas, colaborando-se, assim, para a proteção da previsibilidade, indispensável ao encontro da segurança jurídica. E a forma de minimizar essas divergências interpretativas seria pelo precedente vinculante. Para isso, Marinoni27 toma como referência o sistema de common law, mediante o instituto do stare decisis, que possui plena capacidade de garantir a previsibilidade. É nessa dimensão que se pode falar em “ética do legalismo”, nos termos de MacCormick. A previsibilidade das decisões, vista como legalismo, constitui valor moral imprescindível para o homem, de forma livre e autônoma28. Portanto, o precedente vinculante permite ao jurisdicionado prever as consequências jurídicas dos seus atos e condutas, permitindo-se confiar nas decisões já tomadas. Com isso, elas poderiam ser vistas como critérios para definir o seu comportamento29. Tendo em vista esses argumentos é que a legislação processual brasileira começou a adotar diversos mecanismos que teriam inspiração no common law e no instituto do stare decisis. Contudo, a importação desses institutos desvinculada da correta aplicação da teoria dos precedentes judiciais pode trazer distorções que vão de encontro à garantia da igualdade e da segurança jurídica.

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MARINONI, op. cit. Idem. 28 Idem. 29 Idem. 27

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4 O USO DOS PRECEDENTES NO BRASIL

4.1 Fenômeno de convergência entre os sistemas jurídicos de civil law e common law

4.1.1 A origem dos sistemas A classificação dos ordenamentos jurídicos em uma das duas grandes famílias chamadas de common law e civil law vem sendo progressivamente questionada na medida em que os próprios ordenamentos intra-famílias se distanciam, como é o caso do direito inglês em comparação ao norte-americano no common law. Contudo, é inquestionável que as duas matrizes históricas existem e a sua diferenciação ainda consiste em meio próprio para facilitar a compreensão das duas grandes tradições jurídicas30. As histórias do poder foram determinantes para a diferenciação entre os dois sistemas que, na verdade, detinham a mesma origem costumeira herdada pelo direito costumeiro da Normandia. Com a Revolução Francesa de 1789 houve uma grande ruptura com a ordem política e jurídica, que delineou o sistema de civil law como o conhecemos hoje. Nela, os juízes foram alvos de desconfiança, em decorrência de sua forte ligação com a aristocracia francesa, de maneira que pósrevolução eles ficaram estritos a ditar a lei editada pela Assembleia Nacional (le juge bouche de la loi), em conformidade com as doutrinas de Rousseau e Montesquieu. Dessa forma, desenvolveu-se um sistema extremamente atrelado à lei, com pouca margem de interpretação das normas jurídicas, que apenas com o passar do tempo foi flexibilizado31. Noutro giro, na Inglaterra os juízes constituíram uma força progressista preocupada em proteger o indivíduo frente ao monarca, e também desempenharam papel importante para a centralização do poder e para a superação do feudalismo 32. Dessa forma, o common law (droit commum de l’île) continuou se desenvolvendo de forma progressiva com base nos costumes e, posteriormente, desenvolvendo os

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ATAÍDE JR. As tradições jurídicas de civil law e common law. In: FREIRE, Alexandre, et al. (Org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. 1. ed. Salvador: Juspodivm, 2013. v. 3. 31 Idem. 32 Idem.

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sistemas de case law, o que chamamos de sistema de precedentes, e o stare decisis, que consistem nos precedentes obrigatórios33.

4.1.2 A convergência entre os sistemas e sua aplicação no Brasil Existe uma tendência mundial de convergência entre os sistemas jurídicos de civil law e common law, identificada pelo Congresso da International Association of Procedural Law de 2009, de modo que não se pode mais afirmar que determinado Estado adote de modo puro um ou outro sistema. Aquele caracterizado pela exaustiva codificação legislativa e este pela força que representam os precedentes judiciais34. Essa tendência se observa, nos países de tradição do common law, no uso normativo por meio da lei e, nos países de tradição de civil law, no uso normativo por meio de precedentes judiciais obrigatórios35. Ainda de acordo com Ataíde Jr.36, vários fatores proporcionaram essa aproximação, dentre eles se destacam: a) o constitucionalismo; b) o Estado social; c) os conceitos indeterminados, cláusulas gerais e regras de textura aberta e, d) as demandas de massa. No Brasil, vemos cada vez mais o reforço do papel da jurisprudência, desde determinados dispositivos constitucionais, até as recentes reformas processuais que reforçaram o papel dos precedentes. Tenta-se importar para o direito brasileiro instrumentos que seriam ditos de common law, na tentativa de uniformizar a aplicação do direito. Foi-se criando, progressivamente, instrumentos de vinculação decisória, como súmula vinculante, dotar de efeito vinculante a motivação das decisões das cortes superiores, equiparação de efeito erga omnes com o efeito vinculante, objetivação do controle difuso de constitucionalidade, e até mesmo

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NERY JUNIOR, Nelson; ABBOUD, Georges. Stare decisis vs direito jurisprudencial. In: FREIRE, Alexandre, et al. (Org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. 1. ed. Salvador: Juspodivm, 2013. v. 3, p. 483-512. 34 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro – análise da convergência entre o civil lawe o common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de Processo, ano 35, n. 189, p. 9-52, nov. 2010. 35 DONIZETTI, Elpídio. A força dos precedentes no Novo Código de Processo Civil. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2015. 36 ATAÍDE JR, op. cit.

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objetivação do julgamento da lide pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)37. Desde sua promulgação, a Constituição de 1988 em seus artigos 102 e 105 coloca o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) como

órgãos

uniformizadores

da

interpretação

legal,

cabendo

àquele

a

uniformização do entendimento constitucional e a este a da legislação federal, prevendo inclusive a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões38. Com a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, é criada a súmula vinculante39, reforçando a autoridade das decisões do STF. Posteriormente, são criados outros dois institutos que, mais uma vez, visam reforçar a autoridade das decisões desses tribunais, aumentando o papel da jurisprudência: a repercussão geral para o STF e o recurso repetitivo para o STJ, incluídos respectivamente pelas leis nº 11.418/06 e 11.672/08. Previstos nos artigos 543-B e 543-C do Código de Processo Civil (CPC), esses institutos uniformizam o entendimento jurisprudencial dessas Cortes, a partir da decisão proferida para um recurso representativo de determinada controvérsia de direito. Com o grande crescimento da litigiosidade40, se aposta cada vez mais no uso da jurisprudência vinculante como solução viável tanto para a garantia da isonomia das decisões proferidas quanto como solução para o abarrotamento de processos no judiciário. Dessa forma, esses institutos têm sido apontados pela doutrina como a solução para os nossos problemas de insegurança jurídica. Contudo, apesar da importância inquestionável das alterações legislativas, é necessário que a doutrina também faça a crítica desses institutos, que certamente não são a panaceia para os problemas do Poder Judiciário brasileiro. Nas palavras de Nery Júnior e Abboud41: Na realidade, não é o civil law ou o common law que irá determinar o nível de segurança jurídica de um sistema, mas sim a qualidade de suas decisões manifestadas por um Judiciário que efetivamente leve a sério seu

37

NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit. Art. 102, I, l e art. 105, I, f da Constituição de 1988. 39 Art. 103-A da Constituição de 1988. 40Em 2014, o Poder Judiciário iniciou com um estoque de 70,8 milhões de processos, que tende a aumentar devido ao total de processos baixados ter sido inferior ao de ingressados (Índice de Atendimento à Demanda - IAD de 98,7%). Estima-se, portanto, que ao final de 2014 o estoque cresça em meio ponto percentual, ultrapassando, assim, 71,2 milhões de processos pendentes, de acordo com o relatório 2015 “Justiça em Números” do CNJ. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2015: ano-base 2014. Brasília: CNJ, 2015. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2015.). 41 NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit., p. 484. 38

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dever de concretizar a Constituição e a orientar a aplicação da lei em conformidade com ela.

