Formação virtuosa e o caráter evangélico.doc

May 24, 2017 | Autor: Sidney Sanches | Categoria: Ética Aplicada
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A FORMAÇÃO VIRTUOSA DO CARÁTER EVANGÉLICO A PARTIR DA ÉTICA DA VIDA PLENA
OU INTEGRAL

Sidney de Moraes Sanches[1]

Definitivamente, o discurso teológico não é
qualquer discurso. É discurso (logos) sobre a
maior e mais sublime realidade, que é Deus
(theos). Falar de Deus é um assunto muito sério,
e, ao mesmo tempo, muito belo. Por isso, o
discurso teológico deve ser o mais responsável, o
mais honesto e o mais belo de todos os discursos.
(Juan Stam, acerca das virtudes do discurso
teológico).




RESUMO

Este ensaio afirma a formação virtuosa do caráter evangélico como ética da
vida plena ou integral. Entende que esta ética é subjacente à teologia da
missão integral. Mas, esta carece ser complementada pela ética das
virtudes, mesclada com a perspectiva da vida plena oferecida pela bioética.

PALAVRAS-CHAVE: formação virtuosa, missão integral, ética das virtudes,
bioética.

ABSTRACT

This essay asserts the virtuous formation of the evangelical character as
holistic life. It understands that this life is underlying to holistic
mission theology. But, this ethics needs to be supplied by virtue ethics,
mixed with the perspective of a full life offered by bioethics.

KEYWORDS: virtuous formation, holistic mission, virtue ethics, bioethics.

Introdução

A moral é o etos do ser humano. Isto é, não importa onde ele se
encontre, qual seja sua tradição histórica ou cultural, sua experiência,
ele sempre terá por casa a moral. Assim, a moral é a coisa mais importante
a se pensar e a se observar na ação humana.

A busca da moral humana é a procura pelo caráter moral da ação
humana, e como ele se forma a partir de experiências localizadas dentro de
tradições que lhe dão a educação moral que necessita para viver dentro
delas.

A tradição ou educação moral civilizatória, ocidental, se constitui a
partir da formulação oferecida por Aristóteles, cristalizada em sua Ética a
Nicômaco. O Cristianismo original assumiu a tradição moral hebraica,
oriental, mas o Cristianismo que se forma historicamente fará uma síntese
entre esta e a antiga tradição moral aristotélica, através dos pais gregos
e, posteriormente, na síntese medieval de Tomás de Aquino.

Esta síntese é refundada na moral moderna, sob as bases do
Iluminismo, com ênfase na autonomia do indivíduo e no cumprimento de regras
universais, relegando o espaço da tradição moral antiga na formação do
caráter moral à periferia da experiência humana.

Contudo, a falência da proposta iluminista moderna, que resultou na
fragmentação, com diversas morais, ou moral nenhuma, colocou a necessidade
de uma volta à tradição em busca da virtude como habilitadora do fim a que
se destina o ser humano: alcançar o que é bom.

Na América Latina, a missão integral pode auxiliar na formação
virtuosa do caráter evangélico. A missão integral propõe um olhar sobre a
realidade latino-americana, que reclama a ação transformadora desta como
componente do ato de evangelizar. Antes de fundamentar este ato na doutrina
ou na Escritura, é a partir do olhar que ele se realiza. Ora, este olhar
desperta a compaixão, e, por sua vez, a compaixão gera o testemunho, que
gera a solidariedade, que gera o compromisso, que gera a responsabilidade,
que gera o esforço por agir de forma a transformar a realidade latino-
americana por meio da evangelização.

A partir destas virtudes, sendo que a virtude original é a compaixão,
isto é, a identificação com toda forma de carência humana, virtude que
humaniza por si mesma, é que ocorre a procura, na doutrina e na Escritura,
tal e tais virtudes, humanizando aquelas, por meio destas.

Na medida em que a missão integral é proposta reformuladora do agir
da igreja em missão, ela é, ainda mais, o meio pelo qual promover as
virtudes necessárias para a realização da missão. Deve-se acreditar na
capacidade de formar virtuosamente o caráter evangélico a partir das
premissas morais que estão embutidas na teoria e prática da missão
integral.

