FORMAÇÃO, TÉCNICA E POLÍTICA: CONTRIBUIÇÕES DE HERBERT MARCUSE

June 4, 2017 | Autor: Marcos Ribeiro | Categoria: Filosofia da Educação
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FORMAÇÃO, TÉCNICA E POLÍTICA: CONTRIBUIÇÕES DE HERBERT MARCUSE TORRI, Danielle- UFSC/PPGE. VAZ, Alexandre Fernandez - UFSC/MEN/CED EIXO: FILOSOFIA E EDUCAÇÃO/ n. 13 Apoio: CNPQ (Projeto Teoria Crítica, Racionalidades e Educação) – Bolsas de Mestrado, Iniciação Científica, Apoio Técnico e Produtividade em Pesquisa; Apoio Pesquisa.

Resumo Trata este ensaio de um trabalho de investigação teórica que se debruça sobre a sobrevivência do ideal formativo na sociedade tecnológica, segundo as contribuições de Herbert Marcuse, tendo como eixo o lugar do corpo na cultura. A excessiva importância deferida à técnica, mecanismo produtor de esquecimento faria eclipsar a experiência, pilar da formação subjetiva e é a denúncia que o autor nos oferece em seus escritos, notadamente em A Ideologia da Sociedade Industrial. A ênfase nos meios que faz esquecer os fins não levaria ao entendimento, ao conhecimento e à emancipação, mas anularia esse processo. Marcuse aponta a presença da técnica como domínio sobre os sujeitos e corpos, modo de substituição da consciência. Suas contribuições também nos ajudam a refletir sobre a educação e suas contemporâneas crenças nos meios tecnológicos. 1. Introdução Vivemos hoje em um mundo intensamente globalizado, no qual várias fronteiras da comunicação foram derrubadas, permitindo que nossas vozes e imagens se desloquem em uma velocidade impressionante por quase todos os lugares do planeta. Nosso corpo não escapa a esse processo: está cada vez mais cibernético, modificado com próteses, aumentado, diminuído, colorido com tintas, perfurado e acima de tudo aperfeiçoado em seu rendimento. Nada lembra, em muitos corpos globalizados, aqueles

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que pereciam cedo, mal cuidados, doentes, finitos, ainda que, por outro lado, boa parte da humanidade siga com outro modelo corporal – o da miséria e depauperação. Quase tudo, no entanto, é possível hoje (e desejado) para potencializar os corpos. São exemplos desse processo de maquinização do corpo o treinamento corporal com vistas ao esporte, ao embelezamento e mesmo à constituição de uma subjetividade tecnológica. Essas manifestações correspondem a práticas procuradas para otimizar o corpo no sentido de sua performance. Tudo deve aperfeiçoá-lo conforme um conjunto de normas de como ele deve ou não ser, de como ele não deve deixar de ser. Boa parte dessas predições é veiculada e sustentada, por meio das revistas ilustradas e pela mídia televisiva. Toda essa visibilidade do corpo, tanto como simulacro quanto como materialidade, faz dele uma categoria central para entendermos o contemporâneo, e a partir deste a construção das subjetividades que comporta. Para a Teoria Crítica da Sociedade da Escola de Frankfurt, o corpo emerge como categoria capaz de abranger o destino da subjetividade no contemporâneo suscitada pela sua condição reificadora correspondente à permanência e reprodução do capitalismo. Para Horkheimer, Adorno, Marcuse e também Benjamin, o corpo constituiu uma espécie de índice por meio do qual é possível ler o percurso de desenvolvimento da civilização

ocidental.

Em

conhecida

formulação

presente

na

Dialética

do

Esclarecimento – livro chave do projeto frankfurtiano –, Adorno e Horkheimer (1985, p. 215-6) referem-se a uma história que corre subterrânea à oficial, que consistiria “... no destino dos instintos e paixões humanas recalcados e desfigurados pela civilização.” O legado da Escola de Frankfurt sugere um aprofundamento teórico efetivo especialmente no que se refere às obras de Adorno (em parceria ou não com Horkheimer) e de Marcuse, salientando o potencial educativo que estas contêm. Notadamente neste último, localizamos o corpo como principal destino do controle civilizador por meio da repressão e do domínio/administração do aparato pulsional. Para o autor, o corpo é o principal destino da repressão que eclipsa a liberdade e a formação, pois ao ser não (mais) a fonte de gratificação, mas o lugar do controle e do incitamento, é nele que se radica a subjetividade contemporânea. Neste quadro se insere o presente trabalho, cujo objetivo é apresentar resultados parciais de uma pesquisa cujo objetivo é investigar aspectos da crítica de Herbert Marcuse à técnica e à tecnologia na sociedade

