Formalização dos direitos fundiários com base na ocupação costumeira da terra: delimitação das comunidades e acesso das mulheres à terra na região centro de Moçambique

June 15, 2017 | Autor: Stefaan Dondeyne | Categoria: Women's Studies, Family Law, Land Law, Moçambique, Womens and Gender Studies
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Original em inglês publicado em: J. of Modern African Studies, 52, 2 (2015), pp. 193-216 © Cambridge University Press 2015 | doi:10.1017/S0022278X15000166

Formalização dos direitos fundiários com base na ocupação costumeira da terra: delimitação das comunidades e acesso das mulheres à terra na região centro de Moçambique* RANDI KAARHUS Centro de Conhecimento Prático, Universidade de Nordland, Bodø, Noruega [email protected]

STEFAAN DONDEYNE Departamento de Ciências da Terra e do Ambiente, Universidade de Leuven, Celestijnenlaan 200E, B3001 Leuven, Bélgica [email protected]

RESUMO

A Lei de Terras moçambicana aprovada em 1997 pretende estabelecer regras flexíveis de acesso à terra, garantindo, ao mesmo tempo, os direitos costumeiros das populações locais, bem como a igualdade de direitos entre mulheres e homens. Com base em observação participante durante um processo de delimitação de terras na região centro de Moçambique, este artigo analisa a complexa negociação que decorre da aplicação da Lei de Terras numa comunidade local. Mostra como o processo de delimitação abriu espaço para afirmar papéis – masculinos – de poder e autoridade, enquanto as mulheres locais eram cada vez mais marginalizadas no processo. Apresentando testemunhos orais de mulheres da comunidade, os autores procuram equilibrar a descrição, com perspectivas das mulheres sobre o carácter, altamente dependente do género, dos interesses na terra, do acesso a esta e da exclusão da *

Parte do trabalho de campo levado a cabo em Moçambique foi financiada por uma bolsa de investigação do Conselho de Investigação da Noruega (NFR), através do programa «Pobreza e Paz». Os autores gostariam de agradecer a dois revisores anónimos pelos valiosos comentários a uma versão anterior deste artigo. Além disso, devemos expressar a nossa gratidão a Milagre Nuvunga, James Bannerman, Sr. Malunguisse, Sr. Sélcio, Sr. Lídio e Sr. Washington pelo seu apoio e cooperação, e reconhecer o valor das experiências postas à nossa disposição por agentes locais nos escritórios da ORAM, iTC, MICAIA, Pambere e Kwaedza Simukai, na província de Manica. Agradecemos, em especial, a Benilde Nhabomba, Tina Krüger e Zacarias Jemusa Gumbo pela sua ajuda nas entrevistas a 21 mulheres na comunidade. Um agradecimento especial a Vitor Santos Lindegaard por traduzir o texto original de inglês para português.

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mesma. A análise termina com a pergunta: O que seria necessário para dar espaço às mulheres locais para, durante o próprio processo de delimitação, darem conta dos seus interesses num acesso seguro à terra?

INTRODUÇÃO

Tem-se assistido a acalorados debates nos últimos anos sobre o aumento da pressão de vários actores sobre a terra na África Subsaariana (Cotula et al. 2009; Borras et al. 2011), ao mesmo tempo que tem vindo a ser aplicada em todo o continente uma nova geração de políticas de terra e reformas do regime fundiário que procuram integrar os direitos costumeiros à terra na legislação moderna e adaptá-los a esta legislação (Alden Wily 2000; Deininger 2003; Cousins 2008; Toulmin 2008; Anseeuw & Alden, eds. 2010). O ritmo, os procedimentos e a abrangência destes processos de aplicação variam muito de país para país e há uma considerável variação não só na forma como a legislação de cada país codifica a formalização dos tipos existentes de ocupação costumeira da terra1, mas também nas abordagens para garantir os direitos das mulheres à terra (Ikdahl et al. 2005; McAuslan 2010). Em Moçambique, foi aprovada em 1995 uma nova Política Nacional de Terras e foi promulgada em 1997 uma nova Lei de Terras. Ambas pretendiam fornecer regras flexíveis de acesso à terra, garantindo ao mesmo tempo os direitos costumeiros das populações locais, bem como a igualdade de direitos de homens e mulheres. O conhecimento de como as novas políticas e reformas legais relativas à terra funcionam na prática em Moçambique assenta ainda em poucos estudos empíricos sobre os processos locais de aplicação. De modo mais geral, porém, alguma literatura de pesquisa crítica aponta para os desafios encontrados nos esforços para proteger os direitos costumeiros de ocupação da terra pelas populações locais, procurando, ao mesmo tempo, alcançar – na prática – o «êxito normativo» da igualdade de direitos legalmente estabelecida para homens e mulheres (Whitehead & Tsikata 2003; Banda 2006; Claassens 2013). Como convincentemente assinalado por Peters (2013), «a questão da terra» em África é ao mesmo tempo crucial e complexa. Não diz respeito apenas a governação mais eficaz, crescimento agrícola, acumulação de capital e desenvolvimento económico. Diz respeito a actuação e poder, política e representações, tanto a nível nacional como a nível local (Peters 2013:556). Para as pessoas das zonas rurais que vivem na terra, a própria terra está imbuída de valores sociais e culturais, que podem, por sua vez, ser contestados, o que leva à recorrência de negociação e conflitos relativamente à terra, tanto no interior das famílias 2

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como ao nível da comunidade (Peters, 2004). Nestes contextos, o acesso à terra tem claramente uma dimensão de género, com constante pesquisa e debates políticos sobre a melhor forma de apoiar e reforçar os direitos das mulheres à terra e os seus interesses na mesma (Whitehead & Tsikata 2003; Peters & Kambewa 2007; Claassens & Ngubane 2008; Kaarhus & Martins 2012). Neste artigo, centramo-nos na aplicação das disposições da Lei de Terras moçambicana para formalizar direitos fundiários adquiridos por ocupação de facto das terras, de acordo com normas e práticas costumeiras. Quando apresentamos uma análise empírica de um processo de delimitação de terras legalmente estabelecido, pode dizer-se que entramos no que Migdal (1994) chamou «as trincheiras» – referindo-se aos níveis locais do moderno aparelho de Estado, onde se espera que as autoridades estatais apliquem na prática leis e directrizes, às vezes enfrentando «eventualmente forte resistência social» (Migdal 1994:16). No que diz respeito à aplicação de Lei de Terras, o Governo de Moçambique tem-se preocupado principalmente, nos últimos anos, com a criação de condições para atrair investidores para explorar e desenvolver os recursos naturais do país, e tem, neste contexto, apoiado a aplicação das disposições da Lei de Terras para concessão de direitos fundiários aos investidores, por meio de concessões estatais renováveis de 50 anos. Em contrapartida, são fundamentalmente organizações da sociedade civil – com o apoio de doadores estrangeiros – que têm estado na vanguarda da aplicação das disposições da Lei de Terras para a formalização dos direitos costumeiros das populações rurais por meio de delimitação (Norfolk & Tanner 2007). O processo de aplicação que descrevemos neste artigo esclarece a dinâmica na «interface» de princípios e disposições legais nacionais representados por funcionários do Estado, por um lado, e, por outro, os conhecimentos, normas e práticas locais assentes na tradição, história e experiência da zona (Arce & Long 1993). A nossa análise incide no modo como os direitos costumeiros à terra, numa comunidade rural da região centro de Moçambique, são representados, regulados e legitimados através do processo de delimitação de terras. Mostramos como o processo se desenrola como oportunidade de autodefinição de uma comunidade local, que, segundo a definição da Lei de Terras tem «interesses comuns» em terra ocupada e utilizada conforme as normas e práticas costumeiras (Norfolk & Tanner 2007:vi)2. Também mostramos como o processo no nosso caso serve para reforçar a autoridade e a legitimidade do chefe tradicional – que se revela ser localmente contestado –, tanto no seu papel formal como autoridade comunitária como em relação ao controlo e 3