1. A contribuição da missão integral para a formação virtuosa do caráter
evangélico

René Padilla redefiniu a noção de caráter virtuoso cristão, no
contexto latino-americano, a partir do conceito da missão integral, do
seguinte modo:

O que busca a teologia não pode ser outra coisa que a
integridade cristã na missão, e a integridade demanda que
o amor de Deus, que se afirma com palavras, também se
manifeste em ações orientadas para satisfazer genuínas
necessidades humanas, sejam quais forem.[2]

Para Padilla, o amor de Deus traduzido na compaixão é a virtude
característica da teologia evangélica latino-americana. Nesta virtude moral
ela se diferencia de outras teologias europeias e americanas. Toda a
reflexão teológica na América Latina, feita por latino-americanos, só pode
ser feita em função da compaixão para com as populações sofredoras em um
continente marcado pela injustiça, corrupção, violência, drogas,
desagregação familiar, por um lado, e a indiferença, insensibilidade,
egoísmo e desinteresse da sociedade, por outro lado. A teologia e a igreja
que não é capaz de incluir a compaixão como princípio hermenêutico
contextual da sua atividade na América Latina, deve pensar seriamente se
está prestando um grande serviço aos povos latino-americanos.

Por sua vez, e como consequência, a compaixão gera a solidariedade,
testemunho da compaixão. A solidariedade, por sua vez e por fim, produz a
luta pela dignidade de vida dos povos latino-americanos, entendida como
acesso à plena vida. Trata de atribuir o mais elevado valor moral à vida
humana, atribuindo-lhe a mais elevada dignidade.

2. A formação virtuosa do caráter evangélico a partir da ética da vida
plena ou integral

Digno é aquilo que está em primeiro lugar em uma escala, portanto,
aquilo que é mais elevado. A dignidade é associada com as posições mais
nobres, mais honradas, mais importantes em uma sociedade. Oferecer ou
reconhecer a dignidade de algo ou alguém é honrá-la da maneira mais
elevada. É tratá-la com toda a consideração e respeito.

Houve tempo em que a dignidade era definida em termos da posição
social de uma pessoa na escala da sociedade. Quando esta era hierarquizada,
isto é, dividida por uma escala da posição mais digna para a menos digna,
se entendia que o melhor de qualquer coisa deveria ser concedido ao mais
digno, pois este era merecedor em função da sua posição mais elevada na
escala social. A vida humana, assim, dependia da posição mais ou menos
digna deste indivíduo.

Hoje, a partir de profundas revoluções nas sociedades modernas, esta
divisão dos seres humanos em uma escala de dignidade foi superada, elevando-
se a vida humana a uma posição superior a qualquer outra coisa ou alguém.
Isto quer dizer que a dignidade da vida humana deve estar acima de qualquer
posição social, gênero, cor, etnia etc. Diz-se deve, porque, sendo uma
revolução recente nos costumes da sociedade humana globalizada, ainda há um
longo caminho, talvez por gerações, que conduza a humanidade a orientar
suas ações segundo esta nova escala de valores.

Quando se afirma a dignidade da vida humana, é comum perguntar se não
há um aspecto mais privilegiado da vida humana e, portanto, mais digno que
outro. Sendo, porém, a vida humana uma totalidade, torna-se evidente que
todo e qualquer aspecto que diga respeito à vida humana deve ser valorizado
como se fosse toda a vida humana. Não dá para dissociar a vida humana da
pessoa que a possui. Nem dissociar a pessoa do corpo físico que ela possui.
Muito menos separar o corpo físico de toda a vida interior, à qual chamamos
alma, que ela possui. Assim, a dignidade humana só é verdadeiramente
atribuída ao ser humano na medida em que a pessoa, feita de corpo-alma, é
tratada integralmente em uma unidade: a vida.