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capitalista tardia, verificando, por meio do corpo, suas implicações na formação do sujeito. Nas próximas páginas apresentamos reflexões oriundas de duas temáticas centrais para a obra de Marcuse, a relação entre técnica e formação, que se costura pelos temas do corpo e da política, e a questão da dessublimação repressiva, conceito fundamental que faz reencontrar a formação em seu momento à sombra, como impedida em tempos contemporâneos. Nas notas finais, as observações de Marcuse são lidas como expressões da questão educacional. 2. Técnica, corpo, política, formação Como tudo no mundo dos homens, o corpo também precisou ser modificado, tornando-se mais “habitável”. Ele agora tem de estar perfeitamente limpo, desinfetado, bonito aos olhos, apropriado aos sentidos, quase ascético, civilizado. Nada nele deve lembrar a proximidade com a natureza, com o que é perecível, mortal: os exercícios ginásticos, as drogas da felicidade, os eufemismos, tudo deve fazer esquecer a dor, a morte, a finitude. A razão, e a ciência por meio dela, depois de derrubar os mitos, prometeu levar à autonomia. No entanto, como ensinam Horkheimer e Adorno (1985), o esclarecimento, com o intuito de desencantar o mundo, substituindo imaginação pelo conhecimento, acabou por manter ou repetir o caráter mitológico, ao se ater à repetição, ao destino, ao caráter concêntrico de suas premissas. O fato de tudo na ciência poder ser repetido exaustivamente, obtendo-se sempre um resultado que de certa maneira é previsível, pouco dista do esquematismo do ciclo infernal do mito. Embora existam diferenças nas considerações teóricas dos autores da Escola de Frankfurt, no que se refere ao tema da técnica, é possível afirmar que conjuntamente aparecem inseridas num contexto maior de crítica radical à racionalidade instrumental. Se no processo de constituição da civilização ocidental, a passagem do estágio do mito para a ciência, passando pelo domínio da natureza, é produtora da regressão a um novo estágio mitológico, cujo conteúdo será novamente a dominação e a barbárie, a técnica é o modus operandii desse processo que objetiva o método, o cálculo e a exploração (BRÜSEKE, 2001). Nesse vir a ser da civilização foi preciso que o homem desenvolvesse técnicas que lhe permitissem em um primeiro momento sobreviver e em seguida viver em sociedade. Dessa forma, o homem foi progressivamente apreendendo a domar a

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natureza externa, colocada como condição indispensável para a vida em sociedade. No entanto, como primeira etapa, foi preciso que dominasse sua natureza interna, já que somos, como corpo, também natureza e, portanto, em nós mesmos residem os perigos e ameaças. Isso foi possível por meio da razão, mas, sobretudo, em sua materialização pela técnica e pela ciência. Este processo não foi e não é indolor ao sujeito, pois como natureza, se tornou também um objeto a ser dominado. Se nosso corpo, tornado coisa, é posto como algo que deve ser dominado, ao nos tornamos senhores dele tornamo-nos, de certo modo, potencialmente senhores dos corpos dos outros. Ao sermos sujeitos e objeto ao mesmo tempo – e, portanto, também vítimas do logro infringido à natureza – pagamos como preço nossa própria alienação desta que nos compõe e sobre a qual nosso poder é exercido, ou, dito de outra maneira, nos alienamos de nós mesmos. Nesse sentido, conhecer só é possível quando

se pode dominar, manipular (ADORNO;

