Formando sujeito, tornando objeto: relações com o cão na Amazônia indígena

July 27, 2017 | Autor: Paulo Büll | Categoria: Amazonia, Etnologia, Amazonian Ethnology, Etnología, Etnologia Indígena
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FORMANDO SUJEITO, TORNANDO OBJETO: RELAÇÕES COM O CÃO NA AMAZÔNIA INDÍGENA

Paulo Leme Gonzalez Büll UFRJ 2015

Os cães estão presentes em grande parte dos grupos indígenas da Amazônia. Não só etnógrafos e cronistas, mas também arqueólogos (Merey, 2007), historiadores (Schwarz, 1997) e geneticistas (van Asch et al., 2013) têm constatado esta presença. Grande parte destes trabalhos atestam que o cão está presente na Amazônia desde os tempos da Conquista, já que foram trazidos pelos colonizadores europeus. Em um ensaio sobre a história da bacia do Orinoco, o jesuíta italiano Filippo Salvatore Gilii (1965 [1782]) expôs que os cachorros “propagaram imensamente” nas Américas após a Conquista: [Los perros fueram] traídos por los primeros conquistadores y propagados imensamente em América (...). Todas lãs naciones (...) tienen perros por médio del comercio de unos com otros, y hacen suma estima de ellos, tanto para la caza como para la centinela de noche.

A presença do cachorro na Amazônia aparece, até mesmo, em uma das primeiras fotografias amazônicas, registradas em 1867 por Christoph Albert Frisch em uma expedição fotográfica na região do Rio Solimões ou Alto Amazonas1:

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Sobre a discussão a respeito das primeiras fotografias amazônicas, ver Ferreira de Andrade (2013).

A evidência do cão como um animal auxiliar na prática da caça também é recorrente nas fontes bibliográficas. Como afirma Marion Schartz em seu livro History of dogs in Early América (1977:41, trad. minha), “os povos da Amazônia que não tinham tradição de criar e cuidar de cães estavam ansiosos para obtê-los, uma vez que eles entenderam as habilidades de caça de tais importações europeias”2. As menções aos cães, nas etnografias ou nos relatos de cronistas, viajantes e missionários, recorrentemente fazem referência ao papel deste animal como auxiliar na caça. O próprio termo cinegética, comumente empregado por etnólogos para se referirem a tal prática, etiologicamente significa “arte de caçar com o auxílio de cães” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013). Vejamos a descrição de Spix e Martius, ao relatarem uma expedição em busca de caça pela floresta amazônica, contando com a ajuda de cães caçadores “bem amestrados”: procuráva-mos, com o auxílio de alguns caçadores amadores e de seus cães bem amestrados, caça grande: caititu, veado, onça e anta (...). De repente o mato anima-se: aparece a anta, perseguida pelos cães latindo, e que se precipita de cabeça estendida e cauda enrolada, em linha reta pela brenha, atropelando à sua frente tudo que lhe embarga o caminho. (Spix e Martius, 1981 [1828]: 83)

Este trabalho tem dois objetivos. Em primeiro lugar, o de entender quem são os cães na Amazônia indígena: como são concebidos, a quem estão associados, e quais são os termos de referência a eles empregados. Em segundo lugar, busco entender as relações travadas pelos indígenas da Amazônia com o cachorro, focando especificamente na atividade cinegética. Como já apontado acima, o cão exerce importante papel auxiliar na caça. A questão a ser percorrida por este trabalho é a de como tirar proveito das capacidades cinegéticas do cão, já que, como veremos abaixo, ele é considerado a princípio (ou nas narrativas míticas) um animal incestuoso, coprófago e sexualmente descomedido. Baseando-me nas relações de alimentação e nomeação do cão, bem como nos momentos nos quais os cães são cuidados e controlados por seus donos, argumento que há na Amazônia indígena uma passagem de um momento no qual este animal é socialmente insignificante, para outro no qual ele é valorizado. O cuidado e o controle do cão, e o conjunto 2

Assumo a responsabilidade por essa e pelas demais traduções feitas neste trabalho.

de técnicas elaboradas para torná-lo caçador, são tidos aqui como modos de relação que marcam o estatuto social do cão, permitem uma relação (social) possível entre ele e os humanos, e a partir de então a capacitação das habilidades cinegéticas do animal. Antes de me deter a tais relações de alimentação e nomeação, bem como as de cuidado e controle do cão, reflito abaixo sobre os mundos e seres aos quais os cães, nas terras baixas da América do Sul, estão associados.