A manifestação mais imediata da vida humana é o corpo. A Bioética nos
ensina que a vida corpórea ou física pertence à constituição do ser humano.
Conforme Sgreccia,

o corpo é co-essencial, é sua [da pessoa] encarnação
primeira, o fundamento único no qual e por meio do qual a
pessoa se realiza e entra no tempo e no espaço, se
expressa e se manifesta, constrói e exprime os demais
valores, inclusive a liberdade, a socialidade e até o
próprio projeto futuro.[3]

É a partir da dignidade do corpo que se deve discutir acerca das
muitas possibilidades que o ameaçam continuamente: o assassinato, o
suicídio, o aborto, a eutanásia, o genocídio, as guerras, a fome, a pena de
morte, o trabalho escravo, o abandono das crianças e dos velhos, a
prostituição, as deformações autoimpostas, ou impostas por outros, os
regimes de emagrecimento, os programas de desenvolvimento físico etc. A
questão da dignidade do corpo faz com que se descubra e discuta, sem
banalizar ou vulgarizar a discussão, coisas bastante atuais e que vão além
da simples decisão individual.

Uma discussão polêmica, porque já foi usada anteriormente na história
humana e ainda continua a ser justificada em muitos lugares, é acerca da
eliminação de uma ou mais vidas humanas para favorecer a vida de outros, ou
para melhorar as condições sociais e econômicas ou políticas de uma
coletividade. Isto tem a ver com as políticas públicas urbanas de remoção
de populações de rua, de periferia ou de terrenos desocupados, para colocá-
las em situação de mais empobrecimento e risco maior.

Outra discussão importante tem a ver com a biosfera. Trata-se do
equilíbrio que deve haver entre as necessidades e intervenções do corpo
humano junto às demais manifestações da vida, como a vegetal e a animal,
sem estabelecer uma relação de domínio, submissão ou dependência destas,
mas tornando-as úteis ao ser humano, visto que ele depende delas para a
sobrevivência do seu corpo.

Sobretudo, deve-se discutir acerca das condições materiais que
permitem ou não a plena realização da vida corporal. Trata-se aqui da
questão da saúde humana. Sgreccia chama a atenção para duas questões
importantes a esse respeito.

A primeira reside na dignidade da vida humana em relação à sua saúde
física. Esta é uma questão polêmica, de difícil decisão, quando lida com
situações delicadíssimas, como: em casos de uma sociedade regular os
nascimentos por uma questão de bem-estar de todos, o que fazer com as
mulheres e homens férteis e potenciais geradores de novos seres humanos? Em
casos de esculpir um corpo perfeito, o que fazer com os possíveis riscos à
saúde desse corpo?

A segunda questão reside no fato de se defender e promover a saúde do
corpo para todo e qualquer ser humano na medida da sua necessidade. É o
mesmo que dizer que tratar com dignidade o ser humano é disponibilizar para
ele os recursos, meios e instrumentos necessários à sua boa saúde, e que
esta é uma obrigação moral de qualquer sociedade.

Esta segunda questão coloca outras questões bastante sérias acerca de
como uma sociedade enfrenta o tratamento da saúde de seus membros: deve-se
distribuir a saúde de modo universal ou direcionada conforme as
necessidades locais, regionais ou nacionais? O que fazer em relação àqueles
que não podem pagar pelo atendimento à sua saúde? O que fazer com a gestão
da saúde, como: empresas fabricantes de remédios e produtos para a saúde,
planos de saúde públicos e privados, locais de atendimento à saúde,
pesquisas e investimentos na área da saúde, salários e valorização do
profissional da saúde? É legítimo direcionar os recursos e meios para
aqueles momentos de crise em alguma área da saúde, deixando a descoberto
outras áreas onde esta crise não existe?

Afirmar a liberdade e a responsabilidade humana só se justifica
moralmente quando o ser humano possui plena saúde física e mental para se
utilizar delas. Isto quer dizer que, em grande medida, a própria liberdade
e responsabilidade moral do ser humano são afetadas caso sua saúde física e
mental estejam comprometidas por alguma doença grave. Portanto, tratar das
boas condições do corpo é assegurar que as pessoas em uma sociedade sejam
participantes ativos e responsáveis dentro dela.