HORKHEIMER, 1985). Nesse contexto, a técnica, que em sua função primeira poderia (deveria) diminuir o sofrimento dos homens, e cada vez mais conduzi-los ao entendimento e à autonomia, acaba por impedir esse processo. No lugar de esclarecer os homens, é absorvida por um projeto de dominação que considera os meios mais importantes que os fins. Para Marcuse, a técnica não poderia ser pensada desvinculada do progresso humano. Embora diferentes, “estão em estreita relação: o progresso técnico parece ser pré-condição para o progresso humanitário.” (MARCUSE, 2001, p. 122). Entretanto, o desenvolvimento técnico não necessariamente quer dizer progresso do ser humano. Para Marcuse a técnica, paradoxalmente, transformou-se em uma espécie de instrumento que solapa as possibilidades de liberdade do homem, permitindo uma sociedade sem contestação, que em última análise contribui para que o estado de coisas assim permaneça. Segundo Marcuse (1999), já estaríamos caminhando para uma sociedade em que o tempo consumido no trabalho já não seria mais essencial para atingirmos o mesmo nível de produção que outrora exigira uma disposição quase ininterrupta frente à maquinaria. Viveríamos, portanto, uma condição social na qual o tempo livre poderia ser quantitativa e qualitativamente maior, empregado para promover o progresso com face humana. Nesse sentido, a técnica, que é condição indispensável ao desenvolvimento – uma vez que possibilita o avanço das forças produtivas, reduzindo o 4

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tempo de trabalho e aumentando, conseqüente, o tempo livre –, acaba, no entanto, por impedir que tal fato aconteça. As palavras de Marcuse (1999, p. 48) são nesse caso, exatas:

O progresso técnico, a própria tecnologia transformou-se num novo sistema de dominação e de exploração – um novo sistema, pois modifica decisivamente as relações entre as classes (...) Um aparato - e isto é o essencial - que também determina e forma as necessidades, até mesmo as necessidades instintivas, as próprias aspirações do indivíduo, que nivela a diferença entre o tempo de trabalho e tempo livre e que molda os seres humanos tão cedo e tão total e completamente que até mesmo conceitos como alienação e reificação tornam-se questionáveis (...). (MARCUSE, 1999, p. 48).

Essa preocupação com a técnica, com a adoração a ela dedicada, sua velocidade e potência mais do que nunca cultuadas, não é menos que atual. Fazem parte desse processo os jogos virtuais que simulam uma outra existência, supercomputadores, televisões, exemplos do fetiche que assombra os meios e que exige sua presença em todos os momentos da vida, incluindo a forma de nos relacionarmos com as pessoas e algo que nos diz respeito particularmente, a educação. Nesse contexto vale destacar, entre parênteses, que se por um lado afastar a tecnologia das escolas (onde ela tem sido cada vez mais aclamada) pode significar um atraso para as metodologias de ensino, por outro aceitá-la sem maiores esclarecimentos é talvez diminuir a experiência formativa dos alunos. Esses apontamentos nos parece, acusam o processo de reificação do sujeito, no mundo administrado ou ainda seu total falecimento. Herbert Marcuse foi o autor mais engajado politicamente dentre aqueles alinhados à Teoria Crítica da Sociedade da Escola de Frankfurt. Juntamente com Adorno e Horkheimer, desenvolveu críticas radicais à ciência unidimensional e à razão instrumental, derradeiras, segundo eles, do capitalismo tardio e avançado. Essa dominação seria fruto grandemente da tecnologia e do progresso técnico usados como 5