4.2 O stare decisis e o direito jurisprudencial Continuam demonstrando os professores Nery Júnior e Abboud42 que o mecanismo de stare decisis adotado pelo sistema common law se diferencia substancialmente do modo como a jurisprudência é aplicada hoje no processo civil brasileiro, pois: Em suma, no common law, inexiste aplicação mecânica ou subsuntiva na solução dos casos mediante a utilização do precedente judicial. Não existe uma prévia e pronta regra jurídica apta a solucionar por efeito cascata diversos casos futuros, pelo contrário, a própria regra jurídica (precedente) é fruto de intenso debate e atividade interpretativo e, após ser localizado, passa-se a verificar se, na circunstância do caso concreto que ele virá solucionar, é possível utilizá-lo sem que ocorram graves distorções, porque caso elas fiquem caracterizadas, o precedente deverá ser afastado. 43.

Isso ocorre porque o precedente judicial possui uma ratio decidendi. De acordo com Derzi e Bustamante44, é possível definir a ratio decidendi como “uma regra jurídica que é expressa ou implicitamente tratada pelo juiz como um passo necessário para alcançar a sua conclusão”. Assim, ela é uma norma universalizável, extraída indutivamente de um precedente judicial que deve ser aplicada quando em casos semelhantes for possível replicar os mesmos fundamentos. Contudo, por ser um processo indutivo de universalização, na maioria dos casos podemos encontrar não apenas uma única, mas diferentes rationes decidendi45. O precedente judicial possui uma indeterminação que não permite sua aplicação mecânica ou subsuntiva. A padronização decisória não pode ser aplicada de maneira estática, em massa, sob pena aplicar em determinados casos fundamentos que não são determinantes na controvérsia, deturpando, assim, o instituto. A maneira como os precedentes vinculantes foram adotados inicialmente no Brasil fugiu consideravelmente desses pressupostos, principalmente em relação à súmula vinculante:

42

NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit. NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit., p. 490. 44 DERZI; BUSTAMANTE, op. cit. 45 Idem. 43

23

A súmula vinculante, ao contrário dos precedentes norte-americanos, vale pelo seu enunciado genérico e não pelos fundamentos que embasaram determinada decisão de algum Tribunal. Nessa perspectiva, Alessandro Pizzorusso enfatiza que a eficácia do precedente depende diretamente dos pressupostos lógicos (motivos) da decisão que originou. 46.

A aplicação de institutos ditos de common law no processo civil pátrio por meio de alteração legislativa não corresponde à sua essência. O direito comum foi progressiva e historicamente construído, sem necessidade de leis para concretizá-lo. A sua força vinculante advém da tradição jurídica própria da comunidade em que se formou47. A partir do momento em que importamos determinados institutos sem essa tradição jurídica vemos que não houve, por consequência, a incorporação simultânea de uma teoria dos precedentes judiciais pelo poder judiciário que seja compatível com as alterações legislativas. Essa é a grande diferença entre atribuir efeito vinculante às decisões das cortes superiores e, com o novo CPC, até mesmo às decisões dos tribunais, e um verdadeiro sistema de precedentes. Como já demonstrado, o precedente não possui em sua estrutura o que é vinculante. Quando ele é aplicado para se decidir uma questão jurídica, essa aplicação nunca é automática. O seu uso na fundamentação da decisão jurídica depende da fundamentação do juiz motivando como a incidência do precedente acontecerá no caso concreto. A aplicação dos precedentes judiciais não pode ser feita pelos seus próprios fundamentos. A aplicação do sistema de precedentes é diferente em relação a nossa técnica de utilização da solução paradigma para processos repetitivos. A utilização do precedente para solucionar o caso concreto exige intensa interpretação e realização de contraditório entre as partes. Já o uso dos mecanismos vinculantes existentes no processo civil atual CPC e ampliados no novo CPC, trazem a ideia de que seria dispensável nova argumentação das partes – até mesmo porque o processo em que elas atuam estaria sobrestado – para que o juiz/tribunal decidisse imediatamente a lide a partir do que ficou estabelecido na decisão paradigma proferida pelas instâncias superiores. Ante o exposto, Nery Júnior e Abboud48 diferenciam jurisprudência e precedentes:

46

NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit., p. 492. NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit. 48 NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit., p. 499. 47

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A jurisprudência, diferentemente do precedente, tem sua origem primordial a partir de reiteradas decisões das Cortes Superiores e sua função principal é delimitar e estabelecer regras jurídicas a serem consolidadas em verbetes sumulares. Por fim, os dois institutos diferenciam-se em virtude da possibilidade de se precisar o alcance da jurisprudência, mormente quando representada por verbetes sumulares, diferentemente do precedente, cuja delimitação é bastante controvertida e problemática.

Portanto, a grande diferencia entre os precedentes e a jurisprudência estaria no âmbito de vinculação. Assim, a atribuição desmedida de efeitos vinculantes às decisões de instâncias superiores impede a formação da própria jurisprudência, que se torna engessada. Afinal, a jurisprudência, como legítima fonte do direito, tem que ser fruto de decisões devidamente debatidas e interpretadas, com as contradições e evoluções que são ínsitas a todo processo histórico49.

4.3 A aplicação dos precedentes no direito brasileiro As críticas do Prof. Nery Júnior estão em consonância com a pesquisa do CNJ coordenada pelo Prof. Thomas da Rosa Bustamante50, que analisa a aplicação do precedente no direito brasileiro e seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário. A pesquisa estuda os precedentes a partir da perspectiva de uma teoria dos precedentes dotada de uma pretensão de universalidade. Há uma identidade estrutural entre o raciocíno por precedentes no common law em relação ao Direito continental europeu, não havendo um método ou procedimento e raciocínio substancialmente diferentes nas duas grandes tradições jurídicas contemporâneas. Dessa forma, é possível, a partir da teoria normativa dos precedentes judiciais, extrair das decisões os seus precedentes, formadas essencialmente pela sua ratio decidendi51. Com isso, realizou-se uma investigação empírica da prática de se seguirem precedentes judiciais e súmulas no direito brasileiro, com vistas a revelar a compreensão que o Poder Judiciário tem do precedente judicial e do direito 49

NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa et al. (Coord.). A força normativa do direito judicial: uma análise da aplicação do precedente no direito brasileiro e dos seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2015. 51 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do Precedente Judicial: A justificação e a aplicação das regras jurisprudenciais. 1. ed. São Paulo: Noeses, 2012. 50

