Formalidades da circulação informal de cinema e os grupos de torrent cinéfilos

June 3, 2017 | Autor: Angela Meili | Categoria: Media Studies, Cinema, Digital Piracy/ Filesharing
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Descrição do Produto

org

gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran

cinema apesar da imagem



Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

M547

Menotti, Gabriel, Org.; Bastos, Marcus, Org.; Moran, Patrícia, Org. Cinema apesar da imagem / Organização de Gabriel Menotti, Marcus Bastos e Patrícia Moran. – São Paulo: Intermeios, 2016. 250 p. Conferência Besides the screen (Telas à parte), Brasil, 2014. ISBN 978-85-8499-042-9



1. Cinema. 2. Comunicação. 3. Semiótica. 4. Artes. 5. Criação Artística. 6. Processo de Criação. 7. Produção Cinematográfica. 8. Produção Audiovisual. 9. Distribuição Cinematográfica. 10. Performance. I. Título. II. Imagens/Ontologias. III. Filme/Difusões. IV. Visão/Bricolagens. V. Materialidade/Performances. VI. Menotti, Gabriel, Organizador. VII. Bastos, Marcus, Organizador. VIII. Moran, Patrícia, Organizadora. IX. Intermeios – Casa de Artes e Livros. CDU 791

CDD 791.43

Cinema apesar da imagem Gabriel Menotti | Marcus Bastos | Patrícia Moran distribuição em (CC) BY-SA 2.5 BR 1ª Edição: Março de 2016 • Editoração eletrônica, produção Intermeios Casa de Artes e Livros Revisão José Irmo Gonring Capa Marcus Bastos • CONSELHO EDITORIAL Vincent M. Colapietro (Penn State University) Daniel Ferrer (ITEM/CNRS) Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUCSP) Jerusa Pires Ferreira (PUCSP) Amálio Pinheiro (PUCSP) Josette Monzani (UFSCar) Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar) Ilana Wainer (USP) Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB) Izabel Ramos de Abreu Kisil Jacqueline Ramos (UFS) Celso Cruz (UFS) – in memoriam Alessandra Paola Caramori (UFBA) Claudia Dornbusch (USP) José Carlos Vilardaga (Unifesp) • Editora Intermeios Rua Valdir Niemeyer, 75 – Sumarezinho CEP 01257-080 – São Paulo – SP – Brasil Fone: 2338-8851 – www.intermeioscultural.com.br

sumário

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Introdução GABRIEL MENOTTI, MARCUS BASTOS, PATRÍCIA MORAN

parte 1 imagem/ontologias

Verdade, realismo SEAN CUBITT Irreprodutível: cinema como evento ERIKA BALSOM Máquinas do tempo BRUNO VIANNA

parte 2 filme/difusões

Intermediários escorregadios: expandindo conceitos sobre a distribuição cinematográfica VIRGINIA CRISP Formalidades da circulação informal de cinema e os grupos de torrent cinéfilos ANGELA MEILI Entre a formalidade e a informalidade: pirataria e distribuição cinematográfica no México STEFANIA HARITOU Cine Fantasma: o cinema morreu? Viva o cinema! PAOLA BARRETO LEBLANC

parte 3 visão / bricolagens

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Vídeo aberto em 360 graus LARISA BLAZIC ETS – Experimentos Técno-Sinestésicos CARLOS AUGUSTO M. DA NÓBREGA,

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Máquinas que veem: visão computacional e agenciamentos do visível

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MARIA LUIZA P. G. FRAGOSO, BARBARA PIRES E CASTRO E FILIPI DIAS OLIVEIRA

ANDRÉ MINTZ

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parte 4 materialidade/performances

Entre sensores e sentidos: sobre a materialidade da comunicação na artemídia GRAZIELE LAUTENSCHLAEGER Mulheres continentais MONICA TOLEDO Cartografia performativa? STEPHEN CONNOLY Jogos de distância e proximidade: micro-performances via Skype PATRÍCIA AZEVEDO E CLARE CHARNLEY

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Sobre os autores

introdução

gabriel menotti, marcus bastos e patrícia moran

Este volume visa a contribuir na difusão de abordagens para um estudo dos sistemas audiovisuais que aconteça à parte das telas. Trata-se de um projeto que remete às primeiras conferências Besides the Screen, realizadas em Londres no início da década de 2010, com o intuito de diversificar os screen studies britânicos por meio de uma maior atenção a aspectos menos discutidos do campo cinematográfico. Naquele contexto, buscava-se reunir pesquisas voltadas para práticas e processos midiáticos nem sempre presentes na bibliografia especializada, tais como os modos de distribuição e exibição de filmes; a regulamentação da produção e do acesso à imagem; os protocolos de codificação da informação visual; e a engenharia de dispositivos para o engajamento com o meio. Para além do empenho em descobrir as nuances operacionais por trás desses fenômenos, havia a vontade de ressaltar a sua centralidade na composição da imagem em movimento como a conhecemos. A conferência foi trazida à América Latina em 2014, num empreendimento apoiado pelo Arts & Humanities Research Council do Reino Unido. Aquele primeiro evento, de onde tiramos o título para este volume, representou mais do que um alargamento geopolítico da rede de investigadores comprometidos com o projeto Besides the Screen. A conexão com laboratórios brasileiros, particularmente da UFES, USP e PUC-SP, contaminou a iniciativa com uma verve acadêmica local, interessada na intersecção do cinema com outras mídias e na atuação artística como possibilidade epistemológica. A partir desse intercâmbio, foi consolidada uma abordagem interdisciplinar e metodologicamente diversa. Os textos aqui reunidos expressam o diálogo transcontinental por uma compreensão do cinema apesar da imagem – que não implica, entretanto, a sua recusa. Pelo contrário, trata-se de uma tentativa de superar a fascinação óbvia que

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a imagem nos causa, de forma a apreendê-la de maneiras ainda mais detalhadas. Ao reparar nos diversos elementos que se dão por dentro, por trás e ao redor das telas, somos levados a perceber que a imagem não é uma unidade autônoma de valor e sentido, que pode ser acessada apenas por uma determinada operação psicofisiológica. É muito mais do que isso. Nesse sentido, nos aproximamos de uma espécie de arqueologia das mídias, interessada nas materialidades da imagem, capaz de colocar os sistemas audiovisuais sob a perspectiva de suas dimensões sociotécnicas e, portanto, evidenciar o papel (ora coordenado, ora conflitante) das redes de notação e dos campos discursivos que os constituem. Ainda assim, é preciso manter as telas em vista — por mais confortável que seja situar o cinema em recortes mais abrangentes, nos quais se possa transitar com liberdade. O diálogo com a tradição serve para dilatar o seu corpus de referências, os seus modos de trabalho e territórios de atuação, num contínuo esforço de heterogeneidade, que reflete o modo também heterogêneo com que a linguagem audiovisual vai se constituindo. A organização deste livro procura manter aberto o campo de interlocuções possíveis. Cada sessão estabelece tensões entre elementos: a singularidade de uns, frequentemente tidos como incontestáveis, é colocada em questão pela multiplicidade dos outros. A imagem é rearticulada entre as supostas determinações ontológicas pelas quais subsiste; o filme se dissolve nos fluxos de distribuição que o carregam pelo mundo; o dispositivo óptico é ressignificado e subvertido perante os processos responsáveis por sua fabricação; a materialidade do meio, tida como horizonte derradeiro de sua especificidade, se mostra como resultado das performances que a põem em prática. Dessa forma, tentamos estimular um pensamento lateral, capaz de encontrar a interdisciplinaridade dentro da disciplina, da mesma maneira que encontra outros cinemas dentro do cinema. Já no primeiro capítulo, Verdade, realismo, Sean Cubitt nos convida a ponderar sobre o esgotamento da imagem em movimento revisitando a questão do realismo, tão cara à representação cinematográfica. O conceito é apropriado a partir de um ensaio do dramaturgo Bertold Brecht da década de 1930, no qual a subversão do poder aparece relacionada ao desvelamento dos seus mecanismos de reprodução. Tal projeto político e estético, que teria sido levado a cabo tanto pelo teatro quanto pelo filme em determinados momentos do século XX, parece encontrar seus limites no mundo contemporâneo, em seu perpétuo estado de crise econômica e ambiental. A perspectiva, forma simbólica sob a qual o cinema organiza o mundo, já não é capaz de dar conta do real que nos cabe, em que os

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estatutos do concreto e do abstrato se invertem e se contaminam. Diante desse contexto, Cubitt ressalta o poder persuasivo da visualização de dados estatística e nos adverte contra qualquer ciência que se apresente como singular, universal e absoluta, clamando pelo monopólio da Verdade. No sentido de desestabilizar o controle exercido pela imagem, o autor sugere que talvez seja interessante pensar um realismo dissociado desta Verdade, possivelmente ligado a formas de animação. Quais cinemas surgem daí? Da mesma forma que Cubitt sugere um olhar contemporâneo para questões ligadas ao realismo da representação, tem sido recorrente um retorno ao problema da reprodutibilidade. O lugar da diferença parece agora se instalar no retorno ao corpo, num sentimento diante da presença que, se não é exatamente de assombro, valoriza no campo dos acontecimentos únicos o tempero que remete aos domínios da exclusividade. Irreprodutível: cinema como evento, de Erika Balsom, trata justamente dessa mudança. O texto analisa tipos de cinema experimental que desafiam o caráter seriado e múltiplo, o modelo de distribuição de cópias para circular por salas de cinema padrão. No texto, esse universo refratário ao múltiplo surge na volta ao matérico e às especificidades dos lugares (onde se poderia supor algo da ordem do digital). Ao explicitar as operações da reprodutibilidade referencial, noção por ela adotada para a reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin, Balsom aborda o surgimento do que chama de “reprodutibilidade circulatória”. Essa ordem de reprodutibilidade não acontece apenas quando as matrizes de uma foto ou filme se multiplicam em cópias, mas também quando elas alcançam outros circuitos. Ao fazê-lo, a autora analisa a maneira como o exclusivo e o único passam a ser percebidos de outra forma. Seu texto mostra como o que se repete vai, aos poucos, abrindo brechas para experiências fora disso que se constituiu, na passagem do mecânico ao eletrônico e digital, como um novo padrão. Encerrando a primeira parte deste livro, marcada por certo contraponto entre o moderno e o contemporâneo, Máquinas do tempo, de Bruno Vianna, retoma algumas premissas do cinema, recolocando de forma sintética problemas ligados à representação do tempo. O texto interpreta aspectos da materialidade das máquinas de imagem e som que sugerem uma analogia com as máquinas de costura. Ao apontar para um pensamento que ocorre por meio de carreteis e bobinas, Vianna reflete sobre os limites e campos de expansão de um tipo de imagem que se define a partir dos quadros e sucessões típicos do modo de representar que se desdobra da pintura à fotografia e ao cinema. Seu interesse é encontrar um cinema que vá além desses determinantes.

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Na sequência, pretende-se lançar um olhar generoso sobre o que há por trás daquilo que é superficialmente reconhecido como distribuição cinematográfica. No capítulo Intermediários escorregadios: expandindo conceitos sobre a distribuição cinematográfica, Virginia Crisp aponta para a necessidade de encararmos essa atividade em toda a sua diversidade logística e social, de modo a podermos refletir sobre suas transformações tecnológicas para além do binômio indústria versus pirataria. Ela ressalta, por exemplo, o papel da distribuição como um gatekeeping capaz de organizar públicos, fomentar mercados, promover e preservar certas culturas fílmicas. Quais seriam os efeitos dos sistemas digitais sobre essas operações, na medida em que borram as fronteiras que separam consumidores de distribuidores? Para examinar a questão, Crisp reivindica análises mais escrupulosas das topografias de distribuição, informadas por maior rigor taxonômico. No caso, pretende abordar o que está contido pela expressão (e pela prática) do compartilhamento de arquivos, no que tange à disseminação informal de filmes. Observando a “cena” online onde essa atividade se realiza, a autora não apenas identifica os grupos e as estruturas que a compõem, como também reconhece formas de distribuição “autônoma” e “intermediária” que lhe são particulares. Essa questão é aprofundada no texto Formalidades da circulação informal de cinema e os grupos de torrent cinéfilos, de Angela Meili. O foco aqui também são as redes digitais, nas quais a distribuição desautorizada de conteúdo audiovisual se tornou expressiva a partir da década de 2000, graças à superação de certas limitações técnicas dos dispositivos de mídia acessíveis ao público. Meili demonstra que a ruptura de paradigma provocada por esses circuitos não apenas implica a reorganização do consumo de filmes, como também indica uma crise mais ampla do mercado cultural, passível de ser entendida sob a ótica do pós-colonialismo. Ao mesmo tempo em que desestabiliza estruturas hegemônicas, a circulação informal instaura as suas próprias redes de distribuição. Nessa conjuntura, os “piratas” aparecem como agentes extremamente especializados, capazes de agir com eficiência, destreza e, por vezes, sofisticação curatorial. Meili chama a atenção para as comunidades que se configuram a partir dos sites indexadores de arquivos BitTorrent, que servem para organizar o compartilhamento descentralizado de dados. Muitos desses grupos pautam a sua atuação por critérios estéticos, políticos e técnicos, no sentido de fomentar “novas cinefilias da era digital”. O fato de que a participação dos usuários no sistema pode ser restrita, caso eles não se adequem às normas da comunidade, sugere contradições interessantes no seio da cultura dita “colaborativa”.

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Mas a ambiguidade com que os novos sistemas de difusão informal respondem àqueles tradicionalmente estabelecidos não se limita ao território da internet. Ela também opera off-line, tanto no cotidiano das cidades quanto no cenário geopolítico global, como atestado por Stefania Haritou em Entre a formalidade e a informalidade: pirataria e distribuição cinematográfica no México. Ecoando estudos semelhantes a respeito dos contextos nigeriano, indiano e chinês, Haritou se debruça sobre os procedimentos da pirataria em um mercado nacional específico, no qual ela representa um papel econômico e cultural muito diferente do que lhe é popularmente atribuído. No México, a exemplo de outros países emergentes, o comércio informal não é a exceção, mas uma regra da vida urbana. Enquadrá-lo sob um prisma unicamente jurídico, tal como o proposto pela Aliança Internacional de Propriedade Intelectual, nos faz perder de vista o modo como ele nutre a cultura cinematográfica do país. Reformas governamentais e legislativas de cunho neoliberal, realizadas durante a década de 1990, deixaram as salas de cinema mexicanas à mercê das companhias de distribuição de Hollywood. Nesse sentido, a venda ilegal de DVDs em banquinhas de camelôs cria um dos raros espaços para a circulação de produções independentes no seu próprio país de origem. A partir da análise de casos distintos, tais como o do longa Heli, vencedor do prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes de 2013, Haritou traz à tona essa produtividade das práticas piratas e o tipo de conhecimento por elas elaborado. Encerrando essa sessão, o capítulo Cine Fantasma: o cinema morreu? Viva o cinema! demonstra como os sistemas de difusão audiovisual representam muito mais do que simples bases para a circulação de produtos midiáticos. Por meio deles, também se articulam atributos aparentemente intrínsecos à linguagem do cinema e à sua lógica de ocupação do espaço. Ao refletir sobre sua prática junto ao coletivo Cine Fantasma, que faz intervenções nas fachadas de antigos cinemas de rua, a autora Paola Barreto Leblanc nos apresenta a projeção de imagens como uma ferramenta anarqueológica, capaz de colocar em questão a neutralidade dessas regras, denunciar a ideologia de progresso que guia a historiografia do cinema e da cidade e, acima de tudo, apresentar alternativas. Nesse sentido, o engajamento com a estrutura do meio aparece como um modo de criar novas formas de insurgência – epistemológica e política. Na esteira desse projeto, a terceira parte de Cinema Apesar da Imagem traz estudos de caso sobre aspectos dos dispositivos de imagem que revelam suas facetas mais políticas, ao enveredar por questões de propriedade intelectual e do controle tecnológico sobre o regime do visível. Ao fazê-lo, revelam também um

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procedimento da crítica contemporânea, caracterizado por um embate indireto em que, ao invés do desmonte explícito, dá-se um discurso paralelo ou uma leitura das complexidades de certos contextos. Num mundo de menos oposições, os olhares dicotômicos ou opositivos parecem aos poucos ser substituídos por outros modos de operar. Se, no campo da difusão, o avesso da padronização surge na forma de uma duração expandida ou de certa aderência ao contexto, extrema a ponto de tornar impossível a circulação de certos filmes pelo circuito mais convencional, no campo do dispositivo, ele se dá por exemplo com as práticas do software livre. É esse o engajamento primeiro de Vídeo aberto em 360 graus, texto de Larisa Blazic que apresenta as possibilidades de se criarem ambientes imersivos com sistemas de baixo custo. O capítulo traz um rápido panorama histórico de codecs e tecnologias que se oferecem como alternativa aos modelos comerciais mais conhecidos e, no seu formato tutorial, nos convida a exercita um novo modo de discussão do conhecimento, em que as práticas “mão-na-massa”, o compartilhamento e a generosidade intelectual transformam-se em atitude política diante de uma indústria da tecnologia que surgiu em meio a utopias coletivas para se transformar em algo mais parecido com um apêndice da indústria do entretenimento. Na mesma linha, o grupo de pesquisa laboratorial Núcleo de Arte e Novos Organismos (NANO) desenvolve dispositivos experimentais que questionam os limites entre mídia e natureza. Coordenado pelos artistas e professores Guto Nóbrega e Malu Fragoso, o grupo faz do espaço institucionalizado da UFRJ um lugar de construção de recursos compartilhados. Ele estabelece colaborações com artistas não vinculados à universidade para desenvolver trabalhos calcados na conectividade entre organismos naturais e artificiais. O artigo ETS - Experimentos Técno-Sinestésicos explicita a aposta do grupo na materialidade maquínica e biológica, abolindo dualismos entre a vida da matéria construída e daquela que é fornecida pronta pela natureza. Seus organismos híbridos problematizam diferenças e propõem aproximações entre modus operandi dos dois sistemas. Trabalhos como S.H.A.S.T - Sistema Habitacional para Abelhas Sem Teto – trazem no título política e poesia, ao expor o problema social contemporâneo das grandes cidades da falta de moradia. A partir da arte, da tecnologia computacional, da eletrônica/robótica, da biologia e da sociologia, o complexo habitat das abelhas é ponto de inflexão sobre nossa organização social. A projeção das colmeias em uma caixa hexagonal, com paredes espelhadas, multiplica e distorce as abelhas, seus ruídos e movimentos. Os dados captados por sensores são exibidos como

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imagens, cuja deformação traduz material e metaforicamente o constante diálogo entre sistemas dotados de inteligências distintas, tornando explícitos os limites dos nossos dispositivos de visão convencionais. Outra reação aos rumos recentes da imagem aparece em Máquinas que veem: visão computacional e agenciamentos do visível, de André Mintz. Ao tratar da visão computacional, suas genealogias e políticas, Mintz aponta para os pontos de fuga que se estabelecem não por contraste, mas por embate ou expansão. Na tensão entre os esforços por encontrar um termo comum da visão, que possa ser calculado, e os problemas por trás dessa premissa homogeneizante, Mintz faz a leitura crítica de um universo recente da arte que se engaja na desconstrução dos elementos estatísticos, classificatórios, padronizantes, que a cultura de banco de dados produzida como resultado da digitalização avançada vem produzindo. A disputa pelos modos de ver — seria possível dizer, de forma mais ampla, modos de instanciar — o mundo é um dos entraves sensíveis do mundo contemporâneo. À medida que o espaço público torna-se permeável ao alcance de redes corporativas, privadas, governamentais e outras, os domínios do íntimo e do privado sofrem uma espécie de colonização que torna tudo o que as pessoas fazem capturável à distância (seja à revelia, ou com desavisada anuência). Sem adotar um tom alarmista ou estabelecer um confronto rígido, o artigo de Mintz permite adentrar, de vários modos, o universo sofisticado e rico em que se procura desenvolver tecnologias capazes de leituras semânticas do mundo visível. Além disso, o texto oferece um ótimo panorama do estado da arte no campo pesquisado, reunindo informações históricas e recortes teóricos que raramente surgem, compilados de maneira sistemática como nesse capítulo. Em sentido inverso ao estabelecido pelos dispositivos que mapeiam as relações entre as pessoas, por meio dos rastros que elas deixam nas redes que frequentam, o uso de sensores e processos em tempo real no corpo gera indivíduos ciborguizados — seres que desafiam o entendimento de qualquer separação possível entre seus corpos e o aparato informacional que os rodeia. A quarta parte do livro Cinema Apesar da Imagem trata justamente disto que sempre esteve do outro lado dos processos de projeção: o corpo e suas extremidades sensíveis. Em Entre sensores e sentidos: sobre a materialidade da comunicação na artemídia, Graziele Lautenschlaeger parte dos supostos embates entre teoria e prática, entre sistemas biológicos e sistemas técnicos produzidos pela cultura, para propor o atravessamento dessas fronteiras e problematizar a produção de sentido na arte. A autora investiga as materialidades da comunicação a partir de Hans Ulrich Gumbrecht, destacando nos projetos artísticos o imbricamento entre processos

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estritamente racionais e sensíveis. Sua pesquisa para a criação estética faz das dimensões do “sentir” e do “fazer sentido” uma caixa de ressonância de problemas relacionados às materialidades dos meios. Ela explicita, por meio de sensores, a implicação do corpo na arte, ou seja, o acesso à proposta estética e às suas questões, que estaria além das telas, além de esquemas estritamente racionais, que se estruturam por contato, pelo dado sensível. Breves arqueologias da artemídia, dos sensores e da cibernética desenham um pano de fundo para o desenvolvimento do processo artístico, em suas implicações táteis e de conhecimento formal. O retorno aos sentidos, ou às interfaces que unem corpo e máquina, representa um conjunto de esforços para expandir as maneiras como as tecnologias e as imagens mapeiam o mundo, suas culturas, suas sociedades, etc. Mulheres continentais, de Monica Toledo, representa esse universo de um novo engajamento com as corporeidades e subjetividades, em que a experiência, a presença ou a memória transitam por territórios distintos do numérico. Talvez esse afastamento do mundo de telas e interfaces que predominou desde a popularização da internet e dos dispositivos móveis seja um aspecto a ser considerado, uma tendência representativa de um mundo que algumas pessoas já vêm chamando de pós-digital. A pesquisa de Toledo encontra-se na intersecção entre performance e videoarte, com recorte etnográfico. A tensão entre corpo e tela, eu e outro, um trabalho que em certo sentido movimenta os interstícios que separam de forma arbitrária cultura e civilização, surge no texto em função de uma experiência de fazer em trânsito. Sua proposta parece inverter o sentido de registro do corpo que se tornou mais comum numa época em que todos fazem selfies, e o imaginário coletivo parece se interessar mais pela representação de si que pela representação do outro. Ao apontar a câmera para outras culturas, para o universo do feminino, para campos de exclusão, apesar dos discursos de heterogeneidade que vêm batalhando sua legitimidade de forma sistemática desde pelo menos os anos 1960, Toledo aponta para um ponto sensível pouco corrente nos debates contemporâneos. A prática de olhar para o outro também se aplica em Cartografia performativa?, de Stephen Connoly. Ao deslocar para São Paulo inquietações decorrentes do mapeamento da especulação imobiliária na cidade de Detroit, Connonly encontra mais do que uma simetria entre procedimentos formais. São Paulo passou por processos de transformação urbana igualmente motivados por interesses especulativos, e o olhar do autor para a cidade, por meio de um dispositivo filmagem instalado no interior de um veículo, parece ligar pontos improváveis entre essas práticas, que se tornaram ilegais nos Estados Unidos, e a dança

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frenética dos aluguéis na maior metrópole brasileira. A primeira fala de Clare Charnley em Jogos de distância e proximidade: microperformances via Skype anuncia o dispositivo do trabalho e uma questão corrente na filosofia: o debate sobre espaço, tempo e presença. O capítulo é uma transcrição de performance apresentada por ela e Patrícia Azevedo durante a conferência Besides the Screen 2014, na UFES. Charnley expressa a incongruência da situação, que envolve estar fisicamente ao lado de Azevedo, sua parceira em trabalhos de telepresença cujo desenvolvimento se dá entre Leeds, na Inglaterra, e Belo Horizonte, no Brasil. A cartografia performativa proposta por Connoly assume nesse projeto um caráter heterotópico, uma vez que a sua estratégia se assenta em jogos de contiguidade visual e simultaneidade temporal, emulando uma copresença espacial – se não fisicamente, pelo menos por meio das telas, que são dispostas sequencialmente na versão em vídeo da performance, gravada em tempo real e sem pós-produção. Movimentos aparentemente simples exigem a adequação dos corpos para atender às convenções cinematográficas constitutivas da ilusão de continuidade de olhar e movimento, ou seja, há na performance uma adequação à tela que exige uma disfunção em relação à gestualidade corrente, como fica explícito no trabalho Orientate 2. Em prol da construção da continuidade visual, a disjunção e reinvenção da gestualidade. O espaço euclidiano cede terreno ao espaço virtual, a expressão além das telas abarca simultaneamente uma dimensão topológica e virtual. Transborda problemas estritamente relacionados ao quadro e campo, ou seja, à tela como espaço material e imaginário de composição visual. Ao reunir este conjunto de textos, que procuram apresentar as discussões mais recentes a respeito das formas de criação, difusão e circulação audiovisual, esse volume pretende contribuir com um retrato provisório dos circuitos de pensamento que vêm se consolidando a partir do intercâmbio entre Brasil e Reino Unido. Mais do que fixar modelos ou sugerir formatos, nosso objetivo é estabelecer pontos de reflexão que permitam a continuidade e o adensamento desses debates, em busca de uma forma multicultural e mais abrangente de entender aquilo que se passa nas articulações entre sons e imagens em movimento.

parte 1

imagem | ontologias

verdade, realismo sean cubitt

tradução gabriel menotti

Os historiadores localizam o começo da modernidade, a chamada “Idade Moderna”, no século XIV. A forma cultural que conhecemos como modernismo começa no século XX. Mas qualquer tentativa de isolar o movimento modernista do século XIX tende a fracassar: ali estão os poetas Mallarmé e Whitman, os pintores impressionistas e a própria ideia da fotografia, a música de Debussy e Wagner. Ou, para tomar outro rumo, a extraordinária confluência entre representação social e fluxo de consciência nas passagens finais do romance Daniel Deronda, de George Eliot, bem como as interações da Europa com o Japão no campo das artes gráficas e do design, que apontam para outras perturbações: de gênero e sexualidade, colonialismo e império, raça e classe. Se a primeira fase da modernidade se desenvolve em direção a Bolívar e às Revoluções no Haiti, na França e nos Estados Unidos, sua segunda fase despenca no catastroficamente fraturado projeto da razão, do progresso e da justiça, expresso, ainda que de maneira bem distinta, nas narrativas de escravos e no Simbolismo. O ápice dessa segunda fase engolfou as décadas centrais do século XX. O tumulto cultural dos anos 1906-1912, do dodecafonismo e do cubismo/fauvismo, é “o canário na mina de carvão” do conflito global que, entre 1914 e 1945, pôs fim aos impérios europeus e estabeleceu a hegemonia norte-americana. Se Arrighi e sua equipe (1999) estão certos a respeito do declínio do papel de liderança dos EUA, a emergente hegemonia chinesa de 2014 repete a contradição histórica da hegemonia norteamericana: em 1945, uma nação comprometida com a democracia se descobriu policial e banqueiro; em 2014, uma nação comprometida com a igualdade se descobre obrigada a liderar uma economia global fundada na miséria dos miseráveis. A última transição foi realizada ao longo de trinta anos de guerras.

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Os conflitos fiduciários da Guerra Fria foram um presságio da transição para a preeminência asiática. Há muito o que se temer. Na época de Brecht, entre as duas guerras mundiais, no centro desses trinta anos de conflito global – os “dias de más notícias” –, o proletariado e o seu ambiente fabril eram os protagonistas em matéria de verdade e realidade, e o adversário era um adversário de classe. Hoje, o adversário não é mais humano, mas sim o ciborgue corporativo, as vastas concatenações de sistemas e máquinas cujo acesso randômico é proporcionado por biochips humanos implantados em conglomerados que se espalham pelo planeta. As classes não desapareceram, mas se expressam de outras formas. Quarenta anos depois do crash da bolsa de Wall Street em 1929, começaria a mobilização que viria a resultar na Crise do Petróleo de 1973, uma crise cuja solução preliminar se daria na forma do neoliberalismo, e cuja verdadeira força se tornaria aparente apenas outros 35 anos depois, em 2008. A recente Crise da Dívida foi produto dessas crises anteriores, ambas impulsionadas pela superprodução, exigindo uma classe dedicada ao superconsumo, uma classe a que foram negadas oportunidades de receita e que portanto se tornou uma consumidora de crédito em massa. Em primeira instância, o superconsumo produz o desperdício integral do qual depende o capitalismo contemporâneo: o desperdício de alimentos; de produtos farmacêuticos destinados a superar os efeitos do superconsumo de alimentos; das embalagens de alimentos e remédios; o desperdício de energia usada para transportar materiais para fábricas de montagem e commodities para consumidores distantes. Esse ciclo de desperdícios possui três virtudes: ele compensa a queda de lucro ao reforçar um consumo disciplinarizado do produto excedente; ele coloca os consumidores contra os produtores, segregando os mais explorados dos mais oprimidos; e ele financia produção e consumo empregando salários futuros, ainda não recebidos. Dessa forma, ele garante antagonismo político e inanição cultural, enquanto transforma o futuro num lugar não mais de esperança mas de ansiedade, assegurando a expansão do lucro ao custo das matérias primas e das populações cujo trabalho e reprodução o capitalismo requer para sobreviver. Essa tendência suicida é a maior prova da natureza ciborgue do capital contemporâneo. Os últimos anos da Guerra de Trinta Anos do século XX produziram, nas formas nascentes do radar, da criptografia e da bomba atômica, as condições que sustentam as finanças, a política e a cultura do século XXI: transmissão, código e energia. Em 1938, já exilado da Alemanha nazista, o dramaturgo e poeta Bertold Brecht escreveu um breve ensaio sobre The Popular and the Realistic.

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Realista significa: desnudar as redes causais da sociedade / demonstrando o ponto de vista predominante como o ponto de vista dos dominadores / escrevendo a partir da posição da classe que preparou as soluções mais abrangentes para os problemas mais urgentes que afligem a sociedade humana / enfatizando as dinâmicas do desenvolvimento / concreto de modo a encorajar a abstração (BRECHT 1964: 109).

Hoje nos encontramos abordando a mesma questão, mas em um terreno profundamente distinto. Temos que considerar a possibilidade de que, em cada uma das instâncias de Brecht, precisemos assumir o oposto. •  A “rede de causas” é agora a rede como causa, uma rede que não se furta de se revelar, sob os nomes privilegiados de Conectividade e Livre Mercado – uma mão invisível pronta para ostentar sua própria realidade. Não existe razão para “desnudar” o que já é obscenamente exibicionista, mesmo (e especialmente) quando o temo “rede causal” foi apropriado como uma construção quase que inteiramente ideológica. Hoje, quando falamos de redes de causas, nos referimos ou ao supostamente livre mercado, essa rede de transações cujo fracasso em distribuir riqueza, ou até mesmo salários decentes, para a vasta maioria da população global, é incessantemente negada pelo neoliberalismo dogmático, ou a um tipo de ecologia moral segundo a qual os pobres – sejam consumidores, produtores, ou aqueles excluídos dos circuitos do capital – são culpados pela própria pobreza, pelo seu consumo e por suas dívidas. •  Hoje, o ponto de vista predominante é, em vários aspectos, o ponto de vista dos dominados – aqueles condenados ao superconsumo perpétuo, tanto pobres quanto ricos –, caracterizado por uma mistura de ansiedade e consentimento sob o slogan de que “Não existe alternativa”. Em 1939, dois anos depois do ensaio de Brecht, Clement Greenberg (1992) analisou o kitsch como a forma cultural com a qual os ditadores influenciavam os gostos dos oprimidos. Hoje, já não é necessário nenhum subterfúgio, exceto pelo fato de os líderes mundiais esconderem qualquer propensão que possam ter à alta cultura, preferindo se refestelar jogando golf ou tocando sax. O triunfo da democracia ciborgue é que estejamos todos no Facebook agora, todos igualmente ineficazes. Mais radicalmente, a própria existência de um ponto de vista, com suas metáforas relacionadas da visão binocular e do avanço estratégico, já não pode ser garantida. Em seu lugar,

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temos o que os adeptos mais otimistas do regime chamam de estilo de vida, que aparece aos outros como um ânimo global de saciedade exaustiva pontuada por carnavais de destruição. • Os problemas mais urgentes não são exclusivamente aqueles da sociedade humana, que já não pode reivindicar autonomia dos processos naturais. A sociedade humana é ela mesma o problema. A redução da democracia a uma escolha, a cada par de anos, entre partidos igualmente comprometidos com a manutenção do status quo, abertamente consolidados sobre essa premissa, reduziu o que já foram os órgãos políticos de classe a siglas sob as quais se esconde a demolição da solidariedade de classe pelo racismo oficialmente sancionado, e pela atomização do que ainda constitui a sociedade pela dívida e pelo superconsumo. • Mesmo que não abandonemos a importância político-econômica e sociocultural da noção de classe, já não podemos assumir que classes distintas simplesmente existem, como Brecht podia. Já não nascemos numa classe, mas sim num lar (econômico), num estilo de vida (cultural), numa identidade (política): condições de separação, não de solidariedade. A tarefa de construir um “nós”, um coletivo organizado capaz de ações históricas, ainda deve ser experimentada. • As dinâmicas do desenvolvimento, que já foram o motor de políticas revolucionárias, assumiram um valor sinistro nos anos da hegemonia norte-americana e da Guerra Fria, quando a palavra se tornou sinônimo da globalização, da extração de recursos humanos, naturais e minerais, e da proliferação de ditaduras. Desenvolvimento, em suma, foi reconfigurado como um sinônimo de crescimento econômico, aquele crescimento que está para o capital como a velocidade está para o tubarão, a rapidez sem a qual ele não pode sobreviver, mas que ameaça tudo ao seu redor. Nesse catálogo de inversões do programa realista de Brecht de 1930, somos levados a confrontar no último item a relação entre o concreto e o abstrato. O que acontece se, ao contrário de Brecht, supormos que qualquer novo realismo tenha que começar na abstração, de modo a encorajar a chegada ao concreto. Retraçando nossos passos: poderia a criação concreta de um “nós” capaz de desafiar o ponto de vista predominante começar com a abstração? As condições da modernidade se transformaram uma vez no século XIX, para inverter os ideais iluministas da liberdade e do progresso em industrialização e colonialismo. Elas

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se inverteram novamente desde Brecht, impulsionadas pelo desperdício próprio da superprodução e do superconsumo e pelo confisco do futuro sob a sobra fiscal e emocional da dívida. A elaboração de Brecht das obrigações do realismo ainda é valiosa, não simplesmente como uma fórmula narrativa, mas como forma de levantar a questão radical da verdade. Seu grande insight é que o realismo seja uma questão da verdade e do seu relato, e que portanto concerne à relação entre o abstrato e o concreto. Essa relação entra em questão na forma contemporânea assumida por ambos.

Verdade C21 Os portadores da verdade dos nossos tempos já não são os romances, os filmes e dramas televisivos, nem sequer o jornalismo investigativo, assaltado de um lado pelos governos repressores e seus patrocinadores corporativos, e do outro, pela corrupção dos donos que dedicam seus recursos ao inquérito sobre a nudez dos famosos. Não é que a demonstração que os membros das famílias reais sejam mamíferos esteja abaixo da busca pela verdade. É que a santidade da verdade foi reservada a outro modo de exibição e demonstração. Se na era de ouro da racionalidade científica o experimento era o caminho para a verdade, na era das probabilidades a verdade existe, na medida em que existe, como diagrama. A exposição de conhecimento estatístico, na forma de tabelas ou gráficos de diversos tipos, é agora uma forma discursiva necessária para a expressão da verdade. Ainda que essa vinculação entre discurso e verdade possa evocar Foucault, é mister destacar que o diagrama não é um discurso entre outros discursos, da mesma forma que os discursos da lei, da medicina ou da engenharia, que reivindicam certas construções de enunciadosverdade simultaneamente, sem reivindicar exclusividade para além dos seus próprios domínios. Pelo contrário, a ubiquidade que os diagramas, quadros e gráficos atingiram desde a sua repentina emergência e disseminação no Statistical Breviary de Playfair, de 1801, sugere a reivindicação de uma abrangência primordial entre todas as outras ordens visuais, como se fosse a única com a habilidade de representar o mundo como verdade. O último grande sistema a fazê-lo foi a perspectiva, que Panofsky (1991) definiu como uma “forma simbólica”. Panofsky tomou esse termo emprestado do filósofo Cassirer, para quem o conceito constituía uma chave histórica da existência humana. Cassirer (1944: 87ff), como tantos filósofos de seu tempo, presumiu que a linguagem fosse um alicerce do ser humano, e descreveu três grandes eras de formas simbólicas

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segundo as quais nossa existência foi organizada no mundo: a expressiva, a representativa e a significativa. A forma expressiva do mito ancora o presente no passado distante, dando sentido ao fluxo da experiência por meio das emoções que ele evoca e, o que era mais importante para o filósofo, sem distinguir o real da sua aparência. O indivíduo expressivo se organiza em torno das condições do mundo. Para Cassirer, a forma representativa era mais bem capturada pelo surgimento de palavras como “aqui” e “agora”: termos que indicam a distinção entre o modo como as coisas aparecem em diferentes circunstâncias, e como portanto elas organizam o mundo em torno do indivíduo. O domínio significativo pertence à ordem da ciência, para a qual a distinção entre realidade e aparência é a condição para uma nova investigação da verdade. Na era significativa, espaço e tempo são abstraídos do aqui e agora experimentado, que se torna uma mera instância de uma estutura lógico-matemática. O grande passo de Panofsky foi compreender que a perspectiva, como uma linguagem visual, não era apenas uma inovação estilística, mas sim um meio para formular as verdades do período representativo, constituindo de fato a sua forma privilegiada. Na época do regime significativo, que com o auxílio da arqueologia das mídias podemos datar em 1801, a verdade não mais aparece como uma perspectiva representativa, mas sim abstraída das aparências na forma inequívoca do diagrama e do seu avatar do século XXI, a visualização de dados. Como forma simbólica, a perspectiva é histórica e, ainda que aberta à evolução, fundamentalmente estável, a tal ponto que Hubert Damisch (1994: 6), um dos comentadores mais importantes de Panofsky, possa ter desprezado a ideia de que o cubismo constituiria uma forma simbólica da mesma ordem. O diagrama é algo completamente distinto. Ainda que haja fortes argumentos para sugerir que os experimentos replicáveis e a álgebra formal das provas lógicas sejam as formas essenciais da ciência, sua forma visual, a forma visual em que suas verdades (e as quase-verdades das ciências sociais) são proclamadas é o gráfico. Uma fotografia sempre pode ser alterada, supomos, mas um gráfico articula a autoridade do número com o poder persuasivo de uma forma que deriva do número, da conjetura algorítmica de muitos números, da média proporcional que suaviza as dúvidas residuais que se formam em torno da divergência entre experimentos únicos. O diagrama não é um adendo à ciência: é a sua mais alta forma de expressão. Os aspectos mais evidentes do diagrama são o modo como ele atenua diferenças, transformando-as em similaridade, e seu grau de abstração. Nesse sentido, ele se conforma com a revisão dialética de Brecht delineada

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anteriormente. O problema se encontra precisamente no modo dessa abstração. Na introdução de suas palestras Gifford sobre o “pensamento”, Arendt sugere qual seria esse problema. Desde Parmênides até o fim da filosofia, todos os pensadores concordam que, de forma a lidar com [as questões que não se dão aos sentidos-percepção], o homem deve desligar sua mente dos sentidos destacando-a tanto do mundo que eles apresentam quanto das sensações – ou paixões – despertadas pelos objetos percebidos (ARENDT 1978: 13).

A mente filosófica é treinada por meio do isolamento do mundo e do próprio corpo. Essa simples ação não apenas instrui, como também cria o “eu” e os seus ambientes; não apenas dá forma, como também instiga o sujeito, ao distingui-lo de seus objetos. Ao mesmo tempo em que reduz tanto corpo quanto mundo, ela abstrai o ego. A verdadeira abstração na ciência não é a do mundo, ainda que ele seja reduzido a dados e privado de sua existência aqui e agora, mas a do assunto sobre o qual versa o diagrama. O que acontece com um assunto cuja verdade é condicionada pela sua abstração? Arendt oferece outro palpite: “Verdade e sentido não são a mesma coisa” (ARENDT 1978: 15). Essa distinção é importante para a leitura de teóricos da mais modernista entre as ciências: “Matéria e sentido não são elementos separados. Eles estão intrinsecamente fundidos, e nenhum evento, não importa qual enérgico, pode romper sua união” (BARAD 2007: 3). Matéria e sentido estão entrelaçados, mas há certa sabedoria em compreender que, nesse entrelaçamento, a verdade não está envolvida. A distinção feita por Arendt entre verdade e sentido, da mesma forma que o “ponto de vista dos dominadores” evocado por Brecht, pode parecer a base para uma teoria da ideologia. Ainda que o ponto de vista seja o dos dominados, esse ponto de vista é ideológico no sentido do termo que o confronta com a verdade. Mesmo assim, na distinção entre sentido e verdade, somos intimados a tomar o partido do sentido, e reconhecer na nova configuração que o arranjo entre matéria e sentido implica um fim ao destacamento filosófico da matéria, das paixões corpóreas e das aparências mundanas, e, dessa forma, o fim da própria ideia de ambiente, subordinada à existência de um eu que seja distinto do seu entorno. A consideração da verdade não estaria mais ligada à ideia de ideologia, mas sim posicionada sobre a matéria e o sentido numa terceira posição. A verdade não seria externa, como nas formas expressivas de Cassirer, nem imanente, como no regime representativo no qual Panofsky demonstrou a centralidade da perspectiva, mas sim abstrata. Essas antigas camadas persistem, como estratos profundos de

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hegemonia, mas o insight de Barad sugere que a ontologia possa driblar a verdade, vinculando a matéria ao sentido sem qualquer recurso à verdade. Não obstante, a verdade persiste como eixo de controle. Ironicamente, depois que a crítica de Althusser escancarou a oposição entre ideologia e verdade, somos levados a confrontar a pretensão de verdade do diagrama como um discurso visual predominante, como forma simbólica predominante, em outras palavras, como a forma visual e simbólica da dominação, de modo que a verdade se tornou ideologia. Aquilo que confronta a ideologia é o sentido, e, segundo essa lógica, a verdade não faz sentido. Isso não significa que seja inverídica: meramente que a construção específica da verdade agora se abstém do sentido, e que a construção típica do sentido, para o bem ou para o mal, se abstém do verdadeiro como seu objetivo ou justificativa. O que a matéria e o sentido compartilham, dentro do vocabulário de Arendt, é a aparência: a aparência que, nas tradições racionalistas e religiosas, está subordinada a uma verdade da qual ela é aparência. Se Cassirer está certo, o modo de verdade desposado pela ciência é centralmente uma verdade de relacionamentos, mas constituída por relações abstraídas dos fluxos do presente fenomenológico: uma verdade na forma de fórmulas, de lógica, matemática e física. A questão portanto é se isso seria capaz de constituir um realismo para o século XXI, um realismo que é “abstrato, de modo a encorajar a concretude?” Dada a centralidade do Marxismo científico para o socialismo de Weimar, poderíamos nos perguntar se Brecht não estaria propondo um método científico quando ele argumentou pelo contrário, por um concreto que encorajasse o abstrato. Seria, por outro lado, o tempo de aderirmos à relação entre matéria (que aparece) e sentido, na insistência de que a verdadeira função do realismo seja a de compreender de que maneira as forças abstratas se reúnem, e nesse sentido apenas existem, com o seu aparecimento – isto é, numa única instância de existência, num único evento? Nesse caso, as singularidades não seriam desprovidas de sentido, nem privadas de conexões, mas poderiam vir à tona como encruzilhadas entre relações (incluindo aí tanto as leis da física quanto as menos compreensíveis tendências históricas). Seria portanto hora de abandonarmos a fascinação científica com o que é típico e focar, em vez disso, naquilo que é único? Esse é o fardo do realismo de Bazin e de suas recentes releituras, que privilegiam o poder indicial do cinema analógico (Rodowick, Doane, Harbord). Trata-se de uma forma de enfrentar o desafio de reconsiderar as preocupações de Brecht com os “problemas que afligem a sociedade humana”. A indicialidade

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cinemática e fotográfica (e, poderíamos acrescentar, a fidelidade da gravação sonora) são orquestradas em torno do aparelho sensório humano; mas, se os maiores desafios não são mais apenas humanos, então o alcance desses sentidos é restritivo, e precisamos olhar para além deles, para regiões do espectro que os seres humanos não podem ver: além daquilo que aparece, na medida em que aparece aos humanos. A descoberta do princípio ecológico nas ciências da vida corresponde a um descentramento do ser humano no funcionamento do planeta. Ela corresponde também a um novo conceito de economia baseada em sistemas, no qual a mão invisível do mercado supera o poder da ação humana: uma compreensão política da economia que serve para remover os interesses humanos da soma das atividades humanas. “Linguagem, mito, arte, religião, ciência são os elementos e as condições constitutivas” da sociabilidade que, segundo Cassirer, define o ser humano desde Aristóteles (1944: 280). Esses interesses característicos do politikon bion, do animal que vive nas cidades (polis), não estão entretanto no topo de qualquer agenda política, exceto aquela dos mais suspeitos fundamentalistas para os quais a conservação de privilégios patriarcais e raciais supera qualquer prática devocional ou contemplação da divindade. Na medida em que somos “pós-humanos”, renunciamos a esses interesses. Colocando de maneira mais política, nós nunca fomos humanos. Não nos tornaremos humanos até que reconceitualizemos nossa relação com uma esfera comum [commons] que é mais do que humana.

O monoteísmo e a imagem em movimento Profissionalmente e entre seus pares, a maior parte dos cientistas dirá que busca o conhecimento e não a verdade; mas, no domínio público, os Fatos, como artefatos típicos do discurso científico, assumem o status monológico, para não dizer monoteístico, de uma Verdade não apenas epistêmica como ontológica: singular, universal e absoluta. É essa forma de Ciência (como a forma singular da Verdade, distinguida aqui pela letra maiúscula) que se torna perigosa. Em suas origens ritualísticas, as mídias baseadas no tempo (narrativa, teatro, música, dança) ensaiam o conflito entre deusas, deuses, flora, fauna, lugares e humanos. Apenas o culto aos santos, que remonta a cultos pré-monoteístas, e o panteísmo herético são capazes de proteger alguns elementos das religiões do Livro da absoluta singularidade da Verdade. O sujeito fraturado da ciência tem sua origem no ser inevitavelmente falho que caracteriza o ser humano diante da perfeição de um Deus Único (é essa condição de inadequação que, entre os mais

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devotos, retorna como ódio ao outro: sexual, cultural; um ódio fora do controle da consciência pessoal, já que, na condição de ser inadequado e possuir vontades inadequadas, podemos confiar apenas no Ser e na Vontade de Deus). Prestar serviço à Verdade como singular, absoluta e universal era a base para o ódio na era representativa. Em nossa era significativa, essa prática é aperfeiçoada, sob a forma do racionalismo Ocidental, como o cerne do governo. Já que no campo da realpolitik é quase impossível falarmos em “genocídio”, somos levados a descrever como limpeza étnica a forma de monoculturalismo que acompanha o monoteísmo desde a Bósnia até o califado, desde Israel enquanto estado judeu até o mantra norte-americano que evoca Deus e Nação e promove a adoração diária de sua bandeira, contrariando o segundo mandamento. No século XXI, confrontamos portanto duas proclamações de Verdade monológica: o fundamentalismo monoteísta e a Ciência instrumental. O primeiro rejeita o realismo perspectivista que o segundo criou; acontece que hoje, ainda que subsista como ferramenta, o realismo perspectivista não mais integra a cultura visual da Ciência. Ambas as crenças estão baseadas no Ser: na existência de algo que precede e excede todas as aparências, e que as permeia enquanto simultaneamente as compromete. A imagem em movimento, emergindo na esteira do regime diagramático, abre imediatamente outra trincheira. As culturas visuais que precederam as tecnologias mecânicas da imagem ainda eram capazes de propor que os objetos que criavam fossem inteiros e completos em si mesmos, e como tal proporcionassem um encontro com a plenitude do Ser. Apesar de todos os seus confrontos com a mortalidade, as grandes tradições visuais nunca puseram em questão a integridade do mundo para si mesmo. Foi a fotografia que despedaçou toda a plenitude dessa autoidentficação. Essa imagem estática sempre foi claramente um fragmento apanhado de processos que a ultrapassavam. Ela abraçava um mundo múltiplo, instável e conflituoso. Em retrospecto, era inevitável que a fotografia viesse a gerar a imagem em movimento, uma vez que sempre foi instável. Uma foto solicitava a companhia de outras. Sua profunda incompletude não mais possuía o álibi dado pela existência de uma perfeita Unidade Divina ausente da história. A imagem mecânica veio pela primeira vez desfraldar o privilégio do Ser. Sob essa luz, parece correto que as religiões do Livro se proponham a renunciar às imagens que destabilizam a unidade da existência. O mártir busca, numa afronta aos mandamentos, fazer-se inteiro pela sua re(a)presentação sob a luz do paraíso, do ser primordial, como instrumento de uma Vontade que não a sua própria. Uma vez que, como toda representação, essa

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também implica a inevitável multiplicação do eu, o suicídio acaba sendo a sua mais perfeita re(a)presentação enquanto Vontade e Ser aperfeiçoados, bem como a única re-estabilização lógica do mise-en-abyme da representação, não fosse o fato de que aniquila a ambos, demonstrando dessa forma a ontologia profana em que ser e não-ser, identidade e não-identidade, são sinônimos. Na sequência dos ataques à publicação Charlie Hebdo, somos levados a modificar a famosa equação de Foucault entre saber e poder de modo a distinguir o poder/ saber do clamor da Verdade pelo controle, no sentido de que a Verdade não visa a persuadir mas sim a dominar. Brecht está correto em falar de dominação em relação ao realismo, na medida em que o realismo é uma busca pela Verdade. Mas a própria separação entre dominantes e dominados indica que a verdade nunca pode ser singular, universal e absoluta. É sempre da ordem da perspectiva; e acima de tudo, um produto da intersecção entre ser e não-ser, em um processo de devir. Portanto a Verdade, com letra maiúscula, opera de fora da história, de fora da sociedade. A Verdade singular é desumana. Isso poderia ser uma virtude se as técnicas realistas clássicas, que colocam o aparelho sensório humano no centro de toda revelação da verdade, estivessem sendo substituídas por uma ecologia mais abrangente de perspectivas conectadas, mas não é o que acontece. Nem a Verdade monoteísta nem a científica reivindicam abertamente um papel de controle, que não para pressupor o controle como condição da própria Verdade, e portanto como álibi para utilização da Verdade no sentido de dominar o outro, humano e não-humano. A classificação de ambas como instituições sociais diz muito sobre a etiologia da Verdade como controle. A reivindicação de posse da Verdade nos leva a retomar ainda outra vez a tese de Brecht sobre o “ponto de vista predominante”. Uma análise da forma singular da Verdade mostra que ela serve tanto à tecno-ciência instrumental da racionalidade biopolítica quanto ao fundamentalismo monoteísta. Se atualmente o ponto de vista dos dominados é de fato o predominante, então os resíduos que ele guarda da ideia metafísica de Verdade constituem o seu aspecto mais opressor. Não obstante, o ataque à Verdade não se mostra exclusivamente negativo: ele implica uma tentativa de produzir sentido, que é implicitamente histórico e social: plural, parcial e cambiante. De modo a expandir a sua crítica num programa de práticas, Brecht apelou para a classe trabalhadora. Os oprimidos do século XXI, sem dúvida, são os que mais têm a ganhar com a busca pelo sentido. Mas esse sentido será o mais débil, na medida em que for postulado exclusivamente na opressão humana. Precisamos não apenas revisar nosso conceito de humano

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para incluir os que dele se encontram atualmente excluídos – os migrantes e indígenas –, como também expor o grau de controle implícito na exclusão do não-humano das nossas formas políticas. Com isso, talvez possamos re-engendrar a ideia brechtiana de “enfatizar as dinâmicas do desenvolvimento” por meio de uma adoção literal do termo, que nos levaria a substituir o êxtase da Verdade pelas dinâmicas do devir. Resta-nos portanto descobrir se os meios da imagem em movimento já se esgotaram; se os cem anos de história do cinema teriam sido o bastante para acabar com o seu potencial utópico e subordiná-lo definitivamente ao regime representativo da perspectiva como forma simbólica. A questão do realismo parece ter menos a ver com as impressões humanas sobre o mundo e mais com a imaginação que nos permite habitar esse mundo de outras maneiras, ou mesmo habitar imaginariamente outros mundos. Se consideramos o realismo como um problema relacionado menos à captura da luz e mais à animação, capaz de desestabilizar a presença da imagem e as suas representações, a próxima questão diria respeito à capacidade da visualização de dados como forma simbólica autêntica da era significativa. Seria a visualização de dados capaz de imaginar o mundo como outro – outro que não autoidêntico, outro que não a sua própria forma predestinada, outro que não um objeto de controle? Essas questões são tão relevantes para as novas histórias materialistas da distribuição cinematográfica quanto o são para a estética do filme.