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instrumento, sobretudo político, contra formas humanas de existência que promovessem a real liberdade e que permitissem maiores possibilidades formativas ao homem. Marcuse teve uma preocupação pungente com a necessidade de emancipação humana dentro de uma sociedade altamente técnica e também profundamente manipuladora. É no livro a Ideologia da Sociedade Industrial (MARCUSE, 1969) que deixa claro sua posição de crítica à técnica. Nela ataca violentamente o estado pósindustrial moderno, o Welfare State e apresenta o modo como enxergava o lugar da técnica na sociedade industrializada. Esta possuiria um papel ambíguo. Sem ela seria impossível o progresso humano,1 mas, ao mesmo tempo, era ela que havia se tornado a vilã da civilização. Por meio dela é que a consciência da mudança ficava nublada e até mesmo se desejava que o sistema assim se perpetuasse. A sociedade do progresso, sentindo que a base onde se apóia – a tecnologia – contém o rompimento dessa forma manipuladora, agiria repressivamente para evitar o avanço da humanidade, ou, como nos mostrará Marcuse, buscará um meio para que a energia libidinal que pode libertar o homem aja em seu sentido contrário. Para Marcuse (MARCUSE, 1999), essa forma racional do mundo moderno acabou por mediar as relações sociais. Desse modo, um sistema de dominação tecnológico, que instituiu uma forma de pensar e de agir tecnológicos criou comportamentos e modos de pensar padronizados. Para ele o maior exemplo de economia e sociedade altamente racionalizada e tecnologizada foi o nacionalsocialismo, que soube colocar a seu serviço e interesses tudo que eficiência da técnica soube possibilitar. Marcuse chamou essa forma de organização da sociedade de tecnocracia (IBIDEM, 1999). Dessa forma a técnica – o meio – que poderia servir à liberdade, a diminuição do trabalho alienado e da opressão serviu à dominação, operando totalmente ao contrário dos interesses formativos. A função primeira da técnica, como afirmamos, seria favorecer a existência humana por meio da gratificação das necessidades que, por sua vez, corresponderiam à ampla utilização dos recursos intelectuais do homem. A gradativa utilização da técnica deveria conduzir a humanidade à diminuição do sofrimento e do trabalho, ao aproveitamento racional dos recursos naturais. Ela conduziu a isto, mas, por outro lado, 1

Não seria demais lembrar que apesar do pessimismo dirigido à técnica expresso no trabalho de Marcuse, ele não deixa de afirmar que este é um tema ambíguo e que ela em si não é algo “demoníaco” e que devesse ser abandonado. Mesmo nas páginas da Ideologia da Sociedade Industrial (1969) onde a crítica de Marcuse é mais acentuada, o autor não desvincula a técnica e o esclarecimento da possibilidade de se abrandar a barbárie, de fomentar a liberdade e o progresso do ser humano.

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sua inicial “neutralidade” foi desviada na sociedade para criar necessidades que não aquelas anteriormente apresentadas pelos homens. Para Marcuse estava claro que quem decide quais necessidades são verdadeiras e quais não é o próprio indivíduo. Mas, como poderia ele decidir se se encontra impossibilitado de pensar fora deste estado de coisas? Para ele“(...) quanto mais racional, produtiva, técnica e total se torna a administração repressiva da sociedade” (MARCUSE, 1969, p. 28), mais dificilmente poderiam os indivíduos ser senhores de suas vontades. Antes seria preciso que estes indivíduos tivessem consciência do estado de servidão intelectual em que se encontram, o que não parecia possível naquele (e nem parece no atual) momento. O que ficava nítido para Marcuse é que nesse modelo de racionalidade dirigida à dominação, o que está em pauta é a sufocação das necessidades que pedem pela libertação e que impedem as possibilidades formativas do homem. Novas necessidades substituem as reais. As necessidades advindas do indivíduo são precondicionadas para que este faça suas escolhas dentro do escopo que lhe é oferecido. Sob esse jugo, a “liberdade” é conduzida a ser um (talvez, o mais importante) instrumento de dominação. Nesse caso, não é a livre escolha que determina o grau de liberdade em que o indivíduo se encontra (MARCUSE, 1969). As necessidades são impostas por interesses que só desejam reprimir suas possibilidades de libertação. Consumir de acordo com o desejado, se distrair, se comportar, dormir, comer, ou seja, encontrar satisfação porque foi programado para que assim acontecesse. A libertação tem como pré-requisito a consciência da escravidão. Essa aparente liberdade atua justamente em sentido contrário, impede que os indivíduos percebam seu estado de servidão. O indivíduo se transforma em instrumento desse universo. As relações com as mercadorias não são mais problemáticas, pois aquele não é mais que o conjunto de suas aquisições e bens. Se a técnica é que propicia esta relação, sua noção de neutralidade cai diante de seu uso:

Sua produtividade e eficiência [da técnica], sua capacidade para aumentar e disseminar comodidades, para transformar o resíduo em necessidade e a destruição em construção, o grau com que essa civilização transforma o mundo objetivo numa extensão da

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mente e do corpo humanos torna questionável a própria idéia de alienação (MARCUSE, 1969, p. 29).