Associando contextos e ecologias Em muitos grupos indígenas amazônicos, os cães são designados por termos lexicalmente próximos ao português: cachoriru, kasuru e kasoro, respectivamente para o caso dos Nambiquara, localizados no Mato Grosso, e dos Kawaiwete (Kaiabi) e Trumai3, localizados no Parque Indígena do Xingu. Mesmo quando o termo usado para designar a espécie não é próximo ao português, muitas vezes o nome usado para chamar determinado cão revela a associação deste animal ao mundo dos brancos: na região das Guianas, os cães entre os Wayana são chamados por termos em português e que são considerados engraçados: maça, bolo; e entre os Hixkaryana, alguns cães têm nomes que vêm de personagens de novelas. Já na região do Alto Rio Negro, entre os Koripako, e no Rio Solimões, entre os Tikuna, os cães são chamados por termos como negro, moreno ou feo4, os quais denotam as características físicas do animal. Entre os Bororo, localizados no Mato Grosso, os cães recebem nomes que são comparados aos apelidos dos homens brancos, como preguiçoso (Crocker, 1985:31). Nomes que fazem referência ao universo dos brancos, às características físicas do cão e a nomes engraçados também são atribuídos aos cães pelos Karitiana, grupo indígena localizado em Rondônia (Vander Velden, tese: 210).

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Todos esses dados foram coletados a partir de um questionário, enviado a pesquisadores americanistas que gentilmente responderam a perguntas sobre o tema da relação entre humanos e cachorros. Uma tabela com todos os pesquisadores, seus respectivos grupos, e com o termo pelo qual o cão é designado, consta no final deste artigo (anexo 1). Deixo aqui meu agradecimento a todos os pesquisadores que responderam o questionário.

A associação entre cachorros e brancos é expressa também pelos termos mediante os quais os cães são repreendidos. Entre os Awá-Guajá, grupo tupi-guarani localizado no Maranhão, os donos dos cães “têm por hábito comunicar suas ordens [aos cães] apenas em português” (Garcia, 2010: 293), até porque estes animais são considerados karaí nimá, termo que significa animal de criação dos brancos (idem:223). Entre os Parakanã, grupo também tupi-guarani, localizado no Pará, o termo passa é sempre utilizado quando se pretende repreender o cão. Já entre os Kaiabi, falantes da língua Kawaiwete e localizados no Parque Indígena do Xingu, quando os cães entram nas casas grita-se com eles em português, mesmo que os donos falem apenas Kawaiwete. O cão está associado ao mundo dos brancos, pelo menos entre os Karitiana, também pelo fato dele ter sido adquirido fora das aldeias. Como apresenta Vander Velden, o cão é um intermediário ou um elo entre o mundo dos brancos e dos Karitiana. Seu nome, nesse sentido, “está vinculado ao universo das atividades daqueles que o trouxeram” (Vander Velden, 2012: 64)5. A peculiaridade dos critérios de nomeação dos cães também ocorre nos grupos Chaco, localizados na Bolívia e Argentina. Diego Villar (2009) argumenta que enquanto a atribuição de nomes para os animais é orientada por uma lógica antropomórfica, e para os humanos zoomórfica, para os cães nenhuma destas duas lógicas se aplicam. Segundo o autor, os termos de referência designados aos cães são ambíguos e revelam sua associação aos brancos e também ao jaguar: "la etimologia presenta al perro como mascota del hombre, paradigma del animal del hogar, pero también como mascota del jaguar, signo por antinomasia de la inhumanidad deliberada, lo asocial y lo selvaje" (2005: 499). Não somente entre os grupos Chaco dos quais trata Villar (2009), mas também em muitos grupos amazônicos, os cães (enquanto espécie) são designados pelo mesmo termo utilizado para fazer referência ao jaguar. Entre os Awá-Guajá, por exemplo, "utiliza-se a tradução 'cachorro' para fazer referência aos jawara (onças)" e se chama, muitas vezes, os cachorros de onça (Garcia, 2012:296). Já entre os Karitiana, cachorros são literalmente "onças mansas" ou "onças de criação" (Vander Velden, 2009:9). Na língua Jê, entre os XikrinMebengokre e Canela Apanjekra (Timbira), localizados respectivamente no Pará e Maranhão, o radical Rop-, utilizado para se chamar o cachorro, é o mesmo que designa o jaguar.

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Não me deterei, por falta de dados, aos comércios de cães que mobilizam tanto as aldeias e quanto as cidades.