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gestão dos recursos da terra. Observamos que, durante o processo de delimitação, o papel das mulheres locais se tornou mais marginal. Além disso, os interesses das mulheres e a sua igualdade de direitos à terra, legalmente estabelecida, não estavam representados na autodefinição da comunidade local como entidade fundiária. A nossa análise mostra como se perdeu uma oportunidade legalmente consagrada de regulamentar e legitimar os direitos das mulheres à terra, num cenário em que estavam em jogo as normas tradicionais e as posições de poder masculinas. Finalmente, perguntamos o que seria necessário para dar às mulheres locais espaço para expressar os seus interesses num acesso seguro à terra. Quando Moçambique aprovou uma nova Lei de Terras, em 1997, fê-lo no contexto da reestruturação económica e social pós-conflito. Com os legisladores visando proteger os direitos das populações locais e criar, ao mesmo tempo, condições para investimentos seguros para promover o desenvolvimento (Tanner 2010), a Lei de Terras pode ser considerada uma tentativa ousada de codificar num único sistema oficial de propriedade os direitos costumeiros e a igualdade de direitos das mulheres, e regras flexíveis de acesso, bem como a promoção de investimentos externos na agricultura. Como o estabelece a Constituição moçambicana, o princípio subjacente é que toda a terra é propriedade do Estado. Em função disso, a Lei de Terras reconhece às pessoas locais direitos de uso da terra para garantirem os seus meios de subsistência, e prevê que as comunidades locais possam ver os seus direitos à terra formalmente reconhecidos através do que se chama um «processo de delimitação». Os direitos fundiários locais e tradicionais reconhecidos na Lei de Terras moçambicana chamam-se «direito de uso e aproveitamento da terra», referido pela sigla DUAT. Os direitos à terra, no contexto jurídico moçambicano, são, pois, definidos em conformidade com o conceito de acesso de Ribot & Peluso (2003:153), ou seja, «a capacidade de beneficiar das coisas»; neste caso, a capacidade de beneficiar da terra. Sikor & Lund (2009) defenderam que o acesso à terra e os direitos de propriedade fundiária estão intimamente ligados a questões de poder e autoridade, já que a propriedade, seja de terra, seja de recursos naturais, também depende de instituições com legitimidades para sancionar as reivindicações. No processo de delimitação de terras que aqui descreveremos, interessa-nos a forma como os direitos à terra são representados a nível local, num contexto em que o reconhecimento legal dos direitos das pessoas locais de uso e aproveitamento da terra deve ser formalmente registado, resultando na emissão pelo Estado de um documento de DUAT. Na nossa análise, baseamo-nos nos conceitos de «regulação» e «legitimação», tal como apresentados por Hall 4

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et al. (2011). Na terminologia destes autores, a regulação diz respeito às regras formais e informais que regem o acesso à terra, mas também à exclusão da possibilidade de a usar e de beneficiar dela (Hall et al. 2011: 15). A regulação define limites – o que é essencial num processo de delimitação de terras – mas também determina os tipos de uso da terra aceitáveis, e «os tipos de reivindicações de propriedade e de usufruto que podem ser feitos relativamente a diferentes áreas de terra» (Hall et al. 2011: 15; itálico no original). A regulação define também quem tem direito a fazer tais reivindicações, o que constitui um aspecto da regulação com evidentes dimensões de género nas comunidades rurais africanas. As reivindicações de terra dos homens e das mulheres tendem a ser legitimadas de maneiras diferentes e, especialmente em sociedades patrilineares, as reivindicações das mulheres tendem a ser «socialmente integradas» no casamento e dependentes dele (Whitehead & Tsikata 2003:78). Legitimação refere-se tanto ao «que é» como ao «que devia ser», referindo-se às expressões normativas do que é certo e apropriado em termos de regulação. Tratando da exclusão, Hall et al. (2011) sublinham ainda que as legitimações nunca existem sem oposição. Na nossa análise, interessa-nos particularmente a forma como a legitimação é contestada e negociada durante o próprio processo de delimitação e quem está em posição de o fazer. Tradicionalmente, as pessoas da província de Manica, no centro de Moçambique, definem a sua identidade e os seus direitos à terra através da descendência patrilinear, que também inclui espíritos ancestrais associados com locais específicos no espaço natural (Dondeyne et al. 2012). Nos debates sobre os direitos das mulheres à terra em África, o predomínio de normas e práticas patrilineares é frequentemente considerada um dado adquirido. No entanto, no norte de Moçambique e no sul do Maláui, e ainda em partes de países vizinhos como a Zâmbia e Tanzânia, são normas e práticas matrilineares a nível comunitário que continuam a estruturar o acesso individual à terra, apesar de medidas das administrações coloniais para privilegiar homens chefes de família e esquemas patrilineares em geral (Chanock 1985; Dondeyne et al. 2003; Peters & Kambewa 2007; Kaarhus 2010). No cenário regional e local em que foi realizado o nosso estudo, são dominantes as normas e práticas patrilineares. A patrilinearidade não só define quem tem o poder de atribuir e gerir terra ao nível da comunidade, mas também como se alcança um «equilíbrio de privilégios e deveres» no seio dos agregados familiares (Richards 1950:208). As entrevistas com mulheres que apresentamos neste trabalho indicam que as mulheres que vivem numa comunidade sujeita a normas patrilineares podem aceitar essas normas como legítimas e reconhecer a sua 5

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expressão nas estruturas locais de autoridade e de poder. Mas, para garantir meios de subsistência para elas próprias e para os seus filhos – em conformidade com as normas locais – precisam de acesso a terra para cultivar. Quando são usadas outras normas para retirar às mulheres o usufruto dos direitos de uso da terra, podem também reagir com contestação. Não têm, porém, fóruns públicos para expressar os seus interesses na terra nem as suas preocupações com acesso e exclusão. Em seguida, fazemos primeiro uma breve descrição da metodologia utilizada na recolha de dados e depois uma breve apresentação do quadro jurídico relevante em Moçambique. A parte principal do artigo descreve e analisa o processo de delimitação de terras comunitárias em que participámos. Esta descrição é complementada com depoimentos de quatro mulheres da zona, dando conta das suas experiências com acesso à terra na comunidade. Concluímos com algumas reflexões sobre as possibilidades das mulheres de expressarem os seus interesses na terra num contexto de instituições reconstituídas de chefia costumeira ao nível local.

TRABALHO DE CAMPO E RECOLHA DE DADOS

A observação participante foi a principal abordagem metodológica usada para recolher a informação em que este artigo se baseia. Na qualidade de pesquisadores – combinada com papéis informais de facilitadores –, acompanhámos uma parte substancial do processo de delimitação de terras numa comunidade a que aqui chamamos Mchele3, localizada na província de Manica, no centro de Moçambique. Pudemos acompanhar o processo ao longo do tempo, já que que, de 2007 a 2013, vivemos uma parte desse tempo na província de Manica e visitámo-la regularmente durante todo esse período. Através de repetidas deslocações de trabalho de campo, acompanhámos a delimitação das terras e participámos nela, a partir de 2008, tendo sido feitos em 2009 a maior parte do trabalho prático, reuniões, negociações, georreferenciação e mapeamento. A área foi revisitada em 2011, 2012 e 2013. Na comunidade de Mchele, mais de 50% da superfície está ainda coberta por floresta. Nos terrenos desmatados, as pessoas cultivam mandioca e milho como cultura de subsistência e bananas, inhame e tomate como culturas de rendimento. Na prática, a realização do processo de delimitação neste contexto implicou uma longa série de pequenas e grandes reuniões, incluindo visitas de campo preparatórias e encontros marcados a que ninguém compareceu, seguidos de visitas para marcar novas reuniões, novas reuniões preparatórias, e em