Na fase de plena industrialização, quando Marcuse escrevia seu livro, ele chamava a atenção para a atuação do controle tecnológico, porque este parecia ser a “própria personificação da Razão para o bem de todos os grupos e interesses sociais” (MARCUSE, 1969, p. 30), de modo que a contradição e a contestação é que pareciam irracionais. O que Marcuse denuncia nesse momento e que parece fundamentar essa “felicidade”, são alguns fatores que ele via presentes na sociedade norte-americana. O Estado de bem-estar social gerava condições de vida e de trabalho superiores ao que se tivera até então, e parecia colocar a sociedade desenvolvida como o que havia de melhor para a população. Isso acabou por conduzir ao recuo dos movimentos dos trabalhadores e a aproximação dos sindicatos com o Estado. Havia muito menos interesse em abolir o trabalho (alienado), antes, sim, em permitir melhores condições de trabalho, promoções, férias, prêmios e lucros. Se o padrão de vida se tornava cada vez mais elevado, por meio do desenvolvimento técnico, se os benefícios que o Estado apresentava eram tão confortáveis, o não-conformismo era algo que parecia não fazer sentido. A afirmação do poder do Estado se dá pelo testemunho da técnica como fiadora de um sistema que parece produzir felicidade e que dispensa o julgamento crítico. As motivações propiciadas pelo eficiente desenvolvimento técnico propiciam o surgimento de um universo de tal modo manipulado que as frustrações são controladas e os conflitos são estabilizados pelos efeitos da benesse social, da produtividade crescente. A crítica de Marcuse se dá porque para ele no estado em que a sociedade se encontrava, a técnica estava personificada no aparato produtivo. E se tornava o meio de controle e coesão do universo político que incorpora as classes que inicialmente deveriam promover a transformação. Entretanto, esta racionalidade não é aquela associada aos desejos e necessidades humanos, mas, antes sim, às necessidades e interesses de um sistema abrangente de manipulação. Se for correto afirmar que a técnica pode promover a liberdade do homem, seu progresso como humano, é bem verdade que pode produzir seu contrário. O Nacional-

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socialismo foi o exemplo vivo de uma economia altamente racionalizada e mecanizada que supostamente poderia promover a abolição do excesso e da alienação do trabalho, mas que operou no interesse da opressão totalitária e da escassez continuada (MARCUSE, 1999). O reino do fascismo foi sustentado não apenas pela força bruta aparentemente contrária à tecnologia, mas, antes sim, pela engenhosa manipulação do poder da tecnologia: “intensificação do trabalho, a propaganda, o treinamento de jovens, e operários, a organização da burocracia governamental, industrial e partidária” (MARCUSE, 1999, p. 74). Algo que Marcuse presenciou, guardada as devidas proporções, no estado do bem-estar social americano. O que se viu presente naqueles momentos e que de certo modo aparece contemporaneamente, é a substituição de uma racionalidade individual, onde os interesses reais do homem são tidos como prioridade, em favor de uma (ir)racionalidade tecnológica que impele os sujeitos a um modelo de pensamento que faz com que estes aceitem e introvertam os ditames que lhe são apresentados. Esse novo modo incorporado pelo mundo do trabalho enfraquece as principais bases que poderiam conter a transformação, quando a dominação inicial está transfigurada em administração total.

A tecnologia aparece como uma névoa,

escondendo a servidão e a desigualdade por meio da racionalidade objetiva. Assim, acaba moldando os impulsos e as aspirações dos indivíduos (unir-se, defender seu trabalho, reconhecer-se nas suas aquisições), obscurecendo a diferença entre a falsa e a verdadeira consciência. Se a dominação não é mais física, é política e psicológica, se as classes parecem igualar-se pela esfera do consumo, nada compensa o fato de que as decisões dos indivíduos e as escolhas que fazem não são de modo algum dirigidas por eles. “Sobre elas, estes não têm controle algum”.(MARCUSE, 1969, p. 49). “Todo protesto é insensato e o indivíduo que persistisse em sua liberdade de ação seria considerado excêntrico.” (MARCUSE, 1999, p. 80). Para Marcuse, essa é uma existência reificada. O indivíduo não percebe em que estado se encontra, já que por meio do gozo imediato e obrigatório deixa-se prender pelo fascínio que a técnica oferece. Pois, se esse indivíduo recebe algo que “compense” seu esforço não se dá conta que sua existência é como que um objeto manipulável. Os desejos, as aspirações humanas, o comércio as descobertas científicas, se unem racional e convenientemente. Aquele que “cumpre o programa” segue à risca o que se espera