Entre os Ka’apor, Parakanã e Awá-Guajá, grupos de língua tupi-guarani, os cães são chamados pelo mesmo termo utilizado para designar o felino: jawara para os casos Parakanã e Awá-Guajá, e yawar para o caso Ka’apor. Lévi-Strauss já havia chamado a atenção, em Do mel às cinzas, para a classificação semelhante - e não-heteróclita - utilizada por grupos indígenas para se referirem aos cães e jaguares: falando a respeito da língua tupi-guarani, diz o autor que “[a] partir do radical /iawa/ o tupi forma, por sufixação, os substantivos: /iawara/ ‘cachorro’, /iawaraté/ ‘jaguar’, /iawacaca/ ‘ariranha’, /iawaru/ ‘lobo’, /iawapopé/ ‘raposa’” (2004 [1967]: 83). Segundo Felipe Vander Velden, duas são as razões que explicam a associação entre cães e onças. Em primeiro lugar, tanto os cachorros quanto outros carnívoros são associados pelos Karitiana à onça pelo fato de que estes seres compartilham a ferocidade, atributo prototípico do felino. Para os Karitiana, ser potencialmente perigoso é um dos fatores que causam a associação do cão ao maior carnívoro das Américas6. Em segundo lugar, Vander Velden postula que cães e onças estão inseridos em um contexto ecológico comum: a caça, a ferocidade, a agressividade e a competição ecológica são características compartilhadas por cachorros e onças. Por isso, segundo o autor, a classificação nativa para ambos os seres em muitos grupos indígenas amazônicos é a mesma (Vander Velden, 2012:296-303). A representação do mundo é o que para Eduardo Kohn compartilham jaguares e cães, mas também todos os tipos de seres. Em seu livro How Forests Think (2013), Eduardo Kohn realça que os não-humanos também representam o mundo, mesmo que não linguística ou simbolicamente. Para além do contexto ecológico e dos atributos compartilhados, cães e onças estão imersos em um mundo representacional no qual as onças também adquirem atributos caninos. Portanto, na medida em que as onças se tornam um cão dos seres espirituais mestres dos animais, “what we think of as a jaguar is actually [the spirit animal master’s] dog” (Kohn, 2007:11). Como entender um fundo comum à ligação dos cães aos brancos e à ecologia que os cães compartilham com o jaguar? Existe alguma articulação entre o histórico e lexical vínculo dos cães aos brancos, e sua física, ecológica e também lexical associação ao jaguar? Enquanto sujeitos incestuosos (Descola, 2006) e inquietos (Vander Velden, 2012), mas também objetos caçadores e valiosos, os cães estão imersos na ecology of selves, a qual funciona articulando 6 Descola (1994:230) também observa que a classificação semelhante para cães (e também outras espécies de mamíferos carnívoros) e onças provém da concepção nativa de que estes seres compartilham "natural ferocidade e gosto por carne crua" (apud Vander Velden, 2009:8).

relações ecológicas e relações (para-além-das) humanas (Kohn, 2013). Penso que não só entre os Ávila-Runa, mas também em muitos outros grupos indígenas amazônicos, a relação humano-cachorro conecta-se à ecology of selves ao mesmo tempo que ao mundo exterior às florestas, o qual “alcança camadas de heranças coloniais” (Idem: 18; Kohn, 2013). Embora os cães estejam imersos na ecology of selves da qual trata Kohn, isso não significa que sua posição enquanto sujeito social está dada. Pelo contrário, o descumprimento das regras sociais é uma característica destacada pelos indígenas das terras baixas sulamericanas quando estes se referem aos cachorros. Seja pelo caráter incestuoso do animal, expressado nos mitos (ver Gow, 1997:46) ou mesmo nos discursos indígenas (ver Descola, 2006), seja pelo maltrato constante do qual o animal é vítima nas aldeias, pode-se dizer que o estatuto associal do cão é o seu polo não-marcado.

Formando sujeitos Na mitologia Piro, grupo indígena de língua aruaque localizado na região da Amazônia peruana, os cães possuíam uma linguagem sofisticada, mas perderam-na ao desacatarem certos tabus. Por isso, comunicam-se com os humanos apenas por meio de latidos, uivos e rosnados (Gow, 1997:46). Para os Piro, casar-se com a filha de um tio materno significa tornar-se cachorro, “gente de jeito nenhum” (idem). Entre os Karitiana, os cachorros são considerados animais sujos (por comerem fezes e outros dejetos), promíscuos, traiçoeiros e pouco confiáveis (Vander Velden, 2009:7). Já entre os Marubo, localizados no Rio Purus, os cachorros são considerados fuxiqueiros e sexualmente descomedidos (Cesarino, 2008: 271). O estatuto coprófago do cão é outra característica salientada por muitos grupos indígenas. Entre os Matis, grupo de língua Pano localizado no Vale do Javari, os cães são particularmente mal vistos em relação aos outros xerimbabos, justamente porque se alimentam de dejetos humanos (Erikson, 2012:22). Segundo Philippe Erikson, o estatuto copofrágico do cão, bem como suas atitudes que violam regras de parentesco, reiteram o estatuto associal e dificultam a socialização do cachorro.