Cada ser humano deve ser livre e responsável para cuidar da própria
saúde física sempre tendo por fim a preservação da própria vida. Esta
questão também diz respeito àqueles que detem, em um ou outro momento, o
poder ou domínio de uma vida humana em suas mãos. A este cabe uma grande
liberdade e responsabilidade moral, pois lhe cabe cuidar desta vida humana,
seja em uma delegacia, em uma prisão, em um orfanato, em uma igreja, em uma
casa de família, ou em um hospital.

Esta questão é colocada desde que os seres humanos convivem
juntamente em uma dada sociedade e cooperam juntos para o bem-estar físico
de cada um de seus membros. Esta ação consiste desde os impostos que são
pagos até os serviços comunitários. Um dos aspectos mais importantes é a
doação de órgãos e tecidos humanos, exemplo maior de solidariedade
voluntária.

Mas, também, consiste no interesse da sociedade em prover recursos e
meios para que os mais fragilizados e desassistidos tenham acesso à saúde e
ao bem-estar físico. Isto é diferente de se propor uma eutanásia social,
isto é, simplesmente entregar os mais adoecidos à própria sorte e dedicar
recursos e esforços aos que ainda podem ser úteis à sociedade. Isto pode
incluir a construção de leprosários, casas de saúde, hospitais, centros de
reabilitação, e vários outros instrumentos de oferecer a saúde para um
mínimo de vida digna e honrada. Esses instrumentos, de novo, demonstram a
solidariedade no bem-estar físico dos seres humanos, e podem ser realizados
inclusive por iniciativa particular de um dos membros desta sociedade.

Porém, cuidar do corpo implica reconhece-lo como parte de um sistema
de vida que vai além dele mesmo, e do qual ele depende, em um profundo
inter-relacionamento. Segundo Van Rensselaer Potter,[4] médico e pensador,
a principal preocupação da humanidade, hoje, deveria ser com a própria
sobrevivência no planeta. O planeta é um sistema biológico, um sistema
vivo, e o ser humano o ser vivo que mais interfere e depende desse sistema
biológico. É necessário reunir o conhecimento mais amplo que este ser
humano possui sobre si mesmo e sobre o planeta a fim de usar todo este
conhecimento científico-biológico à sua disposição para preservar e
aperfeiçoar a sua existência, a qual depende afinal, da existência do
próprio planeta.

Este conhecimento humano sobre si mesmo afeta a maneira como os seres
humanos se conduzem virtuosamente. Na compreensão de Elio Sgreccia,

a ética não deve referir somente ao homem, mas deve
estender o olhar para a biosfera em seu conjunto, ou
melhor, para cada intervenção científica do homem sobre a
vida em geral. A bioética, portanto, deve se ocupar de
unir a "ética" e a "biologia", os valores éticos e os
fatos biológicos para a sobrevivência do ecossistema todo:
a bioética tem a tarefa de ensinar como usar o
conhecimento... O instinto de sobrevivência não basta: é
preciso elaborar uma "ciência" da sobrevivência.[5]

É preciso entender um pouco o pano de fundo para essa preocupação
atual com a dignidade da vida humana. E este não está tão distante. Ele
pode ser localizado nas experimentações com seres humanos que os médicos e
cientistas nazistas fizeram nos campos de concentração mantidos pelo
exército alemão durante a II Guerra Mundial. Neles, doentes terminais,
deficientes, condenados à morte, serviram de cobaias para experimentações
como: inoculação de vírus e bactérias para testes de sua recepção e efeitos
no corpo humano; exposição em situações de risco de morte para observação
dos limites do corpo humano; não-tratamento de enfermidades para ver como
progrediam no corpo humano. Quando os tribunais do pós-guerra julgaram os
crimes nazistas, a constatação de que cientistas e médicos realizaram essas
experimentações chocou o mundo.