Referências

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DAMISCH, Hubert. The Origin of Perspective. Cambridge MA: MIT, 1994. GREENBERG, Clement. “Avant-Garde and Kitsch”, in HARRISON, C. & WOOD, P. (eds.) Art in Theory 1900-1990. Oxford: Blackwell, 1992. PANOFSKY, Erwin. Perspective as Symbolic Form. Nova York: Zone Books, 1991.

irreprodutível: cinema como evento erika balsom

tradução marcus bastos

Para começar, e para oferecer algum contexto à minha abordagem da ideia de cinema como evento, eu gostaria de fazer uma distinção entre duas formas diferentes de reprodutibilidade. Ao capturar um traço indicial do evento profílmico, filme e vídeo produzem uma cópia física da realidade. Esse entendimento da reprodutibilidade da imagem em movimento – que chamo de reprodutibilidade referencial – foi amplamente discutido durante a história da teoria cinematográfica; de fato, sua centralidade para um entendimento do meio é tal que ela frequentemente é tida como um indicativo da especificidade cinematográfica. Mas existe uma segunda forma de reprodutibilidade, que chamo de reprodutibilidade circulatória: em vez de se ocupar de um traço da realidade, ela relaciona-se com a maneira como a imagem é copiada e copiada e copiada, transformando aquele traço singular em algo múltiplo que é privilegiado pela circulação. Esta segunda forma de reprodutibilidade tem, eu acho, recebido comparativamente pouca atenção nas teorias cinematográficas – mas isso parece estar em processo de mudança. À medida que a reprodutibilidade referencial pode nos levar a questões a respeito de indicialidade, documentário, e realismo, a reprodutibilidade circulatória nos traz temas sobre autoria, autenticidade, acesso, escassez, e abundância – todos que surgem de um entendimento da imagem em movimento como uma cópia em circulação. Pensar sobre as implicações da reprodutibilidade circulatória é especialmente importante, hoje, sob a luz da mudança tecnológica. A mídia digital reacende a promessa radical e a ameaça suprema que a cópia corporificou desde ao menos o desenvolvimento da mídia fotográfica no Século XIX. A cópia oferece acesso crescente, mas também ameaça comprometer a autenticidade e o controle

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autoral. As viagens promíscuas da imagem digital resultaram em uma variedade de respostas que procuram legitimar essa mobilidade e reafirmar a necessidade de uma imagem “autêntica”, controlada. Essa dinâmica acontece no cruzamento das culturas fílmicas – mas é algo que vejo pressionar especialmente os artistas da imagem em movimento. Esta área de prática é paradoxal no sentido que tem uma longa história de premiar a imagem em movimento por múltiplos e explorar as possibilidades latentes do acesso, mas também tem laços estreitos com – senão acolhimento completo entre – as economias simbólicas da arte, que se manifestam em investimentos profundos em autenticidade e unicidade. Esse paradoxo perpassa a história da arte com imagens em movimento, mas é especialmente pronunciada no momento contemporâneo, em que se encontra a forma de distribuição mais regulada da história do cinema, a edição limitada, ao lado da forma mais promíscua de distribuição nesta mesma história, o rastreador BitTorrent. A digitalização provocou uma multiplicidade de novos modos de circulação de imagens e atribuiu retroativamente novos significados àqueles já existentes, como o modelo de aluguel das cooperativas. Os circuitos de distribuição do cinema de artista sempre foram plurais, mas nunca antes essa pluralidade foi tão diversificada e igualmente necessitada de atenção acadêmica quanto ela é hoje. Christian Marclay vende edições limitadas de The Clock (2010) para museus por valores próximos de US$ 5.000,00 cada, enquanto Kenneth Goldsmith torna centenas de obras disponíveis sem custo – ainda que em muitos casos, ilegalmente – em seu website, UbuWeb. Resumindo, as imagens nunca foram tão livres e tão controladas como são agora. A imagem em movimento na arte esteve historicamente alinhada com acesso e com tentativas de tirar o objeto de arte de uma economia da unicidade e da raridade. Germano Celant referiu-se ao desejo pela fabricação ilimitada e distribuição ampla de objetos de arte como “pequena utopia”, posicionando-a como “um sonho que pontuou o Século XX através de miríades de contextos e momentos históricos e estéticos” (CELANT, 2012, p. 31). Conforme Celant, essa trajetória culmina nos final dos anos 1950 e 1960 com a concepção do “múltiplo”, uma categoria que naquela época compreendia objetos como livros de artista, assim como as edições teoricamente ilimitadas das esculturas publicadas por Daniel Spörri através de suas Éditions MAT. Todavia, é possível facilmente declarar que não é nesses múltiplos objetuais senão no cinema e na vídeo arte – e nas instituições desenvolvidas para lhes dar apoio – que se encontra a verdadeira apoteose desta contra-história. A história dos engajamentos dos artistas com a

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imagem em movimento é em grande parte a história do impulso para democratizar a distribuição e desvincular a produção de arte dos regimes emaranhados da raridade e do fetichismo da mercadoria. Por exemplo, ao priorizar o acesso, o modelo de locação de filmes e vídeos co-operativamente talvez represente a articulação mais amplamente desenvolvida da “pequena utopia” da distribuição de arte, mas a história da vídeo arte entre os anos 1960 e 1980 também poderia representar outra. Essa pequena utopia mais uma vez estica sua cabeça com o advento da distribuição digital. Muitos artistas estão interessados em buscar novos tipos de reprodutibilidade e explorar as formas estéticas que elas engendram, seja isso trabalhar com imagens de baixa resolução, circuitos de cópia caseira, ou outros formatos de circulação. Em mencionei antes que as imagens nunca foram tão livre e tão controladas como são hoje. O que eu acabei de dizer sugere algo sobre como poderíamos pensar a respeito de liberdade. Mas as páginas a seguir vão explorar algo que é menos questionado, e isso é controle. A capacidade de reprodutibilidade inerente à imagem em movimento pode ser matizada por fatores que são tecnológicos, legais, econômicos, estéticos, conceituais, ou alguma combinação deles. No cinema narrativo atual, tal regulamentação da reprodutibilidade é feita através de políticas agressivas de direitos autorais e o desenvolvimento de sistemas de gerenciamento digital de direitos.1 No cinema de artista, uma das principais formas de controle que encontramos é o modelo da edição limitada, que é usado para vender filmes e vídeos no mercado. Nesse modelo, um filme ou vídeo é lançado em um número limitado de cópias – geralmente entre três e cinco – acompanhadas por um certificado de autenticidade e vendidas geralmente por preços bastante altos. Obviamente uma das motivações primárias por trás deste modelo é obviamente a oportunidades de ganho financeiro. Mas gerar edições também fornece uma maneira de garantir que a obra só será vista em certas situações controladas. Há muito a se dizer sobre isto. Mas o que eu gostaria de focar no que segue é como poderíamos pensar sobre formas de escassez e raridade que não têm motivos financeiros, mas são estética e/ou conceitualmente motivadas. Como no modelo de edições, estas formas envolveriam uma rejeição da reprodutibilidade, mas os métodos e motivações são bastante diferentes. Vou introduzir duas formas 1. O termo usado no artigo original remete aos sistemas conhecidos como Digital Rights Management, usados para controlar direitos autorais de equipamentos e programas após sua venda (incluindo técnicas com licenciamento restritivo e criptografia, entre outras formas que visam controlar a pirataria) (n.t.).

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diferentes em que podemos pensar sobre este tipo de escassez, os quais concebem o cinema como evento, como uma experiência irreprodutível ao invés de um objeto reprodutível. A primeira é o cinema ao vivo, e o segundo é o cinema site-specific. Em ambos casos, eu gostaria de arriscar a assertiva de que estas formas causam um interesse especial, hoje, graças às formas a que eles recuam dos circuitos digitais de disseminação. Em uma época de cópia e circulação sem precedentes, eles as rejeitam tanto em favor da singularidade quanto do controle.

Condição ao vivo O tema do programa deste ano do Festival de Curta-Metragens de Oberhausen, “Memórias Não Podem Esperar: Filme sem Filme”, começou com uma tela vazia. Nenhum celulóide correu pelo projetor; ao invés disso, a luz foi transmitida sem intermediário, clara o suficiente para rebater e iluminar parcialmente os rostos dos espectadores sentados. Rapidamente, membros da audiência começaram a jogar bolas de papel amassado em direção ao projetor, provocando sombras que apareciam na tela. Outros aderiram e aviões de papel começaram a planar, com risos e conversas preenchendo a sala. Não estava claro como isso tudo começou: nenhuma instrução tinha sido dada; presumivelmente o curador havia plantado alguns indivíduos com conhecimento na plateia. Os panfletos de filmes antigos que estavam sobre os assentos do auditório tomaram o ar e voaram em direção ao vazio à frente. Na ausência da imagem, as atenções estavam mais focadas na série de interações lúdicas entre espectadores que no jogo de sombras. Quando a comoção arrefeceu, o programa seguiu com a próxima escolha do curador. Nessa recriação coletiva de Hell’s Angels (1969), a performance de cinema expandido concebida pelo cineasta austríaco Ernst Schmidt, Jr. e dedicada a Howard Hughes, tinha terminado. As práticas de cinema expandido dos anos 1960 e 1970 foram tema de atenção curatorial e acadêmica significativa nos anos recentes, muita da qual interrogou como esses trabalhos negociam as antípodas entre expansão intermeios e especificidade reducionista. Para entender Hell’s Angels desta forma, é preciso dizer que ela oferece o grau zero da exibição cinematográfica: projetor, tela, público. Essa consideração tem relevância particular, hoje, enquanto o cinema se transmuta e migra sob as pressões da digitalização. Mas parar aqui seria negligenciar tratar um tema hipoteticamente mais central na obra de Schmidt, e que desempenha um papel chave para contrabalançar o interesse intensificado

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que festivais de cinema e museus têm recentemente demonstrado em certas obras históricas e contemporâneas de cinema expandido: a condição de ao vivo do evento. Hell’s Angels antecipa um entendimento do cinema como algo fundado na semelhança da reprodução mecânica em favor da ativação do auditório como espaço de acontecimentos e encontros acidentais. A condição de ao vivo é uma forma de cultivar o imprevisível: não se sabe, com precisão, o que vai acontecer. Mesmo que a obra ocorra no escopo de um conjunto estável de parâmetros, ela nunca será a mesma duas vezes; ela será sempre uma re-apresentação ao invés de uma repetição. E, talvez mais importante, ela nunca será possível de ser baixada do Karagarga ou transmitida na UbuWeb – ao menos não sem regredir ao status de mera documentação. “Cinema ao vivo” soa como algo como uma contradição em termos. Afinal, se a condição de ao vivo é considerada em relação às mídias tecnológicas sobretudo, ela tende a ser pensada como propriedade da transmissão de TV e da internet muito mais que no caso do cinema, que depende de repetições reguladas do pré-gravado. O “fluxo” televisivo, para usar o termo de Raymond Williams, dá impressão de um presente que se desdobra sem cessar, mesmo quando o conteúdo transmitido não é um fato ao vivo. Como Mary Ann Doane colocou, a “dimensão temporal da televisão [...] parece ser aquele de uma ‘presentidade’ insistente – um ‘Isto-está-acontecendo’ ao invés de um “isto-foi’, uma celebração do instantâneo” (DOANE, 2001, p. 269). A navegação pela web herda esta temporalidade enquanto a exacerba através de interatividade e customização aumentadas. Não apenas o conteúdo é frequentemente atualizado em tempo real, como o usuário possui a habilidade de navegar conforme sua vontade, portanto experimentando a condição ao vivo de um desejo autodirigido. Por contraste, mesmo que destinado ao desvelar em tempo-presente do filme através do projetor, a exibição cinematográfica é mais propriamente localizada no domínio do “isto-foi”. O espectador encontra uma obra já completada que existe no âmbito de uma economia de múltiplos como uma cópia sem original. Mas ver o cinema apenas como um meio da reprodutibilidade gravada é adotar uma visão muito estreita da história do cinema, que exclui as diversas práticas de exibição do primeiro cinema e das vanguardas. As imagens em movimento foram produzidas ao vivo desde seus primórdios. Mesmo antes do desenvolvimento do suporte fotográfico, shows de lanterna mágica, panoramas e brinquedos óticos ofereciam ilusões de movimento que dependia do agenciamento de um operador humano e incorporavam graus significativos de variabilidade

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de uma performance para a próxima. Depois do advento do próprio cinema, a condição ao vivo manteve-se como um componente chave da prática de exibição, particularmente no nível da trilha sonora, seja com os narradores-apresentadores que teciam histórias a partir de uma sucessão de quadros filmados ou na música que os acompanhava. Ainda que a afinidade entre o primeiro cinema e o cinema experimental tenha sido longamente apontada, ela foi frequentemente articulada em termos de preocupações textuais compartilhadas, como um foco no deleite visual ou no choque, uma refração da integração narrativa, ou o emprego de um vocabulário formal reduzido2. O enlace da condição ao vivo em muitas obras de cinema expandido figura como uma semelhança familiar adicional com a era préclássica, que une práticas cinematográficas bastante diferentes através de períodos históricos distintos, em uma posição compartilhada fora de uma experiência padronizada, reprodutível, da imagem em movimento. Apesar desta afinidade, o significado de cinema ao vivo tem mudado imensamente desde os dias do benshi.3 Uma coisa é sair de um regime de repetição antes de ele ser consolidado e outra bastante diferente é deixá-lo depois que ele se tornou norma. A condição ao vivo hoje esta bifurcada. O que Tara MacPherson chamou de “mobilidade volitiva” da internet prevalece como uma experiência dominante da condição ao vivo: um agora perpétuo de acessibilidade quaseinstantânea que depende sobretudo da velocidade extrema dos dados digitais e tende a abarcar a separação física dos envolvidos. É uma condição ao vivo de uma vida totalmente administrada vivida no automático e na grade, desdobrandose na homogeneidade do tempo real. Mas, em reação à quase-inescapabilidade deste regime, testemunha-se a emergência de outra forma de condição ao vivo: um desejo de repelir a circulação nas redes e insistir na locatividade e coletividade de um evento estético que será mantido fora do domínio da reprodutibilidade digital. É possível ver a arte da performance como mais bem equilibrada para responder a esta demanda, mas ela o faz sob o risco de assumir a condição ao vivo como um estado de pureza ontológica, de sonhar com um retorno ao momento pré-lapsariano antes da invenção do rádio colocar em crise uma oposição binária, antes forte, entre o ao vivo e o mediado. A força comparativa do cinema ao vivo é sua habilidade de produzir uma resistência à condição ao vivo tecnologicamente mediada de dentro de seus domínios. A imagem em movimento é fundada em uma economia do 2. Ver, por exemplo, Bart Testa, Back and Forth: Early Cinema and the Avant-Garde (Toronto: Art Gallery of Ontario, 1992). 3. Narradores do cinema mudo japonês (n.t.).

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múltiplo e possui a habilidade de circular de uma forma que os meios tradicionais não podem. Com o cinema ao vivo, vemos algo que trabalha contra as percepções comuns de seu meio, ao encenar uma partida maior do alinhamento persistente de filme e videoarte com acesso, circulação e reprodutibilidade. A condição ao vivo do evento fílmico não se resume ao imprevisível, mas também ao impossível de ver: ela floresce da carga do presente que se desdobra enquanto oferece a seus espectadores uma experiência compartilhada exclusiva e irreprodutível, inacessível àqueles que não participaram pessoalmente. Mover as rédeas da reprodutibilidade da imagem em movimento rumo à prioridade do raro é com mais frequência associado ao modelo de distribuição da edição limitada, motivado por preocupações financeiras e institucionais; aqui, todavia, encontra-se um tipo muito diferente de raridade, estimulado por interesses estéticos e conceituais. “Cinema ao vivo” é uma etiqueta que pode potencialmente abranger um número diverso de práticas, incluindo a obra de Ernst Schmidt, Jr. já mencionada. Ela pode, também, incluir um projeto como After the Garden Series, de Luther Price; aqui, Price enterra found footage em seu jardim, para apodrecer e acumular musgos, então a desenterra para arranhar e pintar, produzindo impressões únicas como After the Garden: Dusty Ricket (2007) e After the Garden: Silking (2010). Notoriamente difíceis de projetar graças à sujeira acumulada, a condição ao vivo destas frágeis impressões vem da maneira com que elas mudam de exibição em exibição, conforme fazem seu caminho tortuoso através de projetores que foram certamente construídos para as películas menos irregulares e afetadas. Passio (2006), de Paolo Cherchi Usai, oferece outro exemplo que se engaja com filme fotoquímico como um meio antigo, e oferece explicitamente a metáfora da impressão em película como um corpo que vive e morre. Feito com a participação de onze arquivos cinematográficos ao redor do mundo, Passio é uma obra em 35 mm com negativos encontrados projetados junto a uma performance ao vivo da cantata passional Passio Domini Nostri Jesu Christi secondum Joannem, de Arvo Pärt (1982). A obra requer um barítono solo, um tenor solo, um quarteto vocal, e um coro de doze a quinze cantores, acompanhados por órgão, violino, cello e fagote. Usai destruiu o negativo original depois da criação de sete impressões numeradas; ele declara ter feito um vídeo que o mostra atingindo o negativo com um machado para provar que o evento realmente aconteceu. Essas impressões foram, então, coloridas à mão, cada em uma diferente matiz. Usai explicou seu uso de música ao vivo em Passio como resultado do fato de que cinema “requer presença humana”, mas a escolha de uma peça em particular que tematiza os últimos dias de Cristo

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– um tempo de sofrimento que prepara o caminho da redenção – também tem ressonâncias significativas para o meio cinema em uma época de obsolescência4. Editado manualmente, colorido à mão, e acompanhado ao vivo: todos os aspectos do filme trabalham para juntos cercá-lo com a singularidade da presença humana e distanciá-lo das formas de reprodução engajadas na proliferação de cópias idênticas de forma a permitir circulação ampla. Usai volta às técnicas de filmagem usadas antes da automação dos processos de cor e do desenvolvimento de processos de edição on-line. A esse respeito, é possível dizer que ele retorna ao ancestral no âmbito do antigo: ele observa técnicas que estão fora de moda mesmo no escopo do cinema feito com processos fotoquímicos, eles mesmo um anacronismo na era digital. Como Usai destruiu o negativo, tudo o que sobrou são as sete cópias que vão degradar cada vez que são mostradas. Elas são entidades que, como corpos, vão viver, envelhecer, e morrer, inscrevendo sua passagem pelo tempo em sua superfície epidérmica. Endossadas com uma finitude material, as impressões de Passio vão acumular pó e riscos cada vez que forem mostradas, performando sua própria passagem para ruína a cada projeção. E, por último, nós também podemos pensar performances com o projetor, como aquelas de Bruc McClure ou Sandra Gibson e Luis Recoder. No mesmo programa temático de Oberhausen mencionado antes, Gibson e Recoder performaram Stations of Light: Installation for Two Movie Theaters, One Audience, and Musician (2014). Para esta peça, os artistas deram três instruções ao curador do programa, Mikka Taanila: ele deveria usar como fonte dois filmes com aproximadamente a mesma duração em DCP;5 em sua seleção, ele deveria levar em consideração como o programa temático “Filmes sem Filme” poderia trabalhar com filmes; ele não deveria revelar a identidade do filme aos artistas ou o público. Eu levanto este exemplo em particular porque, notadamente, ele não usa filme fotoquímico, como muitos dos outros projetos que eu mencionei fazem. Gibson e Recoder substituíram a trilha sonora dos filmes por um acompanhamento ao vivo composto por Douglas J. Cuomo e interpretado por Dirk Wietheger, enquanto suas imagens eram transformadas em borrões ectoplásmicos. Gibson e Recoder estavam na cabine, manipulando o projetor de luz com um pedaço rotativo de filtros de vidro e cor, para criar imagens abstratas, gasosas, que às vezes 4. Entrevista para a autora em 17 de junho de 2013. 5. A sigla DCP significa Digital Cinema Package, em português Pacote de Cinema Digital. Trata-se de um sistema de projeção em sala de cinema em que um conjunto de arquivos armazenam e organizam sons, imagens e dados de um filme (n.t.).

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lembravam as fotografias de espíritos do século XIX. Após mais ou menos vinte minutos, os músicos desertaram para o outro cinema e o público os seguiu. Lá, um segundo filme era exibido, este ainda mais abstrato que o primeiro com suas refrações através de um cilindro rotativo mais rápido. A manipulação das imagens pelos artistas servia como uma alegoria da própria ideia de evento performativo: as imagens fugidias que tocamos, deslizam para dentro e fora da capacidade de reconhecimento. Após algum tempo neste espaço, o público voltou ao primeiro cinema para a conclusão da performance. Gibson e Recoder afirmaram que seu uso de dois cinemas foi inspirado pelo sistema e mudança em ato do 35mm, em que o projecionista troca rolos conforme opera projetores alternados posicionados lado a lado. Isso foi largamente abandonado com a introdução do sistema de chassis nos anos 1960, que iniciou uma automação crescente da projeção que encontra sua apoteose com o DCP. Ao metaforizar espacialmente o sistema de troca de rolos, os artistas buscaram recuperar contingências perdidas. De maneira semelhante, as trilhas de imagem e som de Stations of Light encenaram uma tensão entre a estabilidade da notação e a variabilidade da improvisação. Como Cuomo notou na discussão depois da projeção, sua composição estava amplamente preparada, mas inclui algumas oportunidades para o violoncelista tocar fora das bordas. Enquanto isso, as impressões de DCP serviam como um tipo de partitura de onde Gibson e Recoder performavam; ainda que esta partitura pudesse ser copiada (ou, melhor, era uma cópia), eles produziriam algo a partir dela que seria absolutamente singular. A este respeito, a dupla estava explorando o que Nelson Goodman chama de natureza alográfica do cinema: ele é uma arte em duas fases que requer uma atuação performativa de forma a ser realizado, algo que necessariamente abre o trabalho à diferença, flutuação, e modificação mesmo se ele continua ele mesmo (GOODMAN, 1976, p. 113-117)6. Goodman coloca as formas alográficas contra as formas autográficas como a pintura, que são completamente realizadas por seus produtores. Isso significa que mesmo “a duplicata mais exata dela não a computa, todavia, como genuína” e seria considerada forjada (ibid., p. 113). Por contraste, é possível copiar um roteiro, uma partitura musical, ou uma impressão de filme e 6. O relacionamento do cinema com a terminologia de Nelson se torna substancialmente mais complicado quando se questiona o status das múltiplas impressões produzidas a partir de um “original”. Para o escopo da presente discussão, a terminologia de Goodman será usada apenas para discutir o relacionamento entre a impressão como notação e a projeção como performance.

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manter-se firmemente dentro dos domínios do genuíno. A reprodutibilidade está, portanto, no cerne da distinção alográfico/autográfico. Crucialmente, no entanto, não é apenas uma questão de alinhar o alográfico com o múltiplo e o autográfico com o singular. A identidade-não-individual da arte alográfica garante que ela também possui um relacionamento com o único, mesmo que ela difira em caráter daquela das artes autográficas. É possível copiar uma notação sem entrar nos domínios do forjado, mas não é possível duplicar exatamente a performance que resulta dela. Considerada como performance, a imagem em movimento para de pertencer somente à economia do múltiplo e também começa a manifestar uma afinidade com o singular. Insistir na reprodutibilidade da imagem em movimento é considerála como material em vez de experiência. No momento em que se desvia para o entendimento do cinema como evento, a singularidade vem para primeiro plano. Desta forma, os artistas da imagem em movimento que excluem a reprodutibilidade em favor da singularidade do evento podem ser entendidos não apenas como responsáveis por excluir um atributo-chave de seu meio – sua capacidade de circular –, mas também por explorar um atributo não menos importante do filme e do vídeo: a condição ao vivo do encontro entre o espectador e a imagem. Generalizando, o objetivo de executar uma performance e uma arte alográfica na era da reprodução mecânica é criar uma experiência padronizada que se conforma o mais próximo possível das intenções autorais e/ou industriais. O que aparece aqui é, em um esmagamento da variabilidade, algo que foi a pedra de toque da exibição cinematográfica desde os anos 1910 e tem sido mais geralmente entendido como uma parte importante dos modelos Fordistas de produção. Stations of Light, em contraste, explora esta abertura onde a exibição tradicional veria formas de fechamento. Ao fazê-lo, Gibson e Recoder distendem o ponto em que esta dimensão performativa está sempre presente, mesmo nas formas mais reguladas de exibição, como a projeção DCP. Enquanto é possível considerar o cinema ao vivo simplesmente como uma parte marginal do domínio já marginal das práticas de cinema de artista, há também uma forma em que ele pode ser tomado como um modelo para repensar a experiência cinematográfica tout court. Todas as projeções de cinema são em certo sentido eventos ao vivo, performances únicas de uma notação estável que ocupa um lugar e tempo particulares e são compartilhadas coletivamente. Este sempre foi o caso, claro, mas hoje obtém uma nova visibilidade em relação aos desvios de sentido históricos da condição ao vivo. Como arte performática, o cinema para de ser um objeto reprodutível e torna-se, no lugar, uma experiência singular – algo que exerce um apelo especial na era do acesso digital.

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Especificidade do lugar Especificidade do lugar é um conceito com uma história bastante longa na prática artística, mas não tanto em cinema e vídeo. A seguir será explorada a noção de cinema site specific, através de um estudo de caso: o cineasta experimental dos EUA Gregory Markopoulos e seu sonho do Temenos. Nós poderíamos certamente falar do relacionamento entre um filme e seu entorno, e poderíamos designar sua situação (geralmente a sala de cinema) como uma situação de observação ideal ou primária, mas na maioria dos casos nós também estamos bastante conscientes que estas imagens podem e vão circular para além desta situação. Em seu texto de 1989, Images in the New Media, Vilém Flusser enumera uma trajetória histórica que vê a imagem como tendo se deslocado da locatividade absoluta (as cavernas de Lascaux), através de crescente transportabilidade (pinturas e painéis de madeira), para um telos de “imagens descorporificadas”, “‘puras’ superfícies” (FLUSSER, 2002, p. 70). Flusser escreve, fotografias “e filmes são fenômenos de transição em algum lugar entre as telas emolduradas e as imagem descorporificadas. Há, entretanto, uma tendência ambígua: imagens vão se tornar progressivamente mais portáteis e os endereçados cada vez mais imóveis” (ibid.). A era contemporânea tem visto fotografias e filmes se apoiar mais nas “imagens descorporificadas” que os sucederam que de volta nas telas que os precederam, conforme as formas digitais de reprodutibilidade vêm permitindo formas sem precedentes de mobilidade da imagem. Como mencionei antes, um investimento nas possibilidades da distribuição em massa atravessa com força a história do cinema de vanguarda. Mas, na figura de Gregory Markopoulos e seu sonho do Temenos, confronta-se o contrário. Na Grécia Antiga, o Temenos era um pomar sagrado restrito aos usos cotidianos; para Markopoulos, ele designava um lugar de exibição absolutamente ideal que surgiria apenas no futuro. Não existe, talvez, qualquer outra figura na história do cinema que tenha recusado tão ardentemente as possibilidades de circulação do meio. Para Markopoulos, a “pequena utopia” da distribuição de Celant era uma distopia que o induziu a inventar uma maneira de assegurar o controle absoluto sobre sua obra e suas condições de exibição. Markopoulos foi uma das figuras mais proeminentes do Novo Cinema Americano antes de partir para a Europa em 1968 e tirar seus filmes de circulação em 1971. A partir de então, ele raramente os mostrou em público, sobrevivendo de patrocínio privado. Ele estava furioso com o que via como um tratamento inadequado que seus filmes recebiam. Em um estado de quase-invisibilidade, ele nutriu o sonho do Temenos, que substituiria arquivos de filme e cinematecas estabelecidos, assumindo um mandato

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duplo de preservação e apresentação apenas das obras de Markopoulos e seus parceiro Robert Beavers. Inicialmente, Markopoulos imaginou construir uma estrutura arquitetônica em área rural na Grécia ou Suécia com esta finalidade. Com Wagner como modelo, ele imaginou uma Bayreuth cinemática, mas os fundos não surgiam. No início dos anos 1980, ele e Beavers começaram a manter exibições em uma área campestre próxima ao vilarejo de Lyssaraia, no Peloponeso, onde o pai de Markopoulos havia nascido. Markopoulos pretendia que os espectadores viajassem ao Temenos para experimentar uma forma de limpeza ritual ao passar um tempo distantes das “más influências” de sua existência cotidiana e ambientes mais urbanos (MARKOPOULOS, 1980). O Temenos era, então, não apenas uma profilaxia para os filmes de Markopoulos, mas também uma tentativa de cura para as doenças engendradas como parte de um complexo midiático-industrial maior. Em outras palavras, e para usar a referência grega condizente, o cinema de Markopoulos era um pharmakon: veneno, remédio, e intoxicante ao mesmo tempo. A dimensão terapêutica do evento era concentrada nas exibições de filmes que aconteciam a cada noite, mas também estendiam-se além delas para abranger o restante do tempo que os peregrinos gastassem na área. Ainda que a atração inicial de Markopoulos pelo vilarejo tivesse raízes nele ser o lugar de nascimento de seu pai, era-lhe também simpático fazer as exibições Temenos lá em função do fato de que a área tinha sido o solo de um templo de purificação ancestral. Asclépius era o deus da cura e da medicina na religião grega ancestral, para quem templos chamados Asclépieia eram devotados, o mais celebrado deles sendo localizado em Epidauro, no Peloponeso oriental. Muitas asclepieias tinham espaços para anfiteatros, do tipo que interessava a Markopoulos e Wagner. Peregrinos costumavam com frequência viajar grandes distâncias para estes lugares, que eram geralmente localizados fora da cidade, como Temenos seria. Uma vez lá, eles passariam por formas de purificação ritual antes de conseguir permissão para entrar no santuário. No Abaton, a câmera interna, eles entrariam num estado de incubação, dormindo sob a influência de drogas. Ao acordar, quaisquer visões que o paciente tivera à noite seriam relatadas ao sacerdote, que as interpretaria e prescreveria a cura apropriada: beber das águas, fazer exercícios, dieta ou mesmo cirurgias. Às vezes, o próprio Asclepius aparecia para o paciente durante a incubação, que acordava para se encontrar curado – ou curada. Em linha com a tradição asclepiana, as exibições noturnas Temenos deveriam servir como uma forma cinemática de incubação. Ela forneceria um remédio para focos de atenção fragmentados, o uso instrumentalizado do tempo, a escravização

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por motivos de lucro, e a banalização da imagem que Markopoulos via tomar conta da sociedade. O alívio viria na forma de uma experiência estética de altadefinição, acontecendo plenamente fora dos regimes estabelecidos de circulação, em harmonia com a beleza natural da paisagem infusa de significado mitológico. Estas exibições terminaram em 1986. Quando Makopoulos morreu, em 1992, ele legou Eniaios (c. 1948-91), um ciclo de filmes de 16mm concluídos, mas não revelados na época de sua morte. O título do ciclo tem um duplo sentido de “unidade” e “singularidade”, e ambas figuram pesadamente no projeto. Durante os últimos anos de sua vida, Markopoulos revisitou sua obra inteira, remontando seleções em um único trabalho dividido em vinte e duas ordens. Ele decidiu que ele seria visto apenas no Temenos. De 25 a 27 de Junho de 2004, em torno de duzentas pessoas reuniram-se para ver as três primeiras ordens de Eniaios, o longaformante de Markopoulos destinado a ser exibido apenas no Temenos. Uma tela de vinte pés foi erguida, com pufes vermelhos em frente para fornecer assentos confortáveis para os espectadores reclinados. Como nos eventos anteriores, estas exibições eram gratuitas e tinham programas belamente impressos incluindo textos de Markopoulos em inglês e grego. Austero e difícil até mesmo para os padrões do cinema experimental, Eniaios consiste em vinte e duas ordens entre três e cinco horas cada, totalizando uma duração de umas oitenta horas. O filme é construído predominantemente de ritmos de preto e guias claras, com estouros ocasionais de imagens extraídas do corpo de trabalhos de Markopoulos. O ato de dedução emerge talvez como a estratégia estética central da obra, já que o mero aparecimento de uma imagem torna-se um presente revelador. A plenitude de movimento tão central ao prazer visual do cinema é recusada em favor de uma concentração resoluta na imobilidade do fotograma – uma parte da filosofia de Markopoulos do filme como filme. Markopoulos encena uma supressão quase violenta de suas próprias imagens, que é também composta de relatos de que os negativos originais foram destruídos depois da integração em Eniaios. Mas ao lado desta sensação de negação – de fato, através dela – descobre-se algo bem diferente: uma total recalibragem da própria visão e relação com o movimento fílmico. A noção de produção de filmes site-specific parece ir contra uma das qualidades inerentes do meio – sua reprodutibilidade circulatória – mas de fato ela tem uma história, ainda que limitada, no âmbito da tradição do cinema experimental e é geralmente acionada entre práticas profundamente investidas no pensamentos sobre o que atravessa as especificidades cinemáticas. No início dos anos 1970,

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Robert Smithson produziu plantas não realizadas para construir salas de cinema subterrâneas com relações intrínsecas com os filmes a serem exibidos nelas. Smithson imaginou que Spiral Jetty (1970) seria mostrado em um museu construído com esta finalidade perto do Golden Spike National Historic Site, em Utah, dentro de uma sala que o espectador acessaria através de uma escada em espiral; Towards the Development of a Cinema Cavern (1971) joga com um chiste no “cinema underground”, criando o diagrama de uma caverna-cinema que exibiria apenas um filme sobre a construção do espaço. Mas onde Smithson ludicamente interroga a especificidade de sítio e a dialética de lugar/não-lugar, para Markopoulos o Temenos era uma questão da máxima seriedade. Não era uma aposta conceitual, mas algo necessário para a proteção da obra, que Markopoulos entendia como uma extensão de seu próprio ser. Monumento e fortaleza ao mesmo tempo, não se tratava de uma forma bem humorada de crítica institucional. Também é possível apontar 2’45” (1972), de William Raban, ou Screening Room (1968-), de Morgan Fisher, ambos necessitando serem refeitos novamente a cada vez que são mostrados em um novo lugar. Estes dois filmes registram a história de sua própria produção: eles são filmados e exibidos no mesmo espaço, embaralhando a atualidade material da exibição e a virtualidade ilusionista da imagem representada. Nestes casos, aventura-se no domínio da singularidade interativa do cinema ao vivo. Os planos de Markopoulos para Eniaios, por contraste, não são de forma alguma amarrados à produção de diferença através da repetição. Ao contrário, Markopoulos concebeu Temenos como um espaço atemporal. Ele é, portanto, marcado pela negação aguda da efemeridade do evento cinemático tão central para as explorações de Raban e Fisher da especificidade de sítio cinemática. A especificidade de sítio é um paradigma espacial, mas no caso das exibições de Eniaios em Temenos, a categoria temporal do evento permanece central. É possível visitar Double Negative (1969), de Michael Heizer, em qualquer dia do ano, sem que qualquer momento em particular seja melhor que outro. Por contraste, Eniaios é acessível por apenas três dias a cada quatro anos, e mesmo então o que é tornado disponível é aproximadamente um oitavo da obra. A cooperação entre diferentes tipos de raridade – assistir à única cópia, de uma filme nunca mostrado antes, no único lugar onde ele deve ser mostrado – empresta às exibições de Temenos uma aura especial. Como os peregrinos que viajaram para visitar a Asclepeia ancestral, a maioria dos espectadores que compareceram às exibições posteriores a 2004 viaja uma distância considerável para chegar a Temenos.

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Conforme Lucy Reynolds notou, “poderia se argumentar que o projeto de filme épico de Markopoulos, sua experiência cinematográfica sem concessões, evoca a figura do penitente inerente ao peregrino, em que os desconfortos da jornada são parte de uma reparação, e onde a resiliência é premiada com revelação e epifania” (REYNOLDS, 2014, p. 75). A lista de pessoas que compareceram ao evento de 2012 mostra representantes de dezesseis países, viajando para um lugar distante de um aeroporto internacional. A dedução que é tão central às operações formais de Eniaios é, portanto, também central ao contexto de exibição da obra, que se apoia na raridade e no gesto deliberado de remoção. Eniaios se engaja em uma negação da habilidade da imagem em movimento de circular através de diferentes exibições, insistindo ao invés disso que seus espectadores façam a jornada para encontrá-la em um ambiente ao qual está intrinsecamente conectada. Torna-se possível delinear onde o texto termina e onde o contexto começa, conforme o todo da experiência – mesmo o tempo entre as exibições – contribui para o significado total e experiência do trabalho original. Eniaios não é simplesmente inseparável de seu lugar, mas também do evento que o cerca, o que (para esta escritora pelo menos) inclui nadar no Mar Eônio, jantares de carneiro e vinho, debates apaixonados sobre a mitologia em estilo de culto de Markopoulos e o estado do cinema de vanguarda, e viver sem água quente e acesso à internet por alguns dias. Em uma palestra ministrada no último dia de projeções de 2012, no terraço do hotel principal em Loutra, o vilarejo onde a maioria dos participantes ficou, Robert Beavers disse que o Temenos proporciona “um momento de força fora das pressões” das instituições e finanças. Mas, também, proporciona um momento fora das formas hegemônicas de circulação que governam nossa cultura visual. Ainda que Eniaios seja, em certo sentido, um retorno à era dos grandes projetos modernistas, que agora foram abandonados faz tempo (mesmo que tenham chegado mais tarde ao cinema que às artes), há todavia algo completamente contemporâneo nas exibições pós-2004 e em particular a intervenção que elas propõem em questões de especificidade e distribuição do meio. Exibindo filme de 16mm com grande custo e dificuldade, estes eventos estão necessariamente engajados nos discursos de obsolescência de uma forma que se pode assumir que não seria aplicável a Eniaios no momento de sua feitura. No entanto, os escritos de Markopoulos revelam uma consciência aguda dos problemas decorrentes da mudança de formatos e mobilidade da imagem iniciados pelo advento do vídeo. Em A Supreme Art in the Dark Age, de 1971, ele escreveu que “o uso de filme como vídeo” o deixou “tomado de desgosto”; em 1975, ele escreveu sobre os “elementos

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sinistros do vídeo” (MARKOPOULOS, 1977, p. 42-43). Markopoulos foi, então, formulando o sonho do Temenos em sintonia com uma consciência da forma como a mudança tecnológica poderia exacerbar o mau tratamento do filme que ele já vislumbrava acontecer no final dos anos 1960. Isto dito, o significado e atração das exibições pós-2004 só podem ser completamente entendidos quando se considera a posição negativa que elas assumem em relação às práticas predominantes de circulação na cultura visual contemporânea. * * * Ao postular o cinema como evento, estes projetos asseguram ao espectador uma forma de experiência incomum em nosso momento contemporâneo, baseada no encontro público face a face com uma obra em seu formato original, com frequência usando estratégias que seriam difíceis ou mesmo impossíveis de reproduzir em uma situação doméstica, digital. Elas rompem com a recepção distraída de imagens para canalizar atenção e oferecer experiência em alta definição – não no sentido do nível quase forense de detalhe oferecido pelas tecnologias de imagem digital, mas no sentido de Marshall McLuhan na forma como as mídias quentes proporcionam “um estado de estar satisfatoriamente preenchido com dados” (MCLUHAN, 2003, p. 39). A mídia quente é uma forma de exclusão, algo que inunda os sentidos do espectador e nada demanda em troca. O filme já era uma mídia quente para McLuhan – mas aqui encontramos organizações do meio que demonstram um investimento distinto em tornar esta mídia quente ainda mais quente, em uma época em que as mídias supostamente esfriaram como um todo. Estas não são formas maleáveis, participativas, em que é possível se engajar quando se deseja, mas, ao contrário, usos da imagem em movimento que buscam oferecer uma experiência mais forte, pura, contemplativa de mídias bastante diferente da interatividade distraída da maioria das situações contemporâneas de exibição, inclusive museus e galerias. Além de prometer uma ruptura da experiência cotidiana das imagens em movimento, tais obras também podem permitir um nível significativamente maior de controle autoral em uma época em que isto está cada vez mais ameaçado. Talvez o termo chave para entender o que está em jogo em tudo isso seja autenticidade. Tomado do museu e da degustação da arte, autenticidade é um conceito polêmico do século 19 que procura reviver um sentido pleno e um estado desalienado de ser, num momento em que a secularização crescente e a industrialização dispararam uma crise dos absolutos. Na ausência do transcendente

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e do eterno, o sujeito volta-se para dentro, tomando a autenticidade como um modelo de virtude pessoal. Conforme Luc Boltanski e Ève Chiapello, no século XIX a autenticidade torna-se um termo chave da crítica artística ao capitalismo, a qual coloca este último como uma fonte de desencanto e inautenticidade (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2005, p. 37). Diferente da originalidade da vanguarda, que privilegia a novidade, a autenticidade é uma reação conservadora que tende a recorrer a um tempo anterior, um estado supostamente primitivo, e/ ou modos de produção tradicionais.7 O autêntico é diametralmente oposto ao reprodutível e circulável, seu caráter surgindo justamente de sua existência fora de qualquer regime de substitutibilidade ou equivalência. Ela senta-se firmemente ao lado do raro, sempre alinhada com o humano e contra a máquina. Como Walter Benjamin escreveu, “toda a esfera da autenticidade se esquiva da reprodutibilidade técnica – e claro que não só técnica” (BENJAMIN, 2002, p. 103, ênfase no original). A autenticidade tornou-se uma preocupação maior no final do século XIX em meio à explosão de novas tecnologias; agora, ela opera um grande ressurgimento como reação-formação à suposta homogeneização e nivelamento da experiência perpetrada pela internet. Em seu livro de 2007, Authenticity: What Customers Really Want, os escritores especializados em gerenciamento de negócios James Gilmore e Joseph Pine encampam esta ideia, declarando que a autenticidade é o que agora define uma certa sensibilidade do consumidor. Eles escrevem que, em “um mundo cada vez mais preenchido de experiências deliberada e sensacionalmente encenadas – em um mundo cada vez mais irreal – os consumidores escolhem comprar ou não baseados em quanto eles percebem uma oferta como real ou não. Os negócios hoje, portanto, dependem integralmente deste real. Original. Genuíno. Sincero. Autêntico” (GILMORE & PINE, 2007, p. 1, ênfase no original). O interesse no cinema como evento não está, de alguma maneira, deslocado deste contexto. Em seu nascimento, a imagem cinematográfica era definitivamente inautêntica. Afinal de contas, era maquinalmente copiada duas vezes: uma cópia da realidade profílmica sem a presença discernível da mão do artista e uma mídia reprodutível, a que falta um original. Mas a obsolescência caminhou bastante, ao instaurar o filme fotoquímico ao lado do autêntico; afinal de contas, agora é a 7. Conforme escreveu Rosalind Krauss, “a originalidade das vanguardas é concebida literalmente como uma origem, um início do zero, um nascimento” (KRAUSS, 1986, p. 6). Ainda que difiram em sua forma de pertencimento temporal, a autenticidade e a originalidade compartilham da mesma repressão à cópia e da mesma emergência a partir de um campo de repetições.

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imagem digital que está associada à cópia. Um evento como o Temenos se apoia nesta recém-descoberta aliança entre filme fotoquímico e autenticidade, ancorando a autenticidade através de noções de peregrinação, escassez e integridade artística. Mas vale a pena observar o caráter supremamente contraditório da autenticidade: sua perda é velada como parte do que Boltanski e Chiapello designam crítica artística do capitalismo; ela é valorizada como algo que se mantém como resistência contra a total colonização de todos os aspectos da vida pelo princípio de troca. Mas, como parte do que eles chamam de crítica social do capitalismo – a objeção à desigualdade e egoísmo do interesse privado –, o apego ao autêntico é desprezado por sua natureza classista (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2005, p. 37). Afinal de contas a autenticidade pode ser facilmente entendida como um impulso reacionário que busca valorizar o estado das coisas às custas da novidade – e de quaisquer promessas de democratização e mudança positiva que ela possa trazer. É importante manter ambos os aspectos da autenticidade em mente ao analisar as obras discutidas aqui. E também é importante reconhecer que estes diferentes entendimentos da autenticidade não são mutuamente excludentes, mas podem operar totalmente em arranjo um com outro. Notavelmente, vários teóricos proeminentes das novas mídias e do ativismo digital propuseram que, atualmente, formas de deserção ou retraimento figuram como modos privilegiados de (não)engajamento. No âmbito do regime dominante de circulação em rede e vigilância, emerge um imperativo de escapar da captura e pavimentar rotas de circulação. Irving Goh escreveu que o “imperativo para pensar este ‘direito de desaparecer’ não pode ser mais atemporal hoje, devido ao claustrofóbico aperfeiçoamento das políticas e arquitetura de uma aterrorizante paz e segurança do século XXI” (GOH, 2006, p. 99-100). Alex Galloway elabora: Ao invés da politização do tempo ou do espaço, estamos testemunhando um aumento na politização de temas orientados à ausência e presença, tais como invisibilidade, opacidade, e anonimato, ou o relacionamento entre identificação e legibilidade, ou táticas de inexistência e desaparecimento (GALLOWAY, 2011, p. 246-247).

De certa forma, a deserção fundamentada dos regimes de circulação, em projetos como os que discuti, como participantes, hoje, desta tarefa necessária, porém impossível de se tornar imperceptível. Ao sair de circulação, esses investimentos em mídias (na maioria das vezes) velhas cruza caminhos com a vanguarda do ativismo digital e da intervenção artística. Eles recusam o imperativo de que os produtos de mídia devem circular para gerar valor, mesmo que isto

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signifique que o façam de forma degradada. Para o artista e teórico Zach Blas, as formas de desaparecimento e imperceptibilidade agrupadas no que ele chama de “estética anti-internet” não apenas proporcionam uma crítica da internet e propõem alternativas a ela, como o fazem no contexto de um investimento político mais amplo que tem intersecções e engajamentos com o desvio de novas tecnologias para usos subversivos (BLAS, 2014, p. 90 e 94). As obras discutidas aqui claramente não encaixam neste paradigma, mas elas possuem algo que vários outros artistas que lidam com estas questões não têm: enquanto uma obra como How Now to Be Seen: A Fucking Didatic .MOV File (2003), de Hito Steyerl, pode no plano do conteúdo tematizar a opacidade informática da forma como Blas a teoriza, a obra em si permanece hipervisível, circulando on-line e em galerias. Há, então, uma contradição do relacionamento com a circulação e a visibilidade proposta no âmbito da obra com as formas em que ela circula e a tornam visível. Por contraste, projetos como o Temenos não tematizam o êxodo das redes de dados mas, ao contrário, encenam esta condição em suas próprias escolhas de distribuição. Não há dúvida de que um projeto do tipo permanece, em aspectos-chave, inassimilável à categoria de obras mais associadas com a recente “politização da ausência”. E, entretanto, a conexão entre a sua supressão da reprodutibilidade da imagem em movimento e as táticas digitais de não-existência permanece importantes, já que ela sublinha a pervasividade das fantasias de fuga numa época em que a matriz – de comunicação, de circulação – é aparentemente infinita.

Referências BENJAMIN, Walter. “The Work of Art in the Age of Its Technological Reproducibility (Second Version)”, in EILAND, H. & JENNINGS, M. (eds) Selected Writings, Volume 3, 1935–1938. Cambridge: Harvard University, 2002. BLAS, Zach. “Contra-internet Aesthetics”, in KHOLEIF, Omar (ed.) You Are Here: Art After the internet. Manchester: Cornerhouse and SPACE, 2014. BOLTANSKI, Luc & CHIAPELLO, Ève. The New Spirit of Capitalism. Londres: Verso, 2005. CELANT, Germano. “The Art of Production”, in The Small Utopia: Ars Multiplicata. Veneza: Fondazione Prada, 2012.