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momentos cruciais, assembleias maiores abertas a «toda a comunidade». Em princípio, o processo foi estruturado por exercícios participativos, como estabelecido no Anexo Técnico ao Regulamento da Lei de Terras. Incluiu sessões de tradução cultural, mas também negociação de posições de poder e autoridade na interface da comunidade e dos órgãos locais do Estado. Não podemos de modo algum afirmar ter participado em todas as reuniões que foram realizadas localmente para preparar, discutir, planear e voltar a discutir como abordar o processo de delimitação de terras em Mchele. Embora tenhamos participado num boa parte dessas reuniões, houve muitas mais, além de uma série de discussões formais e informais, seguramente, só entre a população local. As nossas observações durante o processo de delimitação foram chamando cada vez mais a nossa atenção para a quase total exclusão das mulheres de papéis «reguladores» no exercício. Para ter uma perspectiva mais aprofundada dos mecanismos através dos quais as mulheres obtêm de facto acesso à terra na comunidade – ou são dele excluídas –, decidimos recolher testemunhos orais de mulheres locais através de entrevistas informais. Estas entrevistas foram realizadas por duas assistentes de pesquisa4, guiadas por um jovem da zona, que também traduziu as entrevistas da lingua ndau para português5. Nas entrevistas, pedia-se em especial às mulheres que contassem como tinham obtido ou perdido o direito de uso da terra. Foi seleccionada uma amostra de 21 mulheres no total através de um processo de amostragem dirigida simples. Obtivemos uma amostra não aleatória, mas esforçámo-nos por cobrir vários grupos e povoações, para representar a diversidade interna da extensa e pouco povoada área comunitária.

ENQUADRAMENTO LEGAL

A Lei de Terras A Lei de Terras, Lei nº 19/97 da República de Moçambique, garante às populações locais o direito costumeiro de acesso à terra e sua utilização. O artigo 12 da Lei de Terras afirma mais especificamente que os direitos à terra podem ser adquiridos das seguintes maneiras: •

por ocupação por pessoas singulares e comunidades locais, segundo as normas e práticas costumeiras no que não contrariem a Constituição;



por ocupação por pessoas singulares moçambicanas que, de boa fé, estejam a utilizar a terra há pelo menos dez anos;

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como concessão do Estado, deferindo um pedido apresentado por pessoas singulares ou colectivas na forma estabelecida na Lei de Terras.

O primeiro ponto reconhece e contempla os direitos a terra «comunitária» de acordo com os costumes e práticas locais, bem como os direitos individuais assentes no uso e ocupação tradicionais. O segundo ponto permite o reconhecimento de direitos à terra adquiridos através de outras formas de uso e ocupação. Originalmente, servia de base ao reconhecimento dos direitos à terra a grandes números de pessoas internamente deslocadas durante a guerra civil (1978-1992) em Moçambique. Finalmente, o terceiro ponto possibilita o acesso à terra por meio de concessões de longa duração a nacionais, bem como a empresas e investidores estrangeiros com planos de investimento concretos (cf. Tanner 2001). Foi aprovado em 1998 um regulamento da aplicação da Lei de Terras em zona rurais, tendo um anexo técnico sido aprovado através de um diploma ministerial (n.º 29-A/2000), em Março de 2000. O Artigo 13 da Lei de Terras afirma que a ausência de título não prejudica os direitos tradicionais de uso da terra, mas prevê também um procedimento para a formalização dos direitos costumeiros das comunidades locais. O Anexo institui os procedimentos para identificar e formalizar esses direitos através de um «processo de delimitação» (Quadros 2004). Tendo em conta a sua orientação inclusiva e a abordagem participativa das consultas locais e os seus procedimentos de delimitação de terras comunitárias, a Lei de Terras moçambicana foi já referida como «a melhor de África» (DfID 2008). O seu objectivo era transformar o quadro legal para ocupação da terra numa situação de devastação pós-colonialismo, pós-socialismo e pós-guerra de maneiras que pudessem garantir os meios de subsistência da maioria das pessoas num país classificado na altura como o mais pobre do mundo. Em alguns círculos, porém, tem continuado a ser uma lei controversa. O Governo moçambicano tem-se preocupado com a possibilidade de as comunidades locais acabarem por controlar grandes áreas de terra e, em Outubro de 2007, foi aprovada uma adenda ao artigo 35 do Regulamento da Lei de Terras sob a forma de decreto presidencial (Decreto nº 50/2007). Este Decreto redefiniu o papel do governo em relação aos direitos à terra, no sentido de que, em vez de reconhecimento formal, o papel do governo seja a aprovação formal do «direito de uso e aproveitamento da terra» (DUAT). Um certificado de DUAT para uma superfície até 1.000 ha carece, segundo o Decreto, de aprovação pelo Governador Provincial, enquanto um certificado de DUAT para uma área superior a 10.000 ha exige a aprovação do Conselho de

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Ministros. Na prática, estas aprovações acabam às vezes por demorar muito tempo a concretizar-se. Órgãos Locais do Estado e autoridades tradicionais Após a independência de Moçambique em 1975, foram oficialmente banidos os «cargos» das autoridades tradicionais. Desde o início de 2000, contudo, no âmbito de uma política de descentralização mais geral, as autoridades tradicionais foram formalmente reconhecidas como chefes e representantes «comunitários», bem como auxiliares do Estado. O papel, funções e responsabilidades destas autoridades locais estão estipuladas na Lei e Regulamento dos Órgãos Locais do Estado (Lei nº 8/2003; Decreto n° 11/2005). O Decreto de 2005, porém, utiliza uma definição de «comunidade» que difere da «comunidade» da Lei de Terras (Kyed & Buur 2006:576), lendo-se no decreto «conjunto de população e de pessoas colectivas compreendidas numa dada unidade de organização territorial», (itálico nosso). O resultado pode ser que as autoridades tradicionais, na prática, desempenhem um papel mais importante na delimitação de terras «comunidade» do que se previa na Lei de Terras de 1997. Ao nível local, é geralmente reconhecido o papel de mediação das autoridades tradicionais, sempre que há conflitos entre membros da comunidade. Quando há terra disponível, têm também autoridade para atribuir terra, quando solicitada por indivíduos ou famílias, e podem, pois, autorizar pessoas de fora a instalar-se na «sua» área comunitária. Além disso, podem ter importantes funções espirituais e religiosas, que vão de cerimónias em honra dos espíritos ancestrais a cerimónias para chamar as chuvas (Tornimbeni 2007; Dondeyne et al. 2012). Direitos sucessórios e a Lei de Família Em 2004, uma nova Lei de Família veio substituir um código civil português que datava já da época colonial. Segundo a lei portuguesa, as mulheres eram dependentes dos maridos e não era permitido o divórcio. A nova Lei de Família afirma a igualdade entre homens e mulheres e, em conformidade com o princípio de não discriminação da Constituição da República de Moçambique de 1990, proíbe discriminação com base no género (Ikdahl et al. 2005:46). A Lei de Família determina também que tanto as mulheres como os homens têm direito a administrar os bens do casal, e têm os mesmo direitos iguais a legar e herdar bens. Assim, as mulheres e os homens têm igual acesso a direitos transmissíveis (herdáveis) à terra e aos recursos naturais.

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Antes de esta lei ter sido aprovada, a possível legalização da poligamia foi objecto de muito debate. Segundo Cooper (2011), um terço das mulheres em Moçambique vivem em uniões poligâmicas, enquanto mais de 55% vivem em relações de coabitação sem serem casadas. A Lei de Família que foi finalmente aprovada não prevê o reconhecimento legal de direitos de herança para os parceiros em relações de coabitação, nem para as mulheres que vivem em uniões polígamas.