Porém, esta atividade médico-científica prosseguiu nas décadas
seguintes, não de modo tão permissivo naturalmente. O fantástico
desenvolvimento da indústria de medicamentos, promovido por um investimento
maciço em tecnologia médica a partir do desenvolvimento das pesquisas
biológicas, obrigou a busca de resultados imediatos e rápidos para a
aplicação dos medicamentos e pesquisas. Claro, por trás de tudo isso havia
não apenas o interesse pelo progresso da ciência, mas também a exigência de
retorno financeiro dos investidores, públicos e privados. Pessoas e
populações indefesas, porque seus governos ou quem deveria cuidar delas não
o fizeram, foram utilizadas como cobaias em experimentações médico-
científicas para obter os resultados das pesquisas nos corpos humanos.

Fonte de preocupação nesse período foi e continua sendo a
possibilidade real da manipulação da vida em laboratório, a chamada
engenharia genética. Ela se desenvolveu em três possibilidades distintas de
aplicação: a produção de armas biológicas especificamente destinadas para
causar determinados efeitos no corpo humano; a alteração das formas humanas
de vida, com a capacidade de criar novas formas a partir das conhecidas até
então; o manuseio e/ou descarte de embriões humanos a partir da fecundação
in vitro.

Recentemente, o conhecimento médico-científico passou a colocar
questões que tem a ver com a extensão dos direitos humanos até o próprio
corpo humano. Alguns exemplos são: o ser humano tem liberdade de escolha e
decisão no que se refere a alterar partes do seu corpo? Ele pode decidir se
deseja ou não tratar de uma doença mortal? Ele pode escolher entre
continuar vivo ou morrer em situações nas quais todas as possibilidades
médico-científicas de continuar vivo se esgotaram? Esta não é uma questão
propriamente médica, mas que afeta diretamente os limites da sua
intervenção junto ao corpo humano.

Outra questão recente, e igualmente importante, é a existência do ser
humano em um ambiente que o adoece e ameaça a própria existência do seu
corpo. Trata-se das condições físico-biológicas de vida. Hoje, se sabe,
sobejamente, que a água, as plantações, o ar, o lixo, a poluição, afetam,
modificam e adoecem o organismo humano. Não adianta muito a medicina se
dedicar à cura, enquanto os fatores adoecedores são muito mais potentes
enquanto causadores de males ao corpo humano.

Estas questões, e talvez outras, conduzem toda a humanidade, mas,
sobretudo os próprios agentes de saúde humana, a se perguntarem pelos
limites, condições e meios de preservação da dignidade da vida humana.
Existe um valor moral maior e acima de qualquer outro na face da terra: o
valor da vida, sobretudo da vida humana. Às vezes é necessário afirmar isso
cada vez mais quando parece que a vida humana é sempre mais banalizada,
descartável, sem significado, mero objeto de experimentações ou ações
inconsequentes.

Uma vida humana mais digna depende de uma moral que considere a
dignidade da vida humana desde sua integralidade pessoal. O corpo é a
manifestação mais visível como a parte mais frágil do ser humano. Cuidar do
corpo humano para que ele tenha saúde permite que cada membro da sociedade
viva plenamente todo o seu potencial.

É preciso, porém, acrescentar ao conceito de vida humana, a pessoa
humana. Isto quer dizer entender o ser humano desde a complexidade da sua
constituição. Esta não pode estar em uma mera cadeia evolutiva a cujas
origens remeter todo valor da pessoa humana, simplesmente porque a cadeia
evolutiva é apenas isso, uma cadeia, uma máquina evolutiva. Outra resposta
é necessária, outra origem, que só pode existir a partir da dignidade da
criação de Deus. Defender a dignidade da criação de Deus, portanto, deve
ser uma virtude moral irrecusável ao ser humano.

Isto tem a ver com a virtude de conservar a humanidade em meio ao
sofrimento humano. Estes se debatem entre duas opções contraditórias e
opostas: ou aceitam o sofrimento e até o valorizam, ou rejeitam o
sofrimento e o amaldiçoam. Na discussão científica, o sofrimento tem a ver
com questões de vida e saúde. Na moral, o sofrimento tem a ver com a
possibilidade de viver uma vida de qualidade aceitando o sofrimento.