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DOANE, Mary Ann. “Information, Crisis, Catastrophe”, in LANDY, M. (ed.) The Historical Film: History and Memory in Media. Londres: Athlone, 2001. FLUSSER, Vilém. “Images in the New Media” in STRÖHL, A. (ed.) Writings. Minneapolis: University of Minnesota, 2002. GALLOWAY, Alexander. “Black Box, Black Bloc”, in NOYS, B. (ed.) Communization and its Discontents: Contestation, Critique, and Contemporary Struggles. Wivenhoe, Nova York, Port Watson: Minor Compositions, 2011. GILMORE, James H. & PINE, Joseph. Authenticity: What Consumers Really Want. Cambridge: Harvard Business School, 2007. GOH, Irving. “Prolegomenon to a Right to Disappear”, Cultural Politics 2(1), 2006. GOODMAN, Nelson. Languages of Art: An Approach to the Theory of Symbols. Indianapolis: Hackett Publishing, 1976. KRAUSS, Rosalind. The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge: MIT, 1986. MARKOPOULOS, Gregory. Carta à George Spentzas (18 de Novembro de 1980), Cerberus, volume 26. Temenos Archives, Uster, Suíça. MARKOPOULOS, Gregory. Boustrophedon. Rome: Temenos, 1977. MCLUHAN, Marshall. Understanding Media: The Extensions of Man. Corte Madera: Gingko, 2003. REYNOLDS, Lucy. “Wayward Canyons and Sacred Spaces: New Forms of Cinephilia in Artists’ Moving Image”, Millennium Film Journal 59, Primavera de 2014.

máquinas do tempo bruno vianna

Me pergunto se o cinema ainda existe. Na medida em que olho através da minha janela à noite, minha retina imprime uma imagem, meu cérebro a processa e a transforma em algo que suspeito ser a realidade. Eu nego essa suposição. Não existe realidade no que vejo, nem nas imagens que produzo. O tempo, esse sim, sempre foi capaz de infiltrar essas imagens planas através de pequenas brechas, construindo superfícies, esculpindo relevos. Ele se espalha silenciosamente e aos poucos domina, guiando olhares a cantos escondidos e eventos imperceptíveis. Ele costura retalhos da existência, e me desespera enquanto escorre pelos meus dedos. O tempo há. O tempo é fluido e elástico. Ele pode ser dividido ao infinito. Nossa percepção temporal não é absoluta: há dias livres que passam rápido, dias de trabalho que demoram imensamente a chegar ao fim. A relatividade geral diz que o tempo, para objetos com velocidade próxima à da luz, passa mais lentamente do que para os objetos estáticos. Desde que as culturas ocidental e oriental começaram a tentar domar o tempo, a estratégia vem sendo o dividir para conquistar. Os primeiros mecanismos medievais de medição utilizaram um pêndulo para fazer uma roda avançar a pequenos passos. Cada pequeno avanço da engrenagem cria uma unidade básica de tempo, que então pode ser contada. Eles são chamados de mecanismos de escape, apesar de terem a ver mais com controle do que com evasões. O que se vê na imagem foi inventado em 1657, por Robert Hook. O mundo se torna cada vez mais numérico: das equações contínuas e fluidas, do tempo sensorial, sem intervalos indivisíveis, passamos à matemática discreta que analisa conjuntos de números isolados.

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Mecanismo de escape. (CC0) Chetvorno.

Fonte:

Ao contrário do fluxo de áudio, que desde o início das técnicas de registro automatizado foi gravado em sistemas contínuos e analógicos como fitas magnéticas ou ranhuras no vinil, o fluxo imagético tinha como referência as representações estáticas da pintura, gravura, desenhos. Com o invento da fotografia, automatizar a captura em sequência era só uma questão mecânica. A anedota diz que uma aposta feita por Leland Stanford o levou a contratar o fotógrafo Eadweard Muybridge: ele queria provar que as quatro patas de um cavalo saíam do chão simultaneamente durante o galope, o que Muybridge conseguiu demonstrar usando 12 câmeras fotográficas dispostas em sequência e disparadas pelas patas do cavalo através de fios. Mas seu principal mérito técnico foi o de aperfeiçoar o obturador da câmera, permitindo o fatiamento de instantes de até 1/2000 segundo (CLEGG, 2007). Uma vez domada a técnica, Muybridge seguiu fazendo dezenas de estudos do movimento humano e animal, que se estabeleceram entre as primeiras imagens em movimento manufaturadas. Seu trabalho influenciou o invento do cinematógrafo de Thomas Edison e Louis Le Prince, mesmo que esse invento tivesse um funcionamento muito diferente. As câmeras e projetores de cinema acabaram utilizando outro mecanismo de escape medieval: a roda de genebra, ou cruz de malta. Ela é composta de dois

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elementos: a lua, roda que gira continuamente, alimentada por uma manivela ou motor; e a estrela, que a cada volta da lua avança um quarto de círculo. Entre um avanço e outro, o dente fica 1/48 segundo parado, permitindo congelar um instante – que não é mínimo, como se nota pelos artefatos de motion blur, mas que permite criar esses pedaços discretos de tempo (BICKFORD, 1972).

Esquema da cruz de genebra. (CC-BY-SA) Booyabazooka.

Fonte: .

No auge da revolução industrial, em paralelo ao desenvolvimento da fotografia e do cinema, um outro dispositivo de tempo foi criado. A máquina de costura utiliza mecanismo parecido ao da cruz de malta: a cada volta do motor, o tecido congela um instante, um nó é feito, e a roupa pode avançar um pouco mais. O resultado é parecido: um rastro de instantes, criados a partir da linha infinita do tempo. Fotogramas costurados numa superfície linear, carreteis, bobinas e laços. A afinidade entre essas máquinas não passou despercebida para o cineasta austríaco Hans Scheugl. Em 1968, ele propõe o filme ZZZ: Hamburg Special, onde, em lugar da película 16mm, um fio de costura é conduzido pelas engrenagens de um projetor de cinema (SCHEUGL). A linha, com suas texturas e fiapos, é projetada em tamanho ampliado na tela. O congelamento de cada fiapo, feito pela roda de genebra, cria um cinema têxtil, costurado pelas retinas. O fio se torna eixo e representação do tempo, duas dimensões em uma imagem projetada em outras duas dimensões. No plano do registro das imagens, a emulsão fotográfica também não é uma representação contínua. O limite da superfície sensível química são os grãos, que afinal de contas também são elementos individuais de armazenamento de informação visual. Na passagem para o digital, a diferença – em termos de densidade de elementos – é que os pixels estão organizados em uma grade cartesiana, enquanto os grãos são dispostos caoticamente (CUBITT, 2014, p. 103-106). Mesmo a quantidade de pixels por área nos sensores deve alcançar em breve a resolução dos grãos de prata das emulsões.

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Filme 16mm da Marinha Americana. Domínio Público. Foto de Cmacd123.

Fonte:

(CC) Bruno Vianna.

Mas se, na superfície sensível, a discretização do mundo segue imperando, já há indícios de que no suporte numérico o tempo venha a ser representado de maneira menos estanque. No que parece ser uma contradição – já que em última instância a informação digital é armazenada em elementos discretos – , alguns algoritmos de compressão, tais como o H.264, não representam a passagem do tempo somente em quadros completos que se referem só ao instante capturado. Para otimizar o espaço de armazenamento, as técnicas de compressão utilizam fotogramas “P”, onde elementos que se repetem entre um quadro e outro são guardados apenas uma vez – o cenário de um telejornal, por exemplo. A imagem não está mais contida entre quatro linhas de uma moldura; ela vaza para frente e para trás no tempo, contaminando fotogramas com elementos que pertencem a outros instantes. Nos sensores eletrônicos de captura de imagem como CCD

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(CC) Bruno Vianna.

e CMOS, a imagem não se forma de uma vez só, e sim linha a linha. Assim, um fotograma representa um conjunto de momentos – cada um em uma linha, tendendo a uma representação em uma dimensão espacial e outra temporal (CUBITT, 2014, p. 246-253). Num momento histórico em que as verdades absolutas são questionáveis, onde os formatos de filmes e suportes da arte fazem cada vez menos sentido, podemos também sonhar com uma imagem em movimento onde o tempo volte a ser contínuo? Livres de metrônomos que ditam instantes de uma duração arbitrária, e das linhas que limitam o quadro, que representações surgirão? Um cinema do que está por vir deverá necessariamente transbordar dos confinamentos espaciais e temporais do fotograma.

Referências CLEGG, Brian. The Man Who Stopped Time: The Illuminating Story of Eadweard Muybridge: Pioneer Photographer, Father of the Motion Picture, Murderer. EUA: Joseph Henry, 2007. BICKFORD, John H. Mechanisms for intermittent motion. Nova York: Industrial Press, 1972. Disponível em: . Acesso em: 22/01/2015. CUBITT, Sean. The Practice of Light. Cambridge: MIT, 2014. SCHEUGL, Hans. zzz: hamburg special. Disponível em: . Acesso em: 22/01/2015.

parte 2

filmes | difusões

intermediários escorregadios: expandindo conceitos sobre a distribuição cinematográfica virginia crisp

tradução gabriel menotti

Esse artigo trata da distribuição cinematográfica. Mais especificamente, ele nos convida a compreender certos aspectos da distribuição, previamente distintos e demarcados, como interconectados e inter-dependentes. Esse argumento é desenvolvido por meio de uma discussão sobre aquilo que realmente constitui a distribuição cinematográfica tanto em termos industriais quanto sociais, bem como de que maneira a definição desse papel-chave sobre quais filmes são disseminados globalmente precisa ser constantemente revisada e expandida de modo a refletir transformações mais amplas na paisagem tecnológica, social e midiática. Ao fazê-lo, defendemos a ideia de que não é preciso buscar por uma definição final de “distribuição”, uma vez que as práticas que se reúnem sob essa rubrica são por demais vastas e múltiplas para serem adequadamente descritas por um único termo. Nesse sentido, precisamos expandir nosso vocabulário de modo a incluir uma nova terminologia que nos possibilite fazer distinções entre as diversas atividades de distribuição, sem cair na armadilha de tentar categorizar as atividades de disseminação de um lado ou de outro de uma divisão binária. Em suma, esse artigo explora o que a “distribuição” de filmes de fato significa, bem como a forma como ela já foi considerada em termos tanto industriais quanto acadêmicos. Trataremos especificamente da distribuição de filmes, ainda que possamos admitir que as distinções entre o filme e os outros suportes da imagem em movimento estão se desfazendo, e portanto se faz necessária uma abordagem holística, capaz de examinar conjuntamente os modos formais e informais de todas as formas de difusão midiática.

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Os gatekeepers invisíveis As distribuidoras de filme agem como gatekeepers, separando produtores do seu público potencial e em última instância moldando a nossa percepção da(s) cultura(s) cinematográfica(s). Isso não quer dizer que formadores de opinião como críticos, jornalistas, historiadores, espectadores e acadêmicos não atuem no processo de formação daquilo que entendemos como um legado fílmico. Em verdade, diversos agentes são capazes de contribuir para aquilo que constitui o cânone cinematográfico. Não obstante, todos os juízos de qualidade e valor sobre determinados filmes são em última instância restritos aos filmes que foram realizados, e mais especificamente aqueles que tiveram a fortuna de conseguir um contrato de distribuição. Como colocado de maneira eloquente por Julia Knight e Peter Thomas, a distribuição é “o elo em grande medida invisível” entre produção e exibição, que até agora atraiu pouco interesse acadêmico (2008, p. 354). Considerando a influência que as distribuidoras podem ter na definição de quais filmes são vistos, onde, quando e por quem, a falta de um corpus coerente sobre a área é ao mesmo tempo surpreendente e digna de resposta. Com isso, não buscamos sugerir que a distribuição cinematográfica não tenha sido objeto de investigação acadêmica, mas sim que tais intervenções no estudo da disseminação de filmes tenham sido visões parciais, que focavam certos aspectos da indústria cinematográfica enquanto acabavam negligenciando outros.1 Já houve, por exemplo, importantes pesquisas sobre o modo como Hollywood manteve sua posição privilegiada na indústria cinematográfica por meio do poder que exerce sobre os canais de distribuição. Como apontado por Toby Miller et.al., os grandes estúdios e as maiores produtoras independentes mantêm controle sobre a indústria cinematográfica global negociando dinâmicas de exibição com distribuidoras associadas, de modo que um terço dos custos de produção seja coberto independentemente do sucesso que um filme venha ou não a fazer nas bilheterias (2004, p. 296). De fato, é a integração vertical do sistema de Hollywood – segundo a qual toda produção, distribuição e exibição dos filmes são operacionalizadas por um mesmo conjunto de corporações multinacionais – que permite aos estúdios americanos manterem seu domínio sobre a indústria cinematográfica global. De acordo com o economista da comunicação Gillian Doyle, essa é uma das principais razões pelas quais realizadores independentes têm problema para conseguir exibir seus filmes (2002, p. 113). 1. Para uma discussão detalhada dessa questão, ver o trabalho de Alisa Perren (2013)

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O controle que Hollywood exerce sobre os canais de distribuição global produz a impressão de que ela também se trata de um centro global de produção, quando a realidade é bem diferente. Um relatório do Instituto de Estatísticas da Unesco (2012, p. 8) demonstrou que, a cada ano, India e Nigéria produzem mais filmes que os EUA, muito embora Hollywood ainda domine as bilheterias de todo o mundo. Esse fato é particularmente alarmante quando percebemos a proeminência estatística de apenas um punhado de empresas. Se tomarmos o Reino Unido como um exemplo, percebemos que, em 2010, de acordo com o BFI Statistical Yearbook, “as dez maiores distribuidoras dominavam 94% do mercado” (2011, p. 71).2 Essa fatia do mercado britânico flutuou entre 92 e 97% de 2004 a 2010 (2011, p. 78), demonstrando que não se trata de um boom repentino, mas sim de uma tendência consistente. Isso sugere que um pequeno grupo de corporações multinacionais controla as decisões a respeito de quais filmes são amplamente distribuídos e quais não o são. Existe uma competição ferrenha sobre o controle dos canais formais de distribuição. Isso motivou teóricos como Sean Cubitt a sugerir que associar pirataria com formas de criminalidade como o terrorismo e o tráfico de pessoas seria parte de um “extremismo por meio do qual o acesso privilegiado aos meios de distribuição é protegido” (2005, p. 207). Em verdade, o cerne dos conflitos antipirataria não é o controle do lucro, mas sim dos canais de distribuição que propiciam esse lucro. Logo, por mais que a distribuição assuma diversas formas (legais e ilegais), e ainda que esses métodos de disseminação estejam intimamente conectados, existe uma carência de estudos que examinem a natureza da relação entre a distribuição cinematográfica profissional e a pirataria de filmes. Muito embora a literatura corrente tenha focado a distribuição profissional e a “pirataria” como fenômenos distintos, eu gostaria de sugerir que precisamos examinar os múltiplos modos e práticas de disseminação audiovisual conjuntamente, de modo a considerar uma ecologia de distribuição mais ampla. Até aqui, as discussões acadêmicas sobre distribuição cinematográfica estiveram polarizadas entre análises da “indústria” de um lado e da “pirataria” de outro. Entretanto, essa abordagem binária não apenas apresenta tais atividades como antagônicas e em oposição, como também fracassa em reconhecer a diversidade de práticas de distribuição presentes no que podemos (com certa 2. Essas distribuidoras são (em ordem de predominância porcentual): Warner Bros, 20th Century Fox, Paramount, Walt Disney, Universal, Sony Pictures, One Films, Lions Gate, Entertainment e Optimum.

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hesitação) nos referir como setores legais e ilegais da distribuição cinematográfica. Um pequeno corpus bibliográfico tende a se concentrar na dominação de Hollywood, e frequentemente ignora o papel de distribuidoras “independentes”. Ao mesmo tempo, os estudos sobre pirataria digital adotam um foco muito restrito, se preocupando em estabelecer de uma vez por todas se tais práticas são benéficas ou prejudiciais para a indústria (ver SMITH & TELANG, 2008) Essas pesquisas deixam de reconhecer que a pirataria e o compartilhamento de arquivos não são atividades homogêneas, baseadas em um conjunto unificado de motivações, e que resultam num conjunto igualmente previsível de resultados. O campo também favorece estudos que tentam estabelecer os motivos dos “piratas”, de modo que eles possam ser forçados ou persuadidos a interromper suas atividades (ver PODOSHEN, 2008; WINGROVE ET AL., 2011). Essa dupla preocupação domina o debate, deixando pouco espaço para trabalhos sobre os aspectos sociais e culturais do compartilhamento de arquivos e da pirataria – assuntos que só foram examinados em alguns raros estudos (CENITE ET AL., 2009; CONDRY, 2004; HUANG, 2003). Ao contrário de estudos anteriores, esse artigo não está preocupado em provar ou refutar os custos econômicos da pirataria cinematográfica (ou de qualquer outra commodity cultural). Em vez disso, nas páginas seguintes, as atividades piratas aparecerão como parte de um conjunto mais amplo de processos culturais e sociais de distribuição cinematográfica. Tendo isso em mente, precisamos ampliar nossa compreensão sobre o que constitui a “distribuição” de filmes.

Distribuição cinematográfica: um termo escorregadio Toda discussão sobre distribuição cinematográfica precisa partir do princípio de que o termo “distribuidora”, quando aplicado à indústria cinematográfica internacional, é na melhor das hipóteses enganoso – e, na pior, completamente impróprio. Como sugerido por Paul McDonald, ainda que o termo seja frequentemente utilizado para designar aqueles que detêm os direitos à propriedade intelectual de determinado filme, “essas companhias não costumam cuidar do transporte físico das unidades aos vendedores e locadores” (2007, p. 5). Portanto, McDonald acata a idéia de Harold Vogel (2001, p. 467), segundo a qual seria mais adequado designar tais companhias como “editoras” [publishers], em vez de distribuidoras em um sentido logístico. Na indústria cinematográfica, as distribuidoras fazem muito mais do que simplesmente facilitar o transporte

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do filme aos espectadores. Por vezes, elas definem “quem será capaz de ver filmes, em quais circunstâncias, e por quê” (Lobato, 2007, p. 113). Nesse sentido, parece necessário explorar a fundo o que a distribuição implicaria no contexto da indústria cinematográfica global. Também não podemos ignorar que, atualmente, o significado de “distribuição” está sendo desestabilizado e contestado por práticas informais em todo o mundo: desde a falsificação de DVDs que são negociados em mercados de rua, até o compartilhamento de arquivos de filmes nas redes. Embora se diga que todas essas atividades ameaçam a saúde e a rentabilidade da indústria cinematográfica, ainda mais significativo é o questionamento que elas levantam sobre o que efetivamente constitui a distribuição de filmes e quem podemos identificar como distribuidores. Ainda que Hollywood permaneça de certa forma dominante, o seu controle sobre a circulação de filmes já não é, e quiçá nunca tenha sido, absoluto. Cubitt aponta, por exemplo, para o fato de que fluxos alternativos de distribuição, operados por comunidades de fãs, organizações voluntárias e diásporas, tenham existido junto ao “mercado” da mídia de massa por algum tempo (2005, p. 207). Dina Iordanova, por sua vez, coloca em questão o domínio de Hollywood sobre o mercado cinematográfico global, sugerindo que filmes mais “periféricos” estejam sendo realizados e assistidos devido ao crescente predomínio de canais de distribuição alternativos (2010, p. 24). Iordanova sugere que “na maior parte dos casos, se enfoca um único canal de distribuição que, por motivos de conveniência, é removido de seu contexto complexo” (Iordanova, 2010, p. 25). Isso resulta numa visão limitada de uma ecologia de distribuição mais ampla. Ela argumenta que precisamos parar de olhar para os canais de distribuição como entidades discretas, se queremos formar um quadro total de como os filmes circulam transnacionalmente. Essa é uma convocatória importante, mas que ainda não foi universalmente abraçada pelos estudos críticos a respeito de distribuição cinematográfica. Uma notável exceção é o livro Film Cultures (2002), de Janet Harbord, que fornece um exame detalhado dos lugares de distribuição, exibição, competição oficial e marketing, onde a autora sugere que o valor do filme seja criado. Entretanto, ainda que evite as armadilhas que preocupam Iordanova, o trabalho de Harbord não considera métodos de disseminação que existem fora dos lugares formais sancionados pela indústria cinematográfica (i.e. pirataria). Um estudo que se dispõe a romper essa fronteira é o artigo de Janet Wasko no livro The New Media Book, de 2002, onde se discute distribuição tradicional, pirataria, e novas formas

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de distribuição digital. Wasko aponta que, por mais que a tecnologia esteja se transformando rapidamente, ainda é incerto qual será o futuro da distribuição e da exibição digitais (2002, p. 195). Mais de uma década depois, a situação ainda parece indefinida. Nesse contexto de transformações digitais, numa era em que as fronteiras entre produtores, distribuidores e consumidores estão se tornando borradas, o que podemos dizer que seja a distribuição de filmes, e como podemos definir o que são as distribuidoras? Em termos gerais, a distribuição cinematográfica pode ser compreendida como o espaço entre produção e exibição, onde são realizadas negociações de modo a assegurar o lançamento de um filme nas salas de cinema e/ou organizar o lançamento de cópias físicas do filme para o consumidor final, seja em DVD ou, mais recentemente, Blu-Ray. Não obstante, essa definição preliminar só dá conta de uma parte da história. Ainda que uma compreensão cotidiana da distribuição cinematográfica automaticamente traga à nossa mente as companhias que operam num determinado filão da indústria, uma definição mais crítica precisa examinar uma gama de outras atividades às quais o termo pode ser aplicado. A situação suscita uma questão: deveria o termo “distribuição cinematográfica” se referir especificamente a um ramo específico da indústria, ou seria ele capaz de descrever todos os processos pelos quais um filme é disseminado ao redor do mundo? Em resposta, gostaria de propor que a distribuição cinematográfica é mais do que um elo numa cadeia institucional que facilita a remessa de produtos dos produtores aos consumidores. Além disso, do mesmo modo que a exibição de filmes compreende muito mais do que simplesmente a projeção do último blockbuster em um multiplex local, a distribuição precisa ser encarada como uma atividade múltipla dentro da própria indústria cinematográfica. A distribuição comercial pode incluir, sem necessariamente ser reduzida a, a atividade de pequenos comerciantes; companhias independentes; distribuidoras “independentes” semiautônomas, ligadas aos grandes estúdios; distribuidoras que, mesmo depois de serem adquiridas por grandes corporações, continuam a fazer comércio sob sua própria marca; e os ramos de distribuição dos próprios estúdios hollywoodianos. Mas a distribuição não constitui apenas uma atividade profissional e comercial. Se levamos em conta todos os modos como os filmes circulam globalmente, então o foco nas companhias distribuidoras só será capaz de contar parte da história. A distribuição também é facilitada por uma diversidade de redes alternativas que se prestam à circulação de cópias tanto físicas quanto virtuais de filmes por todo o

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mundo. Tais redes podem incluir a pirataria global organizada de DVDs; as redes de compartilhamento de arquivos; a troca de DVDs em cineclubes; e mesmo o empréstimo entre amigos. Ainda que todas essas atividades possam se enquadrar sob a rubrica de “distribuição”, elas constituem atividades extremamente diversas que precisam ser tratadas como entidades distintas, mesmo que interconectadas. Decidir quais termos podem descrever de maneira adequada a natureza de certos tipos de distribuição não é uma tarefa simples. Qual expressão poderia ser utilizada para descrever aqueles agentes que compram os direitos de filmes estrangeiros como parte de seu trabalho numa companhia de distribuição cinematográfica profissional e comercialmente reconhecida? De certa maneira, o termo comercial parece apropriado, mas ele também pode implicar que essa atividade visaria principalmente ao lucro – uma ideia que poderia ser debatida. Nesse sentido, o termo profissional pode ser uma alternativa, a menos que consideremos seu antônimo natural, o amador. Embora eu mesma já tenha utilizado a expressão “profissional” para produzir uma aliteração com a palavra “piratas” no título de meu livro, existem diversos motivos para rejeitar o termo. Em primeiro lugar, porque ele implica que quem quer que esteja do outro lado da moeda seria um não-profissional, que realiza um trabalho inferior. Esse artigo (bem como minha pesquisa como um todo) busca evitar a armadilha de posicionar as pessoas engajadas voluntariamente em práticas de distribuição on-line como se fossem menos informadas do que aquelas que recebem algum tipo de pagamento por essa tarefa. Além disso, reforçar um contraste entre práticas “profissionais” e “amadoras” é problemático. Assim como “fã”, um termo que nunca “escapou completamente de suas primeiras conotações, ligadas ao fanatismo religioso e político, às falsas crenças, aos excessos bacânticos, possessão e loucura” (JENKINS, 1992, p. 12), a palavra “amador” é popularmente compreendida de maneira pejorativa. Diferente do aficionado e do connoisseur, o amador é frequentemente considerado alguém que, por definição, não é bom o bastante para ser um profissional – afinal, uma pessoa com bastante conhecimento e perícia num determinado campo deveria estar ganhando alguma recompensa financeira por isso, certo? Finalmente, a dicotomia entre profissionais e amadores situa a discussão numa dimensão essencialmente financeira. Em outras palavras, a opção por esses termos nos leva a compreender a atividade das distribuidoras primeiramente em relação à remuneração que elas recebem por seu trabalho – uma classificação que valeria a pena evitar. Considerando o peso atrelado aos termos supracitados, poderíamos preferir uma distinção entre modos de distribuição “formais” e “informais”, baseada

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no trabalho de Ramon Lobato (2007, p. 113). Essa terminologia, ainda que imperfeita, reflete o fato que certos canais de distribuição são reconhecidos e valorizados, enquanto outros não o são. De acordo com a definição de Lobato, o formal está situado no campo da economia formal, legalmente sancionada, da qual extraímos estatísticas e tendências sobre distribuição, enquanto o informal engloba as zonas cinzas (mercados secundários, trocas ponto a ponto domésticas) (2007, p. 33).

Nesse sentido, formal se refere à distribuição “tradicional”: à cadeia de lançamento que começa numa sala de cinema e passa daí para a venda e o aluguel de DVDs e Blu-rays, antes de cair nos canais de pay-per-view, transmissão por satélite ou cabo, até que o filme seja finalmente disponibilizado na TV aberta (HENNIG-THURAU ET AL., 2007, p. 63) theaters, home video, video on demand. Nesse modelo tradicional de distribuição, “os estúdios controlam o lucro das bilheterias por meio do lançamento coordenado dos filmes em salas de cinema, para somente depois direcioná-los por uma sequência inflexível de janelas de exibição hierarquicamente ordenadas” (IORDANOVA E CUNNINGHAM, 2012, p. 1). Essa definição se aplica ao sistema empregado pelos estúdios de Hollywood, no qual uma distribuidora se vincula a um projeto de realização desde a confecção do roteiro, e frequentemente auxilia na captação de recursos para o filme. Nesse contexto, a distribuidora detem um amplo poder que nos permite afirmar que “mais do que um setor da indústria cinematográfica ou um conjunto de procedimentos técnicos, a distribuição engloba a regulação, o fornecimento e a interdição de conteúdos audiovisuais – ela envolve poder cultural e controle cultural” (LOBATO, 2006, p. 170). Não obstante, essa compreensão de um modelo de distribuição formal parece muito distante de vários tipos de práticas de distribuição que se dão fora de Hollywood. Muitas distribuidoras especializadas independentes adquirem os direitos para distribuir um filme em mercados estrangeiros somente muito tempo depois que o filme tenha sido finalizado e exibido nos cinemas de seu país de origem. Nesse contexto, a distribuição formal poderia ser entendida como “o momento em que os produtores de um filme firmam contrato com as distribuidoras para o lançamento em certos territórios” (IORDANOVA E CUNNINGHAM, 2012, p. 4). Alguns filmes terão exibição limitada nos cinemas, mas frequentemente serão lançados diretamente em DVD (ou, mais recentemente, Blu-ray). Logo, à distribuição formal também concerne a aquisição de direitos legais para a exibição de um filme no cinema e/ou a produção de cópias em DVD/Blu-ray para venda

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em determinado território (normalmente por um determinado período de tempo). Já a distribuição informal é mais difícil de definir, ainda mais quando a proliferação de meios de disseminação cinematográfica se encontra facilitada pelo intenso desenvolvimento tecnológico das indústrias audiovisuais. Nas suas primeiras pesquisas, Lobato se refere aos canais informais de distribuição como “subcinema”, que seria “uma maneira frouxa de conceituar certas formas de cultura cinematográfica que seriam incompatíveis com paradigmas mais familiares [ênfase no original]” (LOBATO, 2007, p. 114). Dentro dessa categoria, se encontrariam “lançamentos em home vídeo, telefilmes, mercados de filmes cult, mídia diaspórica, [...] ‘Nollywood’, pornografia, filmes para interesses específicos” e também pirataria (LOBATO, 2007, p. 114). Dessa forma, o termo “informal” conseguiria capturar uma ampla diversidade de práticas e comportamentos sem amalgamá-los sob a rubrica da pirataria. O uso do termo pirataria ainda é problemático porque, no contexto das indústrias culturais e da propriedade intelectual, ele continua a ser mobilizado entusiasticamente para dar suporte a uma determinada agenda corporativa. O termo repercute de maneira negativa, servindo de base para afirmações da indústria cinematográfica segundo as quais tanto a sua sobrevivência quanto o futuro da criatividade estariam sendo colocados em risco por piratas que lucram com o trabalho simbólico alheio. Para complicar, o termo não consegue descrever de maneira adequada o tipo de apropriação e compartilhamento de material digital que se dá em comunidades on-line. Entretanto, ainda que as classificações de Lobato nos ajudem a suspender a dicotomia entre legal e ilegal, elas também suscitam a questão se seria possível (ou mesmo desejável) segmentar as práticas de distribuição em outra dicotomia, ou alternativamente deveríamos adotar uma taxonomia mais complexa. Essas disputas terminológicas sugerem que a adoção de uma definição única é improvável e potencialmente inútil. A tentativa do próprio Lobato de cunhar uma definição universal para distribuição resulta em “o movimento da mídia por meio do tempo e do espaço” (LOBATO, 2007, p. 114). Ainda que certamente inclusiva, essa definição me parece por demais vaga e nebulosa para ser utilizada na prática. De todo modo, é improvável que Lobato tenha tido outra intenção que não a de ilustrar o vasto número de atividades passíveis de serem reunidas sob esse designador. Nesse sentido, eu gostaria de sugerir que, em vez de continuarmos buscando termos únicos que apresentem definições definitivas, abrangendo uma ampla gama de práticas de distribuição do passado, do presente

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e do futuro, deveríamos expandir o vocabulário existente, de modo a incluir mais subcategorias de distribuição. De modo a fazê-lo, é necessário reconhecer as limitações e suposições subjacentes a cada termo, para que suas associações possam ser reconhecidas e tornadas visíveis.

Dos filmes aos arquivos Um exemplo de expressão ubíqua cujo uso e conotações precisariam ser mais cuidadosamente examinados é “compartilhamento de arquivos”. Esse termo coloca ênfase no aspecto de “compartilhamento” da redistribuição pela internet de conteúdo protegido por direito autoral, sem considerar as diferenças entre os vários tipos de mídia que circulam on-line. Enquanto a ideia de compartilhamento de arquivos pode ser facilmente aplicada à circulação on-line de arquivos de música, não é tão simples aplicá-la à disseminação de filmes. Isso porque é relativamente simples colocar um CD num computador e converter os arquivos extraídos para o formato MP3, enquanto é necessário um certo tipo de conhecimento especializado para burlar as proteções de cópias dos DVDs, quanto mais compartilhá-los on-line. A ênfase no compartilhamento também ignora o fato de que aqueles que se beneficiam das redes de troca de arquivo não contribuem necessariamente para o crescimento da coleção de conteúdos disponíveis – eles podem estar simplesmente parasitando [leeching]3 sem compartilhar nenhum dos conteúdos que tenham baixado. Além disso, a expressão “compartilhamento de arquivos” enfatiza o papel do indivíduo tanto como consumidor quanto distribuidor de conteúdo, desconsiderando os níveis de gatekeeping que esta autora encontrou operando nas redes peer-to-peer. Finalmente, como buscarei examinar nos parágrafos seguintes, diversas formas de “compartilhamento” são encontradas mesmo nas comunidades peer-to-peer especializadas. Portanto, na medida em que é utilizado nesse artigo, o termo “compartilhamento de arquivos” implica que nem todos envolvidos nessa prática são simultaneamente consumidores e distribuidores em igual medida, nem estão necessariamente comprometidos com a noção de “compartilhamento” ao se engajarem em tais atividades. 3. Leeching é um termo comumente utilizado para alguém que baixa um arquivo de uma rede p2p mas opta por não continuar compartilhando-o com outros usuários ao fim desse processo. Vários softwares p2p possuem opções que permitem ao usuário definir se os arquivos que estão no seu próprio computador serão disponibilizados aos outros. Nesse sentido, os indíviduos que baixam arquivos de fóruns de compartilhamento não estão automaticamente nem tecnologicamente obrigados a compartilhar esses arquivos com a comunidade. Para vários grupos, o leeching é considerado um comportamento antissocial.

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Apesar desses problemas, o termo “compartilhamento de arquivos” nos lembra que os artefatos que chamamos de “filmes” cada vez mais circulam como “arquivos”. Conforme os realizadores ao redor do mundo abandonam a película (querendo ou não), filmes são cada vez mais produzidos utilizando outros meios que não “filme”. Ainda que esse processo de digitalização esteja sendo levado a cabo ao longo de muitos anos, existem repercussões que só agora estão se fazendo sentir no modo como os filmes são capazes de circular. Da mesma maneira que o VHS encabeçou uma revolução que libertou os espectadores dos grilhões da sala de cinema, o processo de digitalização permite que os filmes sejam experimentados não apenas no conforto do lar, mas em praticamente qualquer lugar. No momento em que escrevo esse texto, esse fato não é nenhuma novidade. Não obstante, ele levou a uma crise terminológica e ontológica. Em outras palavras, o que queremos dizer quando empregamos o termo “filme”? Agora que os filmes não são mais registrados em película de celu-lóide e o seu transporte se dá cada vez mais em formatos digitais, não seria possível substituir a palavra “filme” pela palavra “arquivo”? A resposta é “não”, pelas mais diversas razões. Em primeiro lugar, porque livros, programas de TV, jogos de computador e a maior parte dos conteúdos midiáticos são armazenados em formato digital como “arquivos”. Por isso, a ideia de “arquivos” não captura as especificidades de nenhum desses meios. Além disso, tal mudança terminológica seria desnecessária porque, num nível cotidiano, a definição de “filme” não configura uma tarefa acadêmica tortuosa. Para muitas pessoas, filme não é um conceito vago, escorregadio ou nebuloso. Ele é facilmente compreendido como uma série de imagens em movimento reunidas para nos divertir, informar ou entreter em casa, no cinema, num iPad ou mesmo num telefone celular. Eu diria que a população em geral não está preocupada em redefinir o seu próprio entendimento do que seria o “filme” e o “cinema” simplesmente porque esses termos são tecnicamente impróprios. O conceito de “filme” existe na cabeça dos espectadores na mesma medida em que o seu significado definitivo continuará escapando ao estudioso de sua ontologia. Apesar dessas questões, o “filme” continua existindo. O debate teórico acerca do que significa filme, ou mesmo cinema, fracassa em reconhecer que, em certa medida, esses conceitos são criados na mente da audiência, e não por decretos dos pesquisadores. Os cinemas (como estruturas físicas) continuam a existir, e em certos casos a prosperar. Os filmes, quer em película, quer em formato digital, continuam a ser produzidos. Ainda que a experiência cinematográfica possa ser expandida para incluir os extras do

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DVD, o merchandising, as resenhas, os brinquedos de parques temáticos, etc, a audiência ainda é capaz de identificar o “filme” em meio a todo esse universo que o circunda. Em outras palavras, nossas experiências e entendimentos do filme ou do cinema não estão sendo substituídas, mas expandidas.

Expandindo o léxico: distribuição autônoma e intermediária No espírito de contribuir para a expansão da linguagem necessária para descrever de maneira precisa a diversidade de práticas de distribuição que se dão tanto em contextos formais quanto informais, proponho introduzir novos termos em nossa discussão. A partir de minha própria pesquisa sobre formas particulares de distribuição on-line, relativas ao “compartilhamento” de filmes em fóruns fechados, especializados em certas formas de cinema, pude identificar distinções entre alguns tipos de distribuição (CRISP, 2015). Optei por designá-los como distribuição “autônoma” e “intermediária”. Nos contextos que examinei, a distribuição autônoma parte de um indivíduo que adquire (legal ou ilegalmente) a cópia de um filme, que ele (geralmente, mas nem sempre) codifica e/ou legenda de modo a poder compartilhá-la, por meio de um sistema peer-to-peer, em um determinado fórum de compartilhamento de arquivos. Designei tais atividades como “autônomas” porque o grosso do trabalho é desempenhado por um indivíduo (e não por um grupo) que não é um membro típico da Cena [Scene]. “A Cena”, nesse contexto, se refere a um modo organizado de compartilhamento de arquivos que envolve a reunião de indivíduos em “grupos de lançamento” [release groups], de forma a dividir entre eles as diversas atividades envolvidas nesse processo (LASICA, 2005). Grupos de lançamento normalmente possuem nomes e se especializam em determinados meios e/ou gêneros. Distribuidores autônomos, por sua vez, usam critérios de lançamento muito mais arbitrários e pessoais. Ainda que suas atividades estejam inseridas numa comunidade, eles só contam com a colaboração alheia para tarefas muito específicas (como legendagem) (CRISP, 2015). Já o termo “distribuição intermediária” pode ser usado para se referir aos lançamentos da Cena realizados nesses mesmos fóruns por um “intermediário”. Esses intermediários não costumam ser membros do grupo de lançamento original, mas teriam adquirido o link para uma cópia do filme em algum outro lugar, que subsequentemente compartilhariam com o fórum do qual participam. Em outras palavras, esses distribuidores não teriam sido responsáveis por adquirirem a fonte

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original do conteúdo nem teriam participado do seu processo de codificação e legendagem para o lançamento on-line. Logo, ainda que desempenhem um papel na curadoria de arquivos disponíveis naquela comunidade específica, eles não aumentam a variedade de filmes disponíveis nas redes de compartilhamento como um todo. Sua atividade é distinta tanto daquela dos distribuidores autônomos quanto daquela dos grupos de lançamento, e precisa ser identificada como tal. O que essa breve introdução busca demonstrar é que, ainda que esses dois tipos de distribuição on-line possam 1) caber dentro da definição de Lobato para “informal”, 2) se enquadrar na definição técnica de compartilhamento de arquivos, e 3) ser igualmente considerados pirataria, eles configuram práticas eminentemente distintas. Logo, mesmo dentro de comunidades relativamente pequenas e especializadas, se fazem necessárias nuances para a compreensão da diversidade de formas de distribuição. Uma terminologia mais detalhada nos permitiria descrever e representar de maneira mais precisa as múltiplas formas de disseminação que ocorrem nesses contextos.

Conclusão Harbord sugere que “fora do cinema, o filme vem embrulhado em celofane e empacotado em uma caixa plástica” (2007, p. 127) – mas basta que ele tenha escapado do cinema e se objetificado na forma de uma propriedade tangível para que o filme venha novamente a evaporar, ser reduzido a um arquivo, uma codificação, a dados digitais que se proliferam em diversos formatos. O que Harbord salienta é que “a busca pela ontologia do filme, as características do seu modo de existência fundamental, é um exercício inútil” (2007, p. 144). Por isso, talvez não devêssemos estar procurando pelo que é fundamental ou essencial, mas sim contribuindo para um projeto mais amplo, capaz de examinar como o filme está se expandindo e proliferando por novos espaços e assumindo novas modalidades. Por mais que o esforço de “definir” o filme de uma vez por todas possa ser em vão, o mapeamento de sua jornada e de suas trajetórias por novas esferas não precisa ser. Como sugerido por Harbord, “atualmente, o método para elaborar o paradigma acerca do que o filme faz deve ser um método aditivo, um ‘também’ e um ‘e’” (2007, p. 144). Nesse sentido, este artigo buscou examinar alguns dos diversos modos pelos quais o filme circula, bem como o papel de diversos indivíduos e grupos envolvidos nesse processo. Ao fazê-lo, eu defendi que, da mesma forma que nossa definição de “filme”, nossa definição de “distribuição”

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também precisa ser expandida. Precisamos nos afastar dos significados que dependem de dicotomias como legal/ilegal, profissional/amador, e mesmo formal/informal. Em vez de aceitar as oposições implícitas em nossa terminologia binária, precisamos produzir um léxico sobre as práticas de distribuição capaz de capturar o “também” e o “e” ao qual Harbord se refere.

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formalidades da circulação informal de cinema e os grupos torrent cinéfilos angela m. meili

Entende-se por circulação informal aquela que não participa diretamente da cadeia econômica convencional, ao dispor de estratégias de relacionamento com o público e com as obras que desobedecem às regulamentações comerciais próprias dos mercados oficiais de distribuição. A circulação informal de filmes na internet vem provocando uma ruptura de paradigmas na indústria do cinema, ao criar um espaço de experiência dos conteúdos audiovisuais no qual audiências piratas (DE SÁ, 2013) produzem sistemas paralelos distribuição, que interferem diretamente nos imaginários culturais (LOBATO, 2012). As ferramentas tecnológicas ampliam as possibilidades de distribuição e tendem a satisfazer uma série de demandas do consumidor que não são contempladas pelo mercado formal; ainda que este atinja uma dimensão relativamente massiva, ela é insuficiente para a maioria da população global. Em outras palavras, a pirataria, uma atividade originada no público, é motivada pela ineficiência dos mercados centralizados e pela insatisfação quanto ao acesso desigual à cultura (CHIANG e ASSANE, 2008), já que o mercado de filmes, tradicionalmente, tende a ser centralizado, especialmente pelas grandes produtoras norte-americanas, satisfazendo muito mais a interesses de lucro do que, propriamente, a um acesso igualitário aos bens culturais, em qualquer classe ou localidade. Atores informais criam estratégias para a atingir o público, dando visibilidade a fontes mais heterogêneas de produção cinematográfica e atuando contra a 1. O leitor pode encontrar um desenvolvimento mais detalhado e outros exemplos desta relação entre modelos de circulação formal e informal na tese que originou este trabalho (cf. MEILI, 2015)

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obscuridade que ameaça muitas cinematografias mundo afora (CARDOSO, CAETANO, et al., 2012). Se pensarmos sob o perspectiva pós-colonial, notamos que a pirataria situa-se em um cenário historicamente marcado pela dominação cultural, principalmente a do hemisfério norte sobre o hemisfério sul, onde a maioria das culturas permanece silenciada e excluída dos centros culturais; ou seja, grande parte das cinematografias permanece obscura para grande parte da população, justamente porque a centralização do mercado a deixa isolada, sem visibilidade ou mesmo sem possibilidade prática de disseminação. O desenvolvimento de dispositivos tecnológicos de reprodução e exibição vem facilitando o surgimento de formas alternativas de disseminação dos conteúdos, abrandando significativamente a gran-de disparidade de acesso e visibilidade das produções. Mas, para isso, precisa transgredir as regulamentações responsáveis, conforme apontam Eckstein e Schwarz (2014), pelo controle da informação; este depende e é preconizado pela premissa da propriedade intelectual, que acaba funcionando como um obstáculo para a inclusão informacional. Assim, a inclusão do público e das obras no cenário de trocas requer a informalidade e a desobediência, requer a pirataria. Certamente, a circulação informal ultrapassa as redes digitais e vem muito antes delas, presente em todas as fases de desenvolvimento da indústria cinematográfica, tendo apenas se acentuado e transformado com o progresso tecnológico. De acordo com Gaines (2006), nas décadas iniciais do cinema, o sistema de dstribuição dos filmes de 16mm era desorganizado e dependia de grupos informais (comunidades, organizações políticas, clubes, etc.) para circular. Segundo Lobato (2012), tanto o cinema amador quanto o cinema pornográfico também sempre dependeram de circuitos alternativos. Nos anos 1980, com o surgimento do home video, o volume da circulação informal aumentou muito e, depois, ainda mais, com as tecnologias digitais e a internet. Um filme entra nas redes informais a partir da gravação de uma exibição ou transmissão, da cópia de mídia digital ou da digitalização de qualquer fonte analógica. Depois, circula por meio de mídias físicas e das redes digitais, podendo, ainda, ser exibido e retransmitido em outros canais. Ele pode ser vendido, alugado ou doado, propagando-se através da possibilidade infinita da cópia e penetrando nos mais diversos grupos sociais, a partir de atores diretamente engajados em uma prática que é, sobretudo, desobediente. A presença da pirataria de filmes nas redes digitais tornou-se expressiva somente a partir dos anos 2000, devido à superação de limitações técnicas, como a pouca

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largura de banda, a falta de modelos eficientes de compressão da imagem e do som (MP3, MPEG-4, DivX, etc.) e a precariedade da experiência visual (tela, cores, processamento, armazenamento). A partir desse período, ocorreu uma intensificação das cópias domésticas em das mídias digitais (CDs e DVDs), gravadores caseiros, sofisticação técnica do processamento digital de áudio e vídeo, que foram seguidos da melhora da internet, dos monitores (que passaram a ser chamados de telas) e, mais recentemente, da convergência entre a televisão e o computador. Os operadores informais criam grandes redes, que se subdividem e se especializam (BODÓ e LAKATOS, 2012), o que lhes permite produzir sistemas de distribuição ágeis e heterogêneos. Esses sistemas de distribuição compreendem diversos nichos culturais, no sentido do termo atribuído pelo esquema da cauda longa, de Chris Anderson (2006), de modo que os sistemas dispõem de grande quantidade e diversidade de conteúdo (gêneros, formatos e origens), atingindo desde um público geral, até um público de interesse ou gosto especializado. Vale ressaltar que o público, quando pensamos na distribuição informal, não está contido dentro desses nichos, mas compõe-se de sujeitos que transitam entre eles. A circulação informal na internet é diversificada, abrangente e massiva; conforme Jonas Andersson (2012, p. 587), ao falar especialmente do compartilhamento peer-to-peer, este pode ser pensado como uma utilidade de massa, pois constrói repositórios vastíssimos e altamente conectados. Segundo o autor, as associações peer-to-peer partem de uma dimensão colaborativa, ou seja, de doação e envolvimento individual dentro de um projeto coletivo, mas ultrapassamna (devido ao número incontável de participantes), resultando na produção de uma infraestrutura de larga escala, ou seja, uma ferramenta massiva que produz superabundância de dados (ibid.). A resiliência das ferramentas e processos envolvidos na circulação informal lhe permite atuar como agente massivo de distribuição, que atinge mais facilmente uma diversidade de público e localidades, sem ter que lidar com uma série de convenções e impedimentos que os meios formais exigem, como regulamentações, licensas, contratos, taxações, etc., produzindo, conforme apontam Gallio e Martina (2013), novas lógicas entre os setores envolvidos com a produção e distribuição do produto cinematográfico. Essas novas lógicas, fundamentalmente, dispõem de menor custo, maior rapidez e maior personalização ao longo do caminho da distribuição. Todos esses processos dependem da existência de um uso autônomo da tecnologia por parte do público. O ambiente da circulação informal de vídeo digital, além de ocorrer sobre uma malha tecnológica que tem sido construída

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pelos mais diversos agentes, também depende que o público se aproprie dessa malha. Apropriar, no sentido da palavra, é fazer próprio, fazer do seu jeito. Pegar uma ferramenta, linguagem ou solução tecnológica e utilizar para uma função específica ou, ainda, produzir novos recursos a partir dos existentes. Há várias formas de apropriação para cada tecnologia, que podem ser previstas pelos seus criadores ou podem ser imprevisíveis, inovadoras. Pode-se dizer que a maleabilidade do software possibilita que as tecnologias digitais sejam objetos facilmente apropriáveis. A apropriação, portanto, sempre vai gerar arranjos particulares, de modo que, conforme nos lembra Schäfer (2011), toda função tecnológica tem também um significado contextual. A tecnologia, sendo um nível abstrato de conhecimento, é composta por elementos, níveis também abstratos, de possíveis relações e automatismos entre forças, materiais, componentes e mecanismos lógicos, que, unidos funcionalmente, em determinado momento e cadeia relacional, compõem um aparelho, um objeto, uma individuação técnica (SIMONDON, 1980). Assim, o conhecimento técnico e a atividade do operante garantem relativa autonomia no domínio das ferramentas; ao mesmo tempo em que os automatismos encadeados em certos processos e interfaces limitam a sua agência. As muitas formas de apropriações tecnológicas alimentam a economia de bens informacionais e tecnológicos, bem como desesta-bilizam os regimes de propriedade intelectual (BENTLY, DAVIS e GINSBURG, 2010), gerando circuitos marginais que, ao satisfazerem demandas, forçam o sistema econômico a aceitá-las, convivendo com elas ou até mesmo incorporando-as. Nesse sentido pode-se pensar na “guerra contra a pirataria” como uma causa perdida, pois o cenário se desenvolve, conforme aponta Cox (2012, p. 10), tal qual uma corrida de gato e rato, onde os agentes informais semprem encontram novas formas de funcionar e desempenham um papel tão importante a ponto de desestabilizar indústrias antigamente estabelecidas, modelos de negócio predominantes, sistemas jurídicos e componentes culturais, simbólicos e linguísticos, além de alterarem drasticamente o perfil do público. Tudo isso também interfere na produção de novos modelos econômicos, estabelecendo relações entre o formal e o informal1. De acordo com Chéneau-Loquay (2011), a informalidade tem sucesso justamente devido à sua proximidade com os consumidores, pois, além de tornar o consumo viável/acessível, também consegue se adaptar mais facilmente às suas necessidades, tendendo a uma especialização maior dos conteúdos e recursos em relação aos consumidores e às circunstâncias de consumo.