25

jurisprudencial. Analisou-se acórdãos, comparou-se casos e argumentos trazidos pelas partes e enfrentados (ou não) pelos juízes, bem como entrevistas com juízes, desembargadores, assessores e partes, a fim de constatar os padrões decisórios 52. Em entrevista a Desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) eles não se apresentaram otimistas em relação à aplicação dos institutos de repercussão geral e recurso repetitivo dos artigos 543-B e 543-C do CPC para a coerência da jurisprudência no Brasil, e afirmaram que, por vezes, a solução para problemas de litigiosidade em massa está fora do Judiciário53. Os Desembargadores relatam ainda a ocorrência de sobrestamentos equivocados, prejudicando as partes que têm direito à prestação jurisdicional eficiente. Em alguns processos, apenas quando colocados em julgamento para juízo de retratação e adequação da matéria ao entendimento esposado pelo reconhecimento do Recurso Paradigma, percebe-se que o processo em pauta não envolve

a

matéria

do

tema

controvertido

e

teria

sido

sobrestado

desnecessariamente54. A pesquisa constatou que isso ocorre porque no momento da aplicação da suspensão ou sobrestamento dos processos não é feita uma comparação analítica entre o caso paradigma e as decisões a serem suspensas de forma justificada55. Ainda, alguns recursos sobrestados abordavam mais questões do que o Recurso Representativo escolhido como paradigma, de forma que nem todos os argumentos do caso sobrestado eram analisados no Recurso Representativo de controvérsia. Esse problema ainda se potencializa quando esses recursos são analisados posteriormente pelos juízes a quo, que não levam em consideração os argumentos fora do parâmetro da controvérsia decidida pelas Cortes Superiores56. O relatório também demonstra que há uma grande dificuldade para os juízes

52

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa et al. (Coord.). A força normativa do direito judicial: uma análise da aplicação do precedente no direito brasileiro e dos seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2015. 53 Idem. 54 Idem. 55 Em um total de 182 processos analisados no TJMG, TJDF, TRF1, TJEPA, TJPB, TRF5, TJRS e TRF4, em apenas 13 houve essa comparação, conforme o gráfico de página 106 do Relatório (BUSTAMANTE, op. cit.). 56 Nessa mesma amostragem de 182 processos se constatou que 59 processos traziam argumentos que não foram objeto de análise pelo Recurso Representativo. Desses 59, 41 não foram rejulgados, mesmo havendo argumentos não analisados pelo STJ no Recurso Representativo da Controvérsia, conforme páginas 114 e 115 do Relatório (BUSTAMANTE, op. cit.).

26

em ter acesso aos leading cases57 que fundamentam determinadas jurisprudências, notadamente as súmulas. Ora, se a aplicação de um precedente exige um processo interpretativo que busque a ratio decidendi compatível, o desconhecimento do leading case impossibilita a aplicação racionalmente fundamentada do precedente. Assim, dificulta-se a possibilidade de fazer o distinguish58 e o overruling59 das decisões. Isso ocorre porque tanto o Supremo Tribunal Federal (STF), quanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não disponibilizam os debates sobre a instituição das súmulas sem efeitos vinculantes, mesmo que o Regimento Interno de ambas as Cortes tenham essa previsão60. Ainda que analisados os argumentos das partes e a fundamentação do acórdão proferido, a pesquisa relata que, majoritariamente, o STJ analisa apenas parcialmente os argumentos do Recorrente, desconsiderando grande parte da sua argumentação, ainda que decidindo em consonância com o provimento do recurso 61. Constatou-se, também, que, a partir dos recursos analisados, são raras as ocasiões em que o STJ decidiu de forma inovadora no processo, fundamentando a decisão em argumentos não levantados nem pela parte recorrente ou pela recorrida, muito menos por terceiros em sede de amici curiae. A conclusão que se chega é que, mesmo quando provocados a apresentar seus argumentos no processo, a participação de terceiros tem pouca influência na formação dos precedentes da Corte62. Por isso, a aplicação de precedentes obrigatórios como forma de concretizar os princípios da igualdade e da segurança jurídica fica prejudicada, vez que quando aplicados de forma padronizada, sem a devida análise da ratio decidendi, cria-se, na verdade, iniquidades. Assim, tem-se como uma das conclusões da pesquisa: 57Leading

cases são os casos que originam determinado precedente judicial. No caso das técnicas de repercussão geral e recurso repetitivo, são os casos paradigmáticos ou recursos representativos da controvérsia, que uma vez julgados a decisão é aplicada aos demais casos suspensos ou sobrestados. 58O distinguishing ocorre quando o caso concreto em julgamento apresenta particularidades que não permitem aplicar adequadamente a jurisprudência do tribunal, havendo "distinção entre normas jurídicas e a norma de decisão. 59O overruling é uma mudança que ocorre quando um tribunal, ao julgar determinado caso concreto, percebe que sua jurisprudência precisa ser revista. 60 BUSTAMANTE, op. cit. 61 Os recursos especiais repetitivos já julgados pelo STJ foram analisados a partir de amostra de 50 processos (originários das três Seções do Tribunal), escolhidos por meio de coleta de dados pela internet sobre o conteúdo das decisões e principais petições formuladas no processo. Foi utilizado um formulário (Anexo IV da pesquisa) e foram analisados nos acórdãos se os argumentos das partes foram levados em consideração, a partir da confrontação com a petição inicial. 62 BUSTAMANTE, op. cit.

27

É possível afirmar, por meio da análise realizada pela pesquisa, que as súmulas podem ser importante instrumento para a busca da segurança jurídica, da previsibilidade, da proteção à confiança e o respeito à igualdade. Entretanto, elas podem comprometer o processo de individualização do direito, a partir do momento em que as instâncias ordinárias do Poder Judiciário passam a aplicá-las sem uma justificativa plausível, que vise não apenas à celeridade processual, como também à efetividade do processo.63.

A previsibilidade das decisões é tão importante quanto à possibilidade de sua refutação. O princípio do contraditório não pode ser mitigado em prol de uma uniformização engessada, de modo que o Tribunal deve considerar o entendimento das instâncias superiores, mas sempre analisando as peculiaridades e as singularidades de cada caso concreto.

63

Idib, p. 52;

28

5 FORMAÇÃO DEMOCRÁTICA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS

5.1 O caráter argumentativo do direito Como já afirmado, o debate processual assume papel de extrema relevância para o provimento comparticipativo das decisões jurisdicionais exatamente em razão do caráter argumentativo do direito. Para que a formação dos precedentes judiciais ocorra de maneira democrática a sua aplicação deve levar esse caráter argumentativo, não apenas dando oportunidade para as partes se manifestarem no processo, mas levando em consideração esses argumentos. Certamente o Estado de Direito tem como princípio os valores da igualdade e da segurança jurídica, que são expressos pela certeza que deve possuir o direito. Contudo, esses não são os únicos valores, já que a racionalidade e a justiça também figuram entre valores básicos que constituem ideal fundamental do Estado Democrático de Direito. Nas palavras de Bustamante64: Nesta interpretação, a indeterminação do direito não é algo para ser sempre deplorado. Ela tem a ver com a ideia de Estado de Direito e com as regras procedimentais de argumentação que se encontram pressupostas na estrutura institucional que ela provê. As ideias de imparcialidade e de equidade entre as partes em uma disputa jurídica, assim como o princípio fundamental consubstanciado no brocado auditur et altera pars, estão necessariamente conectados à ideia fundamental do Estado de Direito e ao caráter argumentativo do sistema jurídico.

O direito consiste numa prática interpretativa a partir do momento em que o sentido de suas normas é gradualmente construído, ao invés de descoberto pela simples observação de fenômenos empíricos. O direito enquanto prática social é inerentemente

argumentativo,

e

uma

das

características

particulares

da

argumentação jurídica é que ela permanece aberta a argumentos morais, éticos e pragmáticos que estão presentes no discurso jurídico. Dessa forma, o Estado Democrático de Direito necessita e, de certa forma, amplia o caráter discutível do direito65. Assim, no paradigma do Estado Democrático de Direito, os juízes e os 64

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Sobre o caráter argumentativo do direito: uma defesa do póspositivismo de Neil MacCormick. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 106, p. 263-313, jan./jun. 2013. p. 271. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2015. 65 BUSTAMANTE, op. cit.