A DELIMITAÇÃO DA COMUNIDADE DE MCHELE

Para pessoas de fora que cheguem à comunidade a que chamamos aqui Mchele, esta comunidade pode parecer um conjunto muito «tradicional» de pessoas, instaladas numa localidade remota e pouco povoada da província de Manica. Na fronteira com o Zimbabué, as pessoas na província tiveram ao longo da História de se adaptar a diversas políticas coloniais portuguesas e britânicas de terra e de trabalho, bem como às mudanças políticas estatais do pós-independência. Do lado do Zimbabué, uma história de alienação da terra e de ordenamento técnico do território tem, de acordo com Hughes, dirigido os conflitos rurais no sentido de conflitos de terra em geral, e reivindicações de terra e «limites cadastrais» em particular (Hughes 1999:538). Em Moçambique, a administração colonial regulamentava o seu poder sobre o território através da mediação das autoridades tradicionais locais e do poder e autoridade destas sobre o povo. O legado desta política faz com que uma «comunidade rural» seja muitas vezes concebida como um grupo de pessoas que reconhecem uma determinada «autoridade tradicional». Com base na pesquisa que fizeram na província de Manica, Schafer & Bell descrevem «uma aceitação básica da ideia de que um chefe governava uma porção do território, e também as pessoas que estavam ligadas a ele como súbditos através de um contrato simbólico, mediado por práticas espirituais» (Schafer & Bell 2002: 405)6. A história moderna da zona é marcada por períodos de guerra, deslocamento de populações e violência, bem como níveis bastante elevados de migração (Lubkemann 2008). Durante a guerra civil moçambicana, a área de Mchele foi um dos bastiões dos combatentes da Renamo. O legado desse período veio posteriormente a expressar-se num apoio limitado ao partido do governo, a Frelimo, durante as eleições e em pouca confiança nas autoridades estatais nomeadas para operar nas «trincheiras». Do lado do Zimbabué, encontramos actualmente um estado moderno africano em crise (Derman & Kaarhus, 2013), ao passo que,

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do lado moçambicano, os investimentos externos em terrenos e desenvolvimento agrícola estão a aumentar. Esta tendência contribui para alterações nas condições de vida locais e para uma pressão cada vez maior sobre a terra (Veldwisch et al. 2013). Nesta situação, os processos de formalização da terra podem contribuir para mudanças no equilíbrio do poder local no sentido de aumentar não só o valor local de terra mas também o valor do poder sobre a terra – incluindo os poderes detidos pelas autoridades tradicionais locais. Nos últimos anos, tanto as ONGs locais como as ONGs nacionais têm tomado iniciativas para organizar e levar a cabo processos de delimitação de terras na província de Manica. Esses processos têm sido realizados especialmente nas comunidades próximas das zonas de conservação ou zonas destinadas a grandes investimentos fundiários. Um interveniente central nestas iniciativas de delimitação de terras tem sido a Iniciativa para Terras Comunitárias (iTC); uma organização de projectos financiados por múltiplos doadores, com escritórios em Manica, que facilitam o registo formal da terra comunitária7. Em 2007, uma das ONGs locais, aqui chamada ACACIA8, fez um pedido ao iTC para realizar uma delimitação de terras da comunidade de Mchele. Foi este o primeiro processo de delimitação de terras que a ACACIA se propôs dirigir. A proposta estava ligada a um projecto de desenvolvimento comunitário que envolvia também investidores privados. A iniciativa e as suas perspectivas de possibilidades de geração local de rendimento conquistaram o apoio de – pelo menos algumas das mais influentes – pessoas locais na área de Mchele, e a iniciativa de delimitação obteve também financiamento da iTC. Passos concretos do processo de delimitação Em Abril de 2009, a ACACIA iniciou um trabalho de preparação social na localidade onde se situa a zona de Mchele. Esta preparação social consistiu em Diagnósticos Rurais Participativos (DRP), com a presença de homens e mulheres locais, durante os quais foram discutidas as utilizações dos recursos naturais e foram desenhados «mapas participativos». Os mapas indicavam a terra comunitária de Mchele e as suas subdivisões, bem como as comunidades vizinhas. O plano inicial da ACACIA era que o processo de delimitação pudesse partir deste trabalho e prosseguir com a identificação no terreno dos limites da comunidade de Mchele. Nesta fase, porém, foram chamados técnicos dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro, para cumprir com os requisitos do Anexo Técnico ao Regulamento da Lei de Terras. Os técnicos insistiram que o mapeamento participativo devia ser feito de novo. Como tinha sido feito na sua ausência, não podiam confirmar a sua

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validade. Neste ponto, o processo de delimitação transformou-se em vários dias de discussão entre os membros da equipa de delimitação: isto é, os «representantes da comunidade» seleccionados por Mchele, e a «equipa técnica», composta pelos técnicos públicos, um facilitador da ONG e nós. O resultado foi que se marcou nova reunião local para fazer um novo mapa, que poderia então ser verificado no campo, na presença de toda a equipa de delimitação. A equipa combinou um dia para o arranque desta parte mais técnica da delimitação, que implicava identificação de limites comunitários no terreno e consolidação com comunidades vizinhas. O grupo encarregado de identificação de limites seria nesse dia composto pelo mambo Mchele9 e mambos vizinhos de diversos níveis, que representavam o conhecimento local sobre fronteiras e uso da terra do seu lado. O grupo incluía também três representantes eleitos de Mchele, um representante dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro, o facilitador da ONG, e nós os dois. Como «observadores participantes», também contribuímos para facilitar o processo, ajudámos com aspectos técnicos do mapeamento participativo e da georreferenciação, e pudemos às vezes ajudar com transporte no terreno. Durante as primeiras fases do processo de delimitação, incluindo as reuniões preparatórias e o exercício inicial de elaboração de mapas do DRP, estiveram presentes várias mulheres locais. Mas, quando se procedeu à identificação dos limites, só apareceram homens como representantes da comunidade. A equipa técnica passou a noite da véspera da identificação de limites em tendas num acampamento florestal local e houve cânticos e tambores que não nos deixaram dormir. Na manhã seguinte, ficámos a saber que o mambo Mchele tinha realizado uma cerimónia para os espíritos ancestrais. Pode ter sido uma mediação espiritual necessária para realizar a identificação de limites, mas também teve como resultado um atraso substancial em relação ao trabalho planeado para esse dia. Só quando o mambo Mchele finalmente apareceu ao meio-dia, a equipa pôde pôr-se a caminho para ir encontrar-se com outros mambos no local de encontro acordado – à sombra de uma grande árvore perto da estrada. Quando chegámos, não estava lá ninguém. Veio a saber-se que os que tinham ali estado à espera tinham ido tomar umas bebidas. Quando os localizaram, surgiu uma primeira disputa entre os mambos: Como é que eles podiam começar a beber quando o plano era trabalhar na delimitação? E ao invés: Como podia o mambo Mchele ter passado a noite a beber e chegar tão atrasado, quando o plano combinado era trabalhar na delimitação? Depois de alguma acalorada discussão, saímos todos para ir ter com o mambo superior de toda a zona. Quando chegámos 12