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Os Grupos de Torrent Privados e a formalidade da circulação informal A tecnologia BitTorrent foi criada como uma solução para o compartilhamento descentralizado de arquivos digitais muito grandes, o que a tornou eficiente para a transferência de filmes, jogos e softwares. O seu criador e principal desenvolvedor, Bram Cohen, anunciou se tratar de um modelo adaptado ao audiovisual que, a longo prazo, poderia concorrer diretamente com os métodos tradicionais. Tratase de uma tecnologia de transmissão capaz de um excelente aproveitamento de banda (volume de transferência de dados), que não depende de um servidor centralizado e é capaz de entregar conteúdo de alta qualidade, de forma barata e personalizada. De acordo com Silva (2012, p. 86), o criador do BitTorrent contribui com o “self-service globalizado” de bens midiáticos e investe no protocolo P2P como uma empreitada de enfrentamento direto aos métodos tradicionais de entrega, tornando-os obsoletos. O BitTorrent é um protocolo de comunicação ponto a ponto que permite o compartilhamento não linear de arquivos; estes são fragmentados e trocados em pedaços2, de acordo com a disponibilidade dos peers. Os dados estão armazenados e distribuídos em computadores pessoais de cada ponto que participa da troca coletiva ou swarm3. O processo de compartilhamento se inicia quando um arquivo no formato torrent é colocado em um servidor da internet, ele contém informações sobre o arquivo (filme, música, jogo, etc.), duração, tamanho, a informação criptográfica (que é responsável pela sua fragmentação e posterior “recolagem”)4 e endereço do tracker (COHEN, 2003). O torrent é um arquivo feito para as máquinas se comunicarem, que contém as informações básicas sobre os arquivos compartilhados e um código único que define a sua identidade. Os trackers podem ser públicos ou privados e são responsáveis por fazerem os peers se encontrarem e conectarem, mantendo a busca de peers ativos; eles promovem interações automáticas entre os usuários, são basicamente computadores que 2. Normalmente, de 1⁄4 de megabytes. 3. Termo utilizado para definir a situação de conexão entre todos os peers no processo

de troca conectados em um torrent específico. A tradução para o português pode ser enxame, formigueiro, multidão. 4. Cada pequena parte é protegida por um “hash criptográfico” descrito no arquivo de torrent que garante qualquer tipo de codificação nas partes que possa ser identificada, seja ela acidental ou maliciosa. Esse tipo de codificação também serve para garantir a autenticidade do arquivo.

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coordenam a distribuição, dizendo para cada peer onde está cada pedaço que deve ser descarregado primeiro. Apesar de o mais comum ser cada torrent utilizar um tracker, pode acontecer de cada torrent ter mais de um tracker (multitracking) e, ainda, há casos de torrents sem um tracker central, estando essa função também distribuída entre os peers, em sistemas ainda mais descentralizados (distributed hash table). Normalmente, um tracker está vinculado a um indexador, mas não necessariamente. A indexação dos arquivos de torrent (busca, ordenação e armazenamento) ocorre de maneira independente ao tracker. A busca por torrents pode ser feita em sites que oferecem o arquivo, em sites que promovem apenas a busca entre os inexadores (metasearch), em alguns clientes BitTorrent, como o Tribler e o BitComet e, ainda, via RSS Feed (broadcatching). Os sites indexadores de torrent são bancos de dados acessíveis via navegador, em que os arquivos podem ser obtidos. Eles consistem em uma estrutura informacional que hospeda arquivos. Identificamos quatro tipos básicos de sites indexadores: • abertos: não exigem senha ou registro; possuem conteúdo genérico, abrangendo diversas categorias; não controlam a participação do usuário. • privados: exigem registro, que pode ser feito apenas por meio de convites; possuem conteúdo mais especializado; controlam a participação do usuário. • indexadores de outros sites: agregam conteúdo de sites abertos e permitem a busca em suas bases de dados. • verificadores: indexam arquivos verificados provenientes de diversos sites abertos. No universo dos indexadores torrent, há uma gama de desenvolvimentos em termos de conteúdo e modos de organização. Enquanto os sites privados, normalmente, priorizam tipos de conteúdo ou formato, os sites abertos são mais diversos. O que aqui denominamos como grupos de torrent privados (GTPs) refere-se aos indexadores fechados, que podem, ou não, corresponder a trackers privados específicos. O relevante quanto aos GTPs é que, normalmente, possuem catálogo extenso e variado de filmografias especializadas, sendo células de distribuição altamente organizadas e orientadas para o conhecimento, que expandem a experiência do público com o cinema. Os GTPs representam um desdobramento possível da pirataria na internet e desenvolvem um modo particular de apropriação das tecnologias de armazenamento, transmissão e interação, que resultam em formas também particulares de manipulação e consumo dos bens culturais. Conforme Mylonas (2012), os GTPs são diferentes de sites abertos de torrent, como o The Pirate Bay,

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porque se posicionam defensivamente com relação às instabilidades e ameaças da internet (spams, hackers, usuários oportunistas, fiscalização autoral, entre outras). Eles criam ambientes seguros e privados, formando comunidades que regulam as trocas, são espaços de interação social, conhecimento técnico e produção coletiva de acervo e conhecimento.

aberto Site Site aberto

GTPGTP

Menos especializado Menos especializado

Mais especializado Mais especializado

MaisMais grátisgrátis

Menos grátis (exige cooperação) Menos grátis (exige cooperação)

Menos formal Menos Formal

Mais formal (regras internas) Mais Formal (regras internas)

Tabela 1: Comparação entre sites abertos e fechados de torrent

A chamada principal de um site especializado em convites para GTPs, o torrent-invites.com, apresenta o grupo como sendo fiel ao “verdadeiro sentido do compartilhamento” e com o objetivo criar uma “comunidade de torrent verdadeiramente global”, guiando o usuário ao “verdadeiramente secreto e iluminado clube”. Nota-se um entusiasmo grande com relação ao universo BitTorrent, onde o uso repetido da palavra “verdade” refere-se a um espectro discursivo segundo o qual a comunidade coloca-se como representante legítima de uma cultura da pirataria, cujos eixos ideológicos já estão estabelecidos e compartilhados por um grupo seleto de pessoas. Sites dessa natureza apresentamse como articuladores que promovem ritos de passagens, que exigem engajamento e conhecimento dos usuários para conquistarem o seu lugar em um mundo de privilégios. O ambiente é de disponibilidade total, mas que não se adquire facilmente, ela requer engajamento e pesquisa, uma postura ativa do espectador que navega, negocia e participa dos grupos. Assim, a reprodutibilidade exacerbada das interações peer-to-peer, ainda que atue diretamente contra a escassez, reinterpreta a ideia de exclusividade no âmbito de comunidades fechadas e especializadas. Um mundo de privilégios que se alicerça, paradoxalmente, na ideia de acesso e bem comum, própria da cultura colaborativa ou da participação, que se popularizou como uma promessa que incentivou a produção e consumo das novas tecnologias e se transformou em um fenômeno emergente e central nas práticas de mídia contemporâneas (SCHÄFER, 2011). A cultura da participação apresentase como um solo comum para o desenvolvimento das ferramentas e interações do mundo digital, ainda que – os GTPs, particularmente – sigam criando guetos

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e núcleos seletos. Nota-se uma articulação entre a noção de colaboração (bem comum) e a de exclusividade. Mesmo que os GTPs criem zonas fechadas e dotadas de alto rigor formal (regras, controle, organização), no fundo, eles estão diluídos em uma grande massa interativa e colaborativa que é o espaço virtual. Vale relembrar que os computadores foram, inicialmente, vendidos como “máquinas para o conhecimento” (SCHÄFER, 2011) e o seu design foi altamente influenciado pela promessa de participação, ou seja, de que qualquer pessoa poderia contribuir, ser um agente de transformação e produção de conhecimento, sem a necessária mediação de instituições legitimadoras, o que despertou o imaginário de uma série de entusiastas tecnológicos ao longo das décadas. Ainda na década de 1960, o criador do mouse, Douglas Engelbart, já pensava na interação homemmáquina como uma oportunidade de “aumentar o intelecto” e, na década seguinte, o filósofo Ted Nelson com o Projeto Xanadu (uma rede de computadores com interface simples), já visionariamente pensava no que teria sido desenvolvido, mais tarde, por Tim Berners-Lee, a world wide web. Conforme lembra Schäffer (2011), para Ted Nelson, os computadores passariam a ser, ao longo do tempo, um aspecto de tudo o que concerne à vida humana, defendendo que as pessoas deveriam estar incluídas e integradas no desenvolvimento da computação, que, aos poucos, começa a ser vista como uma tecnologia de comunicação. A realidade tecnológica, sendo de natureza tanto simbólica quanto material, apresentou o desenvolvimento da computação pessoal envolto em um imaginário: o da comunicação digital libertadora, incluindo dimensões culturais e políticas. A construção de soluções participativas da natureza dos GTPs não está livre de regras, ou seja, acordos simbólicos, formalidades criadas com o intuito de fixar diretrizes para um projeto coletivo, guiando o usuário para as formas possíveis de contribuição, o que nos leva a considerar que esses espaços informais resultam de uma formalização das interações. As regras internas de um GTP estabelecem delimitações, ao mesmo tempo em que oferecem recursos para a participação. Trata-se da formação de uma estrutura participativa que, de certa maneira, institucionaliza o espaço informal, estabelecendo os mecanismos básicos para o seu funcionamento. Assim, pode-se dizer que os GTPs são um modelo formal da circulação informal. Um exemplo do que podemos considerar como sendo um projeto coletivo informal/formal (em GTPs), no sentido apontado acima, aparece em Carter (2013), ao descrever o site Cinetorrent. Ainda que o autor não utilize a terminologia aqui apresentada, notamos que o Cinetorrent segue esse modus operandi, especialmente

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quando cria projetos colaborativos temáticos de pesquisa e coleção cinéfila, dos quais o usuário pode participar, submetendo conteúdo sob regras específicas (o filme deve ser difícil de encontrar, obscuro, tratando de temas cujo espírito combinaria com os administradores). São projetos que resultam na e da formalização de uma atividade participativa dada a partir de um acordo simbólico. Conforme menciona Carter (ibid.), os membros do site não estão simplesmente compartilhando conteúdo, mas atuando como trabalhadores que investem tempo e conhecimento para a manutenção dessas redes informais. Grande parte das regras, em comunidades fechadas, referem-se a como os usuários devem se comportar, o quanto devem contribuir, a padronização e o tipo do conteúdo, diversas especificidades técnicas, entre outros. Desta maneira, a formalidade da circulação informal ocorre no agenciamento dos suportes tecnológicos, da interação social e do banco de dados. É o que Schäfer (2011) aponta como o material-digital, uma relação dependente entre discursos, apropriação social e design tecnológico, um caso em que as linhas que separam objetos, ações e atores é difícil de desenhar, pois estão hibridizadas em recursos tecnológicos, configuração de software e interface de usuário. Os GTPs organizam-se por meio de fóruns em páginas da internet e salas de bate-papo (normalmente via protocolo Internet Relay Chat).5 Uma das formas mais comuns de agregação dos GTPs é por meio de fóruns gerais, especialmente os fóruns de convites. Os fóruns de convites são sites destinados a articular a comunidade BitTorrent, funcionando como uma porta de entrada para um universo que é intrincado por mediações formais e reguladas, compostas por regras e linguagens específicas, sejam elas técnicas ou mesmo éticas, incluindo a grande utilização de siglas e termos técnicos, além da necessidade de se conhecer e participar de procedimentos específicos de interação/colaboração. No Torrent-invites.com, por exemplo, apenas para para habilitar o perfil de um usuário para ganhar convites, deve-se seguir um ranking de participação, que utiliza termos relacionados a processos bastante específicos que, na maioria das vezes, não são explicados claramente para o iniciante e exigem uma imersão do usuário naquele ambiente interativo e domínio do seu universo linguístico particular para compreendê-los. Para participar do universo GTP, que viabiliza um livre e rápido acesso a conteúdos do mundo todo (audiovisual, música, livros, jogos, softwares), o usuário 5. Protocolo de comunicação específico para chat que era predomindante na rede entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000.

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deve demonstrar relativa aptidão técnica6, respeito às regras e hierarquias das comunidades e, por fim, o entendimento dos princípios fundamentais de uma ética pirata, ou seja: o respeito ao anonimato; a disponibilidade para contribuir ativamente (postar, semear, comentar); e o respeito às características técnicas e curatoriais do acervo (relativo ao GTP de que se está participando). Ainda, os GTPs têm políticas de estímulo à participação, que se sustentam em um sistema de hierarquias, benefícios e desafios, a partir do qual os usuários tornam-se ativos na disseminação de conteúdo e na estruturação do sistema de distribuição, por meio de um trabalho colaborativo, mas também hierárquico, que cria um jogo de obrigações e recompensas. Os tipos de especialização dos GTPs estão relacionados à mídia original (televisão, cinema, música, livros, etc.), a gêneros, à técnica (formatos de vídeo) e à cultura (língua, estilo, nacionalidade, etc.) do conteúdo indexado. A cinefilia aparece como definidora de um desses modos de especialização, produzindo comunidades aqui identificadas como Grupos de Torrent Cinéfilos (GTC), que possuem, em comum, uma série de critérios particulares para a seleção de filmes. Observamos em nossa pesquisa que tais critérios podem, essencialmente, ser sumarizados pelas palavras: raridade, oposição ao mainstream, clássicos, alternativo, independente, nacional, arte, bom gosto e experimentalismo. Os grupos de torrent cinéfilos e o MKO Os grupos de torrent cinéfilos já foram mencionados em uma série de trabalhos acadêmicos, sendo associados diretamente: a) ao fenômeno das novas cinefilias da era digital (IORDANOVA & CUNINGHAM, 2012) ou cibercinefilias; estas corresponderiam a um fenômeno sociocultural que se desenvolve a partir da proliferação do acesso aos bens de consumo culturais via tecnologia digital. Enquanto, tradicionalmente, para ser um cinéfilo era necessário residir em centros urbanos maiores, onde ocorrem os principais circuitos de exibição e eventos diversos relacionados ao cinema (encontros, clubes, seminários, debates, entre outros), com o desenvolvimento do home video e, ainda mais, com circulação digital, ser um amante e conhecedor da arte cinematográfica é um fato possível em qualquer localidade ou classe social. As 6. Pois, tanto para contribuir, quanto para baixar, é necessário saber usar o fórum/site – postar, navegar, buscar, etc. –, saber usar a tecnologia BitTorrent, além de ter um conhecimento sobre formatos e codificadores de vídeo, já que muitos GTPs categorizam ou selecionam seus conteúdos a partir dessa especificação.

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novas cinefilias desconstroem os espaços tradicionalmente legitimados de culto ao cinema e democratizam essa possibilidade, produzindo novos espaços de conexão entre cinéfilos dos mais diversos lugares que, além de consumirem e culturarem o cinema, também produzem informação e crítica, ou seja, tornamse, além de tudo, agentes que comentam, analisam, avaliam e compartilham ideias, opiniões e impressões acerca do material cinematográfico. b) à popularização e desenvolvimento de uma cultura arquivista do cinema (KOSNIK, 2012), a qual resulta do acúmulo de conteúdos provenientes de uma infinidade de fontes que alimentam os bancos de dados, mundo afora. Indivíduos dedicam-se à busca, pesquisa, digitalização, organização e compartilhamento de arquivos digitais, aproveitando-se da cada vez maior capacidade de armazenamento da informação pelos dispositivos tecnológicos. c) a modelos independentes de distribuição de cinema não-comercial (CARDOSO, CAETANO, et al., 2012); tanto o alto nível de formalização das redes de torrent privadas, quanto das redes abertas, aproximam muito os canais informais do que é esperado das plataformas formais de distribuição; Cardoso (2012, p. 820) sugere que grupos de torrent especializados, por exemplo, podem ser pensados como protótipos para a distribuição do cinema não-hollywodiano na era digital. Esse tipo de distribuição, de acordo com Bodó (2012, p. 443), dá origem a uma lógica de programação que relaciona o popular/ mainstream com uma demanda fragmentada de nicho, tudo dentro da mesma plataforma, que reserva algum espaço para os gatekeepers tradicionais, mas também dá liberdade de divulgação e escolha sem precedentes. d) a um processo de organização tão formal que tem o potencial de oficializá-los como núcleos de distribuição (BODÓ, 2013), no sentido de que esses grupos tornam-se referência de acesso para muitos consumidores e também, em alguns casos, são aceitos e, até mesmo, apoiados por produtores e diretores que enxergam, nessas plataformas, uma oportunidade de distribuição de baixo custo. De acordo com Bodó (ibid.), em alguns GTPs há, inclusive, a possibilidade de uma monetização que pode ser revertida aos proprietários do conteúdo. e) à mediação intercultural que desenvolvem, como, por exemplo, na apresentação de filmes asiáticos a um público ocidental (CRISP, 2012; 2015), elaboração de legendas e pesquisa cultural e promoção de nichos específicos; f) e, ainda, à democratização do conhecimento sobre cinema no Brasil e à distribuição de filmes nacionais (ALMEIDA, 2011). Em nossa pesquisa sobre o GTC brasileiro MKO, notamos que, em 2014, quase 80% dos filmes brasileiros disponíveis

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no site não eram encontrados na Amazon7, o que nos leva a supor que o acesso legal a filmes nacionais também é restrito em diversos outros meios. Necessidade que acaba sendo suprida pelo GTC. Esses grupos/sites correspondem a uma gama de nichos de cinema, transitando entre os mais diversos circuitos e abrangendo a maior diversidade de estilos, gêneros, origens, línguas e épocas. Ao analisarmos o GTC brasileiro MKO8, notamos que ele participa de um amplo fenômeno midiático de onde surgem diversos grupos particulares, cada um com a sua própria dimensão simbólica, formando redes vivas de integração de colecionadores, comentadores e espectadores de filmes. O sistema formal do MKO, especificamente, é composto por regras que, a partir da análise da comunidade, classificamos como sendo de teor político, técnico, organizacional e curatorial9, além de uma classificação hierárquica entre os participantes, que conta com um núcleo administrador e de moderação das atividades. Esse sistema interfere diretamente nas características da interface do site, na formação do acervo e na identidade da comunidade. No âmbito político, a proposta do MKO é alimentar a cultura cinéfila, opondo-se ao mainstream e propondo dedicar-se ao cinema com menor visibilidade, estabelecendo o valor e papel social do grupo ao exercer uma função que não é realizada pelo circuito oficial. O administrador do site expõe claramente o fato de não ser um concorrente direto dos grandes distribuidores e do circuito de lançamentos nas salas, ao recusar a publicação: i) de filmes que ainda não tenham sido explorados comercialmente; ii) de filmes de grandes distribuidores até seis meses após o seu lançamento nas salas brasileiras; iii) de filmes nacionais até três meses após lançamento em mídia digital; iv) de filmes já altamente explorados e divulgados no mainstream. Isso demonstra um posicionamento estratégico da comunidade em relação ao mercado de distribuição, produzindo, pode-se dizer, a sua própria janela de exibição.

7. Utilizamos a Amazon como referência de um centro de distribuição por se tratar de uma líder de vendas de mídia na internet, incluindo tanto mídias físicas quanto streaming, materiais de segunda mão, antigos e novos lançamentos, de inúmeras distribuidoras. 8. A sigla foi utilizada no intuito de proteger o nome do grupo. Este foi criado no Brasil em 2006 e permanece ativo até a data desta publicação; em 2014, o MKO possuía mais de 46 mil usuários inscritos. 9. Taxonomia proposta pela autora, a partir da análise dos dados.

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As regras do MKO apresentam-se politicamente no sentido de trazer a ideia de uma ética pirata específica, sumarizada pela expressão bom senso. Um acordo coletivo implícito, que não depende somente das regras, mas da interação e constante negociação entre os pares; esse acordo inclui o respeito à hierarquia da comunidade e a obrigatoriedade de se colocar a serviço do grupo, compreendendo suas necessidades, o seu espírito e a sua forma particular de cinefilia. As regras também têm uma dimensão técnica que diz respeito à formação da estrutura do site, incluindo definições da interface; características das postagens e do acervo; qualidade e proveniência dos arquivos e das legendas, entre outras. A preocupação técnica é indiscutível, uma vez que a prioridade do site é a qualidade do material, muito mais do que a sua quantidade. Os rigores com a técnica traduzem o propósito de se criar um núcleo de distribuição que agrade especialmente os membros da comunidade. Ainda que os propósitos do MKO não incluam a tentativa de agradar um público geral ou de conquistar audiências, a administração parece preocupada em oferecer um material de qualidade para o seu público específico, ou seja, há o interesse em atrair pessoas de gosto cinéfilo particular que priorizam a qualidade da imagem, do som e das legendas. As regras organizacionais do MKO se fizeram necessárias para o funcionamento do site, como condição para a realização de um projeto que envolve um grande número de pessoas, dentro de um contexto, como já mencionamos, cheio de pressões e instabilidades, tais como ameaças legais, usuários oportunistas ou maliciosos que poderiam descaracterizar ou até mesmo inviabilizar o funcionamento do site, além de instabilidades oriundas da própria estrutura tecnológica. As regras organizacionais determinam, principalmente, o aspecto hierárquico e funcional das atividades dos usuários. Entre essas regras, temos o controle na distribuição de convites, a classificação e hirerarquização de usuários por méritos (ver Quadro na página seguinte), a obrigatoriedade de colaboração, o controle dos comentários para que não tenham caráter ofensivo, entre outras. As regras curatoriais, por fim, são coerentes com o posicionamento político do site, aparecendo na proposta oficial do MKO que é “compartilhar filmes raros, antigos, alternativos, fora do circuito comercial e documentários relevantes”. O intuito é agradar um nicho de público bem definido, mas, além disso, também formar esse público, conforme aparece no texto que identifica a proposta do site: “despertar nas pessoas o interesse pelos produtos de boa qualidade no cinema”. Certamente, a definição de bom gosto tem uma dimensão subjetiva e implícita, tal qual a questão do bom senso anteriormente mencionada. A definição do que é

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Agitador (a): São membros que participam ativamente do fórum mas que não têm condições de postar filmes – o que não é demérito algum. A cada 3 meses os membros dos fóruns da administração fazem a indicação dos candidatos para essa categoria. Projetor (a): Qualificam-se para essa categoria os membros que completam 25 filmes postados e que não tenham um histórico de posts inadequados ou de atitudes desabonadoras. No início de cada trimestre é feita a verificação dos membros que podem ser promovidos. Tradutor (a): As legendas exclusivas postadas por qualquer membro são avaliadas pela equipe e, se não há uma repetição e as legendas são bem feitas, o membro é assinalado como um possível candidato ao grupo. Se o potencial for realmente bom o membro é contatado por alguém da equipe, com sugestões de melhorias, se for o caso. Conselheiro (a): São convidados para esse grupo os membros que são reconhecidamente competentes, têm facilidade de interagir com outros membros, têm o equilíbrio necessário entre seus interesses individuais e os do fórum, um bom conhecimento de cinema e áreas afins, mas não têm as habilidades para editar posts e outras coisas técnicas, ou não têm tempo de moderar o fórum. Moderador (a): Os convidados para esse grupo têm os requisitos técnicos suficientes para editar posts em qualquer fórum e verificar se o que foi postado está de acordo, tecnicamente ou em termos de conteúdo, com a regulamentação do fórum, além do equilíbrio necessário para um bom relacionamento com os demais membros do fórum. Veterano (a): São os membros que definem as políticas gerais do fórum e que têm acesso ao painel de controle. A tomada de decisões é sempre feita de maneira colegiada. Postado no site MKO por usuário veterano em 04.04.2014 Classificação de Usuários MKO

um filme de boa qualidade ou do que é o “verdadeiro cinema” (slogan do site) é relativa e imprecisa, contraposta por uma ideia de mau gosto – sendo esta apresentada em uma lista de cerca de 260 filmes banidos, além de uma lista de atores, diretores e séries10. Os filmes são excluídos por serem prioritariamente comerciais, seguindo sem inovar as fórmulas consolidadas por Hollywood, mesmo que não tenham 10. Filmes com o personagem Batman, da série Emanuelle, qualquer um de “Os Trapalhões”, da série Star Trek, com os atores Steven Seagal, Sylvester Stallone, Chuck Norris, Eddie Murphy, Chevy Chase, John Candy, Arnold Schwarzenegger ou dirigidos por Radley Metzger.

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recebido muita atenção da mídia; fórmulas prontas também são mal-vistas em filmes de outras nacionalidades que tentam imitar a estética hollywoodiana. Grande parte dos filmes comerciais de maior sucesso após os anos 1980 é excluída, ao passo que os filmes anteriores a essa década recebem uma avaliação menos rigorosa em relação ao fator comercial, sendo reinterpretados como clássicos. Blockbusters americanos dos anos 1960, por exemplo, podem ser facilmente encontrados no site. Supõe-se que o distanciamento temporal das obras as faz perder o seu peso comercial, permitindo que elas integrem um imaginário cultural e se legitimem nos grupos cinéfilos, ao passo que a proximidade temporal com o lançamento faz com que o seu peso comercial seja sentido mais criticamente. Em larga medida, o tipo de cinefilia que encontramos no MKO reproduz os cânones acadêmicos e a seleção art house cultuada pelos cineclubes. Por outro lado, também inclui elementos diversificados no seu cânone – filmes clássicos ou atuais de Hollywood, filmes antigos, filmes exploitation, filmes de diversos países, gêneros e estilos. O MKO participa de um processo de revisão dos cânones que se integra à percepção cinéfila contemporânea, tanto dentro como fora da internet, o que podemos pensar como um fenômeno de dimensões globais. Por exemplo, filmes indonésios exploitation dos anos 1980 (The Queen of Black Magic, Lilek Sudijo, 1980; Lady The Terminator, Jalil Jackson, 1989) ganharam um novo status na internet, quando na época eram desprezados pela crítica especializada (LOBATO, 2012); filmes Giallo, um gênero italiano exploitation popular nas décadas de 1970 e 1980 (Your Vice Is a Locked Room and Only I Have the Key, Sergio Martino, 1972; The Bird With the Crystal Plumage, Dario Argento, 1970), na época do seu lançamento considerados de mau gosto pela crítica especializada, também ganham apreciação cinéfila e pesquisa em redes torrent (CARTER, 2013); a pornochanchada brasileira, em sua época desprezada pelos grupos intelectualizados, também incorpora-se nas novas cinefilias, ganhando espaço, por exemplo, no acervo do MKO. As pornochanchadas mais populares são encontradas nesse site: O Libertino (Victor Lima, 1973), Dona Flor e Seus Dois Maridos (Bruno Barreto, 1976), O Bem Dotado, O Homem de Itu (José Miziara, 1978), A Dama da Lotação (Neville de Almeida, 1978), entre muitas outras. Mesmo que sejam cuidadosamente selecionadas para estar no MKO, não deixam de ser valorizadas como um momento histórico do cinema brasileiro. Vale ressaltar que tanto o Giallo quanto a pornochanchada, apesar de não constituírem o cânone, desde algum tempo já adquiriram um status cult entre os meios cinéfilos,

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uma percepção que também se manifesta em meios cibercinéfilos como o MKO, o Cinetorrent e outros.

Esclarecendo as cibercinefilias Pode-se dizer que as novas ou cibercinefilias, a partir das redes massivas de compartilhamento informal, promovem uma reinterpretação sobre a centralidade de Hollywood, que se dissolve e deixa entrever cinemas de fontes heterogêneas. A tendência transnacional do circuito informacional coincide com a própria multiplicidade cultural das produções cinematográficas; essa complexidade permite um movimento de desconstrução de uma série de dicotomias tradicionalmente aceitas, como oriente e ocidente, norte e sul, desenvolvido e subdesenvolvido, comércio e arte, local e global (NAGIB, 2006). A cinefilia é o resgate da aura artística do cinema, um fenômeno de bases industriais e tecnológicas, que tem a reprodutibilidade mecânica como elemento fundamental da experiência estética (ALMEIDA, 2011). Se a aura benjaminiana fora definida pela sacralidade e irreprodutibilidade da obra, sua crítica à reprodução mecânica apontou, justamente, para o esvaziamento dessa aura. Se projetássemos esse raciocínio para a era da reprodutibilidade imaterial, concluiríamos que, nesse período, a aura chegaria a um esvaziamento quase pleno, haja vista o volume, facilidade, banalização e similaridade da cópia (na era digital, a cópia é idêntica ao original, sem distinções). Todavia, curiosamente, notamos, que os objetos ganham novas roupagens auráticas nos meios digitais, através dos cultos e ritos, mediados por emaranhados técnicos e interações que criam zonas privilegiadas de troca em redes subterrâneas, onde, conforme observamos na análise do grupo MKO, bem como de outros GTPs, a apreciação e devoção ao cinema ressurgem com grande força. As cibercinefilias oferecem um framing para conceituar o cinema a partir de suas próprias definições: o cinema-arte, a cultura do cinema (PRYSTHON, 2013), cujo significado ultrapassa o consumo efêmero, reproduzindo um objeto que se eterniza em constante multiplicação. Essa definição delineia um entendimento específico e é coerente com as suas diversas possibilidades de circulação e experiência nos suportes digitais. A necessidade e o interesse em preservar e dar acesso a bens culturais transpõem as barreiras do discurso jurídico ou da ética econômica, nos quais a circulação informal costuma ser enquadrada, em nome de uma outra ética

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colecionista, arquivista e cinéfila, interessada no valor artístico e histórico das obras. As cibercinefilias, em consonância com outras cinefilias possíveis, se interessaram pelo difícil, raro e curioso, promovendo caminhos alternativos no imaginário cinematográfico (ALMEIDA, 2011), produzindo demandas e ofertas únicas, de um consumo autoral. O efeito da hiperconexão e das tantas iniciativas de compartilhamento (especialmente as comunidades de usuários de BitTorrent) é que as culturas tornamse mais conscientes sobre a própria ignorância quanto ao cinema mundial, de maneira que a disponibilidade relativiza a centralidade do bom gosto, da arte e da genialidade do cinema e, consequentemente, multiplica e enriquece os imaginários culturais dentro e fora da internet. Justamente pela fluidez das fontes de referência, os mediadores especializados são cada vez mais requisitados, sejam grupos, plataformas, mecanismos ou instituições que funcionam como curadores culturais; por exemplo, o MKO, através de sua especialização e critérios curatoriais, disponibiliza um certo tipo de conteúdo e procura diferenciar-se de outras fontes, formulando um contexto único para a experiência cinéfila. Assim, cada fonte informacional é ela mesma uma interpretação que se oferece com relativa coesão, inserindo-se em um contexto maior de diversidade incontável de fontes. Como intui Goldsmith (2015, p. 75), o próprio ato de mover a informação de um lado a outro constitui, em si mesmo, um ato cultural que significa, ou seja, produz sentidos particulares, que, ao mesmo tempo, dialogam dentro do campo infinito de trocas. Entre os tantos campos possíveis da cinefilia, iniciativas como o cineclubismo, historicamente formadoras de circuitos alternativos de exibição e ativismo cultural fora da internet, relacionam-se diretamente com as cibercinefilias, desenvolvendo com elas um jogo intenso de retroalimentação. Tanto o cineclubismo como a pirataria on-line ocupam uma posição marginal, desafiando as regulamentações, lidando com limitações ou potencialidades tecnológicas e agregando conhecimento. As redes digitais facilitam a multiplicação de cineclubes locais, e o conhecimento produzido nos cineclubes locais também contribui com conhecimento e atores para as redes digitais (ALMEIDA, 2011; GONRING, 2014). Tanto a cibercinefilia quanto o cineclubismo são motivados pelo interesse na descoberta do que é novo e raro, na experiência estética e intelectual com o cinema, e no crescimento dos repertórios cinematográficos, o que realizam através da coleta e do compartilhamento, mantendo vivo e acessível o objeto cultural, classificando e organizando o conhecimento. Esses acervos têm uma dimensão simbólica própria, uma vez que arquivos são sempre interpretações, seleções

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do que fica e do que sai. Como lembra Derrida (1998), a estrutura técnica e o propósito social dos arquivos determinam a relação dos bens simbólicos com o futuro, pois registrar e catalogar informações sobre o passado interfere diretamente na memória cultural, ou seja, no entendimento e, consequentemente, na própria produção desse futuro.

O valor do cinema nas redes piratas A pirataria do audiovisual reconfigura amplamente os valores que atribuímos aos bens culturais, o que evidencia uma crise axiológica (SCHROEDER, 2012) nos âmbitos ético, estético e econômico. A crise ética relaciona-se aos direitos e políticas da informação, ao papel do direito autoral, da exploração da propriedade intelectual, do controle dos meios de produção e de circulação e das políticas culturais transnacionais. Nesse contexto, a pirataria aparece como um agente desafiador, que se legitima a partir de uma série de argumentos também éticos, que delineiam a própria ética pirata, ligada ao livre acesso à informação e à quebra dos oligopólios midiáticos. A pirataria reinterpreta o valor estético do cinema, ao apresentar suas facetas mais diversas, num espaço que vai muito além das salas comerciais ou dos cânones tradicionais. E, ainda, a pirataria é um agente importante dentro de uma crise econômica sem precedentes para a indústria cultural, pois desafia os centros distribuidores oficiais, oferecendo vias alternativas ao público. A formação cultural e intelectual nem sempre é a prioridade dos mercados, que preferem a distribuição massiva de produtos padronizados. Por isso, ainda que o desenvolvimento e barateamento das tecnologias de cópia, transferência e reprodução audiovisual possam beneficiar a circulação de uma cultura mais diversificada e o interesse por formação e desenvolvimento de sensibilidades plurais, muitas vezes esse processo precisa ocorrer na ilegalidade, já que as legislação autoral não está adaptada a essas relações de consumo. O controle dos meios de distribuição garante o valor de mercado e a visibilidade de um produto, mas, na era da reprodutibilidade imaterial, a distribuição informal permite uma manifestação mais direta do valor cultural, artístico e simbólico das obras, despida dos condicionamentos impostos pelos veículos oficiais; isso porque, na distribuição informal, o consumo não está necessariamente mediado pela troca comercial ou pela disponibilidade autorizada dentro do sistema econômico centralizado; o acesso, a disponibilidade, em redes informais, e, consequentemente, o consumo, ocorrem em um processo no qual o

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fator econômico não é o principal elemento determinante, permitindo que outras influências contribuam mais ativamente.

Considerações Finais Se a declaração de Susan Sontag no jornal New York Times, em 1996, sobre o fim ou a morte do cinema provocou muitas reações (favoráveis ou contrárias), não devemos esquecer que a autora deixou entrever, conforme lembra Almeida (2011), uma fagulha de esperança para o meio, ao entender que ele ainda poderia ser resgatado (salvo) por um novo tipo de amor cinematográfico. Acreditamos poder pensar nas novas cinefilias da era digital como uma evidência da renovação de amor pelo cinema que ultrapassa barreiras geográficas e centralidades enunciativas; como aponta Prysthon (2013), a cibercinefilia não redefine drasticamente a noção original de cinefilia, mas é uma reconfiguração de suportes para uma série de práticas cinéfilas. A internet permitiu que cinematografias especializadas deixassem de habitar somente as salas das grandes metrópoles. As novas gerações, a partir de locais periféricos, reivindicam a experiência cinéfila, promovendo a distribuição de filmes por conta própria, constituindo redes alimentadas por diversas fontes e referências, capazes de conectar microrregiões artísticas. As práticas cinéfilas incluem, sobretudo, a própria distribuição dos filmes, que ocorre em plataformas – especialmente os GTPs – dotadas de alto grau de organização e formalidade. Nesse sentido, ainda que seja uma circulação informal, por ocorrer paralelamente às instituições, fora dos seus processos burocráticos e regulamentações, ao olharmos atentamente para o modo como essas plataformas se constituem, notamos uma série de formalidades, acordos simbólicos, diretrizes, procedimentos e códigos, que resultam em uma estrutura participativa que acaba por institucionalizar o espaço informal. Os Grupos de Torrent Cinéfilos funcionam como núcleos curatoriais, centros de distribuição de cinema, cuja informalidade não contradiz a ideia de ordem. Ainda que pensar em formalidades da circulação informal pareça um paradoxo, notamos que, quando cada ponto conecta o outro e pode tanto emitir quanto receber a informação, ao mesmo tempo, ocorrem influências potencialmente mais heterogêneas na dinâmica de circulação de mensagens, de elaboração de formas e códigos. Através da interface, o banco de dados é alimentado por cada ponto da interação e assume um número variado de formas. É justamente o diálogo entre

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as formas que permite com que tanto as redes de circulação informal quanto as redes formais misturem-se a ponto de, progressivamente, terem difícil distinção. Os Grupos de Torrent Privados, como notamos, apresentam-se bem estruturados e é esse trabalho um constructo digital, um ente composto de caracteres, símbolos, significantes culturais, arranjos de sentido, códigos e estruturas lógicas. Um material-digital (op. cit) produzido a partir de múltiplas interações e investimentos pessoais, de abstrações conceituais e realizações. Conforme sugere Goldsmiths (2015), um processo de aquisição, catalogação e arquivamento dos artefatos culturais pode consumir muito mais o nosso tempo do que a própria fruição destes, de maneira que os modos de arquivamento atuais são bens culturais tão interessantes quanto os próprios artefatos (nas palavras do autor, hoje, é preferível a garrafa ao vinho). Um outro aspecto aparentemente paradoxal que observamos no fenômeno é a articulação entre uma postura de disseminação da informação, própria do file sharer, e o desenvolvimento de ambientes/plataformas exclusivos e controlados, que selecionam rigorosamente o material disponibilizado e o público. É interessante observar que essas aparentes oposições (acesso vs. privilégio) aparecem arranjadas dentro do discurso e da ética pirata presente nos GTPs e GTCs. Abrimos, aqui, um parênteses para mencionar que Lobato (2014) já apontou para dois paradoxos importantes no estudo da pirataria, resultantes da própria natureza do termo pirata: a) a expressão deriva de um campo semântico produzido pela própria centralidade ideológica da propriedade intelectual, que, ao ser desconstruída; acaba esvaziando o próprio sentido do termo; b) a pirataria refere-se a uma diversidade tão grande de práticas que impedem uma identidade comum; tanta diversidade torna praticamente impossível a aplicabilidade do termo pirataria, que, por apontar para tantas coisas diferentes, acaba por não apontar para nada. O que constatamos com o nosso trabalho é que o fenômeno da circulação informal pode, ainda, acrescentar novos paradoxos à discussão do tema, que desafiam a pensar a cultura contemporânea: a formalidade da circulação informal e a ideia de exclusividade/privilégio dentro da cultura colaborativa, que é baseada no acesso e na democratização da informação. Percebemos, nessas aparentes contradições, o constante rearranjo e articulação de imaginários e de práticas altamente dinâmicas, que se dão em um universo onde essas dicotomias não aparecem em oposição mas sim manifestam uma tendência ao hibridismo, elemento importante para a compreensão das práticas comunicacionais contemporâneas.

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Importante mencionar que o MKO trouxe um exemplo do que pode ser pensado como ética pirata (ver também Crisp, 2014)., que, no estudo do grupo, apareceu como um acordo coletivo implícito resultante da interação e negociação dentro da comunidade. Notamos que esses acordos podem incluir a hierarquização e também a dependência mútua entre usuários, administradores e colaboradores, além de um posicionamento quanto à propriedade intelectual. Ainda, compondo essa ética pirata, há uma ética arquivista ou colecionista que preza pela preservação de obras e pela manutenção de acervos, mesmo que isso signifique desconsiderar as limitações institucionais e normativas; uma pirataria cuja ética prioriza a preservação da memória cultural e o acesso. Por fim, vale ressaltar que o compartilhamento de filmes, ainda que possa ser observado estruturalmente, em termos de números e sistemas informacionais, ou de seu impacto econômico na indústria, será ainda mais bem compreendido pela sua motivação cultural. Se, como ensinou Bourdieu (1984), todo gosto é uma fabricação, então os GTCs desempenham um papel nessa fabricação do gosto, em diálogo com a cultura de massa e com os setores mais artísticos do cinema, de modo que a reticularização e a interatividade das relações revelam uma dinâmica cultural de influências tanto hegemônicas quanto subterrâneas.

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entre a formalidade e a informalidade: pirataria e distribuição cinematográfica no méxico stefania haritou

tradução gabriel menotti

Como em outros países, a pirataria de filmes no México possibilita o acesso a uma cultura da qual o público costuma ser privado pelos sistemas formais de distribuição, que constituem um oligopólio dominado por produções dos estúdios americanos e por determinados padrões de trabalho e organização. De acordo com o argumento de Sean Cubitt (2005), a distribuição não pode ser examinada separadamente, isolada das complexas operações da cadeia de abastecimento, produção e exibição cinematográfica. A distribuição engloba o lançamento de filmes, a criação de conexões com uma audiência e a sua manutenção no mercado. Esses processos são condicionados por uma gama de fatores, incluindo a organização industrial e institucional dos mercados cinematográficos locais, as particularidades da produção cinematográfica independente e industrial, e a dominação global dos distribuidores americanos. Nas palavras de Cubitt, a distribuição pode ser entendida como uma “construção da diferença; distinguindo inicialmente os produtores dos espectadores, os compradores dos vendedores, e, num mundo em rede, criando ainda mais separação entre as populações de acordo com a sua proximidade temporal e espacial a um poder econômico e a um economia política que se concentram cada vez mais nos territórios de troca, em vez dos locais de produção” (2005, p. 194). Como os estudos de caso neste artigo buscarão demonstrar, a pirataria e as práticas piratas de distribuição cinematográfica parecem desafiar e reconfigurar essas distinções. Meu estudo não compreende a pirataria cinematográfica como um todo coerente, tampouco nos termos de uma abordagem focada na ilegalidade e na economia política. Pelo contrário, pretendo dar atenção a diferentes aglomerados de práticas, aos acordos para operação da tecnologia, à criação e expansão de

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redes, e à reprodução e circulação de filmes. Para tanto, localizarei a pirataria em meio às práticas e normas habituais que definem o contexto social, econômico e material mexicano. Num mundo em que filmes estão sendo instantaneamente baixados e compartilhados na web, e o fluxo de commodities e serviços alcança uma extensão global, buscarei examinar a localização da pirataria nesse contexto particular, de modo a rastrear a multiplicidade de relações e diversidades que estão envolvidas na distribuição cinematográfica pirata no México. Nesse sentido, esse artigo se propõe a fazer uma investigação detalhada de determinados campos, problemas, materiais, práticas e fatos, de modo a trazer à tona “as práticas desarrumadas de relacionamento e materialidade” (LAW, 2009, p. 142) da distribuição cinematográfica formal e informal no México. De acordo com o Instituto Mexicano de Cinematografia (IMCINE), 126 longas-metragens foram produzidos no país em 2013. Em comparação com os anos anteriores, esse volume representa um aumento significativo1. Entretanto, em se tratando da distribuição, os números apresentam certa discrepância. No mesmo ano, apenas 101 desses filmes chegaram às salas de cinema do país. Mas é preciso ressaltar que a distribuição de filmes nacionais atravessa uma mudança de paradigma institucional. Nas últimas duas décadas, entre 80% e 90% dos filmes exibidos nos cinemas mexicanos vieram dos Estados Unidos. A reforma da lei cinematográfica nacional, em 1992, “reduziu a cota de tela para produções nacionais de 50% para 10%, tornando mais difícil que os filmes mexicanos fossem exibidos, e prejudicando a confiança dos investidores nessa produção” (LARROA & GÓMEZ GARCÍA, 2011, p. 5). Seguindo a lógica do livre mercado2, a reforma legislativa “liberou o preço dos ingresso, beneficiando alguns exibidores. O aumento nos preços dos ingressos, combinado com a baixa renda de 80% da população mexicana, levou a um considerável aumento na pirataria de DVDs”. Conforme a demanda por filmes mais baratos crescia, “os vendedores de rua e outros ‘micronegócios’ se tornaram a infraestrutura de distribuição primária”. De acordo com Guillermo Wolf, diretor geral da Câmara Americana no México, o mercado pirata pode movimentar o equivalente à metade das vendas 1. De acordo com a mesma fonte, em 2007, apenas 70 longas mexicanos foram produzidos e, desses, apenas 43 foram exibidos em cinemas. 2. Larroa e Gómez García explicam que, a partir do começo dos anos 1990, “o modelo de livre mercado transformou a indústria cinematográfica Mexicana, reduzindo a intervenção do Estado na economia, liberando o comércio e privatizando as companhias públicas. Eventualmente, esses processos levaram à predominância das companhias transnacionais no país” (2011, p. 848)

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do mercado cinematográfico estabelecido (EXCELSIOR, 2014). A pirataria no México opera em larga escala, e sem dúvida os danos econômicos que ela causa aos detentores de direito autoral são uma questão importante de ser examinada. Os regimes de propriedade intelectual, e o modo como eles são expressos em documentos oficiais, tais como o relatório da Aliança Internacional de Propriedade Intelectual (IIPA) para os Representantes do Comércio dos Estados Unidos (USTR), buscam tanto problematizar quanto solucionar a pirataria, ao sugerir reformas na regulação e nos modos de controle de cópias. Não obstante, essa abordagem policialesca, por mais que possa ser moldada de acordo com o sistema jurídico e político mexicano, não dá conta da produtividade das práticas piratas, nem das formas de circulação e da flexibilização que elas trazem ao terreno de distribuição cinematográfica. Portanto, da mesma forma que em outros países de economia emergente, a abordagem da pirataria de conteúdos midiáticos no México a partir de uma perspectiva jurídica não se mostra tão interessante. Uma série de estudos etnográficos busca se afastar dessa abordagem de modo a produzir reflexões pormenorizadas sobre o tema a partir de estudos de caso específicos. Entre alguns exemplos que podemos citar estão o trabalho de Brian Larkin sobre o contexto Nigeriano e a produção de vídeo pirata em Hausa (2004), o estudo de Lawrence Liang sobre a indústria cinematográfica Malegaon na Índia (2009), o relato de Shujen Wang sobre a pirataria e as redes de distribuição hollywoodianas na Grande China (2003) e o foco de Ramon Lobato nas economias cinematográficas das sombras em diversas conjunturas nacionais (2012). A partir do trabalho de Lobato (2012) sobre a constituição material da pirataria e a perspectiva de Cubitt (2005) sobre a materialidade dos processos de mediação e comunicação, eu gostaria de examinar a materialidade da pirataria em relação às redes sociais de seus praticantes. Esse tipo de análise ressalta o papel das práticas, tradicionalmente identificadas nos setores de distribuição formal, demonstrando como elas se constituem socioculturalmente no México, a partir da associação de redes e materiais. Nesse sentido, busco seguir o exemplo de Larkin, ao demonstrar como a pirataria midiática no norte da Nigéria se relaciona à infraestrutura, central para o surgimento de economias paralelas de reprodução e distribuição cinematográfica. Para Larkin, o foco em questões jurídicas acaba por obscurecer “a natureza midiática da própria infraestrutura” (2004, p. 290). Ao se concentrar na materialidade da reprodução pirata, Larkin demonstra como essa infraestrutura é marcada pelo ruído e pela precariedade. Assim, começamos a iluminar a diversidade material da pirataria na Nigéria, as suas variações regionais

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e o modo como ela se insere em diferentes contextos performáticos, tanto em termos de inovação quanto de crise. Nesse sentido, a pirataria teria a capacidade de afetar nossas “noções de espaço, tempo, cultura e corpo” (2004, p. 306), contribuindo para a constituição da modernidade nigeriana. Nas palavras de Ravi Sundaram, essa “modernidade pirata” engloba “um mundo de inovação e ilegalidade, de descobertas ad-hoc e estratégias de sobrevivência eletrônica” (1999, p. 94), fora do território das elites do capital eletrônico, baseado e sustentado por “conhecimentos tecnológicos informais” (1999, p. 95).

Informalidade e Ubiquidade No México, a pirataria é considerada parte de uma economia informal dinâmica e altamente organizada (CROSS, 1998, 2011), representada principalmente pelos vendedores de rua. De acordo com o relato de John Cross, essa “informalidade é ‘causada’ pela incapacidade dos indivíduos de se formalizarem” (1998, p. 30). Cross descreve complexas relações entre os oficiais do estado, os políticos e os líderes dos camelôs, as quais dificultam a eliminação e o controle do fenômeno da informalidade. Considerando o clientelismo que opera entre os grupos informais e os partidos políticos, Cross sugere que a informalidade no México é sustentada por um combinação entre interesses internos ao Estado e a própria habilidade dos vendedores de resistir ao policiamento. O crescimento da economia informal mexicana e a sua “longa história de resistência contra as tentativas administrativas de repressão, combinada com o trabalho de seus aliados políticos no governo” (2011, p. 206) criam o contexto em que o fenômeno da pirataria surge e opera no México. Portanto, trata-se de uma pirataria que não se encontra “às margens da economia de mercado, mas sim sedimentada num setor altamente organizado de economia informal, que possui ampla experiência em adquirir e administrar capital político”. Na sua pesquisa sobre a centralidade dos sistemas de circulação informal na cultura e economia audiovisual, Lobato (2012) chamou a atenção para o mercado negro de Tepito, na Cidade do México. Retratando a função da pirataria do país, ele afirma que ninguém contesta o fato que a economia pirata é o sistema de distribuição informal mais importante e eficiente no México. É o sistema de circulação normal para a maior parte das pessoas que vivem aqui, o padrão a partir do qual a distribuição formal se constitui. A pirataria na Cidade do México não é uma forma de resistência ou um exercício de

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liberdade de expressão; trata-se de uma atividade mundana e ordinária, em que todos se envolvem de modo a participar da cultura cinematográfica (2012, p. 233).

Essa citação sugere que o sistema circulatório da pirataria dá forma a uma parte ubíqua da cultura cinematográfica e da vida urbana no México. Cópias físicas de filmes pirateados são vendidas em mercados de rua, em lojas de conveniência, nas zonas centrais das maiores cidades e menores vilas. Geralmente, esses lugares de distribuição e venda são caracterizados pelo lançamento simultâneo de cópias (os filmes não demoram mais do que um dia para se espalhar de um mercado a outro ou de uma cidade a outra); pelo fornecimento de serviços especializados a um baixo custo (um consumidor habitual pode encomendar os filmes que quiser ao vendedor); e na maior parte dos casos por uma alta qualidade de reprodução.3 A natureza mundana que o fenômeno da pirataria assume no México se torna essencial para a sua capacidade de mobilizar material cinematográfico e fazer circular o conhecimento sobre as práticas informais que eles incorporam e produzem. Para Lobato, a pirataria surge como um problema epistemológico, que busca se apropriar de ferramentas de análise cultural. O estudo da pirataria no contexto mexicano busca identificá-la com o campo da cultura, tomando por base a sua relação seja com a cultura dinâmica da informalidade, seja com a cultura dominante da espectação cinematográfica (levando em consideração que o México é um dos maiores mercados em todo o mundo para exibição cinematográfica. PIVA ET AL. apontam que, em 2009, o México estava em quinto lugar mundial em termos de número de espectadores pagantes, num total de 180 milhões de ingressos vendidos). Este artigo busca ir além dessa análise cultural e abordar a interligação de aspectos materiais e socioculturais da pirataria. Especificamente, empregarei uma abordagem semiótico-materialista, de caráter não explicativo mas descritivo, que busca analisar fenômenos por meio das redes de relações em que se localizam (LAW, 2009). Assim, buscarei investigar como a pirataria está sendo reconfigurada no contexto mexicano. Dito de outra forma, pretendo examinar as relações sociais, culturais e materiais que dão forma ao fenômeno da pirataria no México, ainda que precariamente, na tentativa de responder a uma perguntachave colocada pela teoria ator-rede: “Como as coisas estão acontecendo?” (em 3. As cópias só não possuem alta qualidade quando são encontradas em compilações que incluem diversos títulos num mesmo disco Blu-ray ou quando os filmes são gravados diretamente da sala de cinema. Nesse último caso, os vendedores normalmente indicam o modo de reprodução e cobram mais barato pelo título.