Entre os Apinayé, grupo de língua jê, os cães são os animais por excelência desprovidos de piâm, um índice sociológico imprescindível para “uma relação social operar bem” (DaMatta, 1976: 79): pessoas que “egoisticamente deixam de seguir as prescrições mais importantes da cultura apinayé” são ditas piâm ket, “sem piâm” e comparadas a cães, “animais que compreendem tudo o que é dito, mas não obstante continuam a agir anti-socialmente” (Coelho de Souza, 2004:3 apud DaMatta, 1979:100).

Ainda nos grupos de língua jê, entre os Timbira, fazer sexo com a mãe, irmã ou sobrinha/neta acarreta a metamorfose da pessoa em coisa ou bixo (me-bóiá). O mito que narra tais relações proibidas refere-se aos homens incestuosos como transformados “em animais monstruosos semelhantes em certos aspectos a cães” (Coelho de Souza, 2002:519). A concepção negativa em relação à ‘natureza’ dos cães também tem implicações no modo com que os humanos se relacionam com eles nas aldeias indígenas: como disse Ana Paula Rodgers (c.p) a propósito dos Enawene-Nawé, grupo não caçador localizado no noroeste do Mato Grosso, cuidar bem e gostar de um cachorro sempre lhes parecia estranho e não muito adequado. Entre os Kanamari, povo de língua katukina da Amazônia ocidental, um homem que tratava os cães carinhosamente era visto pelos demais como excêntrico. Os cães presentes nas aldeias indígenas são vítimas de constantes maltratos. Por exemplo, entre os Hyxkariana, grupo localizado nas Guianas, as crianças se divertem e riem quando atingem e queimam os cães com pedaços de lenha em chamas. Além disso, os cães estão sempre doentes – com verminoses, sarna e outras doenças na pelagem. Resumidamente, me aproprio da máxima de William Balée (c.p.) sobre os cães entre os Ka’apor, onde são constantemente enxutados, e peço permissão para generalizá-la: it’s not easy to be a dog in a indigenous society of Amazonia. De fato, como aponta Vander Velden (2009), e como apontei em outro trabalho (Büll, 2014), o elevado desprezo com o qual os indígenas da Amazônia se relacionam com o cão não carece de certa ambiguidade7. O maltrato muitas das vezes é acompanhado de uma relação de 7

Segundo Vander Velden (2009:10), a ambiguidade característica do modo de relação com os cães resulta do fato de que estes animais são vistos tanto como perigosos (visão decorrente de sua associação ao jaguar) quanto como preciosos (visão decorrente de sua habilidade na caça). Vale lembrar que outros autores conceberam a relação com o cão na Amazônia indígena, e alhures, como ambígua: ver, por exemplo, Villar (2009) para o caso amazônico, Brightman (1993) para o caso dos Cree, localizados no Canadá, e Ariel de Vidas (2002) para o caso dos Teenek no México.

valor, às vezes mesmo afetiva, e na maioria das vezes os donos choram com a morte de seus cães. Entre os Paumari, localizados no Rio Purus, o falecimento ou adoecimento de algum cachorro é motivo de “tristeza e preocupação”, nas palavras de Oiara Bonilla. Entre os XikrinMebengokre, localizados no Pará, um caso de morte de um cão, causada por um atropelamento acidental, despertou fúria no dono do animal falecido. Como explicar essa instável e ambígua relação com os cachorros na Amazônia? Acredito que a passagem de uma relação de desprezo para outra de valorização ocorre apenas quando os cães já marcaram sua posição de sujeitos, e tal marcação está diretamente ligada à inserção dos cães na caça. Enquanto não participarem da atividade cinegética, ou ao menos enquanto ainda não inseridos nos processos de treinamento e cuidado, os cães continuarão

(não)marcados

por

seu

estatuto

incestuoso.