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a casa deste, surgiu nova disputa sobre a mesma questão: como podia o mambo Mchele não respeitar os compromissos e até fazer esperar um mambo superior? Mais uma vez o mambo explicou que teve de realizar cerimónias para comunicar com os antepassados na noite anterior; e então teve forçosamente de se embriagar. Ao fim de algum tempo, acordou-se que devíamos continuar, para identificar um sítio importante marcando o limite entre Mchele e a zona vizinha a sudeste, que era um ponto crucial para a georreferenciação e mapeamento da área. O ponto exacto devia ser algures entre a estrada e um pequeno rio. Houve alguma discussão sobre onde ficava ao certo; e, quando foi finalmente identificado, num lugar pantanoso com caniço, arroz cultivado e água corrente, o sítio era realmente na nascente de um pequeno riacho. Assim sendo, tinha também importância ritual; e, chegando lá, tivemos de realizar uma cerimónia de saudação local de bater palmas10. Um de nós fez então a georreferenciação com GPS e o local foi identificado pelo representante dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro num mapa topográfico. Depois disso, continuámos a pé pelos caminhos que, de comum acordo entre todos os presentes – ou seja, os representantes locais de ambos os lados dos limites do «grupo de identificação de limites» deste dia –, marcavam a fronteira legítima entre Mchele e a comunidade vizinha a sudeste. Caminhámos, pois, da nascente do rio até à sua confluência com um rio maior que marcava o limite da área de Mchele a oeste. Este limite ocidental tinha sido registado numa delimitação anterior realizada na comunidade vizinha, e foi aceite por todos. O ponto sudoeste da zona da Mchele do «nosso» lado do rio foi então identificado no terreno pelo grupo de pessoas locais, identificado no mapa dos Serviços de Geografia e Cadastro, e georreferenciado; e começámos a caminhar de volta à estrada. Então, ao fim de um longo dia, os participantes locais no grupo de identificação de limites levantaram a questão da comida: Porque é que não havia comida como devia ser? Porque é que os organizadores não forneceram comida para quem tinha participado na longa caminhada do dia? Não éramos nós – os dois estrangeiros – que devíamos ser responsáveis por isso? O que veio mais uma vez levantar a questão: de quem era realmente este processo? Enquanto o mambo Mchele não disse nada, dissemos que não era «o nosso processo»; estávamos a acompanhar o processo deles, estávamos apenas a ajudar com algum transportes e georreferenciação. Com esta disputa ficámos, aparentemente, todos conscientes de que a questão da «apropriação» do processo ainda não era clara. As normas e expectativas locais que ligam a apropriação do processo à responsabilidade de fornecer comida aos participantes, expressa num grupo de pessoas cansadas e famintas, deram-nos uma 13

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consciência aguda da questão da apropriação. Veio a verificar-se que, a partir deste dia, pudemos observar uma apropriação mais activa da delimitação como processo localmente situado para regular o acesso à terra e legitimar poderes. Paralelamente a esta apropriação local, porém, as mulheres pareciam ter desaparecido de cena. Observámos que muito poucas mulheres locais participaram nas reuniões seguintes para «toda a comunidade». A apropriação local, foi, contudo, expressa pela primeira vez através de um novo atraso, alguns dias mais tarde. Fora planeada e acordada uma grande reunião de «todas as partes interessadas» pelo facilitador das ONGs e o Chefe de Localidade11 da unidade administrativa de que Mchele faz parte. Mas, logo da manhã, um grupo de homens influentes de Mchele, incluindo o mambo, perguntaram se todos os membros influentes da comunidade, bem como os mambos locais a norte, tinham realmente sido devidamente informados sobre o processo de delimitação. Após horas de intensa discussão, concluíram que tal não tinha acontecido. Alguns mambos de nível inferior a norte ainda não tinham sido devidamente informados. Isto fez com que a reunião grande de «partes interessadas» tivesse de ser adiada, para se assegurar que essas pessoas importantes a norte participavam no processo. Entretanto, o pessoal dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro tinha chegado à conclusão de que o exercício de DRP que traçava o perfil histórico da comunidade também tinha de ser repetido – insistindo que os regulamentos exigiam que fosse feito exclusivamente para a comunidade que era objecto de delimitação, ao passo que história registada durante o exercício de DRP incluíra também comunidades vizinhas. Nesta altura, o mambo Mchele decidiu que era também essencial entrar em contacto com a sua irmã mais velha, que era casada e vivia fora da localidade. Foi organizado novo encontro pelo facilitador da ONG, para conseguir a história certa. Participaram 20 homens e três mulheres. Uma delas foi a irmã do mambo Mchele, que era reconhecido como grande conhecedora da história de Mchele12. A história foi agora contada como se segue: O acontecimento mais antigo foi a guerra de Ngungunhane13... Os lugares onde isso aconteceu [na floresta] são agora locais sagrados. A terra de Mchele é a zona tradicional do clã a que pertence o mambo Mchele, e a sua reivindicação baseia-se no facto de os seus antepassados terem sido os primeiros a chegar e a fixar-se nesta zona. Depois disso, veio o período do «Senhor Ferreira», o primeiro português a chegar à zona14... Por volta da viragem do século XIX para o séc. XX, foram identificadas e pesquisadas áreas florestais ricas na planta mhungo [Landophia kirkii], e começou a extrair-se delas borracha. Nessa época, ainda não era explorada a madeira. Isso começou mais tarde, com a construção de uma

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serração pelos portugueses. Esta actividade parou com o início da guerra de libertação nas décadas de 1960 e 1970. As pessoas sofreram muito durante esta guerra; mas sobretudo durante a guerra dos «dois irmãos15», quando as pessoas iam esconder-se na floresta16. Quando os resultados do DRP, incluindo esta última versão da história, mapas, e a verificação no terreno foram apresentados numa assembleia em que participaram mambos vizinhos, bem como um representante dos órgãos locais do Estado e técnicos, todos concordaram e confirmaram que estavam correctos. Em seguida, os representantes das comunidades vizinhas assinaram os impressos que atestem a exactidão dos mapas e relatórios. Surgiu apenas uma pequena controvérsia, relativa a uma parcela de terra a sudeste. Um mambo de nível inferior, procurando aproveitar a ocasião para reforçar a sua própria posição e, por conseguinte, o seu poder sobre a terra, alegou que uma zona localizada entre a estrada e uma travessia do rio pertencia à «sua comunidade» e não a Mchele. Relativamente a esta questão, todavia, não foi apoiado por outros mambos. Estes defenderam que a área pertencia a Mchele, já que o pai do mambo Mchele – o anterior mambo de Mchele – estava enterrado naquela terra. Este argumento revelou-se constituir legitimação irrefutável para um consenso final sobre os limites de Mchele a sudeste. Antes de chegar a este ponto de consenso, porém, o processo fora mais uma vez interrompido, desta vez por parte dos funcionários dos níveis de Localidade e Posto Administrativo. Assinalaram que não colaborariam enquanto eles não tivessem sido «devidamente informados» sobre o processo, isto é, por escrito. Esta mensagem era uma jogada na negociação de posições e papéis na regulação e legitimação do poder sobre a terra de Mchele. Um delimitação legítima exigia a participação de «membros da comunidade», mas também a participação, ou, pelo menos, o apoio formal, das autoridades locais do Estado. Os principais intervenientes, tais como os representantes da comunidade local e os mambos, bem como o pessoal das delegações provinciais, tinham já demonstrado os seus poderes interrompendo o processo de delimitação. Ao comunicarem assim o seu conhecimento dos procedimentos correctos, as autoridades estatais locais da Localidade e do Posto Administrativo mostraram que também tinham poder para interromper o processo. Desta forma, podiam demonstrar que era crucial ter o seu apoio para um processo de regulação legítimo e, ao mesmo tempo, que podiam aproveitar a oportunidade para apresentar agora as suas mensagens ou condições específicas para o processo continuar.