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vez de “por que elas acontecem?”). Segundo John Law, esse exame dos “modos locais de testemunhar e autenticar as conexões” entre sistemas formais e informais de distribuição nos permitirá descrever “a produção de conhecimento, a dimensão epistemológica” (2009, p. 154). Com isso, o mundo ordinário da pirataria – o que Liang chama de “o mundo do cotidiano legal de consumo e circulação” (2009, p. 9) – pode vir a iluminar como o conhecimento sobre a pirataria é produzido por meio de diversas performances e situações. Meu trabalho busca ir além e contribuir com o estudo das relações entre pirataria, infraestrutura e materialidade, conforme foi exemplificado por Larkin (2004) e Lobato (2012). Ao abordar a pirataria por meio do prisma da semiótica materialista da teoria ator-rede, ele almeja trazer à tona a invisibilidade e capacidade de agência das infraestruturas, bem como a perícia envolvida nas práticas dos piratas. As práticas que me interessam neste artigo não refletem a pirataria cinematográfica no México como um todo, mas se constituem como particulares, que se dão em situações particulares. Sob essa lente, a pirataria aparece como um fenômeno que se dá em um território específico de produção, distribuição e exibição cinematográficas, no decorrer de certas atividades, sob circunstâncias específicas. Na tentativa de esclarecer as dinâmicas da pirataria no México e as suas correspondências com (bem como suas divergências de) a organização e especificidades do circuito de distribuição formal, podemos evocar um primeiro estudo de caso. O filme mexicano Heli, dirigido por Amat Escalante, foi exibido e ganhou bastante renome em festivais ao redor do mundo, chegando a conquistar o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes de 2013. Como uma produção independente, Heli teve suas primeiras projeções oficiais em Agosto daquele ano, com apenas 25 cópias rodando em alguns poucos estados mexicanos, e uma campanha publicitária bastante restrita (ARRONA CRESPO, 2013). Essa situação reflete os dois grandes desafios que a distribuição de filmes nacionais enfrenta no México: o controle praticamente monopolista das três maiores cadeias de exibição do país e a pressão das companhias de distribuição hollywoodianas que controlam os letreiros eletrônicos nas salas de cinema (UGALDE, 2010, p. 10). Relacionados ao contexto de comunicação transnacional, esses dois fatores reduzem drasticamente o espaço para produções independentes que não sejam distribuídas pelas grandes companhias dos Estados Unidos. Acontece que, alguns meses depois, na primeira semana de Dezembro de 2013, múltiplas cópias da versão pirata de Heli apareceriam quase que simultaneamente

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em zonas centrais por todo o país, nos mercados de rua, em quiosques e lojas de filmes piratas. Isso demonstra como as práticas piratas podem levar a cabo uma forma de distribuição cinematográfica que diverge das transações econômicas e das trocas organizacionais instituídas pelos sistemas formais. Isso se dá de três formas. A distribuição de filmes piratas no México é uma prática comercial bem organizada, que opera numa grande escala geográfica, tornando-se um canal para o acesso aos filmes do próprio país que não conseguem suficiente espaço nas salas de projeção. As redes de pirataria que permitem a circulação desses filmes operam tanto por meio quanto em torno das redes formalizadas (WANG & ZHU, 2003; LOBATO, 2012), mas também para além delas, prolongando o acesso da audiência. Além disso, a pirataria se mostra capaz de preencher as lacunas dos sistemas de distribuição formais. Podemos citar o caso particular do filme Asalto al Cine, feito pela diretora Iria Gómez, em 2011, que só foi exibido na Cineteca Nacional em 2013. Por dois anos depois de ter sido finalizado, antes de seu lançamento oficial no cinema, o filme circulou apenas por festivais, como o de Sundance e Guadalajara. Mas, por todo esse tempo, ele também esteve disponível tanto nas banquinhas de DVDs piratas quanto nos sites de compartilhamento da internet. A diretora teria comentado numa entrevista que: quando descobri, fiquei muito feliz, porque o filme estava alcançando o público que eu tinha em mente quando o realizei. Eu nunca me tornarei rica fazendo filmes. Estou na mesma situação que dez anos atrás. Aqui no México não é possível desenvolver uma indústria. Ainda que isso seja muito frustrante, ao mesmo tempo me motiva a buscar novas estratégias para produzir filmes (OLIVARES).

De acordo com essa fala, podemos presumir que a diretora não relaciona a pirataria diretamente à violação de direitos autorais, nem considera que ela diminua o valor ou os lucros do produto cinematográfico. O modo como se deu a distribuição de Asalto al Cine indica as deficiências da indústria cinematográfica mexicana, ilustrando a posição desfavorável das produções locais em seu relacionamento com as principais distribuidoras e exibidores, implicando a “desintegração da cadeia de valor local” (LARROA E GÓMEZ GARCIA, 2011, p. 849). Mas ele também demonstra a capacidade da pirataria em desempenhar a função de distribuição, conectando um filme com o seu público. Assim, embora não gere lucro imediato para o diretor ou para a produtora, a circulação do filme pelas redes piratas atesta a viabilidade da sua organização como um modo de distribuição veloz e de alta conectividade.

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Se, conforme colocado por Cubitt, “a distribuição tem por função organizar a informação no tempo e espaço, acelerando ou retardando a sua chegada em determinados espaços, que ela diferencia a partir desse parâmetro” (205, p. 194), então o caso de Asalto al Cine acentua a produtividade da pirataria em retrabalhar o tempo de distribuição e o desequilíbrio entre oferta e demanda. Enquanto as redes legalizadas de distribuição cinematográfica retardaram o lançamento oficial do filme, ou ainda o restringiram a uma única sala, a pirataria permitiu sua circulação. Ao mesmo tempo, o fato de o filme estar disponível antes do seu lançamento nos cinemas compromete o modelo de negócios baseado na hierarquização de janelas de exibição, segundo o qual os filmes são primeiro exibidos no cinema e só depois deslocados para outras plataformas e espaços comerciais (DVD, televisão, on-line). O que esse caso nos mostra é que a pirataria não só desempenha funções que esperamos da indústria cinematográfica formal, mas também que ela é capaz de desafiar e negociar as fronteiras e a escala da economia audiovisual no México. As habilidades e conhecimentos tecnológicos dos piratas não se restringem ao processo de reprodução de filmes, como também lhes dão a capacidade de fazer melhoramentos tradicionalmente atribuídos a profissionais especializados da cadeia de distribuição cinematográfica. Um exemplo a ser considerado é o que aconteceu com o filme Así (2005), do diretor Jesus-Mario Lozano, cuja versão final possuía um problema de compressão de vídeo, causando falhas de sincronia. Esse defeito não foi corrigido pela empresa distribuidora, e o filme foi lançado em festivais e salas de cinema nessa condição. Acontece que na versão pirata do filme, lançada simultaneamente nas banquinhas de camelô, o problema foi corrigido. A cópia ilegal possuía uma qualidade superior ao original. Nesse caso, em vez de nos prendermos à ilegalidade das práticas de pirataria, poderíamos considerá-las em primeiro lugar como um tipo de performance, que suplanta e aperfeiçoa as ferramentas e operações da distribuição cinematográfica formal. Os piratas costumam se valer das mais diversas tecnologias. Além disso, como está implicado nesse exemplo, eles podem estar mais atentos à qualidade da imagem do que as distribuidoras oficiais, tomando mais cuidado com a experiência da audiência. Seria então possível afirmar que a pirataria é capaz de “melhorar” os filmes originais? No caso de Así, as práticas piratas vieram a interferir no produto cinematográfico e conseguiram beneficiá-lo, tanto tecnológica quanto esteticamente. Na versão distribuída oficialmente, Así era um filme “ruim”, incapaz de ser reproduzido em certos aparelhos, com uma imagem “deficiente”. Já em sua cópia pirata, ele foi adaptado e melhorado. Esse processo envolve uma manipulação

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cuidadosa da tecnologia, capaz de gerar aperfeiçoamentos. Contrariando o argumento de Larkin a respeito do colapso da tecnologia nas infraestruturas piratas, o que esse caso demonstra é que as práticas piratas de distribuição cinematográfica implicam outras formas de profissionalismo. A proficiência tecnológica e as ferramentas empregadas na pirataria podem ocupar o lugar de certas operações profissionais que são esperadas dos circuitos cinematográficos formais. Como afirmado por Sundaram (1999) a respeito do contexto indiano, as práticas da modernidade pirata são um exemplo de “conhecimento tecnológico informal”, por meio das quais os vendedores aprendem a usar ferramentas. Os estudos de caso acima apresentados são um exemplo de outras formas de controlar, ou ainda de expandir, os meios de distribuição cinematográfica, tanto em termos da comunicação do produto final com a audiência quanto da criação de espaços para a circulação de filmes. Eles demonstram que reside nos grupos informais um certo conhecimento tácito sobre como encontrar, reproduzir e vender cópias. Esse conhecimento se relaciona a aperfeiçoamentos tecnológicos e à acumulação de informações sobre pontos de venda, lojas de vídeo e redes. A perícia contida nas práticas piratas reforça e expande o circuito de distribuição cinematográfica, tornando-o mais durável e manejável, mais aberto à produção local. Nesse sentido, é preciso diferenciar o conhecimento sobre a pirataria, produzido nos contextos institucionais para fins de controle e policiamento, daquele produzido em meio à pirataria, ligado aos praticantes que tratam do material pirata. O conhecimento local sobre a pirataria está ligado às particularidades socioculturais e materiais do sistema de distribuição mexicano. Esse conjunto de práticas cria condições para a produção de outros canais de distribuição e o ajuste de novos circuitos entre os realizadores e o público. Os três casos acima ressaltam reorganizações de trabalho entre sistemas de distribuição formais e informais, demonstrando que a pirataria se tornou um canal de saída, o caminho para uma nova economia capaz de conectar a produção, a distribuição e a exibição de filmes.

Referências ARRONA, J. “Ya Tiene ‘Heli’ Fecha de Estreno,” in Periodico Am, 19/06/2013. Disponível em: . Acesso em: 04/01/2014.

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cine fantasma: o cinema morreu? viva o cinema! paola barreto leblanc

A pergunta pela natureza, o sentido, ou o “ser” do cinema, pergunta tão antiga e já recolocada em diversos momentos de sua(s) história(s), parece nos levar mais uma vez à conclusão de que ele ainda esteja por ser inventado (BAZIN, 1976, p. 25). No momento em que as salas de exibição que não foram fechadas passam por uma reformulação digital e se anuncia o “fim” da película, a pergunta ressurge, renovada e implicada em questões que atravessam sua produção e distribuição. Ao pensarmos em bairros que assistiram ao fechamento de dezenas de cinemas, como é o caso do Brás e da Cinelândia Paulista, percebemos o quanto as configurações da indústria de exibição cinematográfica, como se observam sobretudo no Brasil, contribuem com um cenário de especulação imobiliária e redesenho urbano, no qual as particularidades e identidades locais tendem ao desaparecimento. Curiosamente, o desaparecimento é um traço e um estigma do cinema. O argumento que vamos apresentar neste texto, em lugar de fazer uma defesa nostálgica de antigos hábitos em risco, é o de que a sala de cinema que hoje desaparece em diversas cidades do Brasil e das Américas representa um modelo de commoditização, ou domesticação, como proposto por Pier Paolo Pasolini (1982), de uma natureza mitológica e arquetípica que seria o princípio das imagens animadas. Neste sentido, entendemos a codificação do aparato cinematográfico como uma ruptura com as possibilidades mediúnicas que se anunciavam no horizonte das “novas mídias” do século XIX, onde as chamadas “imagens vivas” eram apreciadas em contextos que variavam entre a pesquisa científica e a séance espiritualista. Deste modo entendemos a crise desta sala de cinema que dominou o século XX como como um convite para pensar modelos de espectação de imagens do século XXI, onde “novos” formatos encontram antigos ritos.

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Esta forma de olhar para a aurora do cinema, não no sentido de apontar as deficiências ou fraquezas dos dispositivos que o “antecederam”, nem mesmo de pensar em termos de antecedência, mas de sim procedência, encontra no célebre simpósio da Fédération Internationale des Archives du Film (FIAF) em Brighton, em 1978, um ponto de clivagem. É a partir desse olhar renovado para o momento inaugural do cinema que empreendemos aqui a nossa própria arqueologia, que apresenta-se como um método de pesquisa, uma estratégia artística e um projeto de intervenção urbana.

(An)Arqueologia de mídia A arqueologia da mídia é um campo de pesquisa que se destaca dos estudos de história e teoria de mídia ao longo dos anos 1980, e desde então vem se expandido no entrecruzamento entre cinema, comunicação e filosofia da técnica. (ZIELINSKI, 2002, 2014; PARIKKA, 2012). Para compreender de que forma a noção de arqueologia articula-se com as mídias, auxilia-nos o pensamento de Michel Foucault, que concebe a disciplina como investigação acerca das condições de possibilidade, ou de princípio (ἀρχή), que fazem algo emergir. Tratase de uma abordagem que nega modelos históricos teleológicos, e que conduz, invariavelmente, à formulação de (múltiplos) possíveis futuros, a partir dos traços de mídias mortas, obsoletas ou marginais. A busca por este princípio se dá não como uma tentativa de aproximar, por semelhança, manifestações heterogêneas que surgem em seu trabalho de escavação, mas como uma leitura dos futuros possíveis que este princípio seria capaz de originar, através por meio das diferenças e das disparidades que emergem ao longo do tempo. Levando-se em consideração esta concepção intempestiva da arqueologia, Siegfried Zielinski (2002) propõe o neologismo (an)arqueologia, enfatizando o aspecto de sua insubordinação contra uma compreensão linear da história. Ao utilizar o modelo de tempo profundo (tiefe Zeit) da geologia e da paleontologia, os cortes, as interrupções e os desvios de curso aparecem como pontos de interesse que podem apontar para perspectivas futuras que resultariam em “novas (velhas) mídias”. Cabe ressaltar que a escola alemã de arqueologia de mídia é tradicionalmente mais próxima a uma abordagem baseada na análise da estrutura lógica ou informacional das mídias, partindo das bases de sua constituição física para compreendê-las como sistemas de inscrição, como sugere Kittler (2011). As abordagens de língua inglesa, por outro lado, partem de uma análise mais articulada com as implicações sociais e

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ambientais das mídias, caso de Sean Cubitt (2015), por exemplo. Nosso esforço aqui irá oscilar entre estas duas visões, ora tendendo para a explicação da técnica pelo social, ora do social pelo técnico, em um intrincado jogo de disputas políticas e simbólicas que envolvem, entre outros, o registro de patentes, os interesses de mercado, a cultura do espetáculo e o embate entre ciência e mito. Bruce Sterling propõe em seu Dead Media Manifesto (1985) a criação de um livro dedicado às mídias que perderam suas funções ou tiveram sua produção descontinuada: “What we need is a somber, thoughtful, thorough, hype-free, even lugubrious book that honors the dead and resuscitates the spiritual ancestors of today’s mediated frenzy”. Se trouxermos esta noção das mídias mortas para os espaços mortos – ou lugares fantasmas – cuja desvalorização evidencia movimentos perversos na lógica capitalista de exploração de territórios, podemos pensar também o ocaso de certo tipo de experiência de cinema segundo o princípio de obsolescência programada. Como sabemos, a obsolescência programada está relacionada a uma cultura de descarte tecnológico, onde os aparatos são desenvolvidos para terem uma vida útil limitada. Neste cenário toda “nova mídia” já surge velha; é de sua própria constituição tornar-se descartável. A necessidade de crítica deste modelo se dá, como aponta Parikka (2012), não apenas no plano ideológico ou discursivo, mas na micro política, e a cultura do do-it-yourself assim como o reaproveitamento de mídias é uma forma ativa de combate. É da natureza do sistema capitalista de produção desassociar as forças sociais do trabalho dos bens comercializados, ou seja apagar como (e por quem) foram produzidos. O conceito de fetiche da mercadoria de Marx encerra um aspecto fantasmagórico, que reside justamente na alienação do trabalho dos bens a ele associados1. Se podemos afirmar haver no meio digital uma desmaterialização da imagem técnica, no sentido de uma “zerodimensionalidade”, como sugerida por Flusser (2008), não podemos esquecer do fato que os aparatos digitais, ou analógicos, baseiam-se em elementos físicos, químicos e materiais, extraídos da natureza em condições que degradam meio ambiente e comunidades por meio de um modelo de extrativismo que remonta ao sistema colonial.

1. Interessante notar a presença do termo fantasmagoria na Seção 4, Capítulo 1 de “O Capital”: “O fetichismo da mercadoria e seu segredo” in Marx, Karl, Engels Friedrich. Das Kapital: Kritik der politischen Ökonomie (1ª ed.). O. Meissner: Hamburg, 1867. Para um aprofundamento nas relações entre Marx e os espectros ver: DERRIDA, Jacques, Spectres de Marx, Paris: Galilée, 1993.

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Nesse contexto, pensar a história do cinema simplesmente enquadrada em uma ideologia do progresso, de crença no desenvolvimento tecnológico, seguindo toda uma linhagem de dispositivos que se sucedem na busca pelo mimetismo total, revela-se insuficiente. É fato que a indústria audiovisual desenvolve-se nesta direção: o mito da alta resolução continua despejando no mercado novas câmeras, novos sistemas de registro e armazenamento, novas necessidades para a exibição que resultam no aniquilamento de modos antigos de produção e consumo de imagens. Contudo, estamos interessados em pensar em outra chave os devires do cinema, da imagem em movimento, das imagens animadas e das imagens com alma. Entendê-las não somente pela mimese ou cinese, mas por aquilo que seriam capazes de invocar, ou fazer aparecer; por suas capacidades de revelação, magia e alquimia. Nessa direção, nosso trabalho de arqueologia torna-se não somente método de pesquisa, mas também estratégia artística e intervenção estética no espaço, na esteira de uma longa tradição de inventores, artesãos e feiticeiros que invocaram e seguem invocando as potencialidades mágico-míticas da imagem para a criação de mundos, produzindo, cada um ao seu modo, uma forma de alquimia ou feitiço. Incorporamos assim influências de naturezas e épocas distintas, incluindo o magnetismo de Athanasius Kircher, as fantasmagorias de Étienne-Gaspard Robert, os truques de Georges Méliès e as potências do falso de Orson Welles, na busca por um ofício que Jean-Luc Godard definiu como (nem arte nem técnica): mistério.2 “É nesse sentido, englobando passado e futuro, que o cinema é não somente a arte, mas também a religião do presente. E é nesse sentido igualmente, que a cinelândia é o centro da cidade. É por isso que um estudo existencial da Cinelândia urge” (FLUSSER, 1965).

A significação mágica das imagens e a significação mítica dos lugares «Any sufficiently advanced technology is indistinguishable from magic.» Arthur C. Clarke, 1973

Em 28 de novembro de 1895, é registrada aquela que entrou para a história como a primeira projeção de filmes para um público pagante: o sessão do Cinématographe dos irmãos Lumière no Salon Indien do Gran Café em Paris. Esse 2. Citacão extraída de Histoire(s) du cinéma - Fatale Beauté (França, 1997: 09’22” - 09’49”).

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evento ocorre algumas semanas após a sessão promovida em 01 de Novembro pelos irmãos Skladanowsky, no Variété Wintergarten, em Berlim, com a apresentação de seu Bioskop. Que, por sua vez, ocorre mais de um ano depois da sessão de Phantoscope que Charles F. Jenkins realizou para seus familiares em Indiana nos Estados Unidos... É curioso imaginar que poderíamos hoje frequentar o Bioscópio ou o Fantoscópio em vez da habitual “ida ao cinema”. Quando nos referimos aqui a essas e outras invenções que desapareceram como formas de pré-cinema (MACHADO, 1997) ou frühes Kino (ELSAESSER, 2002), isso não significa que as tomemos como etapas ou versões menos bem-acabadas ou eficientes daquilo que o cinematógrafo foi capaz de efetivar. O panorama de onde essas “novas mídias” emergiram no século XIX era absolutamente heterogêneo, e não se deixa reduzir a uma narrativa única; as invenções eram ofertadas em público ou privadamente em um contexto que misturava descoberta científica, espetáculo de curiosidades e comunicação com o além, pra citar apenas alguns aspectos. As propagandas da época convocavam o público para apreciar as “imagens vivas”, que nos habituamos a chamar de imagens em movimento. O caráter vital, no sentido de invocação mesma da vida, estava diretamente associado à novidade, e em muitos casos expresso nos sugestivos nomes dos dispositivos patenteados. Além dos acima mencionados, podemos enumerar outros tais como Animatógrafo, Biograf, Biokam, Vitascope, Zoetrope, Zoopraxiscope, em um jogo curioso entre as máquinas recém criadas e as raízes etimológicas que definem o conceito de vida em suas diversas acepções no grego e no latim. Ao longo do século XIX, o desejo ancestral de comunicação entre vivos e mortos ganhou uma face técnica, com o advento do telégrafo e da fotografia. As “novas mídias”, entendidas cientificamente como máquinas de reprodução técnica ou próteses de visão e comunicação tornaram-se instrumentos de análise de fenômenos (sobre)naturais e psíquicos, como a hipnose e outros estados de transe. A associação entre as manifestações do inconsciente estudadas pela então nascente psiquiatria e os novos aparatos técnicos nos deu, como um de seus resultados, a invenção da histeria (DIDI-HUBERMAN, 2012). Nesse contexto podemos afirmar que o telégrafo trouxe como resultado possível a invenção da doutrina espiritualista e seus médiuns (SCONCE, 2000). No entanto, ao contrário da psicanálise, suas sessões (séances) não obtiveram a legitimação dos diversos comitês científicos que se reuniram ao longo de décadas de controvérsia e incluíram figuras tão célebres quanto díspares como a cientista Marie Curie, o filósofo Henri Bergson e o autor Arthur Conan Doyle. Sem oferecer provas sobre a validade científica de teorias sobre fenômenos como a telecinese, as alucinações

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coletivas e as materializações, a atividade de médiuns e sua comunicação com os espíritos foram acusadas de fraude e charlatanismo, deixando o campo de ciência rumo a um terreno movediço - entre o espetáculo e a religião. Não teremos aqui espaço para desdobrar este vasto e fascinante tema3, que evidencia a linha tênue entre crença - mito - e ciência, e o papel desempenhado pelo objeto técnico em seu traçado. Investigar esse traçado e compreender o objeto técnico a partir das ciências naturais, notadamente a biologia e o estudo dos seres vivos, bem como das ciências sociais, como a etnografia e a antropologia, é uma operação que se intensifica ao longo dos anos 1950, ganhando corpo na formulação do pensamento estruturalista e da cibernética. Como apontado por diversos autores (ALMEIDA, 1999; LE ROUX, 2009) ainda que seja um ponto pouco explorado na literatura, Lévi-Strauss refere-se com frequência a conceitos e modelos cibernéticos. Seu interesse pelas teorias de informação e comunicação e a ênfase na teoria de grupo para o entendimento, seja do pensamento mitológico, seja do pensamento conceitual ou numérico, no que diz respeito a criação de narrativas e modelos de conhecimento, o levaram a operar por modelos estatísticos, em lugar de modelos mecânicos. O legado destas contribuições reverberam em questões atuais como a da inteligência artificial, da consciência na máquina e da teoria ator-rede latouriana, e nos ajudam a pensar nossa proposta de ritual técnico, como apresentaremos a seguir. O termo cinematógrafo, de onde deriva o cinema, pressupõe ser o movimento, entendido em sua dimensão mecânica, o que define a animação da imagem. Neste sentido, gostaríamos de pensar aqui de outro modo: não seria a mecanização a causa ilusão de movimento; seria antes o movimento, inerente a um processo a um só tempo psíquico, físico e simbólico, instaurado pela relação com (entre) as imagens, a causa da animação. Para não reduzir o entendimento do movimento do cinema a explicações científicas restritas ao campo da fisiologia ou da psicologia, trabalhamos com “uma concepção mitológica da imagem, que dá forma a explicação do tempo e abre as categorias do ser para o abalo do devir.” (MICHAUD, 2013, p. 329). Deste modo, em lugar de comemorar o triunfo do cinematógrafo e o modelo de expectação que ele inaugura sobre outras formas de relação com o movimento das (nas) imagens, poderíamos pensar que ocorre 3. Um interessante livro a respeito foi escrito pelo mágico, dublê e personagem de vaudeville Harry Houdini, que atuou como desmascarador de médiuns no início do século XX. HOUDINI, Harry. A Magician among the Spirits. 1ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.

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em seu estabelecimento uma primeira morte do cinema4, com a negação de toda uma cultura de mediúnica, que têm por desejo invocar relações vitais ou espirituais a partir das imagens. Provocados em grande medida por esse problema, empreendemos nossa (an)arqueologia por meio dos elos espectrais entre mídia e médium, vida e não-vida, e apresentaremos nosso modelo de intervenção que propõe ocupar com fantasmagorias espaços desativados, ameaçados ou esquecidos, em um diálogo direto com as noções que expusemos até aqui e com conceitos que vem sendo trabalhados por artistas pesquisadores brasileiros como Giselle Beiguelman (2014) e Mario Ramiro (2008), por exemplo. O cinema sedimentou-se como uma arte industrial, funcionando de acordo com as leis do capital, segundo as quais os filmes circulam como mercadorias que se destinam em última instância a gerar lucros. Radicalizando propostas que os chamados cinemas independentes, experimentais ou novos (como o Cinema Novo Brasileiro, o Novo Cinema Alemão e a Nouvelle Vague francesa) defenderam em trincheiras de resistência ao longo do século XX, entramos o século XXI discutindo um cinema pós-industrial (MIGLIORIN, 2011), no qual modos de produção coletivos desafiam hierarquias e modelos fordistas de segmentação e distribuição do trabalho audiovisual. Poderíamos, para pensar a partir de categorias flusserianas, falar em um cinema pós-histórico ou informacional, que agiria não como um espaço para criação de narrativas (históricas), mas como um campo para produção de in-formação nova, de novas formas, pondo em cena o embate entre um modo discursivo, que opera segundo uma lógica textual, linear, teleológica, e um modo imaginativo, que opera segundo uma lógica circular, não linear, mítica, de produção de imagens. O embate entre estes dois modos cria panes de temporalidade, permitindo a emergência de situações não previsíveis, onde há possibilidade de escapar da entropia — e da morte. Dessa perspectiva, se o fechamento das salas de cinema e os processos de digitalização podem ser vistos como fenômenos negativos que operam segundo a lógica da obsolescência programada, eles também podem ser vistos positivamente a partir da emergência de novos modelos de compartilhamento em rede, que, se não substituem a experiência social da sala de cinema, permitem arquiteturas potentes e revolucionárias, onde o conceito de autor, produtor, espectador e mesmo de filme são colocados em xeque.

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Sobre as muitas “mortes” do cinema ver: GAUDREAULT, Andre; MARION, Philippe. La fin du cinéma ? Un média en crise à l’ère du numérique. Armand Colin: Paris, 2013.

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Senhoras e Senhores: Cine Fantasma! Cine Fantasma é uma série de performances e vídeointervenções que cria situações de projeção de imagens em locais degradados, ameaçados de extinção ou relegados ao esquecimento, buscando articulações entre memória, esquecimento e constituição de identidade. O material utilizado nas projeções é levantado colaborativamente, por meio de workshops, mecanismos de busca on-line e off-line, entrevistas e principalmente, como gostamos de afirmar, em nossa livre releitura das séances, a conjuração – o que coloca nosso trabalho entre práticas de pseudociência, psicogeografia e tecnoxamanismo. Formando um arquivo vivo que encarna a memória coletiva e afetiva do espaço em questão, o trabalho nasceu associado às salas de cinema que perderam sua função, transformadas em estacionamentos, supermercados, lojas de departamentos ou igrejas, fenômeno muito comum em diversas cidades brasileiras que já abrigaram as vídeointervenções.5 No entanto, a possibilidade de invocação da memória por meio da projeção de imagens, textos e sons produzidos coletivamente por e para um sítio específico revelou-se uma forma de ritual técnico com dinâmicas próprias, e o trabalho expandiu-se para além dos cinemas em vias de desaparecimento, ganhando força em outros contextos, como por exemplo a Aldeia Maracanã e o antigo DOPs, no Rio de Janeiro. Desse modo as ações do Cine Fantasma constituem-se como um movimento de resistência à transformação de lugares em não-lugares, no sentido proposto por Marc Augé (1992) ao referir-se ao apagamento de traços históricos, identitários ou relacionais em espaços urbanos. Observada a irreversibilidade de certos processos de degradação e mudança, o ritual acontece menos no sentido de restabelecimento de uma situação passada, de caráter saudosista, e mais como uma forma de intervenção crítica que invoca nas ruínas e rupturas com o passado as condições de possibilidade para o entendimento do presente e a formulação de possíveis futuros. É importante frisar que a proposta de vídeointervenção do Cine Fantasma, ainda que se utilize de tecnologias digitais, reside menos na produção de efeitos de video mapping ou realidade aumentada, e mais na criação de redes de afeto e memórias compartilhadas. Evitando uma perspectiva simplesmente nostálgica, as ações investem na exploração das potências da montagem e da projeção de imagens, pensando a projeção em seu duplo sentido: técnico e psíquico. 5. Um portfolio reunindo documentação das intervenções encontra-se on-line em cargocollective.com/cinefantasma/

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Operando fora da lógica do espetáculo ou do consumo, e a partir de noções como comunidade, pertencimento e assombro, a tecnologia atua como uma fagulha que deflagra o ritual de invocação, remixando imagens, ao vivo, na rua, e criando aquilo que Benjamin (1985a) chamaria de imagem-espaço (Bildraum), construída por meio de uma ação política que diz respeito a um coletivo. Assim, as colagens audiovisuais, em suas aparições fantasmagóricas, buscam materializar a memória coletiva e afetiva do espaço em questão, explorando a relação entre as estruturas materiais e simbólicas que se entrelaçam na arquitetura das cidades. A memória poderia ser definida como a instância onde se sobrepõem as marcas da experiência. Seria aquilo que escapa do esquecimento, aquilo que é reconstituído pela lembrança em operações que não tem fim e que se atualizam incessantemente, em um processo cumulativo, generativo, vivo. Na teoria platônica, conhecimento é reminiscência: as coisas são sabidas, mas esquecidas, e conhecer é lembrar. Podemos pensar também a memória como uma promessa de futuro, um germe, prenhe das possibilidades vindouras, carregando consigo as condições de possibilidade para desdobramentos múltiplos, o vir a ser, o por vir, o devir... Assim, a memória diria mais do futuro que do passado, visto que o que passou, já foi, e só existe na memória, a cada vez que se atualiza em novas redes e conexões. Isso pode ocorrer involuntariamente, a partir de um gatilho material, como a madeleine de Proust; ou pode se formar por uma operação da consciência, tendo a intuição como fio metódico, como propôs Bergson. A memória pode ser um traço, uma marca, um vestígio, um rastro. Ou uma invenção. Ou uma lacuna. Ou um fantasma. Este é o escopo do Cine Fantasma, cinema sem sala, o filme entendido como fluxo ativado pelas lembranças e expectativas dos espectadores habitantes do espaço. Ao pensar maneiras de definir o que seria este trabalho de montagem e conjuração provocado pelo Cine Fantasma, poderíamos dizer que as justaposições sobre a arquitetura buscam estabelecer condições de apreensão de elementos que existem no espaço mas de algum modo não estão visíveis, trazendo o que permanecia oculto para o campo da experiência. É cinema de arquitetura efêmera, que projeta imagens que se constituem a partir das redes tecidas para a realização de cada sessão-intervenção. No Cine Fantasma, operamos por associações livres descontínuas, por vezes arbitrárias, e que encarnam o que entendemos ser uma prática de mistura entre imagens-técnicas e imagens míticas, a fim de atualizar o princípio animador do que entendemos por cinema. Produzindo um tipo de “subfilme mítico ou infantil”, como se refere Pasolini (1982) ao “monstro hipnótico”, sonhamos com a utopia de

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uma forma ancestral, herdeira dos adivinhos que, na descrição de Benjamin (1985b, p. 112), projetavam nas borras de café, nas vísceras dos animais e nos movimentos celestes suas (pre)visões. Por meio de redes digitais que nos permitem colocar em circulação o compartilhamento de imagens em uma nova escala, experimentamos do streaming às plataformas de mineração de imagens em tempo real,6 produzindo fantasmagorias automatizadas, randômicas e incontroláveis, onde as manchas e borrões ganham formas algorítmicas. Anacronismos, saltos e justaposições temporais constituem nosso método e nossa prática, em procedimentos análogos ao do historiador da arte alemão Aby Warburg, que propôs, com a criação de seu Atlas Mnemosyne em 1929 o que chamou de “uma história de fantasmas para gente grande”. História, em alemão Geschichte, inclui o radical Schichte, que se traduz por “camada”. As camadas da história sobrepõem-se não segundo um princípio de ordem cronológica, linear, mas por meio de movimentos irregulares, que as fazem ora submergirem, ora emergirem, deixando aparecer aquilo que permanece, latente, através do tempo. Desse modo, por exemplo, o ritual da serpente realizado pelos índios Hopi, testemunhado por Warburg em visita ao oeste da América do Norte no final do século XIX, pode abrir um campo de possibilidades para uma renovada leitura do Renascimento florentino. Como modelo de conhecimento, ou antes rito de orientação, Mnemosyne não se resume a buscar um princípio invariante em meio a realidades heterogêneas, mas pelo contrário, a partir das diferenças e da alteridade, mapear identidades que reverberam nas imagens e pelas imagens, entendidas como mediações entre homem e mundo, que se atualizam e se reencontram no espaço e no tempo através das civilizações. É uma forma rica e expandida de compreender o fenômeno da imagem, e se vale da reprodutibilidade técnica para reunir, no presente, a formas que não têm tempo, e que advêm, justamente, das relações entre as imagens, fazendo surgir algo que não se daria a ver nas imagens individualmente. Esse pensamento está relacionado a modos de ritualização das ações do homem no mundo, nos quais a imagem possui poderes mágicos de invocação ou de instauração de realidades. 6. Na intervenção realizada no Cine Art Palácio em São Paulo, como parte do Besides the Screen, trabalhamos com a plataforma on-line Midia Magia, desenvolvida pela artista Denise Agassi, que, em suas palavras, “permite criar sequências audiovisuais a partir de arquivos de fotografia, vídeo, texto e áudio existentes em bancos de dados online [Flickr, Youtube, Twitter e Freesound]. O sistema é ativado por meio de tags escolhidas pelo autor, conforme as categorias disponíveis. A plataforma é interativa e aberta ao público para a criação de novas ‘net artes’ que integram as exposições online.” Disponível em plataforma.midiamagia. net.

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Dessa perspectiva, podemos voltar às cavernas de Chauvet ou Lascaux, mas não simplesmente para admirar o engenho da representação do movimento nas múltiplas patas dos animais desenhados e enxergar aí semelhanças com as técnicas de animação quadro-a-quadro contemporâneas. Se podemos afirmar que os artistas-caçadores pré-históricos tomavam partido da superfície irregular da caverna para criar a impressão de movimento, as cavernas eram escolhidas por suas propriedades acústicas, como formas de sintonizar a natureza vibrátil do universo, em um ritual primitivo de invocação da caça (REKNIKOFF, 2015; DEVEREUX, 2015). As imagens nas cavernas não tinham um valor de exposição, não eram para ser vistas. Tinham um valor de culto, serviam para criar efeitos no mundo, para criar “campos”. Ou seja: não foi o aspecto mecânico de uma representação bidimensional o seu ponto de engenho, mas a invocação de um aspecto vital através da imagem. Com as intervenções do Cine Fantasma não estamos sugerindo um primitivismo fetichista que nos levaria de volta as origens de nossa ancestralidade, mas sim a ideia de assumir o movimento das imagens como um instrumento de ação histórica. E, nesse sentido, pensamos a história a contra pelo, pois “é a partir da história (e não da natureza […]) que pode ser determinado, em última instância, o domínio da vida” (BENJAMIN, 2011, p. 105).

Cinema apesar da imagem A imagem, se a pensamos dentro de uma tradição ocidental, em suas raízes gregas, é ideia, é ídolo, é ícone. A iconoclastia fala da impossibilidade da representação, não em termos de uma simples interdição, de cunho moral ou religioso, mas em termos de uma impossibilidade metafísica, como sugere Flusser. As imagens são como biombos, escondendo aquilo mesmo que desejam mostrar: Bilder verstellen was sie vorstellen, afirma o filósofo (1990). A ideia de um “cinema apesar da imagem” implica assumir esse interdito, fazendo da impossibilidade de enunciar um modo de enunciação. Vilém Flusser critica a adoração das imagens que afasta e aliena o homem do mundo, a qual chama de idolatria. A crítica de Flusser à idolatria refere-se ao fato de que o homem, apartado do mundo, coloca-se contra ele, e não como um irmão de todas as coisas. “As festas clássicas na acrópole festejavam a natureza e seus ritos simbolizavam aspectos da natureza. A festa na Cinelândia festeja o homem enquanto sujeito e seus ritos simbolizam a adequação deste sujeito ao seu objeto (…)” (FLUSSER, 1965).

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A Cinelândia paulista não existe mais. Nos cadáveres de seus cinemas, fazemos a nossa festa, rito de passagem entre a morte do cinema, ou a morte no cinema ou o cinema como morte, e uma possibilidade de cinema vivo, colocando, como sugere Nietzsche (2003), a história a serviço da vida, não a favor do puro reconhecimento ou da ruminação. Na projeção sobre as fachadas, criase um campo de arquitetura expandida, adicionando camadas informacionais às camadas arquitetônicas, amplificando a heterotopia do próprio cinema através de um ritual técnico com as imagens. Flusser afirma ser o hábito uma espécie de cobertura que esconde o mundo. Este pensamento decorre de sua experiência no exílio, de viver fora de seu habitual, estar em território estranho, terra estrangeira. Pensar o cinema apesar da imagem, à margem da tela, é uma empreitada dessa mesma natureza. “O hábito é antiestético” afirma o filósofo. Nesse sentido, a experiência estética do cinema precisa ser inabitual, ou seja: buscar meios, fora do hábito, para a existência de filmes.

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parte 3

visão | bricolagens

vídeo aberto em 360 graus larisa blazic

tradução gabriel menotti

Software livre e aberto, uma noção introduzida por desenvolvedores e hackers nos anos 1970, hoje encontra diversas aplicações em campos criativos, tais como o vídeo. Desde o seu início, o vídeo aberto [open video] e a produção de mídia aberta são marcados pelo uso de licenças livres e por uma atitude copyleft, que encoraja o compartilhamento e a troca. Essa forma de trabalho criou novas oportunidades para a produção e distribuição de vídeo, estimulando projetos comunitários, o vídeo colaborativo e a produção de arte participativa, evidente em projetos como Active Archives, Depford.TV, The Pirate Cinema e Pad.ma, bem como em organizações tais como a Open Video Alliance. Nas últimas duas décadas, as tecnologias digitais transformaram o modo como a mídia é produzida, distribuída e experimentada. Esse artigo, que relata brevemente certos processos de pós-produção de imagem, busca reconhecer esse fato e evidenciar as implicações culturais e sociais do modo de trabalho com software livre de código aberto [Free/Libre/Open Source Software (FLOSS)] e seu impacto no vídeo. Acadêmicos como Matthew Fuller, Sean Cubitt, Lev Manovich e Geert Lovink, entre outros, podem fornecer o contexto e os elementos discursivos necessários para ampliar o estudo das questões aqui expostas. A pesquisa sobre exibição de vídeo em 360 graus apresentada neste capítulo teve início em 2012, após a ICCI360 Arena, evento organizado pelo Innovation for the Creative and Cultural Industries (ICCI) da Universidade de Plymouth, na Inglaterra. Na época, todo o sistema de exibição empregado fazia uso de software proprietário que, por definição, impede o acesso e o uso público livre da tecnologia.

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Vídeo aberto, codecs e software livre A popularização do vídeo aberto começou no início dos anos 1990 graças ao container Ogg, desenvolvido pela Xiph.Org Foundation, que permite o streaming eficiente e a manipulação multimídia de alta qualidade. Theora, um formato livre para a compressão de vídeo com perda de dados desenvolvido pela mesma instituição, foi introduzido no começo dos anos 2000. Esses dois formatos de codificação digital, aliados ao lançamento da linguagem HTML5, permitiram o desenvolvimentos de novos codecs de vídeo aberto, tais como WebM e Matroska, e motivaram a recente “abertura” do H.264, um dos codecs de vídeo mais amplamente utilizados. Muito embora a maior parte desses acontecimentos esteja diretamente ligada à internet e a distribuição de vídeo on-line, ela causa impactos na produção de vídeo como um todo, não importa qual seja o seu formato ou plataforma de distribuição final. Além disso, ao empregarem as quatro liberdades essenciais do software livre – relativas ao uso, à copia, à manipulação e à distribuição do conteúdo ou do código –, esses avanços tecnológicos promovem formas de criatividade relacionadas à coletividade e à colaboração. Os programas aqui empregados para a pós-produção de vídeo em 360 graus são Processing, Gimp, Kdenlive e VLC. São todos softwares livres, que oferecem acesso ao seu código fonte, o que nos dá a oportunidade de estudálos e modificá-los, possibilitando que alteremos o funcionamento do programa. Esse aspecto, que é possivelmente o mais importante do software livre, permite aos usuários participarem ativamente da construção das ferramentas empregadas na sua produção criativa. Além disso, ele permite uma liberdade de criação e colaboração para além dos limites impostos pelas leis de propriedade intelectual e pela custosas licenças de softwares e codecs proprietários.

Estudo de caso: fluxo de pós-produção para uma instalação de vídeo 360 graus Esse é um relato sobre o processo de filmagem e pós-produção de vídeo para uma configuração de projeção panorâmica. Embora o hardware utilizado nessa pesquisa prática seja proprietário, existem pacotes FLOSS e projetos individuais disponíveis que nos possibilitariam cobrir toda a pós-produção com tecnologias livres. A documentação abaixo analisa esse fluxo de trabalho e os métodos que ele emprega como uma oportunidade para práticas de arte participatória e a produção de vídeo aberto e colaborativo.

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1. Golan Levin e o unwrapping da imagem 360o no Processing Em 2010, o artista americano Golan Levin criou um código nas plataformas openFrameworks e Processing capaz de desembrulhar [unwrap] o vídeo produzido pela câmera panorâmica Bloggie, da Sony. Essa câmera grava o vídeo em formato anular, resultando num arquivo que precisa ser processado digitalmente para poder ser exibido da maneira correta. Ela vem de fábrica com um software que é capaz de realizar essa tarefa, mas que só é compatível com o sistema operacional Microsoft Windows. O Processing, por sua vez, é um ambiente de programação multiplataforma, livre e aberto, criado por Casey Reas e Ben Fry, em 2010, e desde então mantido por uma comunidade de usuários bastante ativa. Ele costuma ser utilizado como uma ferramenta para promover a alfabetização em programação no campo das artes, bem como a alfabetização visual no campo da tecnologia. O uso do código de Levin para desembrulhar o vídeo da câmera Bloggie é bem simples. O usuário começa baixando da internet o seu código fonte, num diretório que contém o arquivo de Processing, um arquivo de vídeo para teste e um arquivo de texto com as configurações. Se o usuário já possuir o Processing instalado no seu computador, basta dar um duplo-clique no arquivo do código e apertar o botão respectivo para executá-lo. Essa ação abre uma janela separada com o vídeo desembrulhado e pronto para ser exportado (como um arquivo Quicktime, um formato proprietário). A exportação acontece pressionando a tecla “e”.

Still do vídeo da câmera Bloggie sem tratamento

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Still do mesmo vídeo após ser desembrulhado em Processing 2.1

2. Kdenlive Após o arquivo de vídeo ser exportado, ele precisa ser codificado num formato de código aberto e editado para servir aos propósitos de exibição. Isso é feito usando o Kdenlive, um programa para edição de vídeo livre e aberto. O Kdenlive é completamente estável e funciona em diversas plataformas. Para essa atividade, executamos o programa em uma distribuição do Ubuntu Linux. A interface do Kdenlive é dividida em três áreas principais: um banco de recursos, um monitor e uma linha do tempo, que são familiares a qualquer um que já tenha trabalhado com software para edição de vídeo. É possível editar uma ou várias pistas de vídeo com ferramentas simples de corte e seleção, bem como aplicar uma diversidade de efeitos e transições. O software também oferece a possibilidade de criar máscaras, composições, empregar texto e renderizar numa ampla variedade de formatos, notadamente Ogg/Theora/Matroska e WebM.

Interface do Kdenlive

Nessa etapa, um fator importante para se levar em conta é a proporção da imagem adequada para uma instalação de vídeo multitela. A proporção recomendada, caso sejam utilizados cinco computadores (ou projetores) como fonte de imagem, é de 1:9. Entretanto, como em muitos outros casos, a melhor forma de estabelecer a dimensão e resolução exatas para uma determinada obra é por meio de tentativa e erro.

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3. Gimp Outra opção para a manipulação do vídeo exportado pelo Processing é o software Gimp. Gimp é um programa para a manipulação de imagens bitmap. Se o vídeo for exportado como uma sequência de imagens, é possível desembrulhá-lo no Gimp usando o filtro Distort via Polar Coordinates. Essa alternativa possibilita criar imagens diferenciadas, o que é útil no caso do vídeo final adotar uma linguagem visual mais experimental.

Imagem editada no Gimp

4. VLC Finalmente, quando todo o processo de edição e manipulação estiverem concluídos e o vídeo estiver pronto para o streaming, utilizamos o software VLC para transmiti-lo de um computador para vários outros, de modo a criar diversas superfícies de exibição que serão utilizadas na composição da projeção panorâmica 360o. Como as ferramentas acima, o VLC também é um software desenvolvido por uma comunidade. Ele é normalmente utilizado como um reprodutor de mídia, mas também oferece opções de streaming, uma das quais é o multicast. O streaming multicast é um modo de transmitir áudio e vídeo por meio de uma rede ad-hoc, na qual um computador envia sinais para diversos outros utilizando endereços IP UDP/RTP Multicast.1 1. Para mais informações sobre sistemas multicast, ver .

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Painel de protocolos de rede do VLC

O fluxo de imagens recebido é segmentado em linhas e/ou colunas, dependendo do número e da configuração de computadores/projetores disponíveis, por meio dos efeitos geométricos do VLC.

Painel de efeitos geométricos do VLC

Com essa última etapa, o fluxo de trabalho para a projeção panorâmica multitela utilizando FLOSS está concluído. Boa sorte e divirta-se criando!

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Imagem segmentada, pronta para a projeção multitela

PS: Floss Manuals e a documentação do software livre O suporte para várias etapas deste processo pode ser obtido via Floss Manuals, uma plataforma voltada para a documentação comunitária do software livre. Ela foi iniciada em 2007 por Adam Hyde, e atualmente consiste de 3 comunidades linguísticas independentes (francesa, inglesa e finlandesa) que recebem o apoio de uma fundação holandesa. Por meio de maratonas de escrita [booksprints] e técnicas de edição distribuídas, o site já produziu mais de 120 livros em mais de trinta línguas, contando com a colaboração de mais de quatro mil pessoas. Atualmente, a iniciativa busca desenvolver parcerias com formas de educação de base e produzir material pedagógico sobre software livre. Trata-se de uma iniciativa editorial inestimável, onde o conhecimento sobre software livre é gerado e compartilhado.

ets - experimentos técno-sinestésicos

barbara pires e castro, carlos augusto m. da nóbrega, maria luiza p. g. fragoso e filipi dias oliveira

O Núcleo de Arte e Novos Organismos, criado em 2010, está vinculado à linha de pesquisa Poéticas Interdisciplinares do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenado pelos artistas pesquisadores Prof. Dr. Carlos Augusto M. da Nóbrega (Guto Nóbrega) e Profa. Dra. Maria Luiza P. G. Fragoso (Malu Fragoso). Trata-se de um grupo interdisciplinar, abrangendo discentes, docentes e pesquisadores de diversas unidades acadêmicas e programas de pós-graduação1, que desenvolve trabalho de caráter artístico/investigativo/acadêmico em arte e tecnologia. Mais especificamente, ultimamente temos investido em propostas de construção de recursos compartilhados, voltados para a pesquisa e a criação de experimentos com o audiovisual e as artes interativas. O evento Hiperorgânicos: Concha/Ressonâncias Simpósio Internacional e Laboratório Aberto de Pesquisa em Arte, Hibridação e Biotelemática2, realizado em novembro de 2013, é um exemplo desse trabalho. O tripé conceitual que permeia as pesquisas do NANO é estruturado sobre os eixos investigativos: arte, hibridação e biotelemática. Os conceitos que articulam esse tripé são motivados pela necessidade de se pensar a arte e o design em seu 1. Escola de Belas Artes, Escola de Comunicação, Escola de Música, Escola Politécnica e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, SMT- Sinais, Telecomunicações e Multimídia da Coppe, Sonic Arts Research Centre (SARC) da Queen’s University Belfast, o Laboratório de Creaciones Intermedia na Faculdade de Belas Artes em San Carlos, Valência – Espanha, a UFBA, UNB, UFJF, UFG, UFRB, USP, UNESP, UDESC, UFSM, dentre outros. 2. Evento realizado no Auditório Samira Mesquita, Prédio da Reitoria, Ilha do Fundão.

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entrecruzamento com a ciência e as tecnologias da informação/comunicação, em especial naquilo que concerne as novas possibilidades de conectividade entre organismos naturais e artificiais (questão inerente às interrelações homemmáquina) e o potencial telemático dessas possíveis interconexões, suportado pelas redes de comunicação contemporâneas. Os projetos desenvolvidos pelos artistas/ pesquisadores focam possíveis trocas entre artes visuais, design, tecnologia, ciência e natureza, investindo numa forma experiencial, demonstrativa e dialógica para abordar questões sobre arte, processos compartilhados e conectividade. Em nossos laboratórios artísticos (ou laboratórios estúdio), onde são desenvolvidos projetos e construídos os objetos sensíveis aplicados nesse campo de investigação, encontram-se elementos essenciais para tais criações. Esses elementos tecnológicos estão para os artistas hoje como antes estavam pincéis, tintas, pigmentos, telas, materiais diversos moldáveis, ou seja, equivalem a ferramentas e matérias-primas que compõem a “plasticidade” dos atuais sistemas complexos. Seguem algumas informações básicas sobre o ferramental utilizado:3 •  Sensores — que geram informações sobre o estado do próprio sistema e o estado do ambiente. Podem ser exteroceptivos ou proprioceptivos, ao gerar informações sobre o ambiente externo, ou sobre situações internas ao sistema. Alguns sensores foram biologicamente inspirados, outros criados a partir de detecção de radiação, como o LDR (Light Dependent Resistor), que é um sensor que mede a intensidade da luz no ambiente. •  Unidades de Processamento e/ou microcontroladores — fazem a análise de estímulos provenientes dos sensores que comandam os atuadores e exibidores, o que pode ocorrer em tempo real oferecendo uma resposta imediata pelo sistema. Num objeto eletronicamente interativo, os microcontroladores substituem os computadores na execução do processamento de dados. Os processadores se utilizam de linguagens de programação como Java ou C+, de acordo com a especificidade do sistema utilizado. •  Efetuadores — são partes mecânicas do sistema/objeto percebidas no seu exterior, em contato com o ambiente ou com o público. Exemplo disso são componentes de robôs que permitem sua locomoção ou interação com 3. Os exemplos aqui citados tiveram como referência o trabalho de dissertação de mestrado de Julia Ghorayeb Zamboni (vide ZAMBONI, 2013).