Por

serem

sexualmente

descomedidos, coprófagos e desprovidos de vergonha (piâm), os cães serão rejeitados ou deixados à própria sorte. A relação muda, contudo, quando o cão se envolve com a caça. Como diz SantosGranero (c.p) a propósito dos Yawanesha, grupo Arawak localizado no leste do Peru, enquanto os cães não caçadores são alvos dos “mais cruéis maltratos”, como serem atingidos por pedaços de pau ou de lenha em chamas, aqueles que são bons caçadores são cuidados, muitas vezes da mesma forma como os humanos. Quando feridos, os cães caçadores são curados com as mesmas folhas e cascas com as quais se curam as feridas humanas. Resumidamente, como diz o autor, “os cães são tratados de acordo com o valor a eles atribuídos”, isto é, de acordo com sua habilidade cinegética.

Alimentação e nomeação As práticas de alimentação dos animais contribuem para sua socialização, como diz Erikson (2012:22). As modalidades de distribuição e consumo de alimentos, no caso dos cães, articulam e estão articuladas em dois contextos: um primeiro, no qual se inserem os cachorros não-caçadores; e, segundo, um outro contexto no qual os cães já estão envolvidos na atividade cinegética. A relação de alimentação dos cães é ilustrativa para se pensar o caráter liminar deste animal, na medida em que ela varia de acordo com o estatuto do cachorro. Em um primeiro

momento, os cães precisam se virar para conseguirem comida. Entre os Hyxkariana, por exemplo, cachorros recebem apenas partes imprestáveis de certos alimentos, como o beiju que cai no chão ou um osso; por outro lado, entre os Koripako, o cachorro bem sucedido na predação pode alimentar-se da caça justamente por ter ajudado a gerá-la. Quando não são bons de caça, os cães precisam rastrear (ou mesmo roubar) restos de comida, como ocorre entre os Paumari e Xikrin-Mebengokre. De um modo geral, pegando o caso dos Bororo, os cachorros sobrevivem das sobras dos alimentos comidos pelos humanos: espinhos de peixe, ossos, cascas de frutas, farelo do milho e bagaço da cana. Em diversos outros grupos os cães - especialmente quando não caçadores - se alimentam dos restos de comidas. Dentre os 23 pesquisadores que, pensando em seus respectivos grupos de pesquisa, informaram-me sobre o tema, 13 deles citaram a palavra “restos” quando se referiam à alimentação do animal. Deixar que os cães se alimentem por conta própria, comendo os restos de comida deixados pelos humanos, portanto, difere do ato de alimentar. Enquanto no primeiro caso os cães, especialmente aqueles não caçadores, são de fato ‘deixados à própria sorte’, no segundo há um ato que implica relação8. A partir do momento em que o cão se envolve com a prática da caça, a eles são compartilhados os frutos da atividade, os quais são preparados e cozidos em separado – como ocorre entre os Wayana, grupo Karib localizado na região das Guianas. Em narrativas míticas entre os Siona Tukano, localizados na Amazônia colombiana, os cães caçadores que não são alimentados ‘pensam mau’ de seu dono, resultando na morte prematura deste último. Para que tal fatalidade não ocorra, os donos devem fornecer ao cão caçador alimentos cozidos, como as tripas dos animais caçados9. Enfim, as distintas formas de alimentar o cão evidenciam a passagem esboçada acima entre dois tipos de relação: a saber, uma na qual o cão é tratado como insignificante, e outra na qual ele é valorizado ao participar da caça. O ato de alimentar o cão implica modificar o estatuto associal do animal, estabelecendo uma relação social possível. A diferença entre estes dois tipos de alimentação, que penso estar atrelada à utilidade do cão na caça, não tem a ver

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Como demonstrado por Luiz Costa a propósito dos Kanamari, a alimentação na Amazônia indígena é um dos modos pelos quais o parentesco se articula às relações de maestria e de comensalidade, das quais são resultadas, respectivamente, as relações de dependência e de parentesco propriamente dito (Costa, 2013). 9 Há muitas exceções a este argumento. Entre os Karitiana, por exemplo, os cães pode deixar o caçador panema caso eles se alimentem de restos de animais abatidos - "fragmentos de carne, ossos, penas e resíduos de sangue" (Vander Velden, 2009:6). Na mesma medida, deixar de alimentar o cão na atividade cinegética, em alguns grupos, é visto como uma estratégia para que o cão consiga maior produtividade.