Neste caso, não é virtuoso antecipar-se ao sofrimento, de modo a evita-
lo. Afinal, é disso que se trata quando pais não querem que nasçam filhos
que já foram diagnosticados como incapacitados para uma vida pessoal e
individual plena e de qualidade. Eles querem evitar o sofrimento, tanto
desse filho, quanto deles mesmos para o resto da vida. É por isso, talvez,
que filhos querem que seus pais, agora envelhecidos e adoentados, tenham
liberdade para morrer. Eles querem evitar o sofrimento tanto dos seus pais,
quanto o próprio sofrimento ao verem os pais morrendo vagarosamente.

A pergunta que se coloca à ciência, nestes casos, e em muitos outros,
é se o sofrimento humano deve ser evitado a qualquer preço, ou se, de
alguma maneira, ele não deveria ser admitido como parte da nossa finitude,
da nossa condição humana presente neste mundo. A questão mais profunda,
ainda, é a pergunta pela esperança em meio ao sofrimento, que é a pergunta
pela esperança em relação à vida.

Estes pontos levam à seguinte reflexão, proposta pelo professor de
Ética Teológica, Gilbert Meilaender:
No âmago da fé cristã acha-se um Deus sofredor e
crucificado. Ainda assim, nos últimos anos, muitos têm
dito que a ênfase cristã num Jesus sofredor é perigosa,
pois suscita o aparecimento de uma ideologia que incentiva
os oprimidos a aceitarem pura e simplesmente o sofrimento.
A quantidade de equívocos desse argumento é de tal monta
que não poderei analisá-los aqui; entretanto, não é de
estranhar que esse tipo de argumentação surja numa cultura
devotada à autorealização. Em tal cenário, é preciso que a
cruz seja sempre contracultural.
O sofrimento não é bom, não é algo que alguém deva buscar
para si mesmo ou para outros. Trata-se, no entanto, de um
mal do qual o Deus revelado no Cristo ressurrecto pode
fazer brotar o bem. Assim, é preciso ter sempre à nossa
frente os dois lados da moeda. Devemos nos empenhar no
cuidado daqueles que sofrem, todavia não devemos supor que
o sofrimento possa ser eliminado da vida humana ou que não
tenha sentido ou propósito algum em nossa existência.
Tampouco devemos supor que o sofrimento deva ser eliminado
por qualquer meio à nossa disposição, uma vez que um fim
positivo não justifica o emprego de todo e qualquer
meio.[6]

A formação moral evangélica a partir da missão integral é devedora ao
seu ambiente original: as populações latino-americanas estavam submetidas a
condições injustas, decorrentes de séculos da aliança entre um capitalismo
estranho ao subcontinente, colonizador e predador, com seus representantes
locais, que recebiam os poucos frutos da sua imposição a estas populações.

Em uma palestra realizada em 1978,[7] Juan Stam expõe o que pensa
sobre a teologia dominante e o direito à vida, no subcontinente sul e
centro-americano. Aquela era a teologia da morte, porque aliada aos poderes
mortais acima apresentados. Era necessário desenvolver uma teologia da vida
plena, por ele descrita como:

La teología de la vida defenderá celosamente la dignidad
del ser humano; conversamente, toda teología que legitima
discriminaciones y prejuicios es anti-vida porque es anti-
humana. El evangelio de la vida le restaurará su plena
dignidad y orgullo al negro, al indígena, a la mulher, al
pobre (esclavo, peón, obrero).[8]

A teologia da vida estimularia a autonomia do ser humano como sujeito
de sua própria história, e valorizaria o seu trabalho como afirmação da sua
própria autenticidade criativa. Ela lutaria pelo direito do ser humano a
usufruir da sua própria obra no mundo, de modo a sentir-se plenamente
humano a partir dela. Este seria o alvo da criação de Deus, o fundamento da
dignidade humana.

Neste capítulo, o tema da vida humana e da sua dignidade como alvo da
criação de Deus foi desenvolvido tendo por pano de fundo as mudanças que
acontecem neste mundo globalizado e que afetam, por inteiro, as populações
do subcontinente latino-americano. A esse respeito, a vida humana nunca
valeu tão pouco, nunca foi tão desrespeitada, e nunca careceu tanto de
defesa.