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outros objetos, braços, pernas, rodas, hélices, etc. •  Atuadores – responsáveis pelo movimento dos efetuadores e podem ser comparados aos músculos de nosso corpo. Nos objetos robóticos são normalmente servomecanismos e motores elétricos. •  Exibidores – são softwares que recebem os estímulos dos sensores através da rede e utilizam código para gerar visualizações dos dados que serão projetados junto ao experimento. Além dos elementos acima listados, encontram-se também máquinas de grande precisão que têm como função a produção de protótipos desenhados sob medida para compor os objetos interativos. Hoje, no NANO, temos acesso a impressoras 3D4 e a máquinas de corte a laser (CNC), a partir de parcerias com outros laboratórios em projetos integrados. Este é o caso do Laboratório de Modelos 3d e Fabricação Digital da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ (LAMO3d).

Projetos em andamento no NANO 1) S.H.A.S.T. (Sistema Habitacional para Abelhas Sem Teto)5 é um projeto artístico de caráter transdisciplinar que tem como objetivo geral agregar conhecimentos das artes, da tecnologia computacional, de eletrônica/robótica, da biologia e da sociologia, para citar apenas as mais relevantes. O trabalho explora um complexo sistema de natureza construída, multimidiática, e híbrida e envolve a produção de três módulos, ou três objetos, interconectados que compõem uma espécie de tríptico telemático. Os módulos são construídos no modelo de colmeias para apiários: módulo um – colmeia em atividade, ninho e melgueira localizada no apiário em área rural, equipada com sistema de transmissão de dados alimentado por energia solar; módulo dois – colmeia vazia, sistema natural e monitorado de captura de enxames urbanos; módulo três – expositivo, simulador do processo completo e exibidor de todas as etapas do projeto. Todos os módulos estão monitorados 4. Ressaltamos aqui nosso agradecimento ao artista-programador Marlus Araujo, que emprestou sua impressora 3D para as atividades do NANO por vários períodos, o que foi muito importante nos processos produtivos do grupo. Em 2014 foi adquirida uma impressora para o laboratório com apoio de projeto financiado pelo CNPq. 5. S.H.A.S.T. foi desenvolvido com apoio da FAPERJ, edital APQ1 de apoio à pesquisa concedido em 2013.

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via sistema telemático por onde os dados das abelhas são transmitidos para um servidor localizado em laboratório que recebe e distribui os dados coletados para serem transformados em imagens no espaço expositivo.

Modelo ilustrativo do sistema S.H.A.S.T.

Para a primeira versão do terceiro módulo6 utilizamos os dados captados da câmera infravermelho dentro da colmeia para desenvolver uma visualização inspirada na forma geométrica do hexágono presente nas colmeias. A visualização era projetada em uma caixa hexagonal de paredes internas espelhadas e paredes transversais de acrílico, de modo que a projeção se multiplicava e distorcia em uma profusão de imagens, como um zumbido imagético junto ao som das abelhas. 2) Telebiosfera7 é um projeto de arte focado na construção de um ambiente híbrido (composto de elementos naturais e artificiais) no qual será possível uma experiência telemática, bio-comunicativa entre ecossistemas remotamente localizados. O projeto tem por objetivo a construção de dois pequenos terrários 6. Exposto entre 01 e 03 de Setembro de 2014 na 4th Computer Art Congress Exhibition, no mezanino do Prédio da Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e entre 01 e 30 de Outubro na exposição EmMeio#6.0, no Museu da República de Brasília. 7. Telebiosfera está sendo desenvolvido com apoio do CNPq, edital de apoio à pesquisa concedido em 2013.

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interconectados via rede. Cada terrário estará encapsulado em um domo, que denominamos Telebiosfera, de forma a criar um micro ambiente híbrido e permitir uma experiência imersiva e intimista para o visitante. Telebiosfera é pensada como um ambiente biotelecomunicativo cuja interface principal é uma planta. Através da interação com a planta, sons, imagens serão produzidas e trocadas entre as duas telebiosferas. Telebiosfera reúne o conhecimento adquirido nos últimos trabalhos desenvolvidos pelo artista pesquisador, focados em robótica, visão artificial, hibridação e telemática, para compor um sistema cujo maior objetivo é permitir ao observador, como um dos agentes do sistema, uma experiência, sensorial, com base na comunicação entre duas biosferas remotas. Através da mediação de câmeras, microprojetores, interface híbrida de interação e a transferência de dados climáticos de um local remoto a outro, Telebiosfera busca criar um microambiente telemático através do qual seja possível ao visitante a experiência de uma natureza aumentada, gerada com base na hibridação entre organismos naturais e artificiais. Trata-se de um trabalho de arte que dialoga diretamente com a noção de presença, natureza, conectividade, hibridação, experiência, conhecimento, entre outros conceitos pertinentes aos discursos contemporâneos. Ideias que desejamos tornar visíveis através desses experimentos. O fato de plantas responderem a estímulos através de variações em sua estrutura eletrofisiológica é conhecido desde o pioneiro trabalho do cientista indiano Sir Jagadis Chandra Bose (1858-1937). Bose foi um dos primeiros cientistas a utilizar galvanômetros em plantas identificando assim a natureza elétrica de certas respostas a estímulos externos (temperatura, luz, injúrias, etc.), sugerindo ainda a existência de algum mecanismo similar ao sistema nervoso animal em plantas. Essas reações de natureza elétrica em plantas foram confirmadas experimentalmente por grupos científicos contemporâneos (WILDON ET AL 1992, p. 360, pp. 62–65). Já na década de 60, Cleve Backster executou uma série de experimentos com plantas e chegou à hipótese de que plantas seriam capazes de desenvolver formas de biocomunicação sutis com outros seres vivos. Backster demonstrou que plantas teriam a capacidade de responder aos estímulos físicos do meio ambiente e seus demais agentes. Inspirado por essas possibilidades o sistema Telebiosfera foi concebido de forma a amplificar súbitas ligações dialógicas entre o observador e o sistema na forma de arte. Os módulos serão capacitados para receber e transmitir dados e imagens do seu micro ecossistema (terrário, sistema artificial, visitante) em tempo real, dialogando assim com seu par remoto. Ao visitante será possível experienciar esses

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dados na forma de imagens, sons interativos, assim como através da reprodução por simulação do ambiente criado na telebiosfera remota. A base do sistema consiste em dois domos geodésicos para projeção 180 graus equipados com: dispositivo de climatização customizado; interface de interação orgânica com base em resposta galvânica; sensores de temperatura, umidade e emissão gasosa; sistema de projeção, áudio e captura de imagem. Cada domo está sendo construído com base em estrutura geodésica. Serão estudadas estruturas leves de fácil manuseio e transporte e seu interior deverá conter uma segunda estrutura côncava, seguindo a curvatura do domo, que servirá de tela de projeção. Sobre esta teremos um sistema de projeção para domos baseado na pesquisa de Paul Bourke, professor associado da University of Western, Austrália. Para captura da imagem externa utilizamos uma câmera infravermelho tridimensional (Kinect) que possui algoritmo de reconhecimento do corpo para podermos transmitir dados no lugar de imagens. O sistema tem por objetivo explorar imagens efêmeras, de alta performance interativa. A presença do observador é tratada de forma simbólica através de seus dados, numa abordagem abstrata de seu corpo. Esta escolha se dá por motivações estéticas e técnicas, pelo interesse na subjetividade da experiência, mas também pela adequação a diferentes condições de conexão de internet.

Telebiosfera - Exposição Computer Art for All - CAC.4 / UFRJ 2014. Foto de Barbara Castro

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3) Oficina Experiências Tecno-Sinestésicas é uma oficina de experimentação sonora e visual a partir do conceito de sinestesia aliado ao conceito de technobiophilia de Sue Thomas (THOMAS, 2013), resultando em um fenômeno que relaciona planos sensoriais distintos e explora os sentidos de maneira ampliada. Utilizandose de sistemas híbridos constituídos por elementos naturais (frutas) e elementos eletrônicos/ computacionais (Arduinos, webcam, sensores, etc), os participantes podem experimentar o funcionamento dessa interação, resultando em uma atividade prática colaborativa de construção coletiva, visando a introduzir os participantes nos conhecimentos de ferramentas eletrônicas e computacionais de forma lúdica e didática. Os participantes, de olhos vendados, utilizando as mãos molhadas com tinta à base de água, criam desenhos inspirados por músicas e sons gerados por eles mesmos, por meio da manipulação de um circuito eletrônico no qual os instrumentos seriam representados por talheres e frutas diversas. O foco dessa oficina está em discutir aspectos sinestésicos e propor a livre criação artística, ao mesmo tempo em que promove noções básicas e faz uso de softwares de abstração e criação de ambientes visuais e sonoros, bem como dispositivos eletrônicos auxiliares ao processo criativo. A atividade é dividida em três etapas. A primeira (indicada na imagem pela letra B), uma composição cênica chamada Picnic Sonoro, utiliza frutas que são conectadas a dois notebooks por meio de interfaces Arduino. Os notebooks estão rodando o software MaxMSP, que recebe sinais digitais e os transforma em som. Espetando os conectores dos Arduinos nas frutas de diferentes tamanhos, os participantes experimentam a relação da resistência dos corpos com as qualidades do som gerado. Esse som sintético é emitido por alto-falantes conectados à saída de áudio do notebook para a segunda fase do processo. Na segunda etapa (C), chamada de Mesa Sinestesia, os participantes são vendados e convidados a criar manualmente desenhos (abstratos) que expressem a sensação sonora proveniente da interação possibilitada pela etapa anterior. Estimula-se o uso do tato no desenho livre e da audição na interpretação sonora. Na terceira etapa (D), uma webcam instalada no teto, sobre a Mesa Sinestesia, capta as imagens do processo de desenho/pintura e as projeta em uma tela adjacente à mesa. Essas imagens são desconstruídas em tempo real por uma programação específica em Processing, que percebe os pixels capturados e os reduz à cor dominante, reinterpretando a cena geometricamente, com círculos e quadrados de cores variadas. O tamanho dessas formas é definido pela posição do cursor do mouse no eixo X da tela.

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Esquema das três etapas interdependentes da oficina ETS.

Sue Thomas define technobiophilia, em uma tradução livre, como a tendência inata em focar em processos que imitam a vida e como eles aparecem na tecnologia (THOMAS, 2013). Em sua publicação, ela cita o teto verde de um ponto de ônibus e até a última versão do sistema operacional OS X como dotados de elementos tecnobiofílicos, que aproximam o homem da natureza, tanto física quanto virtualmente. Portanto, a oficina busca resgatar essa relação que se perdeu a logo do tempo devido ao avanço tecnológico; prova também que natureza e tecnologia podem coexistir resultando em benefícios para a humanidade e ressignificando essas associações tecno-naturais. Este trabalho é resultante de uma pesquisa de geração sonora e visual desenvolvida a partir do conceito de sinestesia, cuja metodologia envolve investigação teórica, pesquisas laboratoriais e experimentos com o público. ETS — Experiências Tecno-Sinestésicas busca conjugar processos de criação artística e inovadora com as tecnologias computacionais contemporâneas, onde se incluem componentes eletrônicos. Essa pesquisa se utiliza de dispositivos híbridos constituídos de elementos naturais (frutas, verduras) e elementos eletrônicos/ computacionais (Arduinos, sensores, softwares, etc). O objetivo pode ser dividido também em três momentos: investigar possibilidades inovadoras e criativas no campo do design e da tecnologia na aplicação de mídias interativas em sistemas simples e eficientes na construção de objetos sensíveis de uso cotidiano; a partir destas investigações, resgatar, no design, elementos que podem ser reaproveitados,

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reciclados e transformados em objetos e experiências que ampliam a capacidade de percepção desse cotidiano; e, o terceiro, experimentar o uso direcionado dos softwares ligados à arte generativa, e compartilhar essas experiências com alunos e pesquisadores de arte e design. Como produtos resultantes dessa atividade estão: a criação e aplicação de um sistema interativo simples acoplado a elementos do cotidiano, onde um projeto/ protótipo de design de objeto se inicia; depoimentos dos participantes a respeito das surpresas reveladas, resultantes de suas ações e reações sobre os alimentos, sobre as imagens mentais construídas pelos sons; uma documentação digitalizada que ilustra um complexo sistema de interações e construções técnicas de sons e imagens a partir de conceitos de sinestesia; além do surgimento de inúmeras possibilidades de aplicação de sistemas simples similares a experimentos com objetivos direcionados a atividades específicas do NANO e de qualquer atividade do cotidiano. A oficina foi inicialmente ministrada no III Simpósio em Mídias interativas, em Goiânia, e posteriormente no 4th Computer Arts Congress, no Rio de Janeiro, no 15º Encontro Nacional dos Estudantes de Design (NGoiânia 2014) e no Encontro Regional dos Estudante de Design (RMisto 2014), em Bauru. Também foi apresentada como trabalho na XIX Jornada de Iniciação Científica Artística e Cultural da UFRJ, no 23º Congresso da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas e no 4th Computer Arts Congress sob forma de pôster.

Atividades da oficina ETS - Experiências Tecno-Sinestésicas, SIIMI, UFG 2014. Foto: Jordana Alves.

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4) A performance Entranhas é uma experimentação artística proposta por Alana Santos. Está centrada numa investigação sobre acoplamentos sensíveis, aplicados tecnologicamente ao corpo da performer com o objetivo de expressar/ externar ao público as sensações e reações internas do corpo em cena. O desafio foi buscar expressar, mesmo que simbolicamente, as sensações da performer na sua interação com o público. O trabalho está inserido no contexto da investigação

Performance Entranhas, série vestíveis Acoplamentos Sensíveis, imersão Granja Sagrada Família, Barra do Piraí (RJ) 2014. Foto: Cila MacDowell.

em arte, design e tecnologia voltados para a construção de uma percepção ampliada da consciência corporal a partir das relações que surgem do acoplamento entre corpo e próteses tecnológicas. Para que fosse possível ao público ter um feedback visual dos sentimentos e emoções da performer, através de um reflexo da sua pulsação, um sistema eletrônico foi desenvolvido. Neste sistema híbrido, a pulsação da performer foi captada pelo periférico Pulse Sensor e enviada ao Arduino, que processa os dados recebidos segundo uma sequência programada de instruções. Esse algoritmo sincronizou os batimentos cardíacos da performer com o acionamento de indicadores luminosos (LEDs) estrategicamente posicionados em seu corpo. Tais valores de pulsação foram enviados via USB para o computador e, por conseguinte, transmitidos para outra etapa de manipulação sonora em que o software MaxMSP se encarregava de emitir um som de pulsação cardíaca a cada pulso captado.

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Esquema do funcionamento do dispositivo do vestível Acoplamentos Sensíveis para performance Entranhas.

Entranhas se apresenta como uma singela proposta de experimentação artística performática onde se pretende vivenciar e refletir sobre como acoplamentos sensíveis, aplicados tecnologicamente ao corpo de uma performer, é capaz de expressar/externar ao público as sensações e reações internas do corpo em cena. Essa reflexão parte da necessidade de construir relações singulares, que venham reformular ações performáticas sensíveis ao corpo tecnológico, e que de alguma forma contribuam para emocionar e ressignificar a existência humana.

Notas conclusivas A arte, como um produto da cultura, desenvolve-se como um organismo complexo. Nesse sentido, a comunicação visual e o design, em seus diversos campos de aplicação, são áreas de conhecimento que hoje, através das tecnologias computacionais, ajudam a estabelecer pontes entre a produção criativa, tecnológica e a apreensão por parte do público. Os novos ateliês e espaços laboratoriais são responsáveis por conjugar, por meio das experimentações artísticas, possíveis inter-relações entre artes visuais, design, tecnologia, ciência e natureza, investindo numa forma experiencial, demonstrativa e dialógica para abordar questões sobre arte, processos compartilhados e conectividade. Como expressão dessas atividades apresentamos alguns projetos do NANO — Núcleo de Arte e Novos Organismos, onde

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trabalham professores e alunos de diversas áreas de conhecimento como as artes visuais, a comunicação visual, o design, a arquitetura, a engenharia elétrica, a computação, entre outras, sob os eixos investigativos da arte, da hibridação e da biotelemática. Uma metodologia de pesquisa que consiga abordar e abranger uma diversidade de conteúdos é um desafio constante e esta explanação visa a oferecer subsídios para tal objetivo. Defendemos que a arte é um tipo de conhecimento diretamente relacionado e condicionado ao nosso unwelt, e por que não ao unwelt de todo e qualquer ser vivo, que, segundo Jorge Vieira, é condicional para garantir a sobrevivência e, consequentemente, a permanência da espécie (VIEIRA, 2009).

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máquinas que veem: visão computacional e agenciamentos do visível andré mintz

Viemos nos acostumando, nos últimos anos, com máquinas capazes de ver. Em estágio já bem adiantado em relação aos leitores de códigos de barras – que talvez tenham representado sua primeira manifestação cotidiana, ainda rudimentar –, já não se fazem estritamente necessárias imagens ou grafismos feitos exclusivamente para as máquinas: estas já aprendem, e cada vez mais, a lidar com as mesmas imagens que nós. Em um exemplo corriqueiro, algumas câmeras fotográficas mostram-se capazes de reconhecer rostos, detectar sorrisos e «piscadas» (indicando a necessidade de uma nova tomada). Algoritmos de reconhecimento de rostos identificam as pessoas retratadas em uma foto postada no Facebook, sugerindo quem devemos marcar naquela publicação. Interfaces de controle de videogames como o Microsoft Kinect, por sua vez, incorporam a pose e o gesto do jogador à interação a partir de uma imagem de vídeo. Temos, também, cada vez mais notícias da aplicação de algoritmos de visão computacional no contexto da vigilância, como as denúncias realizadas em 2014 por Edward Snowden, que dão conta da utilização de programas de reconhecimento de rostos pelos serviços de inteligência dos EUA em inúmeras imagens coletadas diariamente em comunicações interceptadas na web (RISEN e POITRAS, 2014). “Imagem é tudo”, diz o título de uma das apresentações da Agência de Segurança Nacional que foram vazadas. Presenciamos, diante desses exemplos, a ascensão definitiva de máquinas que, por certa capacidade de ver, parecem recolocar questões sobre o lugar da imagem e do visível na contemporaneidade. Nomeia-se Visão Computacional a disciplina das Ciências da Computação dedicada ao desenvolvimento de tais algoritmos de interpretação automatizada de imagens. Em uma perspectiva histórica, Lev Manovich (1993) indica como

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marco da emergência do campo a tese de doutorado de Lawrence G. Roberts, defendida no Massachussetts Institute of Technology na década de 1960. Trata-se de um dos primeiros esforços dedicados ao campo então denominado “machine perception” (“percepção maquínica1”). Como Roberts (1963) descreve em relatório derivado da tese, seu objetivo, então, era ultrapassar o limiar do reconhecimento de formas bidimensionais (como caracteres e códigos de barras) e enfrentar, efetivamente, o problema do reconhecimento de formas tridimensionais em imagens planas, encaminhando para o objetivo geral do “reconhecimento de dados pictóricos”. Diante deste desafio, ele desenvolve processos para o reconhecimento em fotografias de arestas de formas geométricas tridimensionais, com posterior processamento por métodos de computação gráfica para gerar outros pontos de vista da mesma cena. Ao situar o desenvolvimento da visão computacional em sua narrativa sobre a “engenharia da visão”, Manovich (1993) enfatiza sua relação a uma série de outras técnicas que aperfeiçoariam o uso da imagem enquanto uma instância não apenas de representação, mas de controle sobre o espaço. Denominando nominalismo visual a compreensão da imagem presumida por tais técnicas, o autor (MANOVICH, 1993, p. 100) reúne, junto à visão computacional, tecnologias como o radar, as imagens de infravermelho e a ressonância magnética, destacando como em todas elas subentende-se uma via em mão dupla a conectar a imagem a seu referente, uma vez que a eficiência instrumental de sua aplicação depende da possibilidade de reconstituirmos computacionalmente o espaço e os objetos representados com precisão. O autor sugere, a partir de William Ivins (1975) e Bruno Latour (1986), que a perspectiva geométrica seria um dos mais importantes antecedentes de tais tecnologias ao elaborar uma representação instrumentalizada e sistemática do espaço, desenvolvendo um método algorítmico para a passagem calculada do espaço tridimensional à imagem, em um processo linear e, em certa medida, reversível (MANOVICH, 1993, p. 111-116). A visão computacional, no desenvolvimento inicial de Roberts, visa a fazer justamente este caminho inverso, partindo da representação bidimensional para acessar aspectos da coisa representada, aprofundando a compreensão da imagem como possibilidade de domínio e de ação sobre o espaço. 1. Utilizamos o adjetivo “maquínica”, aqui, como substituto da locução adjetiva “da máquina”, pela qual poderíamos incorrer em uma ambiguidade pela qual também seria possível ler como “a percepção da máquina por alguém”. Não se deve confundir este uso, contudo, com o sentido de maquínico de Deleuze e Guattari, que não se prestaria a uma contraposição humano/máquina, mas a seus agenciamentos coletivos (Cf. GUATTARI, 2003).

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Tomando o trabalho de Roberts como ponto de partida, Manovich sugere que a reconstituição computacional do espaço e de objetos tridimensionais a partir de fotografias seria o traço definidor da visão computacional. Contudo, se observamos as diversas aplicações identificadas como pertencentes a este domínio, percebemos como ele não se restringe a tal operação, mas inclui também outras, particularmente estratégicas na contemporaneidade, como o reconhecimento de padrões e a classificação de imagens. Forsyth e Ponce (2012), autores de um livro técnico dedicado à visão computacional, sugerem um percurso de vai de uma visão de “baixo nível” a uma visão de “alto nível”, realizando tarefas progressivamente mais abstratas à medida que se afastam de problemas básicos, como a detecção de contornos, e alcançam a classificação de imagens ou o reconhecimento de objetos tridimensionais. Em uma definição mais abrangente que aquela oferecida por Manovich, Golan Levin (2006a, p. 462) define a visão computacional como uma ampla classe de algoritmos que permite ao computador fazer “asserções inteligentes” sobre imagens digitais. Segundo sugere, o objetivo da visão computacional – de modo mais amplo que aquele definido por Manovich – seria o de superar a opacidade informacional da imagem: Diferentemente de textos, os dados de vídeo digital, em sua forma básica, não contêm nenhuma informação intrínseca semântica ou simbólica. Como resultado, um computador, sem programação adicional, não é capaz de responder mesmo às mais elementares questões sobre se um clipe de vídeo contém uma pessoa ou objeto, ou se uma cena exterior de vídeo retrata o dia ou a noite, etc. A disciplina da visão computacional foi desenvolvida para responder a esta necessidade (LEVIN, 2006, p. 468, tradução do autor).

Deste modo, em um nível mais elementar, trata-se de um campo com grandes interseções com a área do processamento de imagens, realizando procedimentos de extração de fundo e detecção de contornos e de movimento a partir de operações aritméticas simples com os valores numéricos dos pixels. Em um nível mais elaborado, porém, a visão computacional aproxima-se dos domínios da Inteligência Artificial e das Ciências Cognitivas, interessando-se, em certa medida, pelo desenvolvimento, na máquina, de competências humanas. Não por acaso, inclusive, entre os iniciados, omite-se com frequência o adjetivo computacional ao se tratar do assunto, dizendo-se apenas visão. David Marr (1982) sugere claramente a possibilidade da passagem entre a visão humana e a da máquina através da via de uma equivalência potencial entre computação e cognição. Ele propõe, afinal, que, mais do que uma área de aplicação tecnológica,

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trata-se de um estudo da visão por um viés computacional, de modo a se compreender em maior profundidade a própria visão humana e animal. Não nos deteremos neste texto, porém, à discussão das possíveis relações e reconfigurações entre uma visão humana ou animal e uma visão da máquina –  ainda que por vezes a tangenciemos. Trata-se, evidentemente, de um vetor fundamental e instigante do campo abordado, mas o reservamos para outra ocasião enquanto nos voltamos, neste momento, principalmente à descrição de alguns dos modos de agenciamento do visível pela visão computacional a partir de suas manifestações contemporâneas, diretas ou indiretas – em particular no âmbito da arte. Buscamos, portanto, compreender como o modo de funcionamento da visão computacional toma parte na configuração dos dispositivos2 de algumas obras, sem perder de vista sua relação, em cada caso, com aplicações características desta tecnologia em outros domínios, como na vigilância ou em mecanismos de busca na web. Neste esforço, sugerimos a existência de pelo menos dois modos de operação da visão computacional, relativamente distintos em seu modo de agenciamento do visível, do espaço e dos sujeitos – embora necessariamente relacionados e sobrepostos em exemplos efetivos de sua aplicação. De um lado, temos as operações que reunimos sob o par localização–acionamento, mais próximas da definição que Manovich faz do campo, as quais se caracterizam pela reconstituição computacional de um espaço concreto, com a precisa localização – e, em certos casos, acionamento – dos corpos que o habitam a partir de parâmetros relacionados ao seu posicionamento no espaço. De outro, temos as operações que reunimos sob o par reconhecimento–conexão3, que não se dirigem propriamente ao mapeamento de um espaço circunscrito pelo campo de visão da câmera, mas à possibilidade de reconhecer padrões registrados pela imagem (como rostos e objetos) e conectálos a redes semânticas de dimensões variáveis, pela qual os programas realizam diferentes percursos interpretativos do visível – conforme as conexões presentes 2. Não poderemos nos deter aqui ao desenvolvimento deste conceito que não assumirá um papel central em nosso argumento. Em todo caso, dada a dispersão de suas definições, cabe circunscrevermos a qual perspectiva fazemos menção, na qual referimo-nos principalmente ao sentido desenvolvido por Anne Marie Duguet (2012), que toma o dispositivo como conceito operatório para descrever as configurações e os modos de agenciamento espacial de algumas videoinstalações. Vale destacar, contudo, outras dependências fundamentais de nossa compreensão mais abrangente do conceito, em particular: FOUCAULT, 1979; DELEUZE, 1999; e AGAMBEN, 2009. 3. Vale reiterar que, em ambos os casos, buscamos não uma categorização exclusiva ou exaustiva, mas apenas nomear diferentes modulações próprias ao funcionamento de programas de visão computacional.

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na rede associada permitirem. Trata-se, é claro, de uma classificação sujeita aos riscos de qualquer esforço analítico, como a simplificação ou o reducionismo da abordagem, os quais esperamos ter minimizado em nosso percurso. No primeiro modo de funcionamento sugerido, encontramos aplicações mais tipicamente relacionadas ao contexto da vigilância, em que o campo de visão da câmera circunscreve um território e a imagem traduz-se em uma instância de mapeamento e rastreamento do espaço. Temos, então, uma atualização do regime da videovigilância, como descreve Fernanda Bruno (2012), em que se delega à máquina tarefas de seleção, monitoramento e análise do espaço vigiado. Neste contexto, a localização, o posicionamento ou o comportamento inadequado de corpos no espaço mapeado disparam alertas a equipes de segurança e acionam agentes humanos na tarefa de contenção. Esse seria o caso, por exemplo, da detecção de um corpo em uma zona de segurança em estações de metrô e aeroportos ou no reconhecimento de outro em movimento ziguezagueante – impreciso, suspeito – em um estacionamento (BRUNO, 2012). Em outro sentido, tais sistemas também “acionam” os corpos vigiados ao lhes prescreverem posições e comportamentos considerados adequados naquele contexto – uma compreensão particularmente adequada em alguns exemplos da artemídia. É conhecida a importância que os sistemas de circuito fechado de televisão tiveram na emergência do gênero da videoinstalação, particularmente em trabalhos das décadas de 1960 e 1970. Diversas obras do período, de artistas como Bruce Nauman, Dan Graham e Michael Snow servem, inclusive, de exemplos para a caracterização deste gênero por sua remissão aos dispositivos de vigilância (RUSH, 2006, p. 111-118; DUGUET, 2012, p. 58-61). Experimentando com o tempo ao vivo das imagens de vídeo, uma configuração característica de muitos dos trabalhos desenvolvidos era, afinal, a da exibição de imagens do próprio espaço da instalação, simultaneamente, ou quase simultaneamente, à sua captura. De forma similar à atualização que a visão computacional traz à videovigilância, observamos como sua incidência mais característica e, talvez, paradigmática no contexto da arte também vem atualizar a relação já constituída entre a videoinstalação e os dispositivos de controle e supervisão. A partir da integração da câmera a sistemas de interpretação automatizada de imagens, mais do que incorporados à obra, o espaço instalativo, o tempo da fruição e o corpo do espectador passam a ser mapeados e rastreados, tomados como parâmetros e condições para o desencadeamento de respostas da obra à interação. Operando desta maneira, Videoplace (1969), de Myron Krueger, é indicado por

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Golan Levin (2006a) como um dos primeiros trabalhos artísticos a se valer da visão computacional, tendo sido desenvolvido concomitantemente à emergência das videoinstalações em circuito fechado e baseando-se, em larga medida, em uma configuração similar. Contudo, evidentemente, uma diferença importante é a participação de algoritmos de análise computacional das imagens capturadas, que desempenham importante papel no dispositivo da instalação. Conforme descrição do próprio artista (KRUEGER, 2003, p. 384), Videoplace propõe a constituição de um ambiente responsivo no qual uma câmera capta imagens dos participantes para que seu programa extraia suas silhuetas, que servem como guias para repostas do ambiente, permitindo a interação gráfica com linhas e cores projetadas. O dispositivo desta obra, com seu espaço mapeado e respostas visuais ao espectador, que se observa como se diante de um espelho de realidade aumentada, parece ressoar em diversas outras obras posteriores, em particular na virada dos anos 2000, como Text Rain (1999), de Camille Utterback e Romy Achituv, Tensión Superficial (1998), de Rafael Lozano-Hemmer, ou Hand from above (2009), de Chris O’Shea. Atualmente, com a ampla disponibilidade de bibliotecas de programação de código aberto para aplicações de visão computacional, além da produção massiva de equipamentos especializados, como o Microsoft Kinect, talvez seja impossível mapear a totalidade dessa incidência mais direta, já que se trata de uma tecnologia de aplicação corriqueira e descomplicada, logo presente não apenas em instalações artísticas, como também em estandes publicitários e dispositivos museais. Um aspecto a se destacar nesses casos, que em certa medida os contrapõe às obras da videoarte indicadas anteriormente – ou mesmo à configuração tradicional da videovigilância –, é o modo como à imagem, que é tomada na entrada dos dispositivos constituídos, é destinado um papel secundário – quando ela não é totalmente ocultada. Constituindo um intermediário transitório entre o espaço efetivo da instalação e as respostas de seu ambiente, em muitos casos, a imagem capturada existe apenas no interior da própria câmera, inacessível ao espectador, sendo tratada, posteriormente, apenas enquanto fluxos de dados nunca restituídos a um estado visível. A imagem é tomada, nestes dispositivos, enquanto componente instrumental, que não tem um valor representacional em sua forma visual mas, principalmente, em sua aplicação enquanto instrumento de medição e mapeamento do que é enquadrado. A leitura da imagem é baseada, nos exemplos indicados, em parâmetros bastante simples, que podem ser inclusive expressos como instruções explícitas de como distinguir o que é capturado.

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São operações próprias a estes contextos, por exemplo: a separação entre corpos e fundo com base na análise de movimento da imagem; o contorno dos corpos a partir da sua sobreposição a um fundo previamente estabelecido ou pela identificação de variações bruscas de cor e/ou luminância; ou quantidade e direção do movimento a partir da comparação entre frames consecutivos de uma tomada contínua4. São operações que exibem, neste nível de refinamento da visão da máquina, seu caráter fundamentalmente analítico que é também ressaltado por Fernanda Bruno (2012) em sua abordagem das chamadas “câmeras inteligentes”, aproximando-as dos experimentos de análise do movimento de Etienne-Jules Marey e dos estudos fisionômicos de Alphonse Bertillon, no século XIX. Haveria, ainda, certa herança da técnica da fotogrametria, desenvolvida no mesmo período, voltada para a recuperação de medições espaciais a partir de fotografias. Uma característica importante desse modo de operação, em todo caso, é a articulação da configuração espacial do ambiente monitorado ao modo de operação do próprio programa, no dispositivo constituído. As instalações mencionadas, por exemplo, apresentam uma configuração espacial especialmente preparada para o funcionamento dos algoritmos implementados, de modo a controlar a iluminação e a circulação de pessoas. No âmbito das operações de localização–acionamento, tal articulação mostrase fundamental, dada a clara necessidade de correlação conhecida entre o espaço mapeado e sua representação visual no registro pela câmera. Em instalações interativas que fazem uso da visão computacional nesse modo de funcionamento, o campo de visão da câmera demarca um território no espaço instalativo para o desenvolvimento das ações. Seu ponto de vista, em geral levemente superior ao dos espectadores – sendo, em alguns casos, situada a pino –, favorece essa operação de mapeamento e circunscrição do espaço. Diante desse olhar, os corpos dos espectadores, encontram-se como se rendidos: uma vez que adentram tal território, estão necessariamente disponíveis ao olhar da câmera, que, de certa maneira, lhes requisita que desempenhem determinadas ações – ou, de outro modo, lhes recompensa quando são desempenhadas. Golan Levin (2006b) explora essa questão em um bem humorado ensaio visual acerca de uma suposta “pose da artemídia” (“media art pose”), indicando como, com frequência, trabalhos interativos como os destacados (Levin inclusive cita Videoplace e Text rain entre seus exemplos) nos levam a interagir levando nossas mãos ao alto. Passando por vários possíveis significados desse gesto – do exercício de controle do maestro 4. Golan Levin (2006a) indica algumas destas operações básicas da visão computacional.

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diante da orquestra à invocação dos poderes divinos pelo Papa – Levin inverte, ao final, o sentido geralmente atribuído às obras interativas ao sugerir que, longe de conferir ao espectador uma posição de controle, a artemídia lhe requisita uma “postura da rendição total” (LEVIN, 2006b). Em certo sentido, afinal, para além do acionamento interno, pelo qual o programa da instalação dispararia certas funções de acordo com a pose do interator, haveria um outro tipo de acionamento, incidindo sobre os próprios sujeitos à medida em que lhe é requisitado interagir, uma vez que se adentra o campo de visão da câmera. No âmbito das operações que localizamos em torno do par reconhecimento– conexão, de outro modo, a circunscrição de um espaço de monitoramento já não é tão fundamental. Ainda que o campo de visão da câmera siga como uma demarcação importante daquilo que pode ser percebido, não há necessidade de inscrição deste território demarcado no modo de funcionamento do programa. As operações de reconhecimento–conexão se situam em um nível de maior abstração, em que o campo de atuação dos programas seria mais bem descrito como a rede semântica que conecta determinado padrão percebido a outros pertencentes a uma mesma categoria, podendo esta ser mais ou menos específica: um programa pode, por exemplo, tanto detectar um rosto em uma imagem quanto reconhecer de quem ele é. Pode, ainda, classificá-lo com relação a determinados parâmetros como gênero, idade, etnia, expressão facial, etc. Em todo caso, tais operações já não dizem respeito a um ponto de vista específico da câmera sobre o ambiente registrado – se tratamos de algoritmos aplicados no contexto da internet, inclusive, com frequência já nem se trata de uma ou outra câmera, pois lhe são alimentados, mais do que um determinado ponto de vista, inúmeros deles, oriundos das diversas imagens em circulação, estáticas ou moventes, tomadas nos mais diversos contextos. O caráter distribuído das operações de reconhecimento–conexão, mais do que uma particularidade do contexto atual de aplicação da visão computacional na internet, constitui uma importante estratégia de seu próprio desenvolvimento. O método pelo qual são gerados tais programas, chamado de aprendizado de máquinas (do inglês machine learning), do domínio da Inteligência Artificial, compreende, em linhas gerais, a implementação de sistemas computacionais capazes de aprender a desempenhar determinadas tarefas pela inferência de regras gerais através do treino. No âmbito da visão computacional, um dos modos de aplicação desse método envolve a alimentação ao sistema de centenas de imagens de rostos, por exemplo, para que o algoritmo aprenda a reconhecê-los em outras imagens. Diferentemente das operações que indicamos anteriormente, em que são

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oferecidas instruções explícitas ao sistema, no desenvolvimento do aprendizado de máquinas cabe ao próprio algoritmo inferir as instruções que deve seguir, tomando como referência as imagens oferecidas na fase de treino. Um dos modos de fazê-lo – o chamado aprendizado supervisionado – consiste em produzir diversas imagens de objetos pertencentes a determinada categoria, os quais servirão como base de treinamento para o programa aprender a reconhecêla. Podem ser encontrados na web alguns bancos de imagens disponibilizados por laboratórios de pesquisa em visão computacional5 para serem utilizados por pesquisadores e estudantes no treinamento ou no teste de seus próprios programas. Compostas por enormes conjuntos de imagens de objetos e pessoas – sempre recortados, isolados e deslocados de seu contexto e de sua história –, essas bases se apresentam como uma espécie de memória visual das máquinas de visão. Trata-se, potencialmente, da totalidade da experiência visual de que se valem alguns destes programas para darem sentido às imagens com que tomam contato. A natureza das imagens que desempenham esse papel talvez indique, então, o critério de eficiência que guia o desenvolvimento das máquinas, cuja experiência dos objetos do mundo se faz de forma absolutamente descontextualizada e fragmentada – distanciando-se, assim, das imagens tomadas em circunstâncias comuns, jamais clivadas, de tal maneira, de um contexto ou de uma história. Contudo, com a massiva disponibilidade de imagens tomadas nas mais diversas situações, ganham espaço outros métodos de treinamento que se valem deste acervo crescente de potenciais bases de treinamento. Métodos de aprendizado chamados de não supervisionados, complementares aos previamente descritos, são baseados principalmente na alimentação ao programa de imagens de treinamento que já não se constituem como exemplos – como seriam as centenas de imagens de maçãs – mas, de outro modo, apresentam casos diversos, sem seleção prévia, entre os quais o programa deve buscar encontrar padrões recorrentes sem que a ele sejam oferecidos, de antemão, enquadramentos a partir dos quais analisar a informação. Essa é a estratégia atualmente utilizada por companhias como a Google, o Facebook e a Microsoft no treinamento de seus algoritmos de visão no que vem sendo chamado de deep learning (aprendizado profundo), fazendo uso da extensa base de imagens da própria internet. Assistimos, afinal, a um contexto cada vez mais favorável a tais desenvolvimentos, especialmente com o uso crescente dos chamados serviços de 5. Cf. Amsterdam Library of Object Images .

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armazenamento em nuvem e com a tendência geral de que potencialmente toda e qualquer imagem produzida seja em alguma medida disponibilizada na rede. Por tais métodos de aprendizado, para além das operações analíticas que indicamos anteriormente, a leitura das imagens parece incluir também uma dimensão de síntese, pela qual a máquina elaboraria internamente uma representação daquilo que infere como sendo os aspectos característicos do que busca reconhecer. Mais do que partir de instruções explícitas que, neste sentido, indicariam regras gerais para que fossem analisadas imagens singulares, parte-se, em alguma medida, dessas mesmas imagens para encontrar, em seu conjunto, os parâmetros que guiam a análise. A Google publicou em 2011 uma imagem que apresenta um subproduto de seu projeto Google Vision, no qual foram aplicadas técnicas de aprendizado não supervisionado para a interpretação de mais de 10 milhões de imagens do YouTube, com seu algoritmo buscando identificar autonomamente alguns dos objetos figurados (LE, 2011 e MARKOFF, 2012). Após apenas alguns dias de processamento intensivo desse repertório por 16 mil processadores, o programa da Google tornou-se apto a reconhecer, entre outros padrões, gatos, permitindo que também se gerasse uma representação visual daquilo que passou a identificar como tal (Fig. 1). Em seus tons acinzentados e sua forma tênue, fugaz, nos é trazida a estranha imagem de um “gato médio”, um abstrato conceito estatístico estranho ao nosso olhar6. Trata-se de uma imagem que escapa a qualquer possibilidade de singularização, são todos e nenhum gato.

Fig. 1 – O modelo visual de um gato gerado pelo programa de aprendizado profundo da Google. Fonte: LE, 2011. 6. O experimento chamado pela Google de Inceptionism ou Deep Dream (“sonho profundo”), em alusão ao deep learning, serviria, aqui, como um outro exemplo, talvez ainda mais contundente e de maior repercussão do que este que apresentamos (cf. http://googleresearch.blogspot. com.br/2015/06/inceptionism-going-deeper-into-neural.html). Contudo, como foi publicado durante a revisão deste artigo, não pudemos abordá-lo neste momento.

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Há, evidentemente, uma diferença substancial entre a visualidade inscrita neste “gato médio” e aquela que Manovich busca na perspectiva renascentista para compreender a visão computacional nos termos do que indica por nominalismo visual – vertente incluída nas operações que reunimos sob localização–acionamento. Se por tal denominação o autor busca remontar a uma relação com a imagem que se atenha mais aos objetos individuais nela figurados do que à representação de ideias abstratas, talvez seja justamente a este movimento contrário que se prestam os processos de aprendizagem aplicados à visão computacional. Afinal, no caso destes, parte-se de inúmeros casos singulares para chegar a um modelo em certa medida ideal, pela via da estatística. De tal modo, algoritmos deste tipo buscam extrair do conjunto de fotografias algo como um idealismo visual – afastando-as, inclusive, da indexicalidade que constituiria uma de suas características mais destacadas7. A visão computacional, neste modo particular de funcionamento, opera pela via da descontextualização de cada imagem superposta, formando essa estranha figura que nos é apresentada como o gabarito em que se baseia a visão da máquina. O gato que vemos, neste sentido, consiste naquele que emerge de uma ampla rede de figurações similares dispersas no YouTube, conexões que seriam ativadas a cada detecção de um padrão similar pelo programa da Google, a cada novo reconhecimento. Se estranhamos essa manifestação particular da visualidade estatística da máquina que se expressa por meio da imagem do gato pardo da Google, isso não significa, contudo, que de todo estranhemos esse modo de ver. Afinal, lidamos com seus efeitos de modo cada vez mais frequente à medida que os algoritmos que lhe dão forma se fazem presentes de modo disperso, porém, em certa medida, coordenado8, em diversos dispositivos com os quais produzimos e acessamos imagens. A interpretação visual automatizada vem sendo usada pela Google já há algum tempo nas tarefas de busca e indexação de imagens na rede, inclusive oferecendo, desde 20099, o recurso de pesquisa inversa que permite nos valermos 7. Trata-se de compreensão trabalhada por vários autores a partir do referencial da semiótica peirciana, mas que tem em Dubois (2012) um dos mais destacados expoentes. 8. Há dispersão na medida em que são diversos os agentes institucionais (governos, corporações) que aplicam tais metodologias de aprendizado. Contudo, em sua maioria, partem de uma estratégia comum, relacionada ao que convencionou-se chamar de big data: mineração, coleta e análise contínua de dados diversos a fim de elaborar perfis (de risco ou de consumo, o princípio é o mesmo) para embasar tomadas de decisão de ordens diversas. 9. Embora menos conhecido, outro exemplo deste tipo de serviço, que antecedeu brevemente o da Google, é o canadense TinEye, lançado em 2008 (cf. http://tineye.com/).

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de uma imagem como chave para a busca tanto de sites e conteúdos da web em geral, quanto de imagens similares. A publicação massiva de imagens na web se torna, então, tanto um problema a se enfrentar – como dar sentido a esse arquivo gigantesco e em expansão? – quanto o próprio substrato em que são gestadas as ferramentas para fazê-lo. A visão computacional parece ser, então, um componente chave tanto para sermos capazes de gerir tal volume de imagens quanto para compreendermos o modo de ver requisitado por esse contexto. Esse domínio é, inclusive, uma importante frente contemporânea da pesquisa em cultura visual, sendo adotada enquanto instrumento de análise para dar sentido a esse volume massivo que se produz diariamente10.

Fig. 2 – I›m Google, de Dina Kelberman (fragmento). Fonte: KELBERMAN, 2011.

10. Lev Manovich reconhecidamente empreende algumas das pesquisas neste domínio, com destaque recente em torno de análises feitas de imagens compartilhadas em redes sociais, como o projeto Selfiecity, que analisou, em um dispositivo misto, de analistas humanos e computacionais, um dia de imagens postadas na rede Instagram em cinco cidades do mundo (cf. http://selfiecity.net/).

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I’m Google (2011-), obra da artista estadunidense Dina Kelberman, brinca com aspectos dessa visualidade. Trata-se de um trabalho on-line hospedado como um blog da plataforma Tumblr, em um layout limpo, austero: sobre o fundo branco, estendem-se apenas três colunas de imagens, em sua maioria estáticas. Valendose do recurso infinte scroll, o blog da artista expande-se de forma aparentemente infinita: quando levamos a barra de rolagem até o final, a página automaticamente carrega as próximas imagens. São centenas delas. A seleção e a organização das imagens são feitas pela própria artista a partir de sua coleta na rede. Apesar da evidente heterogeneidade do conjunto, dando conta dos mais diversos temas e estilos – fotos amadoras, registros de atividades agrícolas e industriais, trabalhos manuais, culinária, esportes –, o passeio pela obra revela cuidadosos trabalhos de agrupamento e de transição. Em geral, a sequência segue um certo padrão: séries de imagens reunidas segundo agrupamentos semânticos – como, por exemplo, séries de peças de croché, de balões cortados, de luvas – entre os quais são construídas transições em que o salto temático parece ser amortecido por uma associação superficial entre as imagens, através de correspondências de cores, formas, texturas e enquadramentos. Em uma passagem que nos chama especialmente a atenção (Fig. 2), imagens do que parecem massas de pão dão lugar a uma sequência de jipes e bugues em meio a dunas de areia: a transição se dá entre a massa amorfa de farinha e uma nuvem de areia lançada ao ar pela manobra de um dos carros. De forma similar passamos, noutros momentos, de boias de sinalização marítima a imagens de trabalhos escolares feitos com bolas de isopor; de aparelhos auditivos a sapatos de bonecas; de ginásios de treinamento de ginástica olímpica a caixas de papelão recém-abertas após a chegada de encomendas. Em todas essas transições, a passagem se dá por associações presentes apenas na superfície das imagens, como que estabelecendo uma barreira ao nosso olhar, impedindo-o de buscar a coisa representada e forçando-o a se ater a seus aspectos formais. Diante das relações estabelecidas e mesmo da profusão heterogênea de temas e contextos, não conseguimos nos deter a cada uma das imagens e nossa leitura, assim, oscila entre estes níveis, entre a superfície e a profundidade, sem se estabelecer firmemente em nenhum dos dois. O movimento de leitura a que somos conduzidos pela obra parece se sugerir uma dinâmica refinada em que não jogam apenas nosso olhar e o olhar da artista. O processo, quase algorítmico, com que são construídas as relações entre as imagens, com seus vínculos cromáticos e sutis jogos de semelhança, sugere-nos, afinal, a participação de um olhar da máquina. Os saltos

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realizados entre os conjuntos sugerem algo como falhas da ordenação realizada pela máquina – em nossa perspectiva –, como se derivassem de um equívoco na aplicação do gabarito através do qual as imagens seriam classificadas. Existe algo de poético, tanto quanto de cômico, em tais passagens elaboradas pela artista. O método com que se elabora a sequência de imagens da obra coloca em evidência algumas das dinâmicas relacionadas ao jogo entre agentes de visão humanos e não humanos – nós e as máquinas – que acontece, atualmente, por causa da presença crescente dos agentes computacionais de visão. Ainda que se valha de certo instante de estranhamento que ainda – e talvez sempre – emergiria em nossa relação com tais dispositivos, a obra de Kelberman segue um caminho distinto daquele que se insinua, por exemplo, em trabalhos de Mark Shepard, Adam Harvey ou Zach Blas11, que exploram as brechas nas quais ainda seria possível erigirmos uma barreira, ainda que transitória, à sua visibilidade. São trabalhos que, cada um a seu modo, oferecem respostas para os desafios que nos colocam as máquinas que veem, tomadas enquanto materializações de um desejo de visibilidade irrestrita. Shepard, com LEDs infravermelhos que obstruem a capacidade de leitura, pelos algoritmos, de formas humanas. Harvey, com design de maquiagem e cabelos que ocultam traços fisionômicos fundamentais para a detecção e o reconhecimento de rostos. E Blas, com máscaras radicalmente obstrutivas, geradas a partir de dados acumulados de diversos rostos distintos, ou, ainda, com objetos que nos permitem visualizar os atributos biométricos usados na identificação como um instrumento de tortura. Todos eles, ainda que com abordagens distintas, têm em comum com I’m Google, de Kelberman, serem respostas a um modo de funcionamento da visão computacional pautado nas tarefas de reconhecimento e classificação de padrões visuais, de caráter fundamentalmente estatístico e em uma topologia de rede, em que determinadas configurações cromáticas dos pixels ativam percursos particulares, produzindo associações semânticas (classes e identidades). Em ainda outro exemplo, a instalação The giver of names (1990-)12, de David Rokeby, traz uma incidência particular desse tipo de operação. Nela, o espectador é convidado a escolher alguns objetos – de uma diversidade deles, espalhados pelo 11. Sentient City Survival Kit (2010), de Shepard (http://survival.sentientcity.net/). CVDazzle (2010-) de Harvey (http://cvdazzle.com). Facial Weaponization Suite (2011-2014) e Face Cages (2013-2015) de Blas (http://www.zachblas.info/projects/facial-weaponization-suite/ e http://www.zachblas.info/projects/face-cages/). 12. Cf.: http://www.davidrokeby.com/gon.html.