29

tribunais, conscientes da indeterminação estrutural do direito, devem conciliar dois critérios no processo decisório: o princípio da certeza jurídica, que requer decisões conscientemente tomadas de acordo com o quadro da ordem jurídica vigente; e a pretensão de legitimidade, que requer decisões racionalmente fundadas nos fatos que integram o caso concreto, de forma que os coassociados possam considerá-las decisões racionais66.

5.2 Padronização decisória e discursividade hegemônica Essa racionalidade do caráter argumentativo do direito tem sido prejudicada pela aplicação em massa de precedentes judiciais vinculantes. A padronização decisória quando aplicada de maneira estática e em massa gera graves distorções. Da forma como os precedentes são tratados atualmente no país a padronização judicial, em vez de trazer igualdade e segurança jurídica, muitas vezes empobrece o discurso

jurídico67.

Essa

aplicação

dos

precedentes

é

consequência

da

desnaturação do movimento de socialização processual no Brasil para uma perspectiva pseudo-social, aplicando o modelo neoliberal de processo. Ele garante uma aplicação do direito em larga escala, por meio de decisões padronizadas, não pormenorizadas, sem se valer de possíveis benefícios da oralidade e sem exercer ingerências a partir do processo68. Ainda de acordo com Nunes69: Essa constatação, reunida com as perspectivas neoliberais, começa a idealizar técnicas processuais como a do julgamento liminar de ações repetitivas (do art. 285 A, CPC, introduzido pela lei 11.277/06) e a do julgamento em massa da admissibilidade de recursos extraordinários idênticos como estabelecido pela EC45/04 e pelos arts. 543 A e B, CPC, introduzidos pela lei 11.418/06), que indicam um horizonte pouco social e inteiramente massificante e produtivo no processo brasileiro.

Os Tribunais no Brasil não funcionam como verdadeiras cortes de 66

COURA, Alexandre de Castro. Limites e possibilidades da tutela jurisdicional no paradigma do Estado Democrático de Direito: para uma análise crítica da “jurisprudência de valores”. In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, v. 1, p. 403-446. 67 NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. “Jurisprudência instável” e seus riscos: a aposta nos precedentes vs. uma compreensão constitucionalmente adequada do seu uso no Brasil. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro, MARINONI, Luiz Guilherme, WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. v. 2. 68 NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e policentrismo: horizontes para a democratização processual civil. 2008. 217f. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito. Disponível em: . Acesso em: 8 jan. 2016. 69 Ibid., p. 123.

30

precedentes, mas como instância de controle e revisão70. Isso contribui para que os precedentes funcionem como regras decisórias, fundamentadas somente a partir do que

efetivamente

chega

às cortes superiores,

não formando parâmetros

argumentativos71. Essa ratio jurisprudencial acaba congelando o rumo das decisões, realizando a eternização da autocracia jurídica de uma “justiça rápida”, pela construção pretoriana sabiamente uniformizada72. Argumenta-se que “casos iguais devem ser decididos de forma igual”, com base no bordão “likes cases should be decided alikes”. Contudo, o bordão deve ser entendido por “casos semelhantes devem ser decididos de maneira semelhante”, posto que decisões iguais remetem a uma padronização decisória sem considerar a ratio decidendi, ou seja, os motivos determinantes para a decisão e que são de fato vinculantes, não apenas as ementas. O quadro parece ainda pior quando se observa a maneira como essa padronização decisória vem sendo aplicada, como constatou o estudo coordenado pelo Prof. Bustamante73, visto os fenômenos de subinclusão da argumentação das partes nos recursos representativos da controvérsia e a aplicação dos precedentes sem análise dos leading cases, dificultando o distinguishing e o overruling. Esse modelo de padronização decisória é contrário ao processualismo constitucional democrático, vez que, amparados pelos argumentos da celeridade e eficiência processual, não há formação do provimento jurisdicional de maneira comparticipativa e policêntrica. Se a Constituição possibilita um uso “emancipador” e “contra-hegemônico” do processo, a padronização em massa inibe a argumentação, eternizando as decisões e criando uma discursividade hegemônica. Essa discursividade hegemônica se caracteriza por esse congelamento no rumo das decisões que impede o uso contra-hegemônico do processo, na medida em que se MARINONI, Luiz Guilherme. O “problema” do incidente de resolução de demandas repetitivas e dos recursos extraordinário e especial repetitivos. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 249, ano 40, p. 399-419, nov. 2015. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2015. 71 NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit. 72 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica: ato de decisão e legitimidade decisória, hermenêutica decisional na teoria discursiva, legitimidade decisória e devido processo constitucional. São Paulo: Landy, 2002. 73 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa et al. (Coord.). A força normativa do direito judicial: uma análise da aplicação do precedente no direito brasileiro e dos seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2015. 70

31

dificulta a superação de determinados argumentos. Essa discursividade hegemônica se torna ainda mais forte num cenário em que não existem condições plenas de acesso à justiça. No relatório de acesso à justiça de Cappelletti e Garth74 são apontadas algumas barreiras que dificultam o acesso à justiça por aqueles que os autores se referem como despossuídos. O primeiro fator apontado é a dificuldade de reconhecer a existência de um direito juridicamente exigível. Essa barreira fundamental é especialmente séria para os despossuídos, mas não afeta apenas os pobres. Ela diz respeito a toda população em muitos tipos de conflitos que envolvem direitos. Outra barreira é a disposição psicológica das pessoas para recorrer a processos judiciais, mesmo que conheçam seus direitos e saibam como buscá-los75. Certamente, a criação das Defensorias Públicas pela Constituição de 1988, aliada à criação de tribunais especializados para atender essas demandas, como os Juizados Especiais, melhorou substancialmente esse cenário. Contudo, mesmo quando se rompe essas barreiras de ordem pessoal, ainda existem dificuldades que permanecem. A maior delas, que se relaciona à ideia de discursividade hegemônica criada pela padronização decisória em massa, é a barreira enfrentada pelos indivíduos relativamente fracos com causas relativamente pequenas, contra litigantes organizacionais. Nas palavras de Cappelletti e Garth76: Os novos direitos substantivos das pessoas comuns têm sido particularmente difíceis de fazer valer ao nível individual. As barreiras enfrentadas pelos indivíduos relativamente fracos com causas relativamente pequenas, contra litigantes organizacionais – especialmente corporações ou governos – têm prejudicado o respeito a esses novos direitos. Tais indivíduos, com tais demandas, frequentemente não têm conhecimento de seus direitos, não procuram auxílio ou aconselhamento jurídico e não propõem ações. (...) A grande tarefa dos reformadores do acesso à justiça é, portanto, preservar os tribunais ao mesmo tempo em que aperfeiçoam uma área especial do sistema judiciário que deverá alcançar esses indivíduos, atrair suas demandas e capacitá-los a desfrutar das vantagens que a legislação substantiva recente vem tentando conferir-lhes.

Os despossuídos, mesmo quando possuem acesso formal à jurisdição, seja por meio da Defensoria Pública, seja nas hipóteses de capacidade postulatória, não possuem o acesso discursivo necessário de acesso ao judiciário, pois não têm a estrutura para litigar que têm as empresas. E isso se reflete na formação dos 74

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. 75 Idem. 76 Ibid., p. 34.