com o objeto alimento, isto é, com uma diferença entre um “resto” de comida e uma carne preparada. Compreendo que isto tem a ver com a relação diferenciada ali desembocada, tanto a de alimentar, criando uma relação social, quanto de preparar a comida, criando uma relação cultural10. Entretanto, os grupos indígenas da Amazônia não explicitam em expressões verbais a passagem de uma relação de alimentação para outra11. A passagem de uma primeira relação de abandono e hostilidade, comum aos cães não-caçadores, para uma segunda, de controle e proteção, na qual o cão está envolvido na atividade cinegética, é também explicitada pelos nomes pelos quais os cães são chamados. Como já apontado acima, muitos cães recebem nomes (que não necessariamente se tornam seus nomes próprios) de acordo com suas características: entre os Tikuna, localizados no Rio Solimões (perpassando o Estado do Amazonas, a Colômbia e o Peru), os cães são chamados por termos que remetem ao seu perfil físico, como ‘negro’ quando têm coloração negra, chokü por sua coloração branca (a tradução em espanhol é choco), ou chi-ekü por ser considerado “feo”. Entre os Yanomami, localizados no norte amazônico, o cão também é chamado de acordo com suas características físicas. Vale a pena citar os comentários de Arlindo Goes Yanomami (c.p.) sobre a questão: Se o cão estiver com orelha sem ter quebra na ponta se daria o nome de “yimikaki hayawë” que dizer orelha de veado. Se o cão estiver quebra com a ponta da orelha se daria o nome de “wërërë” que dizer orelha quebrada. “xetiti” que dizer pintas paralelas assim vai...

Já entre os Deni, grupo Arawá localizado na região dos rios Juruá e Purus, os nomes dos cachorros de caça são sempre descritivos, como kabany para o cão “malhado”, asari para o cão preto, e assim por diante (Huber Azevedo, 2012:289), ao passo que os cães não caçadores não recebem tais nomes. Como diz Vander Velden a respeito dos Karitiana, as

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Como aponta Catherine Howard ao falar dos cães entre os Waiwai, grupo karib localizado nas Guianas, as comidas dadas aos cães não são ‘brutas’, mas sim preparadas por homens e mulheres a fim de que se tornem um ‘produto cultural’ (2001:243-9) 11 No caso dos Kanamari, ayuh-man e da-wihnin-pu são as expressões verbais pelas quais os Kanamari reconhecem explicitamente a passagem de um tipo de relação alimentar para outra. A primeira expressão designa o ato de “dar de comer”, que implica maestria, ao passo que da-wihnin-pu designa o ato de comensalidade, caracterizado por relações comunais que propagam relações de parentesco. Para uma análise mais detalhada desse ponto, ver Costa (2013).

escolhas dos nomes dos cães que remetem ao uso de caracteres comportamentais do animal são todos relacionados com a caça (2012:211). Recorro à Lévi-Strauss para entender a ligação entre alimentação e nomeação. Segundo o autor francês, muitas proibições culinárias têm seu equivalente no plano do discurso, o que “confirma a homologia da oposição metalinguística entre sentido próprio e figurado com as que remetem a outros códigos” (2004 [1964]:426), como cru e cozido. Descrevendo o discurso dos índios das Guianas a partir dos dados de Walther Roth, LéviStrauss diz os índios desta região sentem-se ofendidos e provocam tempestades caso determinados seres sejam chamados pelos termos literais que designam a espécie em geral. O cachorro (ou perro, para o caso espanhol), por exemplo, deve ser chamado kariro, ou dentuço, justamente para denotar alguma característica física. Este caso, como diz o próprio Lévi-Strauss, remonta ao que as Mitológicas tentam demonstrar: “o sentido próprio conota a natureza e a metáfora conota a cultura” (idem). Os cachorros na Amazônia, ao alimentarem-se de comidas cozidas, geralmente partes da caça que eles auxiliaram a obter, e ao receberem nomes metafóricos, que geralmente designam suas características físicas, marcam-se como sujeitos. Deixam de ser insignificantes, abandonados. Tornam-se animais culturais, como se referiu Jaques Lizot aos cães yanomami, os quais recebem nomes, beneficiam-se das curas xamânicas, e que são enterrados e homenageados caso tenham sido bons caçadores (Lizot, x: 16).

Proteção e cuidado Vimos até aqui dois processos por meio dos quais os cães marcam-se como sujeitos, deixando que prevaleça, em sua relação com os humanos, seu estatuto associal e incestuoso. Receber nomes metafóricos, bem como ser alimentado com comidas preparadas, e não apenas “sobras” de alimentos, suscitam novas relações entre os cães e humanos, sejam estes últimos crianças, mulheres ou homens. Receber cuidado das mulheres no ambiente doméstico, ou ser protegido pelo seu dono enquanto animal de caça valorizado, são algumas das relações agora analisadas. Cuidar e proteger um cão são atitudes que variam de acordo com a qualidade do cão na caça. Entre os Bororo, segundo Christopher Crocker, os donos dos cães se preocupam com