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Pudemos observar que diversos intervenientes conseguiram afirmar a importância do seu papel e da sua participação no processo, mas foi-se tornando cada vez mais claro que as mulheres locais não estavam em condições de o fazer. Por muito que o quadro legal preveja direitos iguais para homens e mulheres, na prática, o processo de delimitação não abriu nenhum espaço real para que as mulheres – como mulheres – pusessem nas agenda as suas necessidades de acesso à terra. As mulheres desempenharam um papel marginal, com uma excepção. Quando a história da região teve de ser «redesenhada» para obedecer aos requisitos do Anexo Técnico da Lei de Terras, o mambo Mchele insistiu fazer participar uma pessoa da sua própria linhagem com fama de ser conhecedora da história local. Essa pessoa era a sua irmã mais velha. Foi recebida com muito respeito. Com base no seu conhecimento da história da sua própria patrilinhagem e da patrilinhagem do seu irmão, pôde contribuir para que a «história fosse correctamente registada». Pôde assim apoiar a reivindicação de «primeiros ocupantes» da área pela linhagem do seu irmão e legitimar a posição do mambo Mchele como chefe local que representa a patrilinhagem dominante na comunidade. O papel da irmã no processo foi dar legitimação às reivindicações e à autoridade do seu irmão, não de representar as suas próprias reivindicações e a sua própria autoridade. Em finais de 2009, foi organizada uma última reunião pública durante a qual os limites, agora indicados em mapas, foram apresentados aos membros da comunidade de Mchele. Na reunião participaram representantes das comunidades vizinhas e os mambos ou delegados por eles designados, bem como por funcionários distritais e os técnicos dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro17. Os participantes na reunião eram todos homens.

ACESSO DAS MULHERES À TERRA

Neste ponto, como pesquisadores, pensámos que era importante obter mais conhecimento sobre as relações das mulheres com a terra em Mchele. Assim, foi entrevistada uma amostra de 21 mulheres, para nos inteirarmos da maneira como as mulheres obtêm acesso à terra e em que circunstâncias lhes pode ser vedado esse acesso. As 21 mulheres disseram-nos ter idades entre os 18 e os 47 anos18. Dezassete eram casadas, três eram viúvas e uma era separada e tinha acabado de deixar o marido por causa de maus-tratos. A informação obtida por meio de entrevistas informais revelou que as mulheres da nossa amostra tiveram acesso à terra através de homens e sobretudo através do casamento. No entanto, mais de metade das

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mulheres da nossa amostra tinha-se de facto mudado para a comunidade com o marido para ocupar terra «nova» e estava, portanto, a utilizar terras atribuídas pelo mambo ao agregado. A maioria das mulheres da nossa amostra (12 em 21) viviam ou tinham vivido com homens polígamos. Com excepção de três mulheres, que não tinham terra ou estavam apenas a partilhar a terra com o marido, a maioria das mulheres (18 em 21) estavam a cultivar e a gerir elas próprias a sua terra, principalmente para subsistência da sua própria família, mas às vezes conseguindo também vender uma parte do excedente. A maior parte das mulheres entrevistadas nasceu fora de Mchele (13 em 21). Das mulheres nascidas em Mchele (8 em 21), apenas uma se casara com um homem local. Um padrão claro na nossa amostra é, portanto, a predominância de exogamia19 e o elevado nível de poligamia. É sabido que a poligamia continua a ser uma estratégia usada pelos homens para criar a sua posição na comunidade. Várias das «nossas» as mulheres não estavam especialmente contentes com a sua própria posição em relações poligâmicas. Duas co-esposas disseram mesmo que gostariam de deixar o seu marido – colectivamente – e ir para outro sítio criar um lar e cultivar a terra juntas. Mas a possibilidade de o fazer dependeria de obter acesso à terra. Viam que a probabilidade de lhes atribuírem terra numa comunidade vizinha era realmente muito baixa. Pode ter sido ainda mais diminuída pelo facto de serem casadas com o mambo, e por a posição das autoridades tradicionais na área – tanto como as relações entre elas – ter sido reforçada através do processo de delimitação. Apresentamos em seguida testemunhos individuais de quatro mulheres da nossa amostra. Estes testemunhos ilustram o carácter precário dos direitos de acesso à terra das mulheres no contexto local e em que medida as mulheres estão dependentes das suas relações com os homens para garantir a sua subsistência. Os testemunhos também ilustram o papel do mambo na atribuição local de terras numa zona com baixa densidade populacional. Para as mulheres casadas, pode variar em que medida têm acesso seguro à terra que realmente utilizam. As suas relações com a terra parecem intimamente ligadas às suas relações com os maridos, relações essas que se poderiam caracterizar como «interdependência desigual» (Cleaver 2012). Em caso de falecimento do cônjuge, as mulheres ficam mais vulneráveis e estão sujeitas a decisões e prioridades unilaterais na família patrilinear do cônjuge. Na nossa amostra, a maior parte das mulheres que ainda estavam em casamentos estáveis estavam bastante confiantes de que, se os maridos morressem, poderiam manter o acesso à terra que estavam agora a cultivar, juntamente com, pelo menos, metade dos bens adquiridos como casal. Os depoimentos das três viúvas da nossa amostra, porém, indicam que, na prática, os 17

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direitos de uso da terra das mulheres não estão seguros. Especialmente depois da morte de um esposo, os direitos das mulheres à terra começam a ser postos em causa na zona onde se situa a comunidade de Mchele.

TESTEMUNHOS ORAIS DE QUATRO MULHERES EM MCHELE20

CASO 1 – Chamo-me Angélica. Nasci na comunidade B.21 Tenho oito filhos e sou casada com o Sr. Daniel, que nasceu em C. Sou a primeira de duas esposas. Nós casámo-nos em B e viemos morar aqui para Mchele já há muito tempo. Quando nos instalámos nesta zona, o meu marido contactou o mambo para obter terra. No total, temos três machambas22 e cada um de nós [marido e duas mulheres] é responsável por um deles. Cultivamos feijão, mandioca, tomate e milho. O meu marido vende banana do terreno dele e gere sozinho o rendimento que tem. Eu tenho um pequeno negócio das bananas e do milho que produzo. Tenho de apresentar ao meu marido o dinheiro que faço com estas vendas, para o partilharmos. Caso o meu marido viesse a falecer, nós, as esposas, ficaríamos com a terra e continuaríamos a viver aqui e a cuidar dos bens e dos filhos. Se os familiares dele quisessem reivindicar parte da propriedade, não permitiríamos que o fizessem. CASO 2 – Chamo-me Josina. Nasci em D. Tenho seis filhos e somos quatro esposas, das quais eu sou a primeira; no total, há 16 filhos. Vim morar aqui para Mchele quando me casei. O meu marido recebeu esta terra do mambo; antes disso, ele também vivia em D. A maior parte da terra que aqui vê pertence ao meu marido e nela produzimos bananas. A venda das bananas ajuda-nos a cobrir as despesas diárias. Eu cá, como as outras esposas, tenho apenas uma pequena parcela de terra, onde produzimos milho para nosso próprio consumo. Se o meu marido falecesse, dependeria dos seus familiares se ficaríamos nesta terra. Eu só sei que eu e os meus filhos temos o direito a herdar esta terra. Se ele quisesse separar-se, voltaria à comunidade dos meus pais, mas ainda lutaria pelos meus direitos através do tribunal e também por intermédio do mambo. Se eu quisesse separar-me, não teria qualquer direito sobre qualquer um dos bens, nem teria direito a lutar por eles. CASO 3 – Chamo-me Amélia. Nasci em Mchele e sou viúva. Tive seis filhos, cinco dos quais morreram. Sou a segunda de quatro esposas. Vivia em D com o meu marido, que faleceu ... Quando o meu marido ficou doente, tivemos de mudar para a casa dos pais dele, onde já viviam as outras três esposas. Tivemos de vender o nosso terreno para pagar o tratamento, mas ainda assim ele faleceu. Passado algum tempo, através do mambo, conseguimos arranjar outra parcela de terra para viver em D, porque não podíamos ficar para sempre em casa dos meus sogros e eu tenho aqui nesta comunidade dois campos onde cultivo milho, bananas e hortícolas. Como o terreno das bananas continuou sob a minha responsabilidade, partilho com as outras esposas o rendimento que obtenho com a venda de bananas. Actualmente, porém, o irmão do meu falecido marido anda a ameaçar-me, porque quer os campos de banana. Apesar de eu ter pleno direito ao terreno, não vejo como possa impedi-lo [de ficar com ele]. CASO 4 – Chamo-me Dulcineia. Sou uma viúva e tenho três filhos. Estou doente, sofro de tuberculose. Estou actualmente a viver em circunstâncias muito difíceis, pois não tenho casa e vivo com meus filhos debaixo de uma árvore, já há 6 meses. Recebi este local do meu irmão. Mas eu própria não tenho nenhum terreno, porque não sou capaz