32

precedentes, que não leva em conta a diversidade de argumentos apresentados. Os litigantes organizacionais traçam estratégias processuais de longo prazo e extremamente custosas para os litigantes de varejo, com o objetivo de ver suas teses contempladas nas decisões judiciais. Assim, quando um juiz ou tribunal decide a favor de sua linha de argumentação, cria-se uma decisão precedente que reforçará futuramente essa mesma argumentação, em um círculo vicioso. A longevidade e o custo dessas demandas não é um problema para os litigantes organizacionais, o que faz com que os litigantes de varejo acabem celebrando acordos e não levando suas teses à diante. Com isso, a possibilidade dos litigantes de varejo terem suas teses contempladas pelo juiz, e, assim, aptas a formarem precedentes, são menores que dos litigantes organizacionais. Nas palavras de Theodoro Júnior et al77: Ao contrário do que se passa no common law, a utilização, no Brasil, dos precedentes e, em maior medida, do direito jurisprudencial na aplicação do direito é fruto de um discurso de matiz neoliberal, que privilegiava a sumarização da cognição, a padronização decisória superficial e uma justiça de números (eficiência tão somente quantitativa), configurando um quadro de aplicação equivocada (fora do paradigma constitucional) desse mesmo direito jurisprudencial que dá origem ao que se pode chamar de hiperintegração78 do direito.

Os litigantes habituais, percebendo essa tendência de fortalecimento do direito jurisprudencial já se articulam por meio de verdadeira litigância estratégica, principalmente nos tribunais superiores, para forjar entendimentos-padrão que atendam aos seus interesses. Assim, o precedente quando aplicado de forma errada, preventiva à litigiosidade, empobrece o discurso jurídico, impedindo que uma série de argumentos sejam levados em consideração. E, como demonstrado, esse quadro se agrava no contexto de uma litigiosidade em série ou repetitiva que tem como uma das partes um litigante habitual e organizacional.

5.3 Participação social na formação dos precedentes

77

THEODORO JÚNIOR, Humberto et al. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 327. 78 De acordo com Theodoro Júnior et al. (2015, p. 327), a expressão hiperintegração do direito se contrapõe ao que se pode chamar de desintegração do direito, gerada pela especificação exacerbada de um caso, cujas distinções com outro caso não justificariam o tratamento diferenciado em razão das partes estarem conectadas a uma totalidade. Ambas são vícios da prática judiciária que se localizam nos extremos, sendo o meio-termo a integridade do direito.

33

A legitimação de determinada norma jurídica não decorreria do fato de que todos sejam diretamente consultados, mas de que, em princípio, todos poderiam intervir no debate79. As decisões judiciais, ao decidirem determinado caso concreto formam uma norma jurídica individualizada, que deve ser acatada pelas partes do processo, mas que tem o potencial de criar precedentes. Esses precedentes, como anteriormente destacado, são formados em decorrência da universalização dos fundamentos determinantes que levam o julgador a decidir aplicando o direito de determinada maneira. Assim, a participação social na formação dos precedentes significa a possibilidade de todos poderem influenciar nas decisões judiciais e, com isso, influenciar na formação das decisões que serão tomadas ou não como precedentes. À luz da teoria hebermasiana, o critério de validade de uma norma jurídica existe quando todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes racionais80. A participação social no processo de elaboração das normas deve ser tal de maneira que os sujeitos estejam vinculados às normas que eles mesmos elaboraram, mesmo que de maneira indireta. No processo legislativo isso se dá de maneira muito clara por meio da representação e dos mecanismos diretos de participação. As origens do sistema jurídico civil law buscavam garantir que as decisões judiciais refletiriam o processo democrático ao limitar o juiz, colocando-o como aplicador da lei, essa sim democraticamente elaborada pelos representantes do povo. Sob pena de desvirtuar a vontade popular, não haveria sentido em se falar em formação democrática dos provimentos jurisdicionais e, assim, tampouco de formação democrática de precedentes judiciais. Compreendendo o direito enquanto prática interpretativa, a jurisdição assume cada vez um papel mais relevante na democracia. Contudo, a norma legislada e a norma judicializada possuem diferenças importantes, pois: Enquanto a norma legislada (leis e atos normativos) tem a capacidade de se individualizar no tempo e espaço, sendo produto da vontade popular por meio de seus representantes, a norma judicializada (decisões que se transformam em precedentes judiciais) tem uma ligação indissolúvel com o passado, não podendo ser descontextualizada do meio argumentativo no qual foi produzida.81

79

REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2010. Idem. 81 BUSTAMANTE, op. cit., p. 87. 80

34

Quando identificamos esse fenômeno de convergência entre os sistemas de common law e civil law, e, por conseguinte, adotamos uma relevância cada vez maior à interpretação das normas, é necessário rever uma série de questões sob pena de cairmos em contradição. Ao dizer de forma descontextualizada que “casos iguais devem ser decididos igualmente”, a principio, o modelo tradicional de civil law seria suficiente, pois o juiz “boca da lei” seria suficiente, já que as decisões funcionariam por mera subsunção do caso à regra. Nessa concepção tradicional, existiria apenas uma decisão X para um caso Y, em razão dessa aplicação da norma democraticamente elaborada pela sociedade civil, por meio de seus representantes eleitos, pelo juiz. Por isso que a máxima do “likes cases should be decided alike” já era utilizada pelas cortes reais francesa e inglesa antes do stare decisis82. Contudo, quando identificamos que a abstração da norma aplicada a um caso concreto exige um processo de interpretação, passamos a dar destaque aos precedentes judiciais. Nas palavras de Marinoni83: Ora, por mais perfeita que a sua construção linguística possa parecer, a norma – compreendida como texto legal – tem, em menor ou maior latitude, significado equívoco e indeterminado, e, assim, abre oportunidade a uma ampla variedade de interpretações – o que, por si só, já fundamenta um sistema de precedentes.

Entretanto, como afirma Nery Júnior e Abboud84, o common law também tem problemas de segurança jurídica, e por isso Dworkin elaborou a metáfora do juiz Hércules e do romance em cadeia. Assim, persistindo a insegurança jurídica, mais uma vez dissemos: “casos iguais devem ser decididos igualmente” e adotamos progressivamente os precedentes obrigatórios. Mas, em vez de aplicar corretamente a teoria dos precedentes, a legislação brasileira transforma a jurisprudência em fórmulas gerais e abstratas, como são as súmulas, e as aplicam também por meio de subsunção, como fazia o antigo sistema do juiz boca da lei. Entretanto, dessa vez, a norma jurídica de caráter abstrato é elaborada pelo juiz, e não mais pelos representantes democráticos, e é ainda recorrentemente aplicada de forma desvinculada do passado. Para o fortalecimento do direito jurisprudencial brasileiro, principalmente com 82

NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit. MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. Processos Coletivos, Porto Alegre, vol. 2, n. 2, 01 abr. 2011a. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2015. 84 NERY JÚNIOR; ABBOUD, op. cit. 83

35

a ampliação dos precedentes obrigatórios, é necessário cumprir alguns requisitos democráticos para a formação desses precedentes. Caso contrário, o direito jurisprudencial e a convergência dos sistemas de civil law e common law serão instrumentalizados pelo modelo neoliberal de processo para produzir decisões em massa, padronizando as decisões com empobrecimento do discurso jurídico. E nesse modelo de padronização cria-se uma discursividade hegemônica, por meio de precedentes que favorecem os litigantes habituais. Descumpre-se, assim, o requisito democrático da garantia de influência na formação das decisões. As minorias têm buscado o judiciário como um espaço contramajoritário, por isso, a formação democrática dos precedentes assume grande relevância, na medida em que sua discursividade deve ser levada em consideração.