Desenvolver a formação moral virtuosa que resulte no esforço humano
pela preservação da vida humana, é a obrigação que se impõe a teologia
evangélica latino-americana, a partir da sua afirmação da missão integral,
que poderia ser atualizada, para nossos dias, por vida plena ou integral.

Conclusão


A moral, portanto, é a condição da existência humana no mundo, a
partir de um etos, de uma tradição moral na qual ela se expressa em
sociedade, a partir da qual, também, os indivíduos são moralmente formados.
A religião é parte deste etos, e, no caso da América Latina, este se
vincula à tradição moral ocidental de orientação religiosa cristã. Sendo
mais específico, após 500 anos de história, este etos moral é o amálgama
desta orientação predominante com as contribuições de tradições morais
distintas como a indígena, africana e, mais recentemente, de outros grupos
de imigrantes.

Refazendo o percurso histórico desta tradição moral predominante, seu
início se encontra nos primeiros moralistas gregos, sobretudo Aristóteles.
Para este, a moral depende de um fim para o ser humano, e este é a sua
excelência, ou a sua virtude. A esta se dedica a formação moral do caráter
humano. A civilização cristã incorporou ao legado judeu-oriental esta
tradição grego-ocidental, fazendo de Deus o alvo da excelência ou perfeição
do caráter humano, que deveria ser espelho do caráter divino, conforme
revelado em Jesus Cristo e sua prática virtuosa.

A intenção do caráter virtuoso é humanizar o caráter humano, de modo
que a humanidade é a virtude do ser humano. Na medida em que ele se
encontra com o outro ser humano, igual a si mesmo, uma atitude é
fundamental a ambos: a compaixão, com as demais consequências:
responsabilidade, generosidade e esforço.

A prática virtuosa se dá na preservação da vida humana. Esta é a
obrigação que a teologia evangélica latino-americana, conhecida como
teologia da missão integral, se impôs, no interesse de agir de modo
transformador na realidade do ser humano que se move no subcontinente.

Ela só se justifica como missão integral porque tem como valor
absoluto a vida integral. Esta requer que se pense o corpo que manifesta no
mundo a totalidade da pessoa humana, espaço de dar e receber a ação
transformadora de tudo que o cerca. Se o fim desta é a felicidade humana,
sendo esta também o alvo da missão integral, cabe dizer que esta é um meio
pelo qual formar o caráter evangélico de modo que ele responda
integralmente à missão integral.

Sendo assim, sem apresentar à igreja evangélica uma formação moral do
caráter cristão virtuoso, não será possível a realização da missão integral
da parte dos seus muitos membros. Não basta apresenta-la como um elemento
externo à igreja evangélica, a ser incorporada em seus muitos programas em
competição. É preciso investir na formação moral do crente evangélico para
que a missão integral seja o que ela realmente pretende ser: a luta pela
vida integral, plena, em nossa América Latina.

Bibliografia

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HENRY, Carl (Ed.). Dicionário de Ética Cristã. 1ª ed. São Paulo: Cultura
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MEILANDER, Gilbert. Bioética. Um guia para os cristãos. São Paulo: Vida
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PADILLA, C. René (Comp.). 25 Años de Teologia Evangelica Latinoamericana.
Buenos Aires: FTL, 1995
PEREIRA, Otaviano. O que é Moral. São Paulo: Brasiliense, 2004.
POTTER Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. New Jersey:
Prentice Hall, 1971.
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São Paulo: Loyola, 1996.
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Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.
VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 9. Ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
-----------------------
[1] Sidney de Moraes Sanches, Doutor em Teologia, professor na Faculdade
Teológica Sul Americana.
[2] PADILLA, 1995, p. 96.
[3] SGRECIA, 1996, p. 157.
[4] POTTER, 1971.
[5] SGRECCIA, 1996, p. 24.
[6] MEILANDER, 2009, p. 20,21.
[7] STAM, 2005, p. 167-185.
[8] STAM, 2005, p. 173,174.
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