seus animais apenas quando estes últimos são úteis na caça. Como aponta o autor, um bom cão de caça “recebe mais cuidado que um cão usual” (1985:31). A relação diferenciada de um dono com seu cão, de acordo com a habilidade cinegética do animal, também ocorre entre os Yawanesha. Segundo Santos Grandero (c.p.), enquanto os cães não apreciados pela sua habilidade na caça podem ser mortos quando destroem algum bem precioso, ou quando não deixam de roubar comida dos humanos, aqueles bons de caça ‘orgulham’ seus donos e são por eles mais bem cuidados. A presença de um homem como dono do cão é recorrente: conforme Vander Velden, entre os Karitiana há um vínculo entre cães e donos na medida em que cada homem caçador “possui” e leva seu cão (ou sua matilha) para a caça (Vander Velden, 2012:180). Assim como ocorre com as casas, referidas pelo nome do homem (seu chefe) que a construiu, “é comum dizer-se que tal cachorro ‘é’ deste homem” (idem, 2009: 7). Especialmente entre os Wayana, os cães abandonados e que não participam da caça não têm donos, são abandonados e pertencem “à aldeia”; A propriedade do cão por parte de um dono, portanto, está estritamente ligada às habilidades do animal enquanto caçador: entre os Kanamari, os cães de caça são propriedade do homem. Entre os Wayana e Hyxkariana, os cachorros de caça pertencem aos homens caçadores, de modo semelhante aos Trio e Waiwai, grupos nos quais os cães passam a maior parte do tempo no domínio masculino da caça. Enquanto o cão caçador está mais presente no domínio masculino, os filhotes não caçadores são deixados aos cuidados da mulher. As mulheres dos donos cuidam dos cachorros quando crianças e, no caso dos Trio, elas também alimentam e treinam os cães. De um modo geral, mulheres, homens e crianças podem ser donos de um cachorro. Tudo isso varia de acordo com a idade e com o estatuto de caçador ou não do animal. Caso seja um bom caçador, o cão será propriedade de um dono, mesmo que seja cuidado pelas mulheres quando, por exemplo, volta ao ambiente doméstico com ferimentos de caça. Especialmente quando não adquiriram idade suficiente para ser inserido na prática da caça, as crianças são as que mais se relacionam com os cães – aos moldes, como já apontei acima, de brincadeiras das quais os cães saem machucados, até mesmo queimados.

Tornando objetos

Segundo Schartz (1977:47), diversos rituais e magias foram realizados pelos caçadores com a finalidade de preparar os cães para a atividade cinegética. Segundo a autora, tais rituais e magias eram realizados por xamãs e curandeiros, os quais visavam assegurar que os espíritos que traziam má sorte estivessem apaziguados e prontos para colocar as presas onde os caçadores poderiam encontrá-las. Já Michael Brown, autor de uma etnografia sobre os Aguaruna Jivaro do Peru, expôs que os cães de caça sempre foram objeto de considerável atividade ritual. Por exemplo, “festas inteiras eram destinadas a dotar um cão com força e habilidade” (1967: 80). Ainda entre os Aguaruna Jívaro, as mulheres são convidadas por seus maridos para usarem na preparação da caça suas músicas mais novas e mais poderosas, a fim de trazer sorte para o cão caçador (idem:81). Tais rituais também estão estreitamente relacionados à alimentação do animal. Nesse contexto, o cão recebe da mulher de seu dono mandioca previamente mastigada. Como no caso dos Wayana, segundo Iori Linke (c.p.), estes rituais contínuos são processos cujo objetivo é fazer com que o cão não entre na condição de panema (azarado, ruim de caça). A relação entre técnicas e procedimentos mágicos, tal como expôs Mauss, são evidentes, mas nem por isso “demasiado universais para nisso insistirmos” (2003 [1950]:406). Diversas técnicas são utilizadas para desenvolver as capacidades ou aprimorar as habilidades cinegéticas do cão. Em muitos grupos indígenas das terras baixas da América do Sul, determinadas espécies de plantas, ou de animais, são colocados e esfregadas no focinho do cachorro, já que a principal forma do cão detectar a presa é pelo cheiro (Koster, 2009: 577). Como expõe Uirá Garcia, sempre que os Guajá matam um animal de grande porte (como antas e porcos), "esfregam o focinho do cachorro na presa morta, gritando com ele para que ‘aprenda’ (imarakwá – ‘lembrar’) o cheiro da mesma, e passe a caçar melhor" (2010:300). Esta técnica é utilizada também pelos Xikrin-Mebengokre, que passam espécies de plantas também no corpo do cachorro. Insetos como marimbondo, como entre os Trumai, e formigas, como entre os Siona Tukano, são usados para picar o focinho dos cães. Tais técnicas garantem maior resistência ao animal. Entre os Yanesha, os humanos esfregam pimenta em pó nas narinas do cachorro, e também colocam pimenta nos olhos do animal, para que ele aguce seus sentidos do olfato e visão.