36

6 OS PRECEDENTES NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O Novo Código de Processo Civil (Novo CPC), inserido no atual paradigma, não deixa de trazer em sua gênese uma tensão entre os modelos constitucional democrático e neoliberal de processo. Ao mesmo tempo em que melhora substancialmente em alguns pontos, evitando a aplicação de precedentes sem a devida fundamentação (solipsismo judicial), traz mecanismos de eficiência com base ainda inspirados nesse modelo neoliberal de processo.

6.1

Contraditório,

fundamentação

das

decisões

e

interpretação

dos

precedentes O Novo CPC traz inovações importantes no que diz respeito à formação democrática das decisões e, por consequência, dos precedentes. A primeira delas é a garantia de influência e não surpresa, que tem fundamento na comparticipação processual e é expressa pelo princípio do contraditório, contido no art. 10 da Lei: Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Assim, o princípio do contraditório recebe uma nova significação, passando a ser entendido como direito de participação efetiva na construção do provimento, sob a forma de uma garantia processual de influência e não surpresa para a formação das decisões85. A fundamentação das decisões é também requisito essencial para a formação democrática dos precedentes judiciais. Uma decisão fundamentada, que enfrenta efetivamente todos os argumentos trazidos pelas partes garante aos litigantes hipossuficientes que os seus argumentos foram efetivamente levados em consideração para a formação de decisões que podem se tornar precedentes. Não se admite mais no Novo CPC justificar uma decisão “por seus próprios fundamentos”, como tem sido feito recorrentemente nos tribunais pátrios. As decisões devem enfrentar todos os argumentos, explicando porque determinada tese jurídica foi aceita em detrimento da outra. Por isso, novidade importante do 85

THEODORO JÚNIOR et al., op. cit.

37

Novo CPC foi trazer à legislação processual as bases do que pode ser considerada uma decisão fundamentada, face à abstração da norma presente no art. 93, IX, da Constituição. Nesse sentido, o seu art. 489 traz em seus parágrafos: § 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2o No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. § 3o A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.

O juiz não mais pode se limitar à mera motivação, ou seja, o apontamento dos elementos que ele considerou mais relevantes no caso e que o fizeram tomar determinada decisão86. Essa necessidade de fundamentação se estende ao momento de aplicação pelo magistrado de precedentes ou súmulas. O inciso V do art. 489 deixa claro que os precedentes e as súmulas não podem ser aplicados mecanicamente por meio da citação de ementas ou enunciados isolados. É preciso buscar os “fundamentos determinantes”, ou seja, a ratio decidendi, justificando porque esses fundamentos se aplicam ao caso em questão ou se é um caso de distinção (distinguishing) ou superação (overruling) daquele entendimento. Nesse sentido que o art. 926 dispõe que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, observando a estabilidade tanto vertical, ou seja, quando as instâncias inferiores respeitam as decisões das instâncias superiores, quanto horizontal, quando instâncias de mesmo grau seguem seus precedentes. Outro dispositivo de extrema importância trazida pelo CPC/2015 é o do art. 927, §2º, que afirma que 86

THEODORO JÚNIOR et al., op. cit.

38

§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

Percebe-se que o Código busca ampliar a participação democrática na formação de seus julgados e, por consequência, dos precedentes. Assim, para se proceder à mudança de orientação, o Novo CPC faculta ao Tribunal a realização de audiências públicas, bem como da participação de amici curiae, o que mostra que os precedentes

serão

mais

abertos

ao

debate,

contribuindo

para

seu

aperfeiçoamento87. Contudo, não podemos vislumbrar o amicus curiae, tampouco as audiências públicas, como instrumentos necessariamente imparciais e neutros, uma vez que sua intervenção pode ocorrer de maneira estratégica, especialmente pela percepção que parcela dos litigantes habituais (repeat players) vêm usando da litigância estratégica, de modo a impactar a aplicação do direito e construir padrões decisórios benéficos a seus interesses88. Essa estabilidade, integridade e coerência nos precedentes têm por objetivo garantir a segurança jurídica e a isonomia, como defendido por Marinoni. Nesse sentido, mesmo que exista mudança no entendimento do Tribunal, o novo Código prevê a possibilidade de modulação de seus efeitos e a necessidade de fundamentação adequada no caso do overruling, como dispõe o art. 927 em seus parágrafos 3º e 4º: § 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. § 4o A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

Da mesma forma, é exigida a devida fundamentação para inadmitir recursos extraordinários e especiais no caso de fundado dissídio jurisprudencial: Art. 1.029. O recurso extraordinário e o recurso especial, nos casos previstos na Constituição Federal, serão interpostos perante o presidente ou o vice-presidente do tribunal recorrido, em petições distintas que conterão:

87 88

Idem. Idem.

39

§ 2o Quando o recurso estiver fundado em dissídio jurisprudencial, é vedado ao tribunal inadmiti-lo com base em fundamento genérico de que as circunstâncias fáticas são diferentes, sem demonstrar a existência da distinção.

O novo CPC ainda reforça de forma geral o papel da sociedade na formação dos precedentes por meio da participação democrática, seja por audiências públicas ou amicus curiae. Nesse sentido, na formação da repercussão geral a manifestação de terceiros pode dar lugar aos “carimbos” de repercussão geral da secretaria, como apontado no Relatório do CNJ: Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo. § 4o O relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

Ainda no que diz respeito aos recursos extraordinário e especial repetitivos, o Código prevê também mecanismos de participação para a formação dos precedentes vinculantes: Art. 1.038. O relator poderá: I - solicitar ou admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia, considerando a relevância da matéria e consoante dispuser o regimento interno;

A doutrina de Theodoro Júnior89 chama atenção pelo fato dessa participação não ser necessariamente democrática, já que muitas vezes viabiliza uma forma de lobby perante os Tribunais. Contudo, apenas o tempo e pesquisas no Brasil quanto à sua atuação prática mostrarão em que medida o uso dos amici é realizado em prol da melhoria do papel dos Tribunais ou se somente ficará à disposição dos grupos organizados com melhores condições, em benefício de um ativismo seletivo 90. Evidentemente que os litigantes mais organizados têm maior capacidade de influenciar os Tribunais por meio da participação do amicus curiae. Contudo, visto que os litigantes não habituais e hipossuficientes não têm a mesma oportunidade de desenvolver estratégias de litigância, uma vez que litigam ocasionalmente e possuem uma série de barreiras transpor, como as trabalhadas na obra de Cappelletti e Garth91, essa arena pública de debate pode ser uma das poucas oportunidades que os despossuídos detenham para também agir estrategicamente. 89

Idem. Idem. 91 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, op. cit. 90

40

Exemplo desse uso estratégico se deu no amicus curiae da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de número 4.650, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para declarar a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 9.504/97 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos) e da Lei nº 9.096/95 (Lei das Eleições), no que diz respeito ao financiamento privado de campanha. Nessa ADI a Clínica UERJ Direitos, em parceria com o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), participou como amicus curiae apresentando memoriais e realizando sustentação oral a partir de teses desenvolvidas por alunos da graduação, pós-graduação e professores. Essa atuação foi, inclusive, reconhecida por alguns dos ministros, como os Ministros Luiz Fux, Roberto Barroso e Marco Aurélio que fizeram em seus votos menções a argumentos trazidos pela Clínica92. Portanto, o novo CPC leva a sério o atual quadro de litigiosidade massiva e impõe aos juízes e Tribunais a necessidade de analisar desde a primeira vez os argumentos levantados pelas partes, promovendo amplo debate para que suas ratione decidendi tenham a dimensão necessária. Uma decisão bem fundamentada evita a instabilidade e anarquia decisória e que a parte tenha que recorrer apenas para ter o seu fundamento analisado pela instância superior.93.