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de cultivar a terra, por causa da minha falta de saúde. Estou a pensar em ir para outra comunidade, onde tenho parentes. Sei que o meu [outro] irmão me vai dar lá alguma terra. Eu era a primeira de duas esposas. Juntos, tínhamos construído duas boas casas com telhados de chapas de zinco. Mas logo após a morte do meu marido, os seus familiares tiraram-nos os bens todos. Quando ele estava doente, disseram que eu poderia ficar com tudo e assim poderia cuidar dos nossos filhos. Mas nenhuma das duas esposas conseguiu ficar com nada daquelas casas. Eu bem tentei lutar pelos meus direitos, mas os familiares do meu marido disseram apenas que todos os bens eram propriedade do falecido, já que é o homem que faz mais esforços para adquirir tudo. Nestas circunstâncias, não tive quaisquer direitos.

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

Relações entre Estado e comunidade Na sua avaliação da reforma do regime fundiário na África Oriental e Austral, Alden Wily (2000: 4) concluiu que: A própria natureza dos Estados nacionais é tal que as pessoas nunca ficarão livres dos regimes que criam ou toleram, mas o Estado também nunca ficará livre das exigências das pessoas para as quais actua. Conseguir o equilíbrio certo – eis o que se pretende com a actual democratização do subcontinente. O caso que aqui apresentamos ilustra que o equilíbrio não foi ainda atingido. O processo de delimitação destinado a garantir direitos de acesso da população local à terra e aos recursos naturais pode facilmente ficar emaranhado numa complexa teia de interesses instituídos, negociações e lutas de poder. As instituições do Estado e os seus funcionários, bem como as autoridades locais, podem usar o processo de delimitação para reforçar as relações de poder e uma interdependência desigual, demonstrando a todas as partes envolvidas que os seus conhecimentos e o seu apoio são cruciais para a legitimidade do processo. Em pontos críticos, vimos que os indivíduos com esses poderes de mediação os utilizavam para interromper o processo, afirmando assim o seu poder e a sua autoridade sobre a terra e as pessoas, mas aproveitando também a oportunidade para apresentar condições específicas a serem cumpridas para o processo poder continuar. Após a última reunião com a comunidade em 2009, o processo de delimitação de terras estava, em princípio, concluído e os documentos foram apresentados às autoridades provinciais para a obtenção do certificado de DUAT. Soube-se então que a área delimitada de Mchele tinha afinal um pouco mais do 10.000 ha. Assim, na sequência do Decreto governamental de 2007, os documentos tinham de ser enviados para a capital para «aprovação» final. Neste ponto, parecia que o Governo também preferia utilizar os seus

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poderes de mediação na fase final deste processo de formalização. Pode considerar-se que conceder DUATs formais a grandes áreas comunitárias limita as possibilidades de o próprio governo negociar e atribuir grandes extensões de terra aos investidores externos, que cada vez mais fazem esses pedidos para agricultura comercial, plantações florestais ou culturas para a indústria de biocombustível. Norfolk & Bechtel (2013:29) referem que, por causa disto, a aplicação de processos de delimitação foi interrompida em todo o país durante meses. Os processos reiniciaram-se em 2011, quando a alteração no decreto governamental de 2007 foi esclarecida numa nova circular do Governo, afirmando que não era necessário nenhuma autorização política do processo para processos de delimitação23. Isto implica que o Director dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro podia realmente aprovar o processo de Mchele, considerando-o completo e correcto. Na altura da redacção do presente artigo, porém, no caso da delimitação da comunidade de Mchele, isto ainda não foi feito. Reflexões sobre a igualdade de direitos à terra das mulheres em Moçambique Pode defender-se que a principal preocupação da Lei de Terras moçambicana de 1997 foram os direitos do grupo comunitário e não os direitos das mulheres nem os direitos individuais à terra. Como observou Fitzpatrick (2005), pode considerar-se que a lei foi concebida essencialmente para assegurar os direitos dos grupos locais – enquanto comunidades – a protegerem os seus direitos em relação a agentes externos ou outros que pudessem estar em posição de alienar as ocupações «informais» de terra pelas pessoas locais. Ao mesmo tempo, veio trazer uma razoável segurança de ocupação aos agentes externos que quisessem investir em comunidades rurais. Os regulamentos da lei de terras prevêem e realmente incentivam que sejam realizados processos de delimitação de terras em zonas «críticas», como as zonas onde poderiam surgir conflitos entre interesses externos (um investidor, um empresário ou uma agência de conservação) e uma comunidade local. Ao incluir disposições que garantem às mulheres o direito ao acesso à terra e ao seu uso, a Lei de Terras veio confirmar os princípios básicos de equidade e não-discriminação enunciados na Constituição da República de Moçambique (Ikdahl et al. 2005:47). O artigo 13 da Lei de Terras afirma ainda que as pessoas singulares, homens e mulheres, membros de uma comunidade local podem solicitar títulos individualizados. Segundo a interpretação jurídica predominante deste artigo, pode dar-se titulação individual dentro duma terra comunitária delimitada “após desmembramento do respectivo terreno das áreas da comunidade” (Lei No. 19/97, Artigo 13). Até agora, esta disposição raramente tem sido

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utilizada para reforçar os direitos das mulheres à terra nas comunidades rurais, e o apoio externo para a formalização de direitos de terras em zonas rurais tem visado antes de mais as comunidades propriamente ditas (Quan et al. 2013). Na sua análise de aspectos de género na implementação da lei de terras em Moçambique, Forsythe & Chidiamassamba (2010) descrevem claras limitações no acesso das mulheres à terra e controlo da mesma, em comparação com os homens. Quan et al. (2013:19) defendem que para garantir a participação das mulheres nos processos de delimitação de terra são necessários novos esforços visando «formação e capacitação específica, sensível às questões de género», destinada a facilitadores das ONGs e a funcionários governamentais. Nossa análise do processo de delimitação Mchele aponta ainda para a necessidade de mecanismos específicos para proporcionar espaços para expressar os interesses das mulheres locais em relação à terra durante o processo. Em Mchele, descobrimos que formalizar os direitos da comunidade no âmbito de um quadro jurídico não discriminatório não leva, por si só, a assegurar os direitos singulares de homens e mulheres à terra com base em princípios não discriminatórios. Testemunhos individuais de mulheres sobre o acesso à terra e o uso da mesma em Mchele indicam que as regras «costumeiras» ainda são usadas para fazer valer os direitos dos homens à terra e o seu controlo deste recurso. No entanto, se a nossa descrição dos direitos à terra em Mchele se baseasse apenas nas entrevistas as mulheres, podíamos ter acabado por indicar como os direitos à terra nesta comunidade e a exclusão das mulheres do acesso directo à terra são determinados por normas patrilineares tradicionais e pelo – irrefutável – poder das autoridades tradicionais. Uma vez que também acompanhámos o processo de delimitação através de observação participante, testemunhámos uma permanente luta de poder, em que as relações locais de poder e influência foram reafirmadas, mas também contestadas e renegociadas. Observámos que o próprio mambo Mchele lutou durante todo o processo para manter a sua posição e a sua autoridade, mas, à medida que ia avançando, viu sem dúvida o processo de delimitação como uma oportunidade para consolidar e reforçar a sua própria posição, através da regulação e legitimação de seu poder sobre a terra. Da mesma forma, outras pessoas em posições de poder e autoridade na área – que se revelaram ser todas homens – utilizaram o processo de delimitação para reafirmar o seu conhecimento específico