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chão – dispondo-os sobre um pedestal diante de uma câmera conectada a um computador. O programa analisa a imagem captada, extraindo-lhe os contornos, analisando sua cor e textura, e busca identificar, a partir dos traços descritos, quais seriam aqueles objetos entre os que constam em uma base conhecida. O reconhecimento ativa uma rede conceitual, composta por uma base de nomes de objetos, sensações e ideias – extraídas, entre outras fontes, de textos escritos pelo artista e obras da literatura – que são articuladas a partir das formas percebidas, de forma a elaborar uma frase em alguma medida afetada pela percepção visual, pela máquina, daquela cena. Destaca-se como a operação da obra se distancia daquelas típicas do par localização–acionamento, pois não se trata de recompor, a partir da imagem, um espaço concreto, como é o caso das aplicações que indicamos anteriormente, ou dos trabalhos de artemídia derivados. Trata-se, antes, de uma operação de abstração pela qual acessamos, a partir da imagem, um espaço difuso, conceitual, em que, mais do que circunscrever regiões ou monitorar movimentos, estabelecem-se conexões e ativam-se percursos, fazendo emergir sentidos a partir das relações estabelecidas. Por todo o conjunto de casos que pudemos abordar, percebe-se tanto a diversidade de modos de agenciamento do visível operados pela visão computacional quanto aquilo que têm em comum. Se, de um lado, as operações reunidas sob o par localização–acionamento dedicam-se a um contexto particular de operação, circunscrevendo e mapeando um determinado espaço e nele localizando e rastreando corpos específicos, concretos, vemos como as operações de reconhecimento–conexão realizam uma abstração destas individualidades, buscando conectá-las a categorias ou formulações genéricas, inferidas de uma enorme quantidade de instâncias singulares. Evidentemente, efetuamos nesta clivagem uma categorização apenas transitória, já que tais modos de funcionamento manifestam-se, com frequência, de modo indistinto em diversas aplicações – na vigilância, por exemplo, tanto a localização de um corpo quanto a sua identificação ou classificação mostram-se fundamentais. Em todo caso, incidindo transversalmente a tal diversidade de manifestações, haveria um eixo comum a percorrer as aplicações da visão computacional, o qual talvez pudéssemos compreender pela definição de Golan Levin (2006a) que trouxemos ao início: trata-se de transpor a opacidade computacional da imagem, de traduzir seus conteúdos figurativos a uma representação quantificável e computável. Forsyth e Ponce (2012, p. 107) apresentam um exemplo elucidativo: “Figuras de zebras e de dálmatas têm pixels brancos e pretos, e em torno do mesmo

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número, inclusive. A diferença entre as duas tem a ver com a aparência característica de pequenos grupos de pixels, mais do que valores de pixels individuais” (tradução do autor). Partimos, então, da representação numérica da imagem, expressa pixel a pixel, para chegar a seu nível figurativo (aquilo que ela aparenta, o espaço e dimensões representadas, etc.) e, então, traduzir esta figuração novamente em um valor numérico, registrável e computável. Essa definição, embora precisa, atémse a um nível técnico que talvez não sintetize todas as questões que pudemos perceber no percurso de nossa argumentação –  afinal, não basta descrevermos esta operação sem atentarmos aos modos de agenciamento implicados. Vem ao nosso auxílio, nesta leitura, a definição de Sean Cubitt (2011, p. 9) do que seriam, em nosso tempo, as mídias dominantes (entendidas como aquelas utilizadas para o exercício do poder). Segundo ele, já não seriam mais a narrativa ou a imagem, mas aquelas que indica como os três pilares contemporâneos da economia política: planilhas, bancos de dados e sistemas de informação geográfica (GIS). Seriam estas que, em última medida, serviriam aos propósitos atuais de elaboração de perfis estatísticos e de controle e gerenciamento de riscos, presentes em instâncias de governo tanto estatais quanto corporativas. Poderíamos compreender a Visão Computacional, então, como um agente de passagem, de transição, responsável pela tradução entre dois paradigmas das tecnologias de controle e conhecimento, subsumindo a imagem a uma destas formas indicadas por Cubitt, em especial os bancos de dados e os sistemas de georreferenciamento – situados a apenas um passo em relação aos desenvolvimentos que pudemos descrever. De um lado, há evidentemente uma forte reconfiguração do papel desempenhado pela imagem, que, passível de ser traduzida automaticamente em informação, desdobra-se enquanto uma fonte de dados estatísticos e deixa de ser, neste sentido, um objeto de difícil tratamento, indexação ou arquivamento. De outro, há também um ganho significativo para as mídias identificadas por Cubitt, com a entrada da imagem em seu domínio. Operando tradicionalmente por meio de dados numéricos e abstratos, a elas lhes é permitido, a partir da imagem, circunscrever e particularizar a informação ao operar a partir de um registro singular. De outro modo, também lhes torna possível fazer o caminho inverso e generalizar a partir destas mesmas instâncias singulares, na medida que é pelo enfrentamento de múltiplos registros do individual fotográfico que o método do aprendizado de máquinas permite aos algoritmos da Visão Computacional realizar o reconhecimento de padrões e a sua conexão a instâncias relacionadas. De toda forma, mais ou menos relevante, a imagem tem seu lugar reconfigurado

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nesse contexto, sendo levada a assumir o papel de componente intermediário e transitório de uma operação na qual, por vezes, nem aparece.

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parte 4

materialidade | performances

entre sensores e sentidos: sobre a materialidade da comunicação na artemída graziele lautenschlaeger

Observa-se que, embora estejam disponíveis pensamentos e ferramentas digitais poderosas para superar os paradigmas tradicionais de comunicação, ainda estamos condicionados por práticas culturais baseadas no consumo indiscriminado, que fetichizam objetos tecnológicos e estabelecem relações pouco críticas com as “novidades” que aparecem. Mesmo parcialmente atenta a esta situação cultural, a produção contemporânea de artemídia está repleta de trabalhos conceitual ou tecnicamente herméticos, e raramente vão além do rearranjo da “dispositifaria” oferecida pelo mercado. Considerando atividades de pesquisa, curadoria, produção e educação artística neste campo, poucas são as iniciativas no mundo que se valem do seu potencial como meio catalisador da expressão e autonomia criativa das pessoas. Além disso, tal produção é muitas vezes reprodutora do distanciamento histórico e culturalmente construído entre teoria e prática. É muito comum hoje em dia que artistas tenham as ideias e contratem mão de obra especializada para a execução do trabalho, ignorando o potencial criativo emergente do mão-namassa. Em O Artífice, de Richard Senett (2009), esta questão é rica e profundamente discutida e nos fundamenta para perceber que tal fenômeno também afeta a produção de artemídia. Como expressão deste distanciamento, vejamos esta frase do renomado artista e teórico francês Edmond Couchot, publicada no livro Media Art Histories, editado por Oliver Grau: Com as imagens digitais, um modo radicalmente diferente de automatização aparece. Não esqueçamos que as imagens digitais tem duas fundamentais características que as distinguem das mencionadas anteriormente [referindo-se à fotografia e à televisão]: elas são o resultado de um cálculo matemático feito por um computador. Não há mais nenhuma

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relação ou contato direto com a realidade. Assim, os processos de se fazer imagens não são mais físicos (relacionados ao material ou energia), mas virtuais (COUCHOT, 2006, pp. 182-183, tradução da autora).

Para além dos diversos pontos questionáveis desta afirmação, interessa aqui discutir especificamente quando Couchot diz: “os processos de se fazer imagens não são mais físicos (relacionados ao material ou energia), mas virtuais”. Neste ponto, além de equivocadamente associar virtualidade com imaterialidade, ele ignora todas as materialidades existentes em escalas que os sentidos humanos não conseguem perceber. Talvez a partir da inabilidade em transitar entre o universo das materialidades e o universo dos modelos abstratos, desenvolvidos para lidar com materialidades em escalas fora da percepção humana, é que emerja a separação de mundo dos “pensadores” e dos “fazedores”. A colocação de Couchot reflete também a atual situação cultural no trato com a tecnologia, que solicita que simplesmente ignoremos o conteúdo das “caixas-pretas” que nos circundam diariamente, bem como qualquer necessidade de aprendermos enquanto lidamos com elas (FLUSSER, 2008). Além da polarização entre teoria e prática, outras dicotomias permeiam os processos criativos e a produção de artemídia: orgânico e maquínico, analógico e digital, as já levemente mencionadas virtual e atual, material e imaterial, entre outras. Muitas vezes, essas dicotomias acabam engessando as discussões e proposições no campo, principalmente quando estas são acompanhadas por deslumbre ou ignorância em relação à própria história da artemídia. Encarando tais situações, este artigo visa apresentar uma caixa de ferramentas para a entrada no questionamento dessas estruturas pré-estabelecidas. Trata-se de uma tentativa de contribuir para que a produção de artemídia possa responder melhor à ideia de uma engenharia filosófica ou de uma filosofia materializada. Nesta noção fundiriam-se novamente no artista os papeis do “pensador” e do “fazedor”. Para o desafio, a base téorica e metodológica sendo empregada bebe em ideias do Novo Materialismo, técnicas de Estudos Culturais, Cibernética e Arqueologia das Mídias. E, como fio condutor para a discussão foram eleitas as propriedades sensitivas de materiais e dispositivos, apontando para um nexo genealógico destes com proposições artísticas. Para isso, o fenômeno “sentir” (detecção de estímulo) é observado através das materialidades e das operações a ele relacionadas, tais

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como a de regulação de um sistema dinâmico, ou mesmo a ideia de tradução de materialidades. Na produção de artemídia diversos tipos de sensores são frequentemente utilizados nas chamadas “interfaces tangíveis”, como dispositivos de captura de presença e engajamento corporal dos agentes envolvidos. Objetos imbuídos de sensores e atuadores tornam-se abertos para a troca de inputs e outputs com o corpo, complexo gigantesco de sensores e atuadores. E, a partir dessa troca de dados, informação e sentido são criados a partir da experiência. O corpo em interação direta com a máquina é necessário para que a obra aconteça. Observando esta dinâmica, sensores fazem a ponte entre o universo físico – da presença corporal no espaço e de outros estímulos físico-químicos do ambiente – e o universo abstrato dos modelos conceituais, da geração e a atribuição de sentido. Em outras palavras, essa ponte poderia também se referir ao elo entre natureza e cultura. Para embasar essa discussão e refutar perspectivas como a de Couchot, encontramos na noção de “materialidade da comunicação” um ponto de partida precioso para resgatar e privilegiar os aspectos artesanais e o envolvimento corporal com as materialidades, como ferramentas fundamentais para os processos de aprendizagem em artemídia. Expressão promovida por Hans Ulrich Gumbrecht a partir de estímulos recebidos pela produção de Friedrich Kittler, “materialidade da comunicação” diz respeito a “todos aqueles fenômenos e condições que contribuem para a produção de significado, sem serem significados por si mesmos” (2004, p. 8, tradução da autora). Numa perspectiva crítica sobre a construção do conhecimento na cultura ocidental, baseada na preponderância da instância abstrata de conceitos, Gumbrecht quer reaver a ideia de presença para a cultura contemporânea, caracterizando-a como algo sobretudo espacial, antes de temporal. O autor relaciona história das mídias a culturas estéticas relacionadas ao corpo, considerando que “nós não acreditamos mais que um complexo de significados possa manter-se separado de sua medialidade” (2004, p. II, tradução da autora). Esta abordagem tem especial relevância para a artemídia, experiência estética mediada que emerge precisamente da tensão e da oscilação entre “efeitos de presença” e “efeitos de sentido”. A orientação dos processos de criação por esse caminho pode ser um primeiro passo para a superação das dicotomias empobrecedoras que circundam tal meio artístico. Seguindo com a montagem da “caixa de ferramentas”, esse artigo traz primeiramente definições acerca de sensores; depois introduz a Cibernética como

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base epistemológica para observar fenômenos naturais e culturais; e, na sequência, caracteriza e exemplifica a artemídia, pincelando a maneira pela qual os sensores se inserem no contexto da arte, bem como as implicações estéticas de tal inserção. Um aprofundamento da caracterização da artemídia se dá em Processos criativos em artemídia como tradução de materialidades, que complementa e explicita os fundamentos utilizados na proposta de oficina realizada na conferência Besides the Screen Brazil, em Vitória/ES.

Sensores: algumas definições A origem do sensor como dispositivo na História da Cultura se baseia na observação e experimentação com a natureza e com os organismos vivos e, portanto, a história e a genealogia do uso de materiais e dispositivos sensitivos em diferentes áreas do conhecimento é fundamental para se compreender o conceito, a materialidade e as funções/operações agregadas aos sensores em sistemas dinâmicos. Em um manual prático sobre sensores modernos (FRADEN, 2004), os especialistas no assunto conceituam sensores dividindo-os em sensores naturais e aqueles produzidos pelo homem: os sensores naturais, como aqueles encontrados em organismos vivos, normalmente respondem com sinais de caráter eletroquímico; isto é, sua natureza física é baseada no transporte de íons, como em fibras nervosas (FRADEN, 2004, p. 01).

Nos dispositivos sensíveis fabricados pelo homem, por sua vez, informação é também transmitida e processada de forma elétrica – no entanto, através do transporte de elétrons. Sensores que são usados em sistemas artificiais, precisam falar a mesma linguagem que os dispositivos com os quais eles são interfaceados (FRADEN, 2004, p. 01-02).

A partir desses esclarecimentos técnicos específicos, um sensor pode ser entendido como a parte de um sistema que reage a algum tipo de estímulo do ambiente circundante, tais como luz, calor, movimento, e outros tantos fenômenos físicos e/ou químicos. Entre os naturais, pode-se mencionar os criptocromos, um tipo de proteína presente em plantas e animais, sensíveis ao espectro de luz azul. Ao sinalizarem a direção da fonte luminosa, eles mediam o fototropismo das plantas – o movimento de crescimento em direção à luz. Já entre os fabricados pelo homem, podemos citar acelerômetros; sensores de rotação, de umidade,

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de temperatura; sensores ultrassônicos, infravermelhos, capacitivos, entre outros. A variedade é imensa, e estão presentes nos diversos aparelhos eletrônicos que utilizamos cotidianamente. Se compreendermos sensores como inputs, que mensuram e parametrizam a regulação de sistemas, o conceito pode ser discutido em diversos outros contextos e escalas. O fenômeno do Quorum Sensing (QS) é um bom exemplo da escala social microscópica. QS consiste em um sistema de estímulo e resposta entre moléculas autoindutoras e moléculas receptoras, geralmente relacionado à densidade populacional. Muitas espécies de bactérias utilizam QS para coordenar a expressão de genes de acordo com a densidade da população local.1 Os chamados insetos sociais (formigas e abelhas) utilizam-se deste mesmo mecanismo para determinar onde construir o ninho, por exemplo. QS trata-se de um fenômeno de sensoriamento que pode ser entendido como um processo de tomada de decisão em sistema descentralizado, e seus princípios têm sido inclusive muito utilizados em sistemas computacionais.

A Cibernética e as difusas fronteiras entre natureza e cultura Para discutir sensores sob a ótica das diferenças e semelhanças entre sistemas vivos e maquínicos, a Cibernética se apresenta como paradigma científico essencial. Desde as Macy Conferences (1946–1953), os ciberneticistas se debruçam sobre um amplo espectro de assuntos que variam desde estruturas mínimas, matemáticas, abstratas, até as relações humanas e o meio ambiente. Cibernética é uma palavra inventada para definir um novo campo na ciência. Ela combina debaixo de um título o estudo do que no contexto humano é às vezes frouxamente descrito como pensar e na engenharia é conhecido como controle e comunicação. Em outras palavras, Cibernética tenta encontrar os elementos comuns das máquinas automáticas e do sistema nervoso, e desenvolver uma teoria que cobrirá todo o campo do controle e comunicação em organismos vivos (WIENER, 1974, apud FOERSTER, 1995, p. 07, tradução da autora).

Esta definição esclarece por que a Cibernética (e especialmente a Cibernética de Segunda-Ordem)2 desempenha um papel importante na compreensão da 1. Caso haja interesse do leitor sobre o assunto, a palestra How bacteria talk, proferida pela Profa. Bonnie Bassler nas conferências TEDEd é uma introdução excelente. Link disponível em: Acesso em: 28 jul. 2015. 2. Em Cybernetics of Cybernetics: The control of control and the communication of communication, Heinz

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artemídia como expressão transdisciplinar do conhecimento, constituindo-se como base epistemológica essencial neste contexto. Além disso, no ponto de vista do supracitado Gumbrecht, o observador de segunda-ordem redescobriu o corpo e, mais especificamente, os sentidos como parte inerente a qualquer observação do mundo(...) ele levanta a questão de uma possível compatibilidade entre a apropriação do mundo por conceitos (o que eu chamo de “experiência”) e a apropriação do mundo pelos sentidos (que eu devo chamar de “percepção”) (GUMBRECHT, 2004, p. 39, tradução da autora).

Com essa colocação, Gumbrecht nos impulsiona a relacionar que o termo “sentir” (a coleta de dados através dos sentidos do corpo) e a expressão “fazer sentido” (processamento de pensamento) parecem caminhar juntas. E isso confirmam neurocientistas contemporâneos, como Antonio Damasio (1994), George Lakoff e Mark Johnson (1999). E para a produção de artemídia, trata-se justamente da fricção e balanço entre o sentir (aqui expandido também para a coleta de dados do ambiente) e o gerar sentido que se coloca como desafio para qualquer proposição. O historiador e crítico das mídias Friedrich Kittler nos aponta a relação intrínseca entre ambos esses universos no próprio surgimento das mídias. Ele afirma: “Nós não sabíamos nada sobre os nossos sentidos até que as mídias provessem modelos e metáforas” (KITTLER, 1999, p. 34, tradução da autora). E exemplifica: a construção de imagens na televisão corresponde à estrutura da própria retina, que é como um mosaico de bastonetes e cones; os bastonetes permitem a percepção do movimento, enquanto os cones permitem a percepção de cores, e juntos eles demonstram o que é chamado de luminância e crominância na televisão em cores (KITTLER, 1999, p. 36, tradução da autora).

von Foerster abre a publicação distinguindo a Cibernética de Primeira Ordem como “a Cibernética dos sistemas observados” e a de Segunda Ordem como “a Cibernética dos sistemas de observação” (FOERSTER, 1995, p. 1). Ranulph Glanville explica que “a Cibernética de Segunda Ordem (…) foi desenvolvida entre 1968 e 1975 em reconhecimento do poder e das consequências dos estudos cibernéticos sobre circularidade. É a Cibernética quando ela está sujeita às críticas e entendimentos da Cibernética. É a Cibernética em que o papel do observador é apreciado e reconhecido ao invés de velado, como se tornou tradicional na ciência ocidental: por este motivo, é a Cibernética que considera a observação/observar, em vez de sistemas observados” (GLANVILLE, 2001, p. 3).

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Outros autores apontam também a coincidência de modos operacionais entre modelos orgânicos e modelos maquínicos. Valentino Braitenberg, nas notas biológicas dos robôs que ele descreve em Vehicles – Experiments in synthetic Psychology, observa: quando a cooperação de vários inputs nervosos na ativação dos neurônios motores da coluna vertebral foi analisada, três fatos emergiram. Eles se tornaram descobertas fundamentais sobre as propriedades computacionais das sinapses, mesmo antes que técnicas de gravação elétrica de neurônios individuais fossem desenvolvidas (1984, p. 109, tradução da autora).

Estes três fatos constituem-se como as operações fundamentais dos cálculos de proposições – conjunção (AND), disjunção (OR), e negação (NOT) –, e eles explicam as relações funcionais entre “experimentos macroscópicos input-output” e o universo microscópico das propriedades elétricas das membranas das células neurais. Coincidentemente, trata-se dos mesmos elementos lógicos utilizados tanto pelos filósofos gregos na Antiguidade quanto pelos programadores da atualidade. Outro caso interessante a ser mencionado que ilustra as difusas fronteiras entre natureza e cultura é o trabalho do pesquisador e arquiteto Achim Menges, que desenvolve estruturas maquínicas a partir de materiais orgânicos, sem nenhum controle computacional. No projeto HygroScope: Meteorosensitive Morphology (Centre George Pompidou, Paris, 2012), Menges explora um modo de arquitetura responsiva baseada na combinação de compor-tamento inerente ao material e morfogênese computacional. A instabilidade dimensional da madeira em relação ao teor de umidade é empregada para construir uma morfologia arquitetônica responsiva. Suspenso dentro de uma caixa de vidro com umidade controlada, o modelo abre e fecha respondendo às alterações climáticas sem necessidade de qualquer equipamento técnico ou energia. (...) A estrutura material por ela mesma é a máquina (MENGES, 2012, tradução da autora).

Poderiam ser citados muitos outros exemplos de relações entre modelos de compreensão da natureza e modelos maquínicos, culturalmente construídos, inclusive produções contemporâneas de artemídia que usam bactérias ou plantas como interfaces para a geração e/ou manipulação de imagens, sons ou atuadores. No entanto, importante neste ponto é que se perceba que as tradicionais separações entre materialidades orgânicas e inorgânicas, ou mesmo entre fenômenos naturais ou culturais, não se apresentam mais tão demarcadas. E nesse sentido, mesmo

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frente a todas as críticas sofridas, a Cibernética ainda é um dos raros braços da Ciência que se preocupa em fazer a ponte e discutir esses meandros.

Caracterizando a artemídia A artemídia compreende experimentações estéticas mediadas por aparatos técnicos e capazes de gerar outras mídias. Não por coincidência, o campo se desenvolve dentro da Arte Contemporânea imbricada em experimentações e estudos científicos norteados pela interação homem-máquina. Trata-se de uma prática artística que lida com a possibilidade de dois ou mais sistemas permeáveis (seres ou máquinas) se engajarem em interação, e cujas estruturas, no vaivém de feedbacks, podem ser modificadas e atualizadas. Pela perspectiva da Cibernética de Segunda Ordem, interação pode ser definida como “responsividade mútua que pode conduzir à novidade, na qual nenhum participante tem controle formal sobre os procedimentos. Interação ocorre entre os participantes, e não por causa de nenhum deles” (GLANVILLE, 2001, p. 3, tradução da autora). A partir dessa definição, tomemos como princípio que interatividade não é um conceito atrelado apenas à tecnologia digital ou qualquer outra tecnologia empregada. Ela nos ajuda a compreender como e por que os sensores podem ser vistos como elemento-chave para a compreensão das especificidades da artemídia, já que eles tornam permeáveis os objetos colocados em interação. Como apontam diversos historiadores e críticos de arte, a citar Claire Bishop e Frank Popper, no início do século XX emergiram trabalhos e movimentos artísticos que denunciavam a crise da representação no campo da Arte. O objeto de arte passou a ser negligenciado e o processo artístico veio a ser enfatizado no seu lugar. Artistas começaram a criar proposições que demandavam cada vez mais a participação do público para que a experiência estética se efetivasse. Essas iniciativas motivaram inclusive uma revisão dos espaços expositivos. Dentro deste desdobramento histórico e estético dois principais aspectos precisam ser destacados: o engajamento corporal e a transformação do contexto tecnológico, quando a atenção por materiais e dispositivos sensitivos cresce exponencialmente, associando-se a diferentes intenções, como ilustram alguns exemplos a seguir. Em 1942, para a exposição First papers of surrealism, Duchamp propôs a instalação Sixteen Miles of String, também conhecida como His Twine. Como,

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naquele momento, ele também participava da concepção da exposição, sua proposta consistiu em preencher todo o espaço expositivo com cordões, de modo que os visitantes precisassem atravessá-los para fruir o trabalho em si, bem como os outros trabalhos presentes no conjunto da exposição. Naturalmente, existem múltiplas perspectivas para análise deste trabalho, mas a intenção em trazêlo como exemplo é pontuar o início de uma tendência na História da Arte: a participação corporal da audiência no trabalho artístico. Além disso, “o próprio Duchamp também tendeu a enfatizar mais o valor funcional de seus cordões do que seu significado simbólico” (JOHN, 2008, p. 1, tradução da autora). Outro exemplo significativo da tendência à participação corporal é a série de Objetos Relacionais da artista brasileira Lygia Clark, que contribuiu amplamente para a História da Arte no que se nomeou Arte Participativa, especialmente nos anos 1960 e 1970. Para esta série, a artista criou objetos que facilitavam o engajamento das pessoas em situações de troca. Curiosamente, no final de sua carreira, Clark chegou a expressar que se considerava muito mais psicóloga do que artista. Como exemplo contemporâneo, vale a pena olhar para o trabalho Luzes Relacionais (2009-2010), de Ernesto Klar, artista venezuelano radicado nos EUA. Segundo o próprio artista, trata-se de uma citação direta à produção de Lygia Clark, no entanto criada em contexto tecnológico completamente distinto. O trabalho é composto por linhas brancas projetadas no chão, em uma sala escura. Fumaça espalhada pelo espaço atribui uma aparente materialidade para as linhas, que reagem à posição e ao movimento das pessoas na sala. O comportamento do sistema é baseado no rastreamento do movimento das pessoas feito por uma câmera (dispositivo fotossensível) posicionada no teto. A informação capturada é processada e programada para movimentar as linhas projetadas e gerar sons condicionados ao movimento das pessoas. Com regras e elementos muito simples – o aspecto lúdico no trabalho se situa justamente em brincar com a forma e a materialidade aparente das linhas – o artista consegue um engajamento muito natural por parte dos visitantes. Klar propõe um sistema com regras que podem ser aprendidas, ao qual os visitantes podem responder ativamente, em atitude exploratória. Mesmo que ambos proporcionem o engajamento corporal, os contextos tecnológicos distintos desses dois últimos trabalhos nos permitem avaliar que, ao passo que no tipo de trabalho de Ligia Clark são criadas possibilidade de interação por meio dos objetos, no de Ernesto Klar essa interação também acontece com eles.

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Por outro lado, a descoberta e a implementação de materiais e dispositivos sensíveis também se relacionam intimamente com o desejo de automatização. O uso de sais de prata no desenvolvimento da fotografia é o início do processo de automatização da produção de imagens (Kittler, 2010). Com a o desenvolvimento da eletrônica e da computação, sensores atuam na automatização da interação entre máquinas e seres. Na História da Arte, essa intenção é observada já no final dos anos 1930. Na Exposition International du Surréalisme (Paris, 1938), por exemplo, Duchamp havia pensado em instalar “olhos mágicos” de modo que as luzes se acenderiam automaticamente na medida em que o espectador interrompesse um raio invisível ao passar em frente à pintura. O desejo de Duchamp provou-se inexecutável, mas Man Ray adaptou a ideia para o dia da abertura, apagando as luzes e distribuindo lanternas na entrada, de modo que os visitantes poderiam usá-las para verem os trabalhos de arte em exposição (FILIPOVIC, 2009, tradução da autora).

Apesar de não automatizada, a solução encontrada manteve a intenção inicial de Duchamp: os então espectadores se aproximaram mais das obras, engajandose corporalmente no processo de fruição artística. Mais tarde, em 1968, em outro contexto tecnológico, o ciberneticista britânico Gordon Pask apresentou na exposição Cybernetic Serendipity, em Londres, a instalação Colloquy of mobiles (1968). O trabalho consistia em um sistema social computacional, em que máquinas “masculinas” e “femininas” podiam interagir através de elementos como luz, som e mecanismos de rotação. De acordo com a curadora e crítica de arte Margit Rosen, “a forma de comunicação que ele concebeu referia-se evidentemente a uma analogia sexual”. Em detalhes, ela descreve: Após uma fase de inatividade, as fêmeas (feitas de fibra de vidro) começavam a brilhar mais intensamente e os três machos emitiam um raio de luz. Quando o raio de luz acertava o espelho dentro da estrutura do móbile fêmea, através da rotação do espelho, ela tentava desviar o raio de volta em sensores de luz livremente pendurados acima e abaixo do corpo de alumínio do macho (ROSEN, 2014).

O sistema foi programado de forma que “a meta da comunicação era alcançar este momento de satisfação, e os móbiles aprenderam a otimizar seus comportamentos ao ponto em que este estado poderia ser atingido com o mínimo uso de energia possível” (ROSEN, 2014). Além disso, os visitantes da exposição também podiam participar do processo de conversação e aprendizagem, assumindo

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o papel de uma outra “máquina” por meio do uso de lanternas e espelhos. A troca entre as máquinas torna-se possível somente por elas possuírem estruturas sensíveis, seja à luz ou som, que permitiam a entrada de dados nas máquinas, e num segundo momento, eram processados e dirigidos. Esses exemplos pretenderam elucidar como o engajamento corpóreo e a inserção de sensores na mediação maquínica são tópicos preciosos para melhor compreender a natureza do que se tornou possível criar com o desenvolvimento da cultura eletrônico-digital.

Processos criativos em artemídia como tradução de materialidades Quando materiais sensíveis estão associados à eletrônica e processos digitais, as possibilidades criativas dos seres humanos são atualizados. Quando Vilém Flusser (2008) discute sobre a zero-dimensionalidade das mídias digitais, isso significa que esses meios de comunicação nos oferecem a possibilidade de reunir todos as materialidades em um mínimo denominador comum e, no segundo momento, transformá-las em outras materialidades possíveis, transitando entre o mundo abstrato e o mundo concreto. Em outras palavras, esse aspecto das mídias digitais nos leva a problemas de tradução, uma vez que, teoricamente, permitenos traduzir qualquer coisa em qualquer coisa. Considerando as diferentes escalas da matéria, tanto em sistemas vivos quanto em máquinas, sensores são agentes importantes no processo de tradução de materialidades. O próprio Fraden, em sua caracterização técnica dos sensores criados pelo homem, afirma que “nós podemos dizer que um sensor é um tradutor de um valor geralmente não-elétrico em um valor elétrico” (FRADEN, 2004, p. 02, tradução da autora). Importante aqui diferenciar sensor de transdutor. Também para Fraden, um transdutor converte qualquer tipo de energia para outro tipo de energia, enquanto o sensor converte qualquer tipo de energia necessariamente para energia elétrica: “um exemplo de um transdutor é um alto-falante, que converte um sinal elétrico em um campo magnético variável e, subsequentemente, em ondas acústicas. Isto não tem nada a ver com percepção ou sentir/detectar” (FRADEN, 2004, p. 03, tradução da autora). No entanto, se um alto-falante é conectado como input de um amplificador, ele pode funcionar como microfone, tornando-se, então, um sensor acústico. Um caso da História das Mídias que esclarece didaticamente o princípio da tradução de materialidades a partir de elementos sensíveis é o fotofone, inventado

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por Alexander Graham Bell e seu assistente Charles Sumner Tainter, em 1880. Sua origem é baseada na descoberta de novos elementos químicos na natureza, neste caso, o elemento fotossensível selênio. Composto por um receptor e um transmissor, o fotofone foi um aparelho de telecomunicações que permitiu a transmissão de voz em um feixe de luz. O receptor era um espelho parabólico com células de selênio no seu ponto focal.

Ilustração do fotofone. Fonte: Bibliography of Early Optical (Audio)Communications.

Pode-se arriscar que o cerne das criações em artemídia também está baseado na tradução de dados e materialidades o tempo todo. E é com bastante frequência que vemos trabalhos cujas traduções são sem sentido ou não potentes o suficiente para provocar conversas relevantes e contribuir para o surgimento de novos conhecimentos. O humanista italiano Leonardo Bruni foi, provavelmente, um dos primeiros pensadores modernos a escrever um tratado científico sobre a questão da “tradução” no século XV. Bem mais tarde, no século XX, muitos outros teóricos discutiriam o tema, como Croce e Rosenweig, Benjamin (The task of the translator) e Steiner (After Babel). O interesse desses pensadores pelo tema é um sinal de que a importância da tradução vai além do domínio da linguagem, para abranger

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territórios ontológicos e filosóficos. Além disso, não é por acaso que o conceito também é usado em Biologia Molecular e Genética, chamando também de tradução o processo celular pelo qual ribossomos criam proteínas. O amplo espectro de perspectivas sobre a tradução nos leva a compreendê-la como o jogo que acontece no espaço entre uma realidade e outra. Um trabalho relevante sobre esta discussão no âmbito das materialidades e da arte é Gênesis (1999), de Eduardo Kac. O elemento-chave do trabalho é um gene sintético que foi criado por Kac, traduzindo uma frase do livro bíblico do Gênesis em código Morse e convertendo-a em pares de bases de DNA. O gene resultante foi inserido em bactérias que ficavam no espaço expositivo. Por meio da internet, as pessoas podiam ativar uma iluminação ultravioleta nesse lugar, causando mutações biológicas reais no organismo vivo. No final da exposição, a sequência do gene foi reconvertida em texto. Por um lado, esta obra é um exemplo que demonstra explicitamente as possíveis traduções de materialidades e suas implicações, discutindo inclusive questões inerentes à tradução fora do mundo da arte: ambiguidade, ruído, e subjetividade. Enquanto cada “realidade” (ou sistema) tem sua própria estrutura, é absolutamente impossível encontrar correspondências exatas em ambos os universos. Isso também explica as dificuldades na tradução de poesia. No entanto, conforme coloca o filósofo francês Paul Ricoeur (2006), não há critérios absolutos para uma boa tradução, ao passo que também é inegável nosso desejo por traduzir, o que tem movido grande parte do desenvolvimento da cultura. Retomando o campo da artemídia – e considerando-a como um lugar de pensarfazer através do jogo com as traduções de materialidades – é possível descobrir nesta prática a ideia de materialidade da comunicação apontada por Gumbrecht.

Entre sensores e sentidos: brincando com a materialidade de comunicação Há uma grande oferta de sensores e dispositivos eletrônicos no mercado, o que os torna relativamente acessíveis, aumentando o potencial de se tatear o universo tecnológico. No entanto, poucas pessoas dominam tais ferramentas contemporâneas, tampouco as maneiras pelas quais elas podem se informar sobre as especificidades, limitações, e o modo de usá-las expressiva e criticamente. Os primeiros experimentos artísticos com tecnologias eletrônico-digitais foram realizados em centros de pesquisa e tecnologia bastante restritos

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(NAYMARK, 2003). Atualmente, contamos com um contexto de criação completamente diferente, em que uma quantidade significativa de informação sobre eletrônica, programação, sensores e outros dispositivos é extensivamente compartilhada cotidianamente, contribuindo amplamente para uma cultura DIY (do-it-yourself) e suas diversas comunidades. Este é um fator importante, que nos permite experimentar mais despretensiosa e esteticamente com tais materiais, o que num passado não muito distante estava disponível apenas em circuitos muito especializados. Do potencial emancipador da abordagem “mão-na-massa” dos sensores caseiros, ao potencial sustentável do uso de materiais orgânicos como sensores, a cultura DIY é uma outra referência de entrada para repensarmos o fazer-pensar artemídia. Frente ao apelo material dos sensores e considerando que a apreensão da ideia de materialidade da comunicação fica comprometida se discutida desvinculada de práticas associadas, como experiência-piloto para investigar essas relações usando os sensores como mote criativo, foi proposta uma oficina chamada Entre sensores e sentidos: performando a materialidade da comunicação, realizada em Agosto de 2014, durante a conferência Besides the Screen Brazil, em Vitória/ES (Brasil). A principal questão que orientou a proposta foi: como experimentos estéticos com sensores podem contribuir para resgatar uma aproximação artesanal com o fazer artístico ligado às tecnologias digitais, e a partir disso desenvolver proposições educativas? Na ocasião, os participantes divididos em dois grupos foram estimulados a exercitar a criação de propostas estéticas utilizando sensores caseiros, tendo como ponto de partida uma mesma estrutura técnica. O sistema funcional oferecido era composto por um conjunto de cinco sensores reativos à dobra, pressão ou torção, que podiam disparar até cinco arquivos de áudio simultaneamente. Os sensores foram feitos manualmente, utilizando linha e tecido condutivos, fita adesiva e plástico semi-condutivo Velostat, conforme aprendido em um tutorial on-line.3 A escolha por este tipo de sensor deu-se em função de sua praticidade e do tempo reduzido da oficina.

3. O tutorial é oferecido no canal do Youtube de Hannah Perner-Wilson (usuário Plusea) (WILSON, 2009).

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Frame do vídeo-tutorial Sticktape bend sensor in less than 4 minutes. Fonte: WILSON, 2009.

Os sensores, por sua vez, estavam conectados a um microcontrolador (Arduino Lilipad) através de um circuito divisor de tensão, de modo que os sensores atuavam como uma resistência variável. A manipulação do material mudava a sua resistência, alterando proporcionalmente a tensão recebida nas portas de entrada de dados do microcontrolador. Por meio de comunicação sem fio (módulos XBee), os dados eram enviados a um programa (codificado em MaxMSP) rodando num computador. Nele, cada faixa de áudio foi atribuída a um sensor. Assim, o sistema como um todo configurava-se como uma potencial composição sonora, a ser executada em tempo real. A proposta era que os participantes “aplicassem” tal sistema ao corpo, criando relações entre os sensores e os sons. Isto é, os participantes deveriam discutir e criar uma proposta de alocação dos sensores no corpo e/ou espaço, e elaborar conteúdos sonoros para cada um deles. Primeiramente, os participantes foram introduzidos ao sistema funcional, sendo-lhes explicada cada parte da plataforma com a qual eles iriam trabalhar. A proposta fundamentou-se no pressuposto de que o sistema funcional por si só não tem significado algum, e apenas através do engajamento direto com a materialidade dos elementos disponíveis é que os participantes poderiam começar a amadurecer as ideias de como explorar esteticamente as potencialidades da base técnica, como uma linguagem física/material a ser aprendida e articulada.

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Por meio do estímulo do fazer com as próprias mãos, em um contexto coletivo de aprendizagem e troca, o principal ponto da metodologia estruturouse no encorajamento ao trato com as “caixas-pretas” que compunham a estrutura técnica oferecida como ponto de partida. Uma vez que a eletrônica e a programação são campos de saber que lidam com a materialidade das coisas numa escala intangível para os sentidos humanos, esse exercício buscou trazer aos participantes a chance de brincar com o sedutor universo da “magia” tecnológica através de uma perspectiva investigativa. Ou seja, mesmo que não possamos ver a corrente elétrica sendo manipulada dentro das caixas-pretas materializadas em forma de circuitos integrados, por exemplo, ao testarmos diferentes tipos de inputs e outputs, atribuídos através de programas, lidamos indiretamente com a materialidade do universo eletrônico-digital, na escala atômica. Isso tornouse possível em função das abstrações desenvolvidas nos territórios das ciências exatas. Assim, uma perspectiva investigativa consistiria em assumir, por um lado, a impossibilidade de tornar essas “caixas-pretas” transparentes; e, por outro, o aprendizado, construção e partilha do conhecimento a partir de um fazer-pensar/ pensar-fazer indissociáveis, trafegando conscientemente entre a abstração e a concretude do mundo que nos circunda. Embora o plano inicial fosse trabalhar com um sistema funcional preconcebido, a metodologia também buscou oferecer espaço para a criação, dando aos participantes a possiblidade de exercitar a atribuição de significados em relação ao engajamento corporal mediado por dispositivos tecnológicos. Nesse espaço aberto à criatividade, os participantes foram levados a encarar o processo criativo como um lugar de contingências. Partimos do princípio que as decisões técnicas e estéticas seriam tomadas de forma colaborativa conforme os problemas fossem aparecendo. A maioria dos participantes não sabia como reunir tais elementos (sensores, eletrônica, programação, etc.) para criar um sistema reativo e/ou potencialmente interativo, e o exercício serviu como introdução a um universo completamente novo para todos. Um dos grupos desenvolveu um experimento performático baseado na contribuição de cada integrante, tendo como metáfora um organismo vivo. Pensaram os sensores acoplados ao peito de cada um e, juntos, em roda, através de movimentação torácica, performariam um organismo que respira. Os sons reproduzidos pelo sistema seriam ruídos de respiração em diferentes ritmos e tons. O outro grupo desenvolveu a ideia de um corpo ampliado, atribuindo aos sensores sons remissivos a espaços remotos, especificamente espaços da universidade onde

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a oficina foi realizada. Um sensor localizado na barriga, por exemplo, estava relacionado a sons do restaurante universitário. Tomada como uma introdução às potencialidades da artemídia e suas especificidades, a experiência se apresentou como um processo de aprendizagem bastante potente. As propostas geradas nos levaram a pensar e discutir os diferentes modelos de corpo culturalmente construídos: corpo fragmentado, corpo recipiente, corpo expandido, corpo organismo, e assim por diante (GREINER, 2005). Esse tópico refletiu uma parte do repertório, entendimento e experiência que os participantes têm com o próprio corpo. A dinâmica de criação coletiva foi enriquecida por uma atmosfera de colaboração indispensável para a realização do processo de aprendizagem e engajamento das pessoas. Almejando algo como a experiência flow descrita por Csíkszentmihályi (1990), que se baseia no balanceamento entre as habilidades pessoais e os desafios estabelecidos, os participantes foram encorajados não a focar no produto final, mas sim a se concentrarem no processo criativo e de aprendizagem, permanecendo abertos às questões que emergissem das relações com os materiais disponíveis e com os colegas. Desta abordagem brotou uma descoberta interessante: no processo criativo, alterar o paradigma de apenas solucionar problemas para o de descobri-los pode ser uma ferramenta para o aprimoramento do modo pelo qual as pessoas se relacionam com o conhecimento de uma forma geral. Experimentos futuros precisariam de prazos mais longos, de modo a esmiuçar mais profundamente os temas que surgissem em cada etapa do processo de realização da proposta, em especial as complexas relações entre os aspectos técnicos e conceituais próprios da artemídia. Certamente sempre haverá problemas com limitações físicas do mundo concreto para serem solucionados, e o desafio se baseia justamente em encontrar soluções possíveis que mantenham a potência e a relevância da discussão que inicialmente impulsionou o trabalho. Criar no âmbito da artemídia implica lidar diretamente com a materialidade da comunicação, ou seja, buscar a sintonia fina entre o universo abstrato das ideias e o universo concreto dos materiais.

Considerações finais Este artigo é uma formalização preliminar de como o foco em “sensores” contribui para uma compreensão da influência mútua e interdependência entre os aspectos estéticos e técnicos da artemídia. Entender a materialidade e a

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medialidade de sistemas interativos é essencial para que sejam desenvolvidas proposições mais maduras neste campo, em que não deveria mais haver separação entre o pensar e o fazer. Uma vez que fomos social e historicamente treinados a fazer tal separação, o processo criativo em artemídia é um exercício na contracorrente desta tendência, que assume o aspecto transdisciplinar do conhecimento para que sua construção e compartilhamento possam se efetivar. Esse seria um dos principais argumentos a favor da implementação desta abordagem no âmbito educativo formal e informal, em diversas instâncias, desde a educação elementar até o ensino especializado em artes. Tal prática, a ser complementada e reforçada por outras iniciativas da cultura DIY, merece atenção especial pois traz uma chance concreta de alteração de paradigma na cena criativa, e contribui potencialmente para transformar o “interator(a)” da História da Arte em um “realizador(a)”, capaz de disparar outras interações. Para os já realizadores, a discussão aqui proposta se coloca como um início de interlocução para a superação das dicotomias empobrecedoras que permeiam o campo. Por mais óbvias que estas questões possam parecer, elas precisam ser constantemente retomadas em debates entre artistas, críticos, teóricos e entusiastas da artemídia, para que possa ser preparado um terreno fértil para essa produção, onde os novos criadores sejam alimentados por este potencial novo paradigma e possam buscar suas respectivas pulsões criativas viscerais, que sustentem a necessidade de comunicação. Agradecimentos ao Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) por financiar esta pesquisa em andamento; ao Prof. Dr. Wolfgang Schäffner, orientador do trabalho; e aos organizadores e participantes da oficina no Besides the Screen Brazil/Telas à Parte, em Vitória/ES.

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mulheres continentais: performance de imagens na invenção de si monica toledo silva

Cada lugar é o mundo. Milton Santos

Para Leandro Neves Cardim, o corpo subjetivo é o corpo vivido (2009, p. 42). Essa percepção do corpo como expressão física do tempo vivido nos permite apreendê-lo em sua visualidade movente sempre particular, resultante de suas ações e subjetivações. O filósofo Andrea Bonomini complementa esse entendimento do corpo afirmando que o prestígio do presente só se dá pelo conteúdo latente de passado e de futuro e de alhures que ele esconde. O ser de latência tem uma multiplicidade que nasce na espessura de uma temporalidade, de uma história, e na disponibilidade para pluralidade de perspectivas (2004, p. 64).

Lidar simultaneamente com as especificidades e pluralidades de cada corpo no contexto audiovisual (da produção de conteúdo sonoro e imagético) e no ambiente instalativo (que permite pensar obras videográficas desconectadas de telas ou suportes normatizados de exibição, em acordo com a proposta da conferência Besides the Screen) é também vivenciar e performar as imagens dos outros. As noções formais de registro (como documento), de permanência (como fixidez) e de discurso (como unidade) são inadequadas às ambiguidades imanentes tanto do objeto desta obra instalativa (o corpo) quanto da linguagem explorada (videoperformances em projeções sobrepostas e simultâneas). O projeto Mulheres continentais nasce do desejo de mapear corpos que habitam um lugar ao qual não se pertence. A proposta de uma instalação com videoprojeções simultâneas tem início em 2014, com o intuito de retratar quatro

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artistas brasileiras de origens distintas: indígena, africana, latina e oriental. São personagens que se reinventaram para habitar esse outro lugar. Que imagens e falas criam para si mesmas? Como podemos reproduzir suas histórias fragmentadas e suas memórias pessoais? O primeiro resultado desse projeto são 14 vídeos que exibem cenas das vidas dessas personagens. Os vídeos foram apresentados de diferentes maneiras em cada uma das etapas da conferência Besides the Screen Brazil 2014. Em Vitória, trechos foram mostrados durante a minha fala no auditório da UFES. Em São Paulo, a obra integrou a ocupação artística do Cine Art Palácio, sala de cinema abandonada localizada no centro da cidade. Nessa ocasião, as imagens foram apropriadas e manipuladas por outros artistas, que as projetaram sobrepostas ou fora da tela, abrindo diversas possibilidades de exibição da obra. Discutir identidade, lugar, memória e pertencimento hoje em dia é entrar no terreno fértil da mestiçagem, do contágio, impossível de ser categorizado ou compreendido com nomenclaturas prévias ou pensamentos dualistas. Este lugar pantanoso é necessariamente o da reinvenção de si; as vivências dizem respeito à criação de modos de pensar e dar forma para conteúdos pessoais na constante situação de sentir-se estrangeira. A cada novo lugar um novo corpo: uma nova realidade se impõe e demanda novo movimento. A pertinência que este projeto traz se dá pela manipulação de conteúdos pessoais, mais afetivos que históricos, mais imaginados que familiarizados. A videoinstalação é o formato que mais se aproxima do exercício de performar nossas próprias memórias e dar sentido a um sentimento contemporâneo que exclui narrativas simples para mapear vivências e sentimentos em trânsito. Os vídeos realizados ao longo de 2014 são resultados de conversas e experimentos de câmera, de gestos, imagens e histórias. Cada uma das artistas convidadas (três performers e uma cineasta) contribuiu com a experiência oriunda de seus próprios trabalhos nessa procura por formas narrativas capazes de representar acontecimentos, desejos, memórias e impressões. O processo visa resultar num conjunto de vivências projetadas simultaneamente num espaço a ser manipulado a cada evento, de acordo com suas respectivas possibilidades e dimensões. Filmar a memória do outro, o corpo do outro, e criar uma montagem dinâmica que dialoga e interage com outras montagens de outros corpos e de outras memórias. Esse desafio compõe a instalação das Mulheres continentais. A relação corpo-memória-tela se dá sempre de maneira performática, porque cada ambiente instalativo impõe suas condições físicas e espaciais, em

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dimensões sempre variáveis. As projeções interagem também de formas distintas entre si, podendo ser totalmente ou parcialmente sobrepostas, invadidas uma pela outra, expandidas, deformadas (alterando-se as configurações do projetor) ou minimizadas (projetadas em dimensões mínimas). O posicionamento do projetor intervém também no resultado visual: ele pode operar atrás de uma porta, direcionado para o teto, para o chão, para janelas, para fora. Cada espaço físico portanto interfere no diálogo das projeções e determina parcialmente suas possíveis narrativas. O áudio, assim como a imagem, também produz a cada instalação uma linguagem única, de acordo com o tempo em que cada um dos vídeos é acionado (o momento em que se inicia), visto que ele é invasivo e “ocupa o espaço” das outras projeções. Em outras palavras, o áudio de cada vídeo se expande no ambiente instalativo e deixa de pertencer apenas às imagens de sua montagem original, passando a “narrar” de modo intrusivo os acontecimentos de outros vídeos. A composição do áudio em cada videoperformance é bastante variada. Ele é quase sempre diegético e composto pelos ruídos da captação – sons ao acaso. Há vídeos mudos, oriundos de fotomontagens. E há vídeos com montagem sonora de áudios captados em outro tempo e lugar, que constituem parte do acervo da personagem e representam parte da pesquisa que originou a construção daquela performance. Portanto, espaços e tempos distintos de cada videoperformance interagem e compõem uma paisagem sempre nova no ambiente instalativo, por sua vez também agente desta sempre nova narrativa. Esta linguagem audiovisual é a que melhor representa o entendimento do corpo como estado de passagem de memórias e emoções sempre diversas e impassíveis de um registro documental formal, pré definido, pré configurado, roteirizado, planejado. Memórias vêm e vão, se alimentam de afeto, de história, de imaginação, de dor, e precisam ser sempre reinventadas e alimentadas para existir. Estas informações no corpo das personagens-performers se dá em sequências de gestos não dirigidos por mim e nem planejados previamente por elas, compondo paisagens visuais em sequências de movimentos que trazem estas memórias do corpo que elas atualizam para reconfigurar suas identidades em uma cultura estrangeira. Esta forma, não codificada, não mapeada, mostra-se a mais eficaz e próxima de suas realidades e corpos vivos diante da câmera. A montagem de cada videoperformance, de maneira análoga, configurou-se a partir das minhas memórias do registro das performances – de como as personagens

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agiram e se sentiram durante a captura da imagem, o que disseram, o que revelaram e o que ocultaram. O ritmo, a duração,1 assim como os enquadramentos, agiram como representações audiovisuais daquele estado daquele corpo naquele momento e lugar. Dessa forma a linguagem de cada videoperformance é composta por um jogo de visibilidades (o que se deixou revelar), invisibilidades (silêncios e vazios na imagem) e possibilidades de entendimento naquela relação de gestos, objetos pessoais presentes em cena, e memórias vivas do corpo. Ao se projetar um vídeo sobre o outro, se desfaz esta construção dialógica singular de cada uma das obras para se construir outra, em conjunto, que no entanto reafirma o mesmo: o corpo como lugar infinito de resgate e invenção de imagens, de conteúdos passados e presentes, aderente ao momento e sensível aos estímulos audiovisuais de cada captura (a câmera; o microfone; a rua; os objetos; os ruídos; a minha presença inquisitiva; etc). A simultaneidade das projeções assim confirma a existência do corpo como situação, a fragilidade da imagem como registro total de um estado, e a impossibilidade de alcance de uma memória como algo localizado num contexto temporal único, e condiz com a realidade do corpo, da imagem e da memória, que revelam suas forças na existência do instante. Duas das personagens iniciais de Mulheres continentais expuseram conteúdos criativos que fugiram totalmente das minhas expectativas e planejamento inicial. Luana, descendente indígena, não trouxe qualquer adereço ou referência estética de sua origem, e sim uma vestimenta portuguesa, coberta de negro da cabeça aos pés – fez de si uma poderosa colonizadora com figurino que a cobria até a cabeça – espécie de monstruosidade agressora que aporta em terras virgens. Fez-se do imaginário coletivo, da dor imaginada, do ressentimento no seu estado presente, para performar na obra. Joyce, de origem africana, desconhece qualquer origem (país, língua, nomes de parentes mais distantes) e não pode senão imaginar uma sensação de perda e representar com as mãos na terra um vago desejo de saber, esconder, procurar, achar, uma espécie de tesouro ou preciosidade perdida. Paula Sibilia (2008) aponta para enunciados habitados pela alteridade em narrativas que tecem e realizam o “eu” – eu como unidade ilusória construída na linguagem, a partir do fluxo caótico de cada experiência. E questiona: Extinguese o velho eu unificador e supostamente estável, ou trata-se de um paroxismo de identidades efêmeras, todas autênticas e falsas e visíveis? Ao provocar a ideia de 1. A duração para Bergson é a continuidade do que não é mais (passado) no que é (presente), atenta à experiência concreta do mundo percebido (apud CARDIM, 2009, p. 62).

