Formação e ocupação dos \"Sertões de Araraquara\" ou \"de antes da chegada dos pioneiros\"

May 30, 2017 | Autor: Anderson Pereira | Categoria: Human Geography, Geografía Humana
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Formação e ocupação dos “Sertões de Araraquara” Ou, “de antes da chegada dos pioneiros”1 Anderson Pereira dos Santos Itapolitano e Pós-graduando em Geografia Humana pela USP Email: [email protected] As histórias de muitas cidades do interior paulista são contadas a partir da vinda dos pioneiros aventureiros que “abriram as matas e expulsaram os índios” e que através das “lutas das derrubadas, das queimadas, do plantio e das colheitas”, sobreviveram e fizeram prosperar freguesias, vilas e cidades. As histórias dessas cidades geralmente se iniciam com o trabalho árduo na terra e com a doação de alguns alqueires para a Igreja para a construção da capela local. O doador (ou doares) passa então a ser celebrado como o fundador do município. Itápolis não foge à essa regra: apesar de ser reconhecida como vila apenas em 24 de abril de 1891 (que lhe conferiu a independência políticoadministrativa em relação à Ibitinga), sua fundação oficial data de 20 de outubro de 1862, quando Pedro Alves de Oliveira doou ao patrimônio do Divino Espírito Santo alguns alqueires de sua Fazenda Boa Vista, fazendo surgir a capela do Espírito Santo do Córrego das Pedras. No entanto, nessas belas histórias não aparecem outros tantos fatos que nos permitiriam reconstituir a história da marcha para o Oeste Paulista, como a expansão da economia colonial, a escravização do indígena e do negro, o assalto e o massacre de aldeias e quilombos de escravos fugidos, a ocupação das terras através de sesmarias, a exploração das minas de ouro, o devassamento dos campos e florestas, etc. O que buscaremos nesse pequeno texto é retomar a história da ocupação dos Sertões de Araraquara, antes portanto da chegada dos pioneiros e da fundação do nosso município, o que nos permitirá compreender um pouco melhor a história da nossa formação.

Imagem 01. Mapa delimitando em negrito a região dos Sertões de Araraquara. Fonte: Mano. “Os campos de Araraquara: um estudo de história indígena no interior paulista”. Unicamp: 2006.

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Artigo publicado em partes no jornal Folha de Itápolis (Itápolis-SP), em várias edições dos meses de agosto e setembro de 2016. Disponível em: http://www.folhadeitapolis.com.br/