Aguçar o faro e aprimorar as capacidades cinegéticas também consiste em ingerir determinadas substâncias. Entre os Achuar, como mostra P. Descola (2006), os cachorros recebem alucinógenos para que eles tenham um olfato mais aguçado e, entre os Kanamari, os cachorros recebem o wakoro, substância extraída da barriga do sapo e ingerida para curar o azar (panema) na caça. Entre os Yanesha, tanto os homens quanto as mulheres usam ‘plantas mágicas’, chamadas genericamente epe' (ou em espanhol piri-piri), para realizarem o feito de curar o azar na atividade cinegética. Já entre os Gavião, grupo localizado em Rondônia, o borar, uma espécie de planta, é passado no corpo do cão para retirar a preguiça e deixar o animal disposto a caçar até que tal atividade seja bem sucedida. Mesmo que passar borar em humanos seja uma prática pouco utilizada atualmente, o uso do borar em cães neste grupo é muito frequente e faz com que cães bons caçadores sejam diferenciados dos demais: Dizem que são cachorros ‘bons para paca’, ‘bons para anta’, ‘para veado’ e assim por diante. São os animais que percorrem as maiores distâncias, sendo mais suscetíveis à morte nas garras e dentes de suas presas, como onças, quatis e alguns macacos. Tais cães possuem um status diferenciado nas aldeias: em conversas sobre caça, há um gosto por ressaltá-los dentre outros, como o cachorro que pertence a tal pessoa e que é bom para farejar determinado animal. (Bento, 2013, 97).

O corpo na Amazônia, como sabemos, constitui o idioma simbólico privilegiado a partir do qual definem-se as identidades pessoais e coletivas. Segundo Aparecida Vilaça, “mudar de identidade é mudar de corpo, capacidade que os humanos partilham com os animais dotados de subjetividade” (2001:7). Entre os Trio, localizados nas Guianas, os cães têm seus corpos ‘manipulados’: seus pelos são cortados, suas caudas são torcidas e seus narizes são picados para que eles adquiram resistência e bom faro. Entre os Waiwai, grupo Karib também localizado na região das Guianas, os cães são levados ao rio para banharem-se mais de uma vez ao dia, têm seus piolhos e larvas extraídos, e são revestidos de urucum vermelho (Howard, 2001:243-9). A pintura corporal dos cães ocorre também entre os Bororo, os quais utilizam jenipapo para pintar o animal. Segundo Howard (idem), o corpo do cachorro está em constante processo de crescimento (growth). Ele depende consideravelmente não de um processo natural, mas de repetidos investimentos de cuidado: por exemplo, carregar os cães nos braços e lhes dar os mesmos ‘alimentos básicos’ que os humanos comem (idem). O crescimento do corpo dos cães

é efeito de repetidos cuidados, os quais, entre os Waiwai, são realizados pelas mulheres. A comida dada aos cachorros não é ‘bruta’, mas sim preparada por homens e mulheres a fim de que ela se torne um ‘produto cultural’; os cachorros, também, são ‘embelezados’ através de adornos humanos. Nesse sentido, Catherine Howard argumenta que o processo geral de crescimento dos cães resulta antes em um modo de humanização que em mera nutrição/embelezamento (Howard, 2001:243-9). Tratando dos Qom, grupo indígena Chaco localizado na Argentina, Celeste Medrano (n.p) produz argumentos semelhantes em relação à produção do corpo do cão. Segundo a autora, o cachorro está mais próximo aos seres humanos do que as outras espécies da fauna, e sua vida é domesticamente moldada, alterada, educada e socializada de forma semelhante ao que ocorre com os humanos. Compartilhando uma interioridade comum, os cães tornam-se afins dos humanos e passam a se comportar como “quase-parentes” deles (idem: 26)12.

Considerações finais A ambiguidade das relações com os cães, bem como de sua associação (seja ao jaguar, seja aos brancos), deriva de uma generalizada ambivalência e instabilidade de identidade de todos os seres, muito marcada no nascimento. Na Amazônia, a identidade é concebida como posição transitória e deve ser constantemente marcada. Como diz Vilaça sobre a humanidade wari’, esta é algo “a ser constantemente produzida a partir de