6.2 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) é uma das inovações mais polêmicas no novo Código de Processo Civil. Projetado com inspiração no Direito Alemão94, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta. Nos termos da Lei nº 13.105/2015, o Incidente de Resolução de Demandas 92

Mais informações disponíveis no site da Clínica UERJ Direitos em . (FINANCIAMENTO de Campanhas Eleitorais – ADIn 4.650/11. Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, 12 mar. 2014. Disponível em: . Acesso em: 8 jan. 2015.). 93 THEODORO JÚNIOR et al., op. cit. 94 No Direito Alemão a figura se chama Musterverfahren e gera decisão que serve de modelo para a resolução de uma quantidade expressiva de processos em que as partes estejam na mesma situação, não se tratando necessariamente, do mesmo autor nem do mesmo réu. E já foi revogado tão logo cessaram as ações relacionadas ao mercado de ações.

41

Repetitivas será admissível quando identificada, em segundo grau, efetiva multiplicação expressiva de demandas e o correlato risco da coexistência de decisões conflitantes. Será instaurado perante o Tribunal local, por iniciativa do relator ou órgão colegiado, por ofício, do Ministério Público, das partes, da Defensoria Pública. Os juízos de admissibilidade e de mérito caberão ao Tribunal e a extensão da eficácia da decisão acerca da tese jurídica limita-se à área de competência territorial do Tribunal, salvo decisão em contrário do STF ou dos Tribunais Superiores, pleiteada pelos respectivos legitimados. Há a possibilidade de o relator ouvir as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia. O incidente deve ser julgado no prazo de um ano, tendo preferência sobre os demais feitos, salvo os que envolvam réu preso ou pedido de habeas corpus e o mandado de segurança, pela leitura do art. 20, da Lei nº 12.016/09. Há ampla divergência doutrinária sobre se tratar ou não de instituto de direito jurisprudencial que cria verdadeiros precedentes e até mesmo a respeito de sua constitucionalidade. O incidente estava, inicialmente, inserido no modelo neoliberal de processo, visando garantir uma uniformidade decisional que asseguraria alta produtividade decisória. Essa afirmação se pode apreender da exposição de motivos presentes no Projeto de Lei do Senado Federal (PLS) nº 166/2010: Por enquanto, é oportuno ressaltar que levam a um processo mais célere as medidas cujo objetivo seja o julgamento conjunto de demandas que gravitam em torno da mesma questão de direito, por dois ângulos: a) o relativo àqueles processos, em si mesmos considerados, que, serão decididos conjuntamente; b) no que concerne à atenuação do excesso de carga de trabalho do Poder Judiciário – já que o tempo usado para decidir aqueles processos poderá ser mais eficazmente aproveitado em todos os outros, em cujo trâmite serão evidentemente menores os ditos “tempos mortos” (= períodos em que nada acontece no processo).95

Inicialmente, o IRDR teria a possibilidade de criar uma padronização decisória preventiva, a partir do momento que a mera repetição de processos que contenham controvérsia sobre questão de direito, com risco de ofensa à isonomia e a segurança jurídica, admitiria a sua instauração96. Isto significa que a partir dos primeiros casos, antes mesmo que o dissenso interpretativo se instaure, poderia ser ofertada uma resposta para os litígios que se repetiriam. Felizmente, essa possibilidade de 95

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 166 de 2010. Autoria: Senador José Sarney. Brasília, 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2015. 96 THEODORO JÚNIOR et al., op. cit.

42

padronização decisória preventiva foi erradica97. Além disso, para autores como Nery Júnior e Abboud98, bem como Marinoni99, o incidente não funciona como verdadeiro precedente judicial, visto que não pretende constituir um parâmetro argumentativo para as partes apresentarem suas razões jurídicas. A decisão dotada de efeito vinculante apenas visa constituir-se como regra decisória de uma multiplicidade de casos concretos, como norma pronta e acabada sem a devida discussão jurídica. Essa decisão não seria elaborada a partir da regra da universabilidade, ou seja, da regra que determina que um precedente deve ser aplicável ao maior número de espécies possíveis de casos. Por impedir que partes que não participaram do julgamento rediscutam a questão, o dispositivo tem sido considerado até mesmo constitucional. De acordo com Marinoni100, A doutrina tem sério e inafastável compromisso com os direitos fundamentais. Assim, obviamente não pode dizer amém a um procedimento que,embora dotado da elogiosa ambição de dar otimização à resolução das demandas,viola o direito fundamental de ser ouvido e de influenciar o juiz. Não obstante, a invalidade constitucional de um procedimento é resultado extremo, que deve ser evitado quando se pode corrigi-lo de modo a dar-lhe legitimidade constitucional.

O novo Código tenta dirimir vários desses problemas, principalmente após as alterações na comissão da Câmara dos Deputados. Há a previsão de um cadastro eletrônico que contenha os fundamentos determinantes da decisão 101, bem como mecanismos de distinguishing e overruling, visando evitar a aplicação do precedente de maneira estática. Para esses autores, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas poderá fixar meras regras decisórias, e não verdadeiros precedentes, sem a devida instauração da controvérsia. Via de consequência empobreceria o discurso jurídico, mecanizando a aplicação das decisões, passando a decidir igualmente casos

97

Idem. NERY JUNIOR, Nelson; ABBOUD, op. cit. 99 MARINONI, Luiz Guilherme. O “problema” do incidente de resolução de demandas repetitivas e dos recursos extraordinário e especial repetitivos. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 249, ano 40, p. 399-419, nov. 2015. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2015. 100 Ibid., p. 11. 101 Art. 979, § 2o Para possibilitar a identificação dos processos abrangidos pela decisão do incidente, o registro eletrônico das teses jurídicas constantes do cadastro conterá, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados. 98

43

diferentes. Portanto, não seria o mecanismo processual adequado para garantir os direitos fundamentais à isonomia e à segurança jurídica, nem para a tutela das demandas pseudoindividuais. Diferentemente, Theodoro Júnior et al.102 veem o IRDR como uma técnica de dimensionamento da litigiosidade repetitiva que opera mediante a cisão da cognição, por meio de um procedimento-modelo ou procedimento-padrão. Não há no caso do incidente a técnica de causa-piloto, como nos recursos extraordinários e especiais repetitivos, casos em que não há a cisão cognitiva. O IRDR não seria um mecanismo de submissão hierárquica do Judiciário, mas uma implementação dialógica do direito jurisprudencial. Dessa forma, o acórdão do incidente possuirá uma ratio decidendi de caráter normativo que servirá de ponto de partida para casos futuros, não estando pronto e acabado103. Contudo, se o referido incidente formará verdadeiros precedentes ou, na verdade, meras regras de padronização decisória, inquestionável que nele também está presente a tentativa de ampliar a participação efetivamente influente de todos os interessados na controvérsia. Nesse sentido que o NCPC estabelece: Art. 979. A instauração e o julgamento do incidente serão sucedidos da mais ampla e específica divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça. § 1o Os tribunais manterão banco eletrônico de dados atualizados com informações específicas sobre questões de direito submetidas ao incidente, comunicando-o imediatamente ao Conselho Nacional de Justiça para inclusão no cadastro. § 3o Aplica-se o disposto neste artigo ao julgamento de recursos repetitivos e da repercussão geral em recurso extraordinário. Art. 983. O relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, poderão requerer a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito controvertida, e, em seguida, manifestar-se-á o Ministério Público, no mesmo prazo. § 1o Para instruir o incidente, o relator poderá designar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria.