O projeto de ocupação da província de São Paulo Em meados do século XVIII (18), ao mesmo tempo em que se acirravam as disputas entre os reinos de Portugal e Espanha por áreas da América do Sul, os olhos do colonizador português estavam voltados para as lavouras de açúcar do Nordeste brasileiro e para as minas auríferas do Brasil Central (MG, MT e GO). Longe dos centros mais dinâmicos, a maior parte da província de São Paulo vivia em condições miseráveis e sujeita a invasões. Era consenso no governo paulista a urgência de enriquecer a província e a saída, pressupunha o governador Morgado de Mateus (1765-1775), estaria na valorização da agricultura de exportação e na intensificação do comércio. A ocupação desse território torna-se uma meta e medidas de proteção foram adotadas, como o povoamento das terras através da criação de vilas, povoados e estradas, além do incentivo para a expansão das atividades agrícolas, principalmente a cana-de-açúcar. Diversos alvarás passaram a incentivar o comércio com as demais províncias da colônia e investimentos foram feitos na limpeza e manutenção de caminhos para o transporte com mulas – principal meio de transporte no período –, criação de áreas de pastos e paradas para o descanso de viajantes e animais. As melhorias na infraestrutura baixaram os custos de transporte. Na agricultura, a produção comercial do açúcar, que se desenvolvia no chamado Quadrilátero Açucareiro Paulista – formado pelas vilas de Itu, Jundiaí, Porto Feliz, Campinas, Piracicaba, Mogi-Mirim –, tornou-se realidade no último quarto do século XVIII estimulada por essas melhorias, mas também pela ampliação do mercado consumidor proporcionada pela mineração nas províncias de Goiás e Mato Grosso. Entretanto, até aquele momento a ocupação da província de São Paulo não ia além das margens do Rio Piracicaba, afluente da borda direita do Rio Tietê. A freguesia de Santo Antônio de Piracicaba, futura Piracicaba, era considerada “boca de sertão” (cidade que se situa na orla da zona em que começa a penetrar o povoamento). À sua frente se elevavam os “Sertões de Araraquara”, uma imensa área ainda não ocupada, situada no Planalto Ocidental Paulista. As políticas modernizantes do português e a descoberta das minas de ouro no Mato Grosso (1718) e em Goiás (1725) não levaram à ocupação dos Sertões de Araraquara. Intensificaram, entretanto, o tráfego de viajantes no sertão paulista, via Rio Tietê – e seguindo por outros rios até chegar em Cuiabá –, o chamado Caminho das Monções, e por terra, através da “Estrada dos Goyazes” (ou Caminho de Goiás)2. Salientamos que os Sertões de Araraquara não eram extensamente ocupados, entretanto, isso não significa que eram inteiramente desconhecidos. É razoável supor a existência de pessoas fugidas da administração colonial que ali se refugiavam. Há também registros históricos da existência de quilombos na região durante o século XVIII, reforçados pelos nomes de alguns locais (Ribeirão dos Fugidos, Sesmaria do Quilombo etc.). Supõe-se também que caminhos não oficiais, para possibilitar o descaminho do ouro, passavam por esses sertões. Havia também uma crença de que os Campos de Araraquara possuíam “muitos haveres”, ou seja, minas auríferas e, assim sendo, foram 2

Rompendo o Rio Piracicaba, o Caminho de Goiás abriu o processo de ocupação de uma vertente que, saindo de São Paulo, se dirigia para o norte, em direção a Jundiaí, depois para Mogi-Mirim, Mogi-Guaçu e Casa Branca, tornando a noroeste em direção à Franca, atravessava o Rio Grande, seguia pelo Triângulo Mineiro até Vila Boa de Goiás, atual Goiás Velho, onde tomava rumo oeste até as minas de Cuiabá. Também chamada de Estrada do Anhanguera ou Estrada do Sal, foi aberta de 1722 a 1725. O Caminho de Goiás foi a principal rota por terra utilizada na província de São Paulo para atingir as minas de Mato Grosso e Goiás durante o século XVIII. No seu trajeto instalaram-se comerciantes, pousadas, sesmarias e apossamentos, de paulistas e também mineiros, para abastecer viajantes e tropeiros, comercializar gêneros agrícolas e prestar alguns serviços.

palco de intensas buscas. Além disso, não são poucos os registros de viagens por essas terras. Por último, sabe-se que muitas terras foram ocupadas não oficialmente, além de que muitos povoados eram fundados sem o conhecimento do Estado português. É lógico supor, portanto, que mamelucos (bastardos), negros foragidos, aventureiros e outros sujeitos estavam usando a região como um corredor de ocupação e refúgio.