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sujeito, enunciador de narrativa não unívoca nem linear, Sibilia nos lembra que a matéria que nos constitui enquanto tais (sujeitos) é moldada no contexto e a partir de nossa experiência no mundo, trocas, percepções, adaptações. Portanto identidade e cultura são termos que ganham formas fluidas ou deixam de existir em seus sentidos originários — delimitadores e esclarecedores. Sibilia acrescenta que todo relato se insere em um denso tecido intertextual entremeado com outros textos e vozes, e que as técnicas de criação de si constituem-se em um relato cotidiano que organiza a realidade. As narrativas que tecem e realizam o eu constituem-se de linguagens, no contexto da performance, de sequências de gestos e imagens que excluem tanto o depoimento quanto qualquer discurso linear. Com o objetivo de abordar o universo de mulheres brasileiras artistas descendentes de migrantes, imigrantes ou de cultura distinta e formadora da cultura brasileira contemporânea, a partir de imagens produzidas por elas ou criadas para a obra, a proposta da obra se dá em função de não haver relatos claros, sequenciais, ou narrativas únicas, mesmo numa mesma personagem (que pode ter vários vídeos de vários momentos acerca de uma mesma temática escolhida). As questões abordadas são relacionadas a estados ou condições, percepções e vivências, de modo que não remetem ao tempo cronológico nem constituem sequências de acontecimentos determinados. A proposta instalativa, portanto, ao permitir a exibição de telas simultâneas, dialoga com estas realidades e condições que atravessam o tempo e o espaço e permanecem assim – como existências no tempo e espaço presentes. Um passado não familiar conhecido por elas apenas por histórias contadas ou experienciado em parte em outro lugar altera seus modos de perceber e agir no cotidiano; como elas atualizam esta condição vivida ou imaginada em gestos, e como habitam e se configuram numa identidade híbrida em outro lugar? O que cria uma percepção de pertencimento? Objetos, desejos, experiências? A linguagem da videoperformance dialoga com narrativas possíveis para invisibilidades de cada corpo – todo material sensível inconsciente ou não representado em gestos –, pois independe de uma construção prévia de discurso, roteiro, construção de personagem ou qualquer tipo de mapeamento audiovisual que anteceda a captura. Criar visibilidades para estas “pessoas-continentes”, de identidades móveis e aderentes, torna-se ato de performance também do realizador e do visitante da instalação, que interage com as projeções criando suas próprias narrativas de acordo com o tempo que lhes dedica seu olhar e o caminho que escolhe percorrer entre as imagens.

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Em Outros 500... (1994) Lucy Dias e Roberto Gambini exaltam a importância do reconhecimento da subjetividade e de se abrir espaços para uma emoção que também é anímica e que se passa em nossos subterrâneos. A mulher na formação do Brasil é totalmente invisível – da índia nada consta e quase nada sobra: suas crenças, seus gestos, sua língua. A africana nascida aqui já perdeu também seus hábitos, valores e referências e a europeia veio mais tarde ao encontro do marido desbravador que ilustra a conquista masculina do país. Assim há todo um vácuo, um escuro, um silêncio, que habita a brasileira – assim como sob outras circunstâncias e particularidades outras mulheres de outras nações. Essa vivência permeada de invisibilidades, de abusos de muitas espécies ainda muito presentes no cotidiano, a condição ainda muitas vezes de submissão, fez com que a questão da feminilidade – desse feminino resistente à brutalidade, que vem de uma grande sombra com uma grande delicadeza – fez com que o recorte desta obra se abrangesse a artistas de toda nacionalidade mas se restringisse ao corpo feminino. Identidades se deslocam em tempos, lugares, histórias, tradições, e distinções culturais tornam-se reduzidas; nas relações de troca novas possibilidades identitárias tomam corpo: geografias se localizam em espaços e tempos simbólicos, e o tempo da memória, que tem uma duração sempre pessoal, é determinante da duração das cenas – de ações, de respiros, de vazios. O vídeo como geografia corpórea, espaço de presenças do corpo, o vídeo como expressão de anatomias em movimento, é o recurso audiovisual mais condizente com a proposta desta obra. Mais que isso, revelou-se o único possível. As percepções de imagem de si, a imagem de si como outro; a sensação de (i)mobilidade; a ação de reinventar-se; a reinvenção também do espaço; o silêncio; a escuta: estas são as condições que permeiam o pensamento da montagem dos vídeos e a abordagem das personagens – pois não há perguntas exatas a serem feitas e sim uma observação minha consentida por elas de seu espaço e sua vida. A partir de inquietações e ideias propostas por mim (que me sinto estrangeira em qualquer lugar), elas trazem algumas questões pessoais e assim pensamos juntas em imagens e cenas possíveis. A receptividade foi sempre boa e o retorno muito irregular. Cada corpo uma história. A primeira personagem (Luana) desenvolveu sequências de gestos para a câmera, em continuidade com um projeto de performance que já tinha em andamento (Encarnados, com dupla residência em Lisboa). Algumas semanas de convívio intenso, durante as quais eu dirigi a cena e operei a câmera enquanto ela performava, resultaram em horas de imagem captada para quatro

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videoperformances. A coreografia foi criada por mim na edição; o tema é o imaginário traumático da invasão e violência portuguesa no Brasil indígena (sua ascendência). A segunda (Erika) produziu quatro videoperformances nas quais relata e atua, demonstrando os gestos japoneses empregados no uso do kimono e na cerimônia do chá – ações que já pesquisa faz anos. Já a terceira (Joyce) não tinha qualquer vivência, prática, pensamento ou imagem sobre a história de sua ascendência africana. Diferente das duas anteriores, que são artistas performers, ela é cineasta. Depois de meses, conseguimos produzir apenas um vídeo, com uma única cena, que representa uma tentativa de busca por algo sagrado na terra. Simone, a quarta personagem, estava no México. Ela trabalhou comigo à distância, relatando por meio de materiais enviados a mim (trechos de vídeos e fotografias autorais) a sua experiência de viver lá como estrangeira. Os objetos trabalhados são a música brasileira e um tecido que adquire utilidades variadas ao longo do tempo, objeto-performance de afeto. Fabiana Britto é uma das muitas pesquisadoras do corpo que propõe o seu entendimento como lugar de trânsito das informações biológicas e culturais, abrigando “tempos diversos e atuando como mediador dessa simultaneidade” (BRITTO, 2008, p. 29). Além de sua própria configuração, cada corpo oferece condições particulares, com suas heranças para cumprir ajustes adequatórios, de modo que sua história “registra a mudança de aptidão de comunicar como é/ era o meio que o produziu” (ibid.). Ou seja, Britto apresenta a noção de permanência no sentido de continuidade dos processos de transformação - e não associada à estabilidade e conservação. O sentido transitório da noção de identidade é associado ao caráter residual de trocas (de formas artísticas hibridizadas na performance e conteúdos do corpo), que permitem assim pensar a história de um sistema artístico como processo contínuo de evolução. É neste complexo identidade residual-(im)permanênciaajustes adequatórios que a linguagem da videoperformance se revela como a mais fiel à representação das histórias móveis das personagens de Mulheres continentais. A pregnância do tema continental e do feminino nestes entremeios da vida pública e pessoal, que não precisa ser relatada na forma de um discurso formal e que se faz presente na delicadeza e no silêncio, na singularidade de gestos e histórias passadas e imaginadas, é fator decisivo para o entendimento das vivências continentais, dando uma dimensão global e coerente com formas de viver o contemporâneo - a sensação comum de estar em lugar nenhum ou em lugar qualquer. Por isso a questão da territorialidade, além da identidade, se aplica

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aqui como espaço latente de potência criativa. Representar vivências, soluções pessoais no contexto de produção autoral, perceber conteúdos afetivos que se despregam do tempo e do lugar, recriar conteúdos pessoais e pensar em formas possíveis de diálogo e captação de imagens e sons revela-se como uma obra de performance tanto da vida das personagens como da minha, estrangeira em qualquer lugar. Milton Santos esclarece que cada lugar é um sistema espacial e assim o que está diante de nós é sempre uma paisagem e um espaço. Nesse processo podemos “enfrentar o entendimento do mundo” (1994, p. 25) e “precaver-nos de pensar o lugar sem o mundo” (ibid., p. 85). O geógrafo sugere o entendimento do espaço como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações, que “revificam coisas e as transformam” (ibid., p. 103). Nesse sentido, em dois vídeos da série Mulheres continentais, a personagem Simone apresenta a transformação de uma toalha de mesa levada de seu restaurante predileto no Brasil em um vestido (em vídeo que registra o processo de costura e transformação do objeto, da mesa ao corpo) e a sequência de atribuições desse mesmo objeto até tornarse um vestido (toalha para piquenique, varal de exposição, manta para sofá) em uma fotomontagem em movimento. Assim, as ações não se dão apenas conformes aos fins, mas conformes aos meios, isto é, aos objetos, conforme Santos. E nesse processo o espaço representa uma união dialética de fixos e de fluxos, um conjunto contraditório de configuração territorial e de relações, e formado por um sistema de objetos e um sistema de ações (ibid., p. 105). Entre os vídeos das Mulheres continentais, há dois em que a personagem Erika realiza a cerimônia do chá, ritual japonês de grande tradição; ela o faz com uma cumbuca indígena. E explica que ela é brasileira e que os utensílios indígenas são parte de seu cotidiano e objetos de seu afeto, e que portanto devem ser integrados à cerimônia do chá, que realiza antagonicamente aos preceitos milenares passados a gerações de mulheres, com a minúcia e detalhamento da sequência fixa de gestos indispensáveis, lentamente executados com precisão nipônica, envolvendo outros utensílios japoneses, incluindo um lenço da avó que ela usa para cobrir o colo sobre o kimono. Da mesma maneira, ao participar do 1o Encontro Internacional de Cerimônia do Chá, na Islândia, em Junho de 2014, a performer usou na cerimônia um turbante africano, que também serviu como toalha, e uma moringa, peça genuína dos interiores do Brasil. Durante a apresentação desse trabalho no seminário Corpocidade (Escola de Arquitetura da UFBA, 2014), os participantes do grupo de estudos “Subjetividade,

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corpo e arte” trouxeram questionamentos que avançam essas discussões em outras direções possíveis. Por exemplo, a proposta de um “habitar expandido e situado”, que me provoca a pensar o lugar dessas personagens continentais como “deslocado” do espaço físico onde se encontram e mais próximo de um estado afetivo, vivido, imaginado. Habitar como ocupar não só com o corpo mas também no desejo e na memória. Outro pensamento: “negociar enunciados para infiltrar”. Em contexto diverso, essa ideia claramente me instiga para as Mulheres continentais, já que eu própria performo um olhar e um gesto (de abordá-las; de filmá-las; de editá-las; de dar forma e sentido aos conteúdos que trazem), negociando enunciados e efetivamente me infiltrando. O fato de não haver roteiro prévio faz com que eu dirija a cena – ainda que elas não estejam atuando como atrizes e sim representando a si próprias – e passe a ser parte do material que se propõem a mostrar e dividir. Outra provocação: “dar visibilidade, respeitando o invisível”. Como relatar? Há um relato? Como narrar? É preciso narrar? Quem narra: eu (agente perceptora, diretora, montadora, criadora) ou a personagem? Qual é o lugar da enunciação? Ela pode ser móvel ou oscilar entre o lugar de um e outro? E como tratar tudo isso no âmbito do invisível – ou indizível? Algo precisa ser revelado na imagem? Ou esclarecido – e pra quem, para a personagem ou para o público? Além destas questões, está ainda a da invisibilidade. Como respeitá-la e dar-lhe forma? Novamente, a opção pelo formato videoinstalativo tem demonstrado ser a melhor opção de tratamento para este conteúdo vivo de corpos continentais. O fato de os estudos de gênero e as teorias feministas não serem abordados neste artigo não significa que sejam secundários. A opção por artistas mulheres pode ser ampliada a outros corpos silenciados, ampliando também a noção do feminino, o que traz discussões potentes sobre performatividade, tal qual apresentadas por teóricas como Diane Taylor e Judith Butler. Percepções de identidade e reinvenção de si passam, da mesma maneira, por invisibilidades, incomunicações, sentidos subliminares e delicadezas manifestas nas muitas formas sensíveis que estas vivências continentais podem trazer enquanto espaços abertos às trocas e ações destes corpos que não conhecem fronteiras. A proposta inicial de Mulheres continentais foi restrita a artistas brasileiras cuja trajetória incluía outra cultura, uma origem familiar ou um histórico social distinto do lugar onde vivem, e que se apropriavam dessas diferenças (entendidas por mim como condições organizadoras de novos trajetos, adaptações, com deslocamentos das noções de identidade, território e pertencimento) em suas obras autorais,

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nas quais praticam experimentos de linguagens distintas da performance (visual, cênica, sonora), por sua vez recriados por mim para essa obra videoinstalativa. No entanto, ao longo de 2014, me deparei com a seguinte situação: por um lado, o próprio Brasil mostra-se estrangeiro de si mesmo; e por outro, qualquer país na cena contemporânea, com raras exceções, existe também sob as mesmas condições de nomadismo, trânsito e miscigenação, transbordando assim a própria percepção de realidade, das fronteiras e da representação de si. Dessa forma, a continuação desse projeto estende-se a artistas também estrangeiras, ampliando a condição da nacionalidade para a de territorialidade. A técnica de abordagem pessoal (de observação e conversa sem perguntas específicas) mostrou-se efetiva, sempre em movimento e num estado de significância latente que corporifica muitas das questões contemporâneas que tento trazer para esta obra – territorialidade; identidade; narratividade; pertencimento. Dessa forma, o projeto continua em andamento em 2015, buscando personagens de outras cidades (Los Angeles, Chicago e Johannesburg) que trarão novas soluções gestuais e entendimentos de lugar, imagens e vivências. As questões epistemológicas em torno de Mulheres continentais revelam impulsos criativos e tornam-se combustível para muitas formas estéticas e narrativas possíveis no contexto audiovisual. O recurso da sobreposição de imagens foi muito bem sucedido na ocasião do evento no Cine Art Palácio, sugerindo um escape ou uma recusa do mapeamento de situações, memórias ou sentimentos, e a impossibilidade de fazê-lo pelas próprias personagens. Ao mesmo tempo, percebo essas cenas sobrepostas como a representação de um transbordamento de realidades múltiplas e identidades instáveis, portanto fora de qualquer formato de tela possível. Há que se ultrapassar a brasilidade, a feminilidade, a identidade, a cultura, o território, a fronteira, para chegar a esses estados vivos, às práticas constituídas pelos sujeitos que habitam e agem no tempo presente.

Referências BONOMINI, Andrea. Fenomenologia e estruturalismo. São Paulo: Perspectiva, 2004. BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história contemporânea. Belo Horizonte: FID, 2008. CARDIM, Leandro Neves. Corpo. São Paulo: Editora Globo, 2009.

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GAMBINI, Roberto; DIAS, Lucy. Outros 500: uma conversa sobre a alma brasileira. São Paulo: Senac, 1999. GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. SANTOS, Milton. Técnica, espaço e tempo. São Paulo: EDUSP, 1994. SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

cartografia performativa stephen connoly tradução marcus bastos

Este é um ensaio curto que pretende refletir sobre as estratégias de visualizar processos sociais produzindo paisagens, escrito da perspectiva de um realizador. Essa necessidade surgiu da insatisfação com a maneira como a estrutura sujeito/ objeto na representação convencional externaliza paradigmas dramáticos e sugere um olhar que modeliza o visual na imagem em movimento em termos de uma assemblage ator-rede de elementos relacionados.

Biblioteca do British Museum

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A foto na página anterior é uma cena de um vídeo curto chamado the reading room (2002). Ele mostra a antiga biblioteca do British Museum, familiar a Marx e Trotsky, atualmente um ponto focal do museu, que recebe milhares de visitantes por ano. O vídeo consiste de uma única tomada em timelapse – com fotos capturadas a cada 10 segundos durante um dia de trabalho, de 09h às 17h – exposta em um rolo de filme 16mm de 30 metros. No vídeo finalizado, há um texto sobreposto que identifica o lugar, explora algumas das escolhas feitas na montagem do vídeo, e termina sugerindo que os recursos da biblioteca podem ser acessados on-line – então por que visitá-la? Esta conclusão é desmentida pela imagem – muitos visitantes são vistos explorando o lugar. A posição elevada da câmera revela na imagem o plano circular da sala de leitura, mostrando o arranjo radical das mesas de leitura e as camadas concêntricas das prateleiras em torno de um estrado suspenso no centro da sala. Do ponto de vista do estrado, o superintendente da sala de leitura tinha capacidade de inspecionar o espaço inteiro; leitores e livros. Esta biblioteca ecoa o esquema espacial do panóptico, o projeto de Bentham para uma unidade ideal de encarceramento, mais recentemente citada por Foucault como um modelo de representação do funcionamento do poder coercitivo no campo social. Esse panóptico é, portanto, um diagrama. Para citar Deleuze, falando de Foucault: “o diagrama não é mais um arquivo auditivo ou visual mas um mapa, uma cartografia que coexiste com o campo social todo” (DELEUZE, 2006, p. 36). Todavia, o modelo de descrição operacional neste trabalho posiciona e implica uma distinção entre uma visão subjetiva e um objeto representado. Essa capacidade de posicionamento exime o sujeito observador de participação no campo social, no diagrama da representação. Essa distinção e separação se apóia em uma determinação de 500 anos de idade da filosofia cartesiana, entre sujeito como testemunha, e mundo como sua própria causa. As criticas desse sistema de representação têm acontecido por muitos anos e de várias perspectivas. O regime escópico, subordinando-se ao ocularismo como produtor das relações espaciais da nação estado, tem sido central para a constituição do capitalismo da modernidade. A cartografia, como ferramenta desse regime escópico, reflete um conteúdo ao mesmo tempo em que o constitui (WARF & ARIAS, 2008, p. 9). Os geógrafos contemporâneos reposicionaram o espaço como relacional, em rede; congruente com um mundo rico em informações, globalizado, em

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que as certezas sobre espacialidade foram superadas pela supressão do temporal na interação entre pessoas e espaço. Essa perspectiva relacional enfatiza a conectividade dos processos operativos na paisagem, em vez de se amparar naquilo que se encontra visualmente aparente. Trata-se de uma ênfase alinhada com a teoria ator-rede, por evitar um foco na essência, desmontando hierarquias entre sujeito e objeto e inscrevendo agenciamento ou o status de actante em ambos. Atores humanos e materiais contribuem para o mosaico de práticas sociais. A abordagem relacional da imagem em movimento pode engajar-se com uma cartografia implícita pelo diagrama foucaultiano? Ou – como é possível uma noção do cartográfico ser sustentada e todavia modificada para congruência com um paradigma relacional? Este é o desafio do projeto para filme chamado Redlining Detroit1, apresentado de forma embrionária no Besides the Screen Brazil 2014.

Na sinopse descritiva, Redlining Detroit (imagem) é um filme sobre paisagem e dinheiro. Ele examina o papel das finanças na formatação dos aspectos materiais do território nesta cidade. O filme adota o voiceover, citando fontes de notícia, 1

É difícil traduzir Redlining, por isso o termo será mantido em inglês durante todo o capítulo. O conceito se refere à prática da indústria imobiliária de demarcar com linhas vermelhas áreas de uma cidade que serão alvo de processos de desinvestimento deliberado, resultando em sua deterioração. Em Unjust Geographies, Edward Sonja amplia o conceito para além do escopo das cidades, quando afirma que o “Terceiro Mundo, ou a periferia global, neste sentido, é semelhante a uma zona demarcada numa cidade, uma área de desinvestimento e superexploração deliberados. Como o redlining urbano, o redlining global não é necessariamente o produto de capitalistas avarentos conspirando para drenar a riqueza de certas áreas ao desenhar uma linha vermelha proibitiva a seu redor. Zonas demarcadas emergem primariamente de operações de mercado normais, cotidianas, e da busca competitiva por lucros máximos” (n.t.).

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documentos e diários, para revelar as múltiplas perspectivas sobre como o dólar posiciona as pessoas no espaço. O filme toma a forma visual de um re-mapeamento performativo da cidade. A cartografia é evidente na busca visual da “linha vermelha” traçada pelos vagões do circular de Detroit conforme ele segue sua rota ao redor do centro da cidade. A câmera, embutida em uma camionete, segue o trem suspenso das ruas abaixo; imperfeitamente, e sujeita às contigências do trânsito e das poucas pessoas que circulam pela cidade. O público do filme é convidado a experimentar a cidade como num passeio de parque de diversões, com uma trama intrincada de imagens deslizando pela tela funcionando como uma metáfora dos relacionamentos complexos explorados no voiceover. O isolamento de setores da cidade leva à prática de reter serviços financeiros em certas áreas residenciais. Originalmente ele denotava o traçar num mapa de uma linha vermelha em volta de vizinhanças condenadas a oferecer segurança financeira insuficiente para Planos de Financiamento Federais, uma política cujo objetivo era ajudar as pessoas a comprar casas próprias através de subsídios ao mercado imobiliário. A implicação desta projeção de indícios de risco financeiro era negar às comunidades urbanas, em sucessivas gerações, acesso à casa própria, limitando substancialmente a capacidade de prover riqueza. Essa pobreza relativa teve um efeito difuso nas condições materiais da paisagem de cidades do interior dos Estados Unidos. A devastação de áreas residenciais no âmbito dos limites de Detroit é uma das manifestações mais extremas deste fenômeno social complexo, produzido ainda que evitável. Apesar do isolamento imobiliário ter se tornado ilegal nos anos 1970, as manifestações mais recentes de financiamento sub-faturado anteriores à crise financeira de 2008 têm sido chamada de “isolamento reverso”, enfatizando a continuidade do aspecto discriminatório implícito na prática. Levantar capital em cima de propriedades com pouca probabilidade de sustentar seu valor e vender a dívida tem beneficiado instituições financeiras. Fazer empréstimos a residentes com pouca chance de completar os requerimentos para pagamento a partir de empréstimos de longo termo tem criado populações sem teto e despovoado comunidades pobres, gerando licenciados incapazes de quitar seus débitos. Redlining Detroit transforma essas paisagens em representações que são produto de uma mistura de processos, tornando claro seu relacionamento com as restrições dos mercados e poderes financeiros. A base cartográfica desses relacionamentos

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é traduzida em uma jornada rumo ao lugar deste poder, no distrito financeiro no centro da cidade. O diagrama do campo social é apresentado através do mapeamento desse relacionamento em camadas da imagem. A imagem se torna um palimpsesto, recebendo as marcas das múltiplas contribuições para esta “paisagem como assemblage”. A imagem cinematográfica gerada pela câmera/veículo usados na produção de Redlining Detroit tem três pontos de fuga ou eixos de perspectiva: •  a paisagem da rua em frente ao veículo, através do eixo de movimento para adiante e através de sua janela dianteira, que emoldura a imagem; •  a paisagem da rua atrás do veículo, conforme revelada pelo espelho retrovisor; •  uma perspectiva elevada da cidade refletida a partir da janela traseira da cabine.

Câmera / Veículo

A composição destes pontos de vista do veículo resulta em camadas de imagem, apresentando a arquitetura corporativa da cidade de forma líquida e não substancial. A imaterialidade corresponde à mistura de relacionamentos financeiros e legais determinantes dos contornos do material final referente – a paisagem. E, em vez de um dispositivo de gravação para emoldurar imagens escolhidas pelo cineasta, essa câmera é transformada num objeto actante, que performa uma montagem de associações espaço-temporais. O posicionamento da câmera, localizada atrás e apontada para dentro e através da cabine do veículo, age por meio da representação do plano frontal da

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cabine como um miniauditório. Os espectadores são introduzidos a um simulacro do campo de visão que eles ocupam ao apreender a imagem. Esta simultaneidade e duplicação apagam a distinção entre espectador e paisagem da rua, sujeito e objeto. No seminário Besides The Screen eu gastei algum tempo para gravar um vídeo rascunho de uma visualidade em rede de São Paulo. O vídeo começou com a locação do Museu de Arte de São Paulo, situado em um ponto de vista elevado oferecendo planos desobstruídos na direção norte, sobre o centro da metrópole. O perfil arquitetônico das galerias superiores é equivalente ao quadro obtido no concreto, possuindo uma proporção alta na altura e na largura – quase cinematográfica. O prédio se localiza quase no meio da Paulista, o bulevar seguindo o sentido do bairro Bela Vista.

A Paulista foi desenvolvida como uma vitrine arquitetônica de São Paulo como capital. Na planta, o bulevar é uma faixa de duas colunas de prédios de escritório multifuncionais, uns de frente para os outros e projetados para serem individuais, demonstrativos da identidade de seus proprietários e distintivos (senão em busca de distinção). Esse é o lugar para a visualização destas relações da exibição observacional e confrontacional. O vídeo curto condensa estas relações em imagens sobrepostas, apresentando em primeiro plano um aspecto substantivo das condições materiais e temporais da cidade – o congestionamento endêmico. Reinvidicar este bloqueio como uma metáfora do modo obstrutivo acumulativo de congestionamento da

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elite neoliberal no Brasil (DEÁK & SCHIFFER, 2007, p. 87) pode ser puxar muito longe – este vídeo é apenas um rascunho. Eu levei o resultado para a conferência para discussão como método e estratégia de produção e teste de como ele performa; e para ser informado pelas obras de outros realizadores. Esta obra está num estágio intermediário e vai compor o elemento prático do meu doutorado.

Referências DEÁK, Csaba & SCHIFFER, Sueli. “The Metropolis of An Elite Society”, em SEGBERS, Klaus (ed.). The Making of Global City Regions: Johannesburg, Mumbai/Bombay, São Paulo, and Shanghai. Baltimore: Johns Hopkins University, 2007. DELEUZE, Gilles. Foucault. Londres: A&C Black, 2006. LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network-Theory. Oxford: Oxford University, 2005. WARF, Barney & ARIAS, Santa. The Spatial Turn: Interdisciplinary Perspectives. Oxford: Routledge, 2008.

jogos de distância e proximidade: microperformances via skype patrícia azevedo e clare charnley tradução patricia moran

Patrícia: Boa tarde. Clare: Boa tarde. P: Bem, eu sou Patricia e essa é a Clare. Vamos falar em inglês, nossa língua em comum1. C: É engraçado estar aqui perto da Patrícia, quando vamos justamente falar sobre uma situação oposta: aquilo que acontece quando estamos separadas. P: Clare e eu somos duas artistas que trabalham juntas, uma morando em Leeds, na Inglaterra, e a outra em Belo Horizonte, Brasil. Separadas geograficamente, entendemos nossa localização espacial não como uma pedra no caminho, mas sim como uma situação que nos provoca e confronta. Nos trabalhos que vamos apresentar a seguir, habitamos a tela do Skype para criar um espaço pessoal onde realizamos nossos jogos de distância e proximidade. C: Não sendo possível estarmos fisicamente juntas, nosso trabalho é uma resposta, até bem humorada, a esta situação. Uma série de ações simples performadas para a câmera do computador e gravadas on-line via Skype, onde o que está em jogo é o próprio espaço relacional e a simultaneidade com que se justapõem o próximo e o distante, o lado a lado e o disperso. P: Jogos de Distância e Proximidade é uma coleção de vídeos de curta duração nos quais reconhecemos e parodiamos a distância entre nós através de uma série de microperformances que acontecem em um lugar que não existe fisicamente. É a 1. Esse diálogo foi apresentado pelas duas artistas, em inglês, durante a conferência Besides the Screen Brazil 2014, na UFES, juntamente com a projeção dos vídeos. Para esta publicação, transcrevemos o texto em português e incluímos frames dos trabalhos no momento em que foram exibidos para a audiência original (n.t.).

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ação performada para a câmera que fabrica esse espaço que se dá a ver enquanto um acontecimento. C: É relevante lembrarmos que a língua portuguesa tem mais de uma maneira de se dizer aqui ou lá (here or there), isto ou aquilo (this or that), do que o inglês tem. O que denota que as relações de localização não são dadas de antemão, nem as mesmas para nós duas. O fato é que trabalhando no Skype performamos ao mesmo tempo para a câmera e uma para a outra. Buscamos construir um espaço onde possamos funcionar juntas, onde nossa ação combinada se torna uma espécie de ponte, que pode ser vista como um lugar em si, como um espaço heterotópico justapondo lugares incompatíveis. Podemos ver como isso funciona em lançar - to throw.

Frame do vídeo lançar - to throw, 2013.

P: Com o uso de ações simples, de nossos próprios corpos e de objetos triviais, construímos um espaço que somente aparece como um lugar em si na tela, quando a ação gravada em vídeo é reproduzida, isto é, no ponto de vista da audiência. A grosso modo, o que move o jogo é uma articulação entre nossas ações e as relações entre as nossas telas no vídeo. O processo de gravação enquadra as

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duas telas juntas. Embora estejamos em posição frontal uma em relação a outra, aparecemos nos vídeos lado a lado, configuração que tanto nos posiciona em lugares diferentes, quanto nos dá a ver espacialmente próximas. A interface de contato entre as duas telas é a alma do jogo. Um manancial de possibilidades e formas de acolher nossas localizações diferentes num espaço único, heterotópico o suficiente para dar corpo a nossa utopia. C: Sem que tenhamos plena consciência de sua visualidade, nosso gesto corporal busca dar a impressão de movimento em relação ao outro. Durante a gravação, figura um movimento articulado: acontecimento que dá a ver esse espaço, no vídeo, como um lugar possível onde a ação acontece. P: Na prática, não é tão simples como parece. Durante a gravação da performance, cada uma tem um computador mostrando uma tela normal de Skype. Não estão visíveis as duas telas lado a lado. A tela só se vê dividida em duas janelas depois que a tomada acabou e o playback é acionado. Assim, enquanto performamos, não podemos ver nossa localização uma em relação à outra. É preciso tê-la em mente, para entender para onde devemos dirigir o olhar para ver a outra, como nos mover na sua direção, etc. O vídeo Orientate 2 dá a ver essa confusão espacial. C: A primeira coisa que nos interessou foi a própria tela que acolhe e limita nossos encontros. A plataforma Skype exibe o outro ocupando larga porção da tela, enquanto nos vemos em uma janela de retorno, tão pequena quanto um selo postal, transformado em espelho no canto da tela. Talvez vocês já tenham experimentado o quão frustrante é tentar olhar nos olhos de alguém no Skype. A câmera fica acima, mas a imagem da outra pessoa está abaixo. Quando aparecemos olhando de frente, nos olhos um do outro, é porque estamos olhando para a câmera, e dessa forma não podemos nos ver de fato. Esta é a situação que o vídeo que exibimos procura negar, ou finge negar. P: E, francamente, entender ajuda, mas não muito. Durante a performance, é preciso ter em mente o espaço onde a ação vai acontecer, para que possamos ocupá-lo, fabricando-o à medida que a ação acontece. Nessas micro performances via Skype, a ação fabrica um espaço cuja verdade não é um truque de edição. O que se vê de fato aconteceu, embora não se pudesse ver durante a ação e sua captura em vídeo. P: Em passar - to pass, toma-se uma folha branca e, atuando como se estivéssemos lado a lado, a passamos de uma para a outra lateralmente, através da janela da tela.

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Frame do vídeo Orientate 2, 2013.

C: Performance que requer treinamento, concentração, e uma série de tentativas e erros, porque exige direcionar o olhar, o movimento e o próprio papel em direção ao local da tela onde a outra vai aparecer no vídeo; ao mesmo tempo, precisamos sincronizar o movimento de nossas mãos com o de nossos olhos, e em especial com o movimento da outra. No vídeo moscas, o movimento das mãos é diferente, mas ainda assim produz uma relação entre as duas. C: Muito do que se performa está fora de cena e não é dado a ver pelo gesto corporal. Na verdade, estamos a fazer duas coisas diferentes ao mesmo tempo: mover nossas moscas e se comportar como se nada estivesse acontecendo. As mos-

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Frame do vídeo moscas, 2013.

cas estão penduradas em fios de nylon presos a um arame que nossos braços operam fora do quadro. Nas experiências anteriores, a ação também é encenada, mas o truque, se assim se pode dizer, está às claras, enquanto em moscas ele está fora de cena. Voando “de lá para cá, de cá para lá”, as moscas impõem a existência desse espaço ordinariamente comum. As moscas (tanto as reais quanto as de plástico) são globalmente onipresentes, assim como a folha de papel A4 e a cadeira de escritório que já vimos; e o plástico e os cigarros que iremos ver. Em sua ubiquidade, estes objetos fazem a ponte entre o aqui e o lá, e também apontam para o resto do mundo.

Frames do vídeo cloud try 3, 2013.

P: A partir de então, nós começamos a construir este espaço conectando visualmente nossas duas telas numa cena única. Em cloud try 3, nossa intenção original era encenar o movimento de duas nuvens diferentes que se encontram, se juntam e vão embora. Os objetos desaparecem pelo fundo da cena, sugerindo que a tela acolhe uma profundidade, um espaço que não se vê mas que existe. C: Este espaço ilusionista não se esconde. Se dá a ver, por exemplo, no fato de que as micro performances são filmadas simultaneamente por duas câmeras diferentes, que capturam tons e contrastes distintos. Em geral, mantemos as

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Frames do vídeo blood, 2013.

imagens como foram gravadas. Nós não as alteramos para criar uma visualidade mais harmoniosa, nem para sustentar a ilusão de uma única cena. Fazemos isto não por razões puristas, mas porque as falhas concentram uma potência expressiva que nos interessa. Um exemplo é o vídeo silencioso blood, no qual usamos o nosso dedo para afetar o obturador, explorando a defasagem no tempo de ajuste da câmara e de sua exposição. Alteramos deliberadamente a luminosidade incidente num vaivém que figura um aparecimento e um desaparecimento, que apaga e acende o espaço um do outro. P: Tal como acontece com a cor, a exposição, o contraste, etc., nós não alteramos o tempo na pós-produção. Como o espaço, o tempo também se compõe com a gravação e se dá a ver em playback. Embora os eventos encenados pareçam ocorrer simultaneamente, é preciso lembrar que o Skype insere atrasos erráticos e imprevisíveis. O que é fácil de perceber no vídeo alinhar - to align.

Frames do vídeo alinhar - to align, 2013.

P: Observando onde as duas linhas se encontram, pode-se dizer que provavelmente não estavam neste ponto simultaneamente, embora possam ter estado. Em vez de alegar que essa sincronia é apenas ficção, ou que não existe, seria mais correto dizer que nós simplesmente não sabem. C: Nós também exploramos a falta de controle e de sincronia em solo, no qual a ação acontece no centro das duas telas, sugerindo um único espaço onde corpos

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Frame do vídeo solo, 2013.

instáveis dançam em silêncio. Como na técnica surrealista do exquisite corpse – desenhos feitos em folhas dobradas completados por pessoas diferentes –, o movimento, sem qualquer sincronicidade calculada, desdobra ou acopla nossas figuras e o espaço em que se mostram. C: Em the last cigarette, talvez do lado de fora da porta, num final da festa, compartilhamos o último cigarro na escuridão, o que retoma a tópica do frame e do espaço único, agora uma superfície inteira coberta de um breu que finalmente engole a divisão entre as duas telas.

Frame do vídeo the last cigarette, 2013.

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P: Em todos estes trabalhos, nós sobrepomos lugares heterogêneos que não se misturam nem se separam, como aqui e lá, longe e perto, passado e presente, você e eu, falso e verdadeiro, o planejado e a espontaneidade, etc. Dicotomias que conectam as coisas não por modelos convencionais de espaço e tempo, mas numa dinâmica que opera por pulsações, lacunas e saltos. C: Estes espaços metafóricos, heterogêneos, apontam para um desejo de colapso do espaço encenado – o desejo de estar junto. P: Como no sonho, nosso trabalho corporifica um espaço descontínuo no qual, em pano de fundo de latências, se colapsa a continuidade estabelecida do espaço e do tempo. C: Calcado numa dinâmica de colaboração, é sempre um processo excitante de fazer coisas simples e ver o que acontece. P: Em especial, trata-se de uma espécie de circuito fechado para entender uma à outra. As traduções, os equívocos, os eventos fortuitos e a perseverança ajudam no crescimento de nossas ideias. O que é fácil de imaginar, considerando o meu inglês engraçado. C: Seu inglês é melhor que o meu português.2 E é mais curioso do que engraçado. E de qualquer maneira, tem algo maravilhoso na sua imperfeição. Mesmo que falhe algumas vezes. P: As falhas estão em cena, são bem visíveis, em verdade são uma parte importante do trabalho. Também se dão a ver na crueza de como usamos a tecnologia em nossos vídeos curtos. C: Sim, fica claro que nós não somos muito sagazes com tecnologia. P: O que não é realmente uma fraqueza. C: De certa forma é uma força. Torna as coisas desajeitadas, não totalmente controladas, definitivamente não transparentes – então todos podem ter consciência da tecnologia em jogo. P: Sim, em nosso trabalho o processo técnico não é apenas um ferramenta, mas também forma e conteúdo. C: Esta fala, este duplo ato discursivo, objetivou apresentar de forma dinâmica algumas das ideias sobre as quais estamos trabalhando. Como esta fala, nossa prática dialógica finge ser espontânea (ou finge fingir, porque a tecnologia permite e desmonta a ilusão ao mesmo tempo), mas tudo é experimentado e testado com antecedência, embora o imprevisível é que leve a coisa adiante. 2. Trecho falado em português, na apresentação original (n.t.).

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P: Nós temos trabalhado juntas por mais de cinco anos, então temos uma grande quantidade de trabalhos e diferentes tipos de jogos de proximidade e distância que não mencionamos aqui. C: Maybe next time. Obrigado pela atenção de todos and many thanks to Besides the Screen.3 P: Obrigado Patrícia, Gabriel e Marcus for the opportunity to present these works here, e a todos vocês pela presença.

3. Mantemos as duas frases de despedida na sua forma original, de modo a preservar o jogo linguístico das artistas, habitando dois idiomas em um só, como habitam dois espaços no trabalho apresentado (n.t.).

sobre os autores

André Mintz é artista e pesquisador da imagem e mídias digitais. Mestre em Comunicação Social (UFMG). Estudante de mestrado no programa Erasmus Mundus em Media Arts Cultures (Donau University, Aalborg University, Lodz University). Foi professor de mídias digitais nos cursos técnicos da Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia, de Belo Horizonte, coordenador de audiovisual do Espaço do Conhecimento UFMG, e também fundador e membro do coletivo Marginalia Project e do Marginalia+Lab. Angela Meili é professora do curso de Letras da Universidade Estadual do Paraná. Doutora em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Barbara Pires e Castro é doutoranda e mestre pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Formou-se em Design, na PUC-Rio em 2009. Na UFRJ, é integrante do LabVis e colaboradora do NANO desde 2011. Durante seu mestrado, foi bolsista no Instituto de Matemática Pura e Aplicada. Sua pesquisa e produção artística já foram apresentadas na França, Dinamarca e no Brasil em locais como Museu de Arte Moderna (RJ), Instituto Inhotim (MG) e no circuito nacional do Centro Cultural Banco do Brasil. Em 2014, fundou o estúdio Ambos&& com Luiz Ludwig. Bruno Vianna é um cineasta que mudou o foco da sua produção para suportes audiovisuais que incorporam diferentes tipos de interatividade e não se limitam à superfície da tela. Entre outros projetos, realizou Ressaca, um longa-metragem editado ao vivo durante a sessão, que recebeu 4 prêmios; Céu da Palavra, projeção de poesia em pipas no céu noturno, finalista do prêmio Celeste Awards; entre outros. Atualmente vem trabalhando com câmeras de vídeo artesanais e algoritmos de visão computacional. É gestor da Nuvem, estação rural de arte e tecnologia, e educador na Oi Kabum!, escola livre de arte e tecnologia.

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Carlos Augusto (Guto) da Nobrega é Doutor (2009) em Interactive Arts pelo programa de pós graduação Planetary Collegium (antigo CAiiA-STAR), da Universidade de Plymouth, onde desenvolveu pesquisa de caráter transdisciplinar nos domínios da arte, ciência, tecnologia e natureza. Investiga como a confluência desses campos (em especial nas últimas décadas) tem informado a criação de novas experiências estéticas. É Mestre em Comunicação, Tecnologia e Estética pela ECO-UFRJ (2003) e Bacharel em Gravura pela EBA-UFRJ (1989) onde leciona desde 1995. Fundou e coordena o NANO – Núcleo de Arte e Novos Organismos, e atualmente é coordenador da Pós-Graduação em Artes Visuais, PPGAV – UFRJ. Erika Balsom é professora de estudos cinematográficos e artes liberais no King’s College London. É colaboradora frequente da revista Artforum, autora de Exhibiting Cinema in Contemporary Art (2013) e de uma monografia sobre a distribuição e circulação de filmes e vídeos experimentais, a ser lançada pela Columbia University Press em 2016. Com Hila Peleg, co-editou a antologia Documentary Across Disciplines (Haus der Kulturen der Welt/MIT Press, 2016). Seus artigos foram publicados em diversos catálogos de exposição, antologias e periódicos, tais como Screen, Cinema Journal, e Afterall. Ela possui um doutorado em Modern Culture and Media da Universidade de Brown e foi Mellon postdoctoral fellow na Universidade da Califórnia, Berkeley. Filipi Dias é mestrando em Open Design no programa de pós graduação duplo diploma entre as Universidad de Buenos Aires e Humboldt-Universität zu Berlin; bacharel em Comunicação Visual Design pela UFRJ e graduação sanduíche pela Université Rennes 2 (França) na área de Multimídia. Gabriel Menotti é professor adjunto da UFES. Atua como curador e pesquisador nas mais variadas formas de cinema. É PhD em Media and Communications pelo Goldsmiths College (Universidade de Londres) e doutor em Comunicação em Semiótica pela PUC-SP. Já participou de importantes eventos da área, tais como o International Symposium of Electronic Arts, a Bienal de Arte de São Paulo, os Rencontres Internationales Paris/Berlin/Madrid e o Festival Transmediale. É autor de Através da Sala Escura (Intermeios, 2012), uma história da exibição cinematográfica a partir da perspectiva do Vjing, e co-editor, com Virginia Crisp, de Besides the Screen: Moving Images through Distribution, Promotion and Curation (Palgrave, 2015). Menotti é um dos coordenadores da rede de pesquisa Besides the Screen. Graziele Lautenschlaeger é artista e pesquisadora em artemídia. Possui graduação em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (2005) e mestrado pelo Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (2010), quando também integrou o grupo de pesquisa NOMADS.USP (Núcleo de Estudos de Habitares Interativos). Em 2008 esteve como pesquisadora visitante no Interface Culture Department da Kunstuniversität Linz (Áustria) e

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entre 2010 e 2011 no Lagear (Laboratório Gráfico para Experimentação Arquitetônica na Universidade Federal de Minas Gerais. Sua produção tem circulado em festivais e instituições no Brasil e no exterior. Entre 2011 e 2013 foi animadora cultural do SESC SP, curando e produzindo atividades na área de artemídia e cultura digital (2011-13). Atualmente ela é doutoranda pelo Institut für Kulturwissenschaft da Humboldt Universität zu Berlin. Mais informações e detalhes sobre sua atual produção podem ser consultados em grazielelautenschlaeger.com. Larisa Blazic é professora na Universidade de Westminster. Seu trabalho reflete interesses híbridos, incluindo o uso criativo da Internet e as intersecções entre videoarte e arquitetura. Participa da cena internacional de arte mídia há mais de duas décadas. Além de atuar em colaboração com diversos grupos/projetos (Node London, Raylab, Depford.tv, SPC, Floss Manuals, Data Union), também produziu videoinstalações que examinam a noção da imagem em movimento no espaço público e co-criou uma plataforma de vídeo online para trabalhos colaborativos, envolvendo questões de vídeo aberto, autoria, licenciamento, copyright e codecs. Marcus Bastos é professor da PUC-SP. Escreveu o livro de ensaios Limiares das Redes: Escritos sobre Arte e Cultura Contemporânea (Intermeios, 2014) e o e-book Cultura da Reciclagem (Noema, 2007). Foi curador de exposições como arte.mov — Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis; Geografias Celulares (Instituto Fundación Telefónica, Buenos Aires e Lima) e Performix (programa das Satyrianas, 2014). Criou obras como Interface Disforme (2006), e as composições audiovisuais Ausências (2009, com Dudu Tsuda) e Delayscapes (2014). Maria Luiza (Malu) Fragoso possui doutorado em Multimeios pelo Instituto de Artes da UNICAMP (SP) (2003), e concluiu o Pós-Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA, USP. Artista e pesquisadora, desenvolve projetos de caráter transdisciplinar nos domínios da arte, ciência, tecnologia em processos de transculturalidade provocados pela transposição entre áreas de conhecimento. Monica Toledo é artista audiovisual e pesquisadora das narrativas do corpo no cinema e performance. É mestre e doutora em Semiótica pela PUC-SP, e pós-doutora pela UFMG (FAFICH) e Unicamp (Instituto de Artes). Ministrou disciplinas nas universidades Anhembi-Morumbi e Belas Artes de São Paulo. Organizou o livro Performances da Memória (editora Impressões de Minas). Seus projetos de instalações multimídia, processos de pesquisa, artigos publicados e vídeos estão disponíveis no blog integral360.com.br/portfolio/ monica-toledo-2. Paola Barreto é artista e pesquisadora. Por meio de um trabalho que se desdobra entre circuitos de vídeo eletrônicos e digitais, fantasmagorias e sistemas híbridos, desenvolve

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pesquisa sobre live cinema e a vitalidade da imagem. Participou de exposições no circuito SESC em diversas cidades brasileiras, além de festivais internacionais como Vorspiel/ Transmediale, em Berlim; Live Performers Meeting, em Roma; e Live Cinema, no Rio de Janeiro. Graduada em Cinema (UFF) e Mestre em Tecnologia e Estéticas (PPGCOM/ UFRJ), atualmente dedica-se ao Doutorado em Poéticas Interdisciplinares (PPGAV/ UFRJ). O trabalho de Patricia Azevedo e Clare Charnley surge de observações e negociações conjuntas sobre a linguagem, o território e as relações de poder. Suas obras recentes envolvem as características do Skype e buscam substituições criativas para a presença física. Ambas as artistas já apresentaram em diversos lugares do mundo. Seu trabalho colaborativo recebeu prêmios do Arts Council England, do Visiting Arts e do British Council. Também foram finalistas do The Northern Art Prize 2009. Exposições recentes incluem The Bluecoat Gallery, Liverpool; Belfast Exposed Gallery; Project Space, Leeds; Johalla Projects Gallery, Chicago; The 23rd Festival Les Instants Vidéo, Marselha; Coastal Currents, Hastings e St Leonards; Giessen Video Festival, Alemanha; Magaio Voicescapes Binaural, Portugal; Platforma, Londresl; torinoPERFORMANCEART, Turin; e PNEM Sound Art Festival, Países Baixos. Patricia Azevedo é doutoranda na UFMG. Patrícia Moran é doutora em Comunicação e Semiótica. Professora do CTR, ECA/ USP, diretora do CINUSP Paulo Emílio. Como realizadora de cinema e vídeo, participou e conquistou diversos prêmios em festivais. Coordenadora da Coleção CINUSP, organizou publicação sobre Machinima. Tem pesquisado performance audiovisual em suas diversas modalidades. Sean Cubitt é professor titular de Filme e Televisão em Goldsmiths, Universidade de Londres; Professorial Fellow da Universidade de Melbourne e professor honorário da Universidade de Dundee. Suas publicações incluem Timeshift: On Video Culture; Videography: Video Media as Art and Culture; Digital Aesthetics; Simulation and Social Theory; The Cinema Effect; EcoMedia; e The Practice of Light. Ele recentemente co-editou Rewind: British Video Art of the 1970s and 80s; Relive: Media Art History; Ecocinema e Digital Light. É um dos editores da série Leonardo Books da MIT Press. Sua pesquisa corrente é sobre colonialismo e eco-crítica. Stefania  Haritou estudou Filosofia na Grécia e Estudos Cinematográficos no Reino Unido. Seus interesses de pesquisa incluem projeção, exibição e distribuição cinematográfica; acervos fílmicos; e filmes de vanguarda. Em 2013, recebeu uma bolsa do Conacyt (Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología), do México, para realizar um pós-doutorado com o grupo de pesquisa Teorías de las Artes y Medios Contemporáneos, na Universidade das Américas, em Puebla, onde realizou investigação sobre a pirataria de filmes no país. Seu capítulo neste volume é parte dos resultados desse trabalho.

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Stephen Connoly é doutorando em Belas Artes na Universidade de Kent. Sua pesquisa explora a noção de assemblage nos filmes de artista e obras arte-mídia, empregando perspectivas desenvolvidas nas ciências sociais. Virginia Crisp é professora de Mídia e Comunicação na Universidade de Coventry. Ela é autora de Film Distribution in the Digital Age: Pirates and Professionals (Palgrave, 2015) e coeditora (com Gabriel Menotti) de Besides the Screen: Moving Images through Distribution, Promotion and Curation (Palgrave, 2015). Crisp é uma das coordenadoras da rede de pesquisa Besides the Screen.

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