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e condições de autoridades mediadoras1, bem como o seu próprio papel crucial na legitimação da delimitação. Quando começou a haver uma maior apropriação comunitária do processo, os homens da zona acabaram por ocupar praticamente todos os papéis de representantes da comunidade. Quando a irmã do mambo foi incluída no processo, foi para legitimar as estruturas de poder patrilineares existentes e não para afirmar ou reivindicar direitos em seu próprio nome ou em nome de outras mulheres. Como representantes de um Estado com um quadro jurídico não discriminatório promulgado, os funcionários estatais locais de forma alguma puseram em causa preconceitos masculinos nos esquemas locais de ocupação da terra, mas utilizaram antes o processo de delimitação para reafirmar e – se possível – reforçar as suas próprias posições e poderes em relação às pessoas e à terra. Na prática, o processo que testemunhámos em Mchele não deu espaço para que as mulheres expressassem os seus interesses ou pusessem na agenda as suas preocupações com o acesso à terra – ou a exclusão dela. No seio das instituições e organizações que trabalham para proteger os direitos comunitários à terra em Moçambique, há um debate em curso sobre como apoiar mais e reforçar os direitos das mulheres à terra. Dar apoio para formalizar DUATs individuais para as mulheres é considerado uma opção (Kaarhus & Martins 2012:44). A nossa análise do processo de delimitação em Mchele, apontando para o poder inerente em posições de autoridade mediadora, também poderia, porém, fornecer uma base para uma utilização mais consciente e mais bem planeada de mecanismos específicos para criar um espaço para as mulheres locais – como mulheres – porem na agenda as suas preocupações, ou então suspenderem esse processo. Isto implicaria que as instituições executoras na sua planificação de processos de delimitação introduzissem pelo menos um «ponto de paragem» para as mulheres locais agirem como autoridades mediadoras. Isto é, estabelecer um ponto em que seja dado às representantes das mulheres locais um espaço e autorização para propor alguns elementos da «regulação» da terra de especial importância para as mulheres, que devem ser discutidos antes que o processo ser autorizado a continuar. Desta forma, as mulheres também poderiam ter um papel-chave na legitimação do processo.

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Usamos autoridade mediadora como tradução do conceito “gate keeping power” em inglês.

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Criar espaço para as mulheres desta forma traria evidentemente novos dilemas. O relato aqui feito indica, sem dúvida, que a introdução deste papel de «autoridades mediadoras» para as mulheres poderia ainda complicar e atrasar mais um processo que é já complexo e cuja gestão constitui um verdadeiro desafio. No entanto, se não se obtiver um equilíbrio aceitável durante o processo de delimitação de terras comunitárias propriamente dito, a negociação do acesso das mulheres à terra terá de continuar noutros fóruns. Isto aplica-se a Mchele, mas diz certamente respeito a outras comunidades muito além de Mchele. O nosso estudo de caso mostra que ainda há necessidade de criar mecanismos que garantam os direitos de acesso das mulheres também dentro de terras comunitárias já delimitadas.

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NOTAS 1

O conceito de ocupação costumeira da terra tem sido matéria de debate, especialmente no que diz respeito aos sistemas legais duais que caracterizam o domínio colonial britânico em África (Chanock 1985; Whitehead & Tsikata 2003; Cousins 2008). Tal como é aqui utilizado, pretende referir regimes fundiários locais, que podem assentar em normas e práticas «tradicionais», mas que também têm respondido a processos históricos de mudança na área.

2

A Lei de Terras de 1997, Artigo 1, define uma «comunidade local» como «agrupamento de famílias e indivíduos, vivendo numa circunscrição territorial (…), que visa a salvaguarda de interesses comuns através da protecção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam cultivadas ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de água e áreas de expansão». 3

Usamos pseudónimos para nomes próprios de pessoas e localidades, para proteger a privacidade dos informantes. Isso dá-nos mais espaço discutir os aspectos mais problemáticos de uma delimitação de terras que, em muitos aspectos, é considerada muito bem-sucedida. 4

Benilde Nhabomba e Tina Krüger

5

Zacarias Jemusa Gumbo

6

A administração colonial britânica em África era exercida através de «chefes», desempenhando os régulos um papel semelhante na África Oriental Portuguesa. Aqui, optámos por não usar «chefe» – ou régulo – como termos genéricos e usamos antes o termo local ndau mambo para referir uma pessoa que ocupa a posição de «autoridade tradicional». 7

A Iniciativa para Terras Comunitárias – iTC tem focado a sua actuação no centro de Moçambique. Com o DfID como principal doador, tem sido gerida por um consórcio dirigido pela KPMG Moçambique, apoiada pela NRI (Universidade de Greenwich, Reino Unido) e, a partir de 2011, pela ONG moçambicana Centro Terra Viva (CTV). Em 2008, foi iniciado o Projecto de Ocupação da Terra da Millennium Challenge Account com financiamento paralelo norte-americano para cobrir as províncias do norte. Outro interveniente importante tem sido a ORAM – Associação Rural de Ajuda Mútua, uma ONG nacional criada para promover e implementar a Lei de Terras. 8

ACACIA é também um pseudónimo. A nossa participação na delimitação foi aprovada pela ONG e também pelos outros membros da equipa de delimitação.

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Formalização dos direitos fundiários com base na ocupação costumeira da terra

9

Isto é, a Autoridade Tradicional na zona de Mchele.

10

Em princípio, este aplauso é feito apenas por homens. As mulheres devem fazer uma vénia enquanto os homens aplaudem numa sequência e num ritmo específicos. 11

Na estrutura de governação local, a Localidade inclui geralmente várias Comunidades. Várias Localidades são, por sua vez, governadas por um Posto Administrativo, que, por seu turno, faz parte de um Distrito dentro de uma Província. 12

O seu conhecimento especializado de história local foi comprovado por James Bannerman, um historiador com reconhecida experiência na área, que participou na reunião. 13

Ou Gungunhana, o terceiro rei ngúni de Gaza e neto do rei Soshangane, líder de um dos violentos grupos migratórios ngúnis (zulus) que invadiram territórios moçambicanos a partir da década de 1830, e derrotados pelos portugueses só em 1895. 14

Provavelmente referindo-se a um administrador colonial.

15

«Guerra dos dois irmãos»: a guerra civil que começou alguns anos após a independência de Moçambique em 1975. 16

Curiosamente, o anterior exercício histórico – com mais mulheres presentes – registara eventos que desta vez não foram mencionados. Um deles foi a «abolição da poligamia» (sic) em Moçambique. 17

A delimitação aqui descrita é muitas vezes referida como exemplar por ONGs locais, funcionários governamentais e políticos pelo êxito que teve em proteger os direitos comunitários à terra e promover o investimento privado. 18

Menos de metade delas sabia a idade.

19

Significando aqui que as esposas são originárias de diversas comunidades.

20

Os nomes das mulheres também são pseudónimos.

21

Usamos códigos em vez de pseudónimos para comunidades e localidades.

22

Machamba – usado em zonas rurais de Moçambique para campo, terra de cultivo.

23

DNTF Circular Nº 1/2010, da Direcção Nacional de Terras e Florestas do Ministério da Agricultura.

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