A ocupação dos “Sertões de Araraquara” Do século XVI (16) ao XVIII (18), muitas entradas, bandeiras, monções e incursões militares – como se chamavam as expedições do governo português – partiram pelo Rio Tietê e esquadrinharam o seu curso, seus afluentes e as terras no seu entorno até a sua foz no Rio Paraná. Realizavam o percurso entre povoados, transportando mercadorias ou executando ordens em nome do governo. Buscavam esquadrinhar o território da província, encontrar aldeias, quilombos e lavras. Se por um lado não contribuíram para fixar uma ocupação, por outro, permitiram se fazer os primeiros registros sobre as terras dos Sertões de Araraquara e de Itápolis, presentes hoje na memória e história oral local, e retratados em diversos livros, como vemos na passagem do livro, recém lançado, “Itápolis: 150 anos de história”: “O conhecimento do recanto paulista em que vivemos começou em 1723. Um bandeirante de fama, Sebastião Sutil de Oliveira, juntamente com um seu irmão e o padre Frutuoso da Conceição conseguiram licença para organizar uma bandeira e procurar ouro nas imediações de Araraquara, que estava localizada em pleno sertão e onde só havia índios. Vieram e deixaram vestígios de mineração citados por vários cronistas antigos” (p. 11). Entretanto, apenas no último quarto do século XVIII são doadas as primeiras sesmarias (enormes extensões de terras doadas pelo governo português a pessoas da família real, nobres, militares, religiosos etc.) nos Sertões de Araraquara (1781 é a data da doação da primeira sesmaria a Domingos Fernandes Lima), no território logo à frente da Freguesia de Piracicaba, a coronéis, tenentes e capitães das vilas de Itu, Porto Feliz e Piracicaba. Nas primeiras petições de sesmarias há menções a campos devolutos, bons para criar gado vacum. Não existia, entretanto, nenhum caminho que permitisse as ocupações. Muitos dos ganhadores acabaram vendendo suas posses a terceiros, e também esses não assumiam de imediato a posse. Também não havia legislação que obrigasse o cultivo, ou seja, a concessão da terra não era sinônimo de povoamento ou produção. Ao mesmo tempo em que a elite se tornava proprietária dessas terras, sem, entretanto, ocupálas, homens livres e pobres, aventureiros e perseguidos pela justiça tomavam essas mesmas áreas, ocupando-as. Assim, muitos dos primeiros moradores que penetraram os Sertões de Araraquara não foram os portadores das cartas de sesmarias. A partir das duas últimas décadas do século XVIII, os rios Piracicaba, Jacaré-Pepira e o Pinhal passaram, então, a ser os pontos de referência para a petição de sesmarias. Dando continuidade ao projeto de ocupação da província de São Paulo iniciado no governo de Morgado de Mateus (1765-1775), o governo do capitão-general Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça (1797-1802) buscou colocar em prática um antigo plano de povoar as margens do Tietê: o objetivo seria ocupar toda a extensão existente entre a Freguesia de Piracicaba e a desembocadura do rio, no Rio Paraná, para socorrer os viajantes a caminho de Cuiabá e Mato Grosso, facilitar as diligências do serviço real e promover a comunicação nas terras. Na implementação do projeto, passou-se a incentivar a ocupação doando mais sesmarias e ajudando (com produtos agrícolas, ferramentas de plantio e cabeças de gado) no estabelecimento de casais, além de fundar algumas

povoações nas terras que margeavam o grande rio. Os Campos ou Sertões de Araraquara estavam incluídos nesse projeto e apareciam como espaço para criação de vacuns, muares e cavalares. Após aprovado e realizada a fundação de alguns povoados, necessário foi abrir comunicação também por terra entre eles, interligando-os, aproveitando para isso os terrenos planos que margeavam o rio. Entre os anos de 1720 e 1790, várias tentativas já haviam sido feitas no sentido de abrir um grande caminho por terra ligando a cidade de São Paulo ao Rio Paraná, passando pelos Sertões de Araraquara. Finalmente, em 1799 o governo da província consegue a abertura do “Picadão de Cuiabá” (ou Caminho de Cuiabá). Este novo trajeto trilhava um caminho em direção à noroeste: partindo de Piracicaba, seguia inicialmente na direção norte, até atingir o que seria hoje a cidade de Araraquara (ali, em 1790, Pedro José Neto havia construído uma pequena capela dedicada a São Beto, que mais tarde daria origem à cidade de Araraquara), dali tomava rumo em direção noroeste, encontrando o Rio Tietê mais a frente, margeando-o pela direita até os limites da província de São Paulo com o Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul). Este caminho, além de permitir a circulação de pessoas, do ouro, de mercadorias e animais, possibilitaria a fixação de fazendas e povoados e passaria a ser também uma rota alternativa ao Caminho de Goiás. Abria-se, portanto, um trajeto pelos Sertões de Araraquara, passando pelas terras onde se encontra hoje o município de Itápolis.