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dele e será bem sucedido, subordinando todas as suas vontades ao desejo anônimo que por ele escolheu (MARCUSE, 1999). O aparato produtivo, racional e tecnológico vende essa ilusão, essa idéia, e impõe esse sistema. O trecho a seguir explicita essa nova forma ideológica proporcionada pela técnica e pela razão:

Os meios de transporte, e comunicação em massa, as mercadorias em casa, alimento, roupa, a produção irresistível da indústria de diversões e informação trazem consigo atitudes e hábitos prescritos, certas reações intelectuais e emocionais que prendem os consumidores mais ou menos agradavelmente aos produtores e, através destes ao todo. Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune a falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos a disposição de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. E é um bom estilo de vida – muito melhor do que Dante – e como bom estilo de vida milita contra transformação qualitativa. Surge assim um padrão de pensamento e comportamento unidimensionais no qual as idéias, as aspirações e os objetivos que por seu conteúdo transcendem o universo estabelecido da palavra e da ação são repelidos ou reduzidos a termos desse universo. São redefinidos pela racionalidade do sistema dado e de sua extensão qualitativa. (MARCUSE, 1969, p. 32).

3. Dessublimação repressiva Uma total mobilização (Totale Mobilmachtung) para o progresso, alicerçada no crescente desenvolvimento da técnica, é uma base de sustentação para a integração política. A denúncia para qual Marcuse direcionou essas considerações atinge também o âmbito da cultura na forma de uma dessublimação repressiva. Esse é um dos conceitos mais importantes elaborados por Marcuse, ao operar no sentido de entender o estado de

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dominação subjetiva do capitalismo avançado (racional e tecnológico) e a extrema manipulação em uma sociedade tornada unidimensional. Sem negar o princípio do prazer inerente ao humano, seria impossível que a civilização tomasse o curso que tomou sem alguma forma de repressão e sublimação (FREUD, 2000). Foram as normas sociais, a negação das pulsões, que permitiram ao homem a vida em sociedade. A repressão, portanto, é um fenômeno histórico necessário para nossa constituição. Se estávamos originalmente orientados para o ilimitado ganho do prazer, o que a sociedade exige para constituir-se é a repressão do aparato pulsional. Freud apontou a sublimação como a forma encontrada para nos relacionarmos com a renúncia. Essa seria uma solução para suprir a frustração de abdicar para conseguir viver. Se a civilização domina e reprime para fazer viver, algo sobrevive no inconsciente e tenta a todo custo superar essa barreira. A sublimação, desse modo, além de permitir certo prazer, retém e reconhece a necessidade da liberação deste jugo repressivo. O que Marcuse aponta é que a sociedade exacerbou essa repressão necessária a um grau demasiadamente elevado e desnecessário. O grande veículo no qual essa repressão encontrou desiderato foi o corpo. É o corpo que vai sofrer mais repressão para que se ajuste a essa tecnologia e industrialização. Se a sublimação, a direção encontrada para o homem satisfazer parcialmente suas pulsões, pode não ser útil à dominação, ao ser canalizada para a arte e para a contestação, ela tende a ser mais repressiva ao não promover a possibilidade de escolha, mas sim incitar ao gozo, repressivamente. A sublimação é racionalizada de forma que sirva ao princípio do rendimento. Marcuse acusa que há na sociedade tecnológica e industrial um interesse em reprimir as necessidades que podem exigir a libertação. Essa mais repressão apontada por ele é mais que o simples recalque das necessidades. Marcuse tentou compreender os mecanismos de repressão construídos por esta racionalidade instrumental. O conceito que ele emprega de mais repressão não é apenas a repressão no sentido do recalque, é antes sim, um conjunto de restrições e de imposições que têm como finalidade obter e conservar a dominação seja ela política, econômica ou social. É pela dessublimação repressiva que o indivíduo introverte os processos de dominação e acaba por se identificar com o sistema. Os indivíduos, com sua subjetividade danificada têm a ilusão de serem livres para escolher tudo que “necessitam”. Porém, esta liberdade e