Dessa forma, fica claro que as controvérsias que dizem respeito ao IRDR são frutos do embate entre os que o conceberam como uma técnica de padronização decisória nos moldes neoliberais e os que o redimensionaram para uma técnica de aplicação dialógica.

102 103

THEODORO JÚNIOR et al., op. cit. Idem.

44

7 CONCLUSÃO Com o grande crescimento da litigiosidade, se aposta cada vez mais no uso da jurisprudência vinculante como solução viável tanto para a garantia da isonomia das decisões proferidas, quanto como solução para o abarrotamento de processos no judiciário. A partir do modelo do processualismo constitucional democrático, superando os paradigmas do liberalismo processual e socialismo processual, o debate assume papel de extrema relevância para o provimento comparticipativo das decisões jurisdicionais. Atribui-se importância da participação equilibrada de todos os sujeitos processuais, de maneira policêntrica. O processo se torna instrumento ou instituição constitucional que tem por objetivo tutelar direitos fundamentais, e tem como ponto central a participação dos sujeitos processuais por meio de sua argumentação. Esse modelo se contrapõe ao modelo neoliberal de processo, que defende o discurso de uma eficiência quantitativa que repercute negativamente nos processos, dando ensejo a procedimentos de padronização preventiva e em massa dos julgados. A Litigância de Interesse Púbico e demandas pseudoindividuais, que tem sua origem na incapacidade dos espaços majoritários de efetivarem políticas públicas, colaboram para a sobrecarga do Judiciário. Além disso, podem gerar iniquidade, ao se tratar de maneira diferente situações semelhantes, violando a segurança jurídica e a igualdade. Por isso, a legislação processual brasileira começa a adotar diversos mecanismos que teriam inspiração no common law e no instituto do stare decisis. Contudo, a importação desses institutos desvinculada da correta aplicação da teoria dos precedentes judiciais pode trazer distorções que vão de encontro à garantia da igualdade e da segurança jurídica. No Brasil, vemos cada vez mais o reforço do papel da jurisprudência, desde determinados dispositivos constitucionais, até as recentes reformas processuais que reforçaram o papel dos precedentes. Tenta-se importar para o direito brasileiro instrumentos que seriam ditos de common law, na tentativa de uniformizar a aplicação do direito, como na criação da súmula vinculante e dos recursos extraordinário e especial repetitivos Contudo, o mecanismo de stare decisis adotado pelo sistema common law se diferencia substancialmente do modo que a jurisprudência é aplicada hoje no processo civil brasileiro. O precedente judicial possui uma indeterminação que não

45

permite a aplicação mecânica ou subsuntiva dos precedentes judiciais. A padronização decisória não pode ser aplicada de maneira estática, em massa, sob pena aplicar em determinados casos fundamentos que não são determinantes na controvérsia, deturpando o instituto. O Relatório do CNJ demonstra essa que os argumentos das partes são pouco levados em consideração. Para que a formação dos precedentes judiciais ocorra de maneira democrática a sua aplicação deve levar esse caráter argumentativo, não apenas dando oportunidade para as partes se manifestarem no processo, mas levando efetivamente em consideração seus argumentos. Ainda, a racionalidade do caráter argumentativo do direito tem sido prejudicada pela aplicação em massa de precedentes judiciais vinculantes. A padronização decisória quando aplicada de maneira estática e em massa gera graves distorções. Esse modelo de padronização decisória é contrário ao processualismo constitucional democrático, vez que, amparados pelos argumentos da celeridade e eficiência processual, não há formação do provimento jurisdicional de maneira comparticipativa e policêntrica. Se a Constituição possibilita um uso “emancipador” e “contra-hegemônico” do processo, a padronização em massa inibe a

argumentação,

eternizando

as

decisões

e

criando

uma

discursividade

hegemônica. Essa discursividade hegemônica se caracteriza por esse congelamento no rumo das decisões que impede o uso contra-hegemônico do processo, na medida em que se dificulta a superação de determinados argumentos. Essa discursividade hegemônica se torna ainda mais forte num cenário em que não existem condições plenas de acesso à justiça. Os despossuídos não possuem o acesso discursivo necessário no judiciário, pois não têm a estrutura para litigar que têm as empresas. Assim, a participação social na formação dos precedentes significa a possibilidade de todos poderem influenciar nas decisões judiciais e, com isso, influenciar na formação das decisões que serão tomadas ou não como precedentes. O Novo Código de Processo Civil (Novo CPC), inserido no atual paradigma, não deixa de trazer em sua gênese uma tensão entre os modelos constitucional democrático e neoliberal de processo.

Inquestionavelmente ele traz inovações

importantes, como o contraditório como garantia de influência e não surpresa, a fundamentação das decisões levando em consideração todos os argumentos trazidos no processo e justificando porque de se aplicar ou não determinado

46

precedente, bem como a ampliação dos espaços de participação de terceiros no processo. Contudo, certamente ele não se consiste em panaceia, e traz algumas tensões, notadamente na criação do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Portanto,

para

o

fortalecimento

do

direito

jurisprudencial

brasileiro,

principalmente com a ampliação dos precedentes obrigatórios, é necessário cumprir alguns requisitos democráticos para a formação desses precedentes104. Em primeiro lugar, deve-se assumir que o Judiciário ainda está distante do acesso ideal, principalmente às minorias. A técnica jurídica é alienante e as afasta, muitas vezes, de buscar uma solução judicial e, quando buscam, não veem seus argumentos levados efetivamente em consideração. Para a construção de um sistema de precedentes que leve em conta a discursividade não hegemônica, dos despossuídos, é necessário continuar buscando mecanismos de acesso à justiça. É necessário o esgotamento prévio da temática antes de sua utilização como um padrão decisório, sob pena de não se analisar todos os argumentos em questão. A padronização preventiva favorece os litigantes habituais, que possuem as teses amplamente expostas em páginas e mais páginas de processo. Deve-se buscar também reconstrução da história institucional de aplicação da tese ou instituto pelo tribunal, de maneira estável, íntegra e coerente, nos termos do artigo 926 do Novo CPC, para evitar o uso self service dos precedentes, da forma que interessa às partes. Em seguida, é preciso manter a estabilidade decisória dentro do próprio Tribunal (stare decisis horizontal) e os tribunais inferiores devem aplicar discursivamente os precedentes dos tribunais superiores, deixando de aplicá-los somente nas hipóteses de distinguishing e overruling, por meio de técnicas processuais idôneas de distinção e superação dos precedentes. E, finalmente, no momento de aplicação dos precedentes é preciso observar o que se trata de ratione decidendi, ou seja, os fundamentos determinantes que constituem a normatividade dos precedentes e os obiter dicta. Cumpridos esses requisitos é possível a formação e aplicação democrática dos precedentes judiciais.

104

NUNES, Dierle. Alguns requisitos democráticos da aplicação dos precedentes e Novo CPC. Empório do Direito, 09 fev. 2015. Disponível em: . Acesso em: 8 jan. 2016.

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