Figura 02. Desenho esquemático do Picadão de Cuiabá (pontilhado) e do Caminho de Goiás (pontilhado/negrito). Fonte: Bisinotto. A evolução urbana de São Carlos. USP: 1988.

Figura 03. Mapa do Estado de São Paulo de Paes Leme Júnior. Em suas “Breves Notícias Históricas Sobre Itápolis”, o autor assinala os possíveis trajetos que passavam pelo município de Itápolis (Pedras) no ano de 1867. Podemos ver o pontilhado assinalando o Caminho de Cuiabá.

O Picadão de Cuiabá foi fundamental para a abertura dos Sertões de Araraquara para a ocupação, através de sesmarias e apossamentos. A partir de então, o sertão se colocava como possibilidade para uma vastidão de sujeitos e com o passar dos anos inúmeros povoados começam a pipocar na sua borda. Dentro desse espaço a cidade de Araraquara exerceu a função de boca de sertão. De fato, na primeira metade do século XIX, logo após a abertura do caminho, a extensão entre Piracicaba e Araraquara se encontra praticamente toda povoada – em 1821 já existiam no território de 140 quilômetros que separa Piracicaba de Araraquara, 61 sesmarias doadas, sem contar os inúmeros apossamentos não contabilizados oficialmente. Já as terras de Itápolis, aproximadamente 90 quilômetros à frente de Araraquara, começam a ser ocupadas a partir de 1825/1830: os registros mais antigos dão conta do apossamento de sesmarias nas terras de Itápolis e região entre 1825 e 1830 pela família Castilho, José Antônio de Castilho e sua mãe, Maria Francisca de Jesus (a famosa Capa Preta), viúva de Manuel Francisco de Castilho. Aqui reencontramos os laços que nos ajudam a compreender a ocupação dos Sertões de Araraquara, através da abertura do Picadão de Cuiabá. Esse caminho não foi construído para o simples acesso às regiões das lavras do Mato Grosso. O que se colocava era a formação de um trajeto dentro dos projetos do Estado colonial português, para possibilitar a ocupação produtiva de uma imensa região que até fins do século XVIII estava à margem da economia: os Sertões de Araraquara. A criação de vacuns, muares e cavalares de forma extensiva (em grandes áreas), que aparecia como uma qualidade natural desses sertões, além do lucro, permitiu o apossamento de amplas áreas. Já as

paragens, que ofereciam pernoites e abasteciam viajantes e tropeiros em trânsito, além de possibilitar o ganho com a realização de serviços, significavam a possiblidade de trocar o trabalho familiar da roça por ouro, através da venda da produção de gêneros da terra. A abertura do Picadão de Cuiabá (e, a partir desse, de outros caminhos), a presença dos posseiros, a doação de sesmarias, a expansão da pecuária e a fixação de casas de comércio inauguram o processo de ocupação dos Campos de Araraquara. Esses processos, portanto, concretizaram a ocupação das terras onde se formariam os futuros cafezais. No entanto, devemos lembrar que a principal atividade que permitiu a ocupação e incorporação dos Sertões de Araraquara à economia colonial foi produção pecuária (não por acaso a pecuária foi a primeira grande atividade desenvolvida no município de Itápolis, antes mesmo do café). A partir desse momento, os Sertões de Araraquara passarão a atrair migrantes paulistas e mineiros, os nossos pioneiros, como Pedro Alves de Oliveira, à procura de terras com pastagens naturais para a criação de gado e para a instalação de pousos. Mas isso já é conversa para uma outra história!

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