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necessidade são, na verdade, controladas e dirigidas pelo sistema econômico-políticocultural para que as condições objetivas não se alterem. Se o desvio da libido era e é a necessidade imposta para a sobrevivência, essa administração pulsional é a responsável pela submissão “feliz” a que os indivíduos se entregam. Nessa esfera, os fatores transcendentes da existência humana que o desenvolvimento tecnológico poderia proporcionar geram pseudo-satisfações que pressupõem submissão e que diminuem a vontade e a racionalidade necessária para a resistência (MARCUSE, 1969). O que acontece é que as satisfações realmente crescem, ou as satisfações “permitidas socialmente” aumentam. Entretanto, o princípio do prazer de que falava Freud é administrado apenas repressivamente. Esse gozo não é aquele proporcionado pela sublimação, quando a consciência era mantida e até mesmo proporcionava a arte como protesto e negação do existente. A perda dessa consciência é o primeiro indício da realização de uma sociedade sem liberdade. Se a sublimação permitia um alto grau de consciência, de autonomia, entre o princípio do prazer e a necessidade de transposição dessa sociedade para uma existência mais feliz, a dessublimação, opera no sentido oposto, na conciliação forçada entre renúncia e rebelião. A dessublimação repressiva assim funcionalizada reduz a necessidade de oposição e até mesmo a suprime. Não é mais preciso perceber as contradições desta, e nem mesmo exigir alternativas. A dessublimação oferece uma liberação sob a tutela da repressão, um alívio para o corpo, que parece escapar por um tempo do trabalho alienado, gozando dos benefícios que a cultura de massas oferece. Mas, esta liberação produz em verdade um corpo submetido à repressão, um instrumento de trabalho e de diversão em uma sociedade que se organiza contra sua própria liberdade. O corpo tornase uma mercadoria apresentada entre outras tantas. Ele é tratado e explorado como uma mercadoria e como um órgão para consumir, sobretudo tirando proveito da aparente explosão sexual e liberação erótica na sociedade atual. Nesse momento Marcuse se aproxima da crítica que Adorno teceu no texto Educação Após Auschwitz (ADORNO, 1995), quando afirma que a sociedade produz pessoas afinadas com a técnica, envoltas em um “véu tecnológico”. Para Marcuse, “o homem médio dificilmente se importa com outro ser vivo com a intensidade e persistência que demonstra por seu automóvel. A máquina adorada não é mais matéria morta, mas se torna algo semelhante a um ser humano.” (MARCUSE, 1999, p. 81). 12

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O que está apontado nos trabalhos de Marcuse é a crítica a uma sociedade na qual a técnica vem possibilitando formações subjetivas que acreditem que a “felicidade” é possível em um mundo de escravidão como este. A felicidade é vinculada às coisas, sendo elas objetos, mercadorias, bens culturais ou valores humanos, substituídos uns pelos outros. A dominação das massas está, desse modo, vinculada ao plano material fornecido pela técnica e também ao plano sensível que não deixa de ser proporcionado também por aquela. A racionalidade tecnológica apresenta à sociedade uma mistura aparentemente estranha, mas na sociedade do consumo, muito harmoniosa: arte, cultura, política, religião, filosofia, faces do mesmo processo, que é diluído de sentido e tomado apenas pelo seu valor de troca. A subjetividade se transforma naquilo que a técnica permitiu. Que não é mais que o vazio deixado pela ânsia de encontrar o prazer que a indústria cultural proporciona (ou finge que proporciona).2 Apesar destes textos de Marcuse não se referirem abertamente à educação e emancipação, parece ser esta a primeira condição que é negada ao homem. Em suas palavras: “(...) o resultado é uma atrofia dos órgãos mentais, impedindo-os de perceber as contradições e alternativas e, na única dimensão restante da racionalidade tecnológica prevalece a Consciência Feliz” (MARCUSE, 1969, p. 88). O indivíduo precisa passar dessa consciência “feliz”, mas falsa, para uma verdadeira, situação na qual seus interesses imediatos e que são “resolvidos” pela sociedade tecnológica seriam substituídos por interesses reais. Aí reside a real necessidade ou a real denúncia da deformação subjetiva que se instalou. Para tanto é preciso perceber o estado de coisas “Onde desde cedo os conceitos são racionalizados de modo que são traduzidos de forma que reduzam a tensão entre o pensamento e a realidade pelo poder negativo daquele.” (MARCUSE, 1969, p. 109). 4. Considerações finais Nosso trabalhado pretende avançar na densidade das reflexões do autor, já que o aparato teórico que estes ofereceu não foi nem de perto esgotado e se encontra aqui apenas ensaiado. Entretanto, é importante reconhecer que a crítica política que Marcuse oferece não é menos que formativa. Sua preocupação com o destino do sujeito no 2

Tudo que a indústria cultural produza, não importando qual seja a sua inutilidade, será consumido. Porque tudo parece ao sujeito necessário para seu prazer. O prazer sublimado, mediado, perde sua função. Nesse caso, interesses e necessidades particulares não mais existem. Por que não afirmar então que não existe mais esse sujeito, e sim interesses do processo de dominação?

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contemporâneo cercado pelo consumo e pelos discursos positivos à técnica e ao progresso, esquecendo ou até mesmo ignorando o assemelhamento entre sujeito e objeto por ela proporcionado, demonstra a atualidade de suas assertivas. A afinidade entre técnica e política não demarcaria que a preocupação de Marcuse é, sobretudo, formativa? Sua atenção com a vida cotidiana, concreta, permeada pela razão tecnológica, revela uma preocupação certamente pedagógica, em especial, nos tempos de hoje, repletos de crenças nos meios tecnológicos. Sua denúncia é sobre os mecanismos que impedem o potencial de autonomia dos indivíduos. Se a produtividade alçava o homem cada vez mais à competição, à rentabilidade, à conformação ao entendimento de que essa sociedade realizava todos os seus desejos e possibilidades de felicidade, a cultura vem afirmar essa situação. A sociedade unidimensional está, assim, institucionalizada. Os reinos antagônicos emergem agora unidos, seja por bases técnicas, políticas ou formativas. “Mágica e ciência, vida e morte, prazer e miséria” (MARCUSE, 1969, p. 228). Se mesmo a imaginação (criatividade e educação) dos homens foi capturada não é menos que pedagógico preocupar-se com o potencial formativo que resta ou que ainda é possível e necessário para alterar essa ordem. Nas palavras do autor:

Libertar a imaginação de modo que lhe possam ser dados todos os meios de expressão pressupõe a repressão de muito do que é agora livre e que perpetua uma sociedade repressiva. E tal inversão não é um assunto da Psicologia ou da ética, mas da política, no sentido em que esse termo foi usado o tempo todo nesse livro [a Ideologia da Sociedade Industrial] a prática na qual as instituições básicas são desenvolvidas, definidas, mantidas e modificadas [com real autonomia]. É a prática dos indivíduos, independentemente, do quão organizados posam estar. Assim, deve ser novamente enfrentada a pergunta: como podem os indivíduos administrados – que levaram a sua mutilação às suas próprias liberdades e satisfações e, assim,

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reproduzem-na em escala ampliada – libertar-se tanto de si mesmos como de seus senhores? (MARCUSE, 1969, p. 230).

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRÜSEKE, F. J. A crítica à técnica moderna. In: BRÜSEKE, F. J. A técnica e os riscos da modernidade. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001. p. 115-182. MARCUSE, H. One Dimensional Man. Boston: Beacon, 1966. ______. Cultura e Sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra S.A, 1997. vol 1. ______ . A noção de progresso à luz da psicanálise. In: MARCUSE, H. Cultura e psicanálise. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 112-138. ______ . Tecnologia, Guerra e Fascismo. Douglas Kelner editor; tradução de Maria Crsitina Vidal Borba; revisão de tradução de Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. ______ . A ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. ______ . Breves notas Sobre a crítica da Herbert Marcuse à tecnologia. In: Tecnologia, Cultura e Formação... ainda Auschwitz. Bruno Pucci, Luiz Antonio Calmon Nabuco Lastória, Berlarmino Cesar Guimarães da Costa (organizadores)- São Paulo: Cortez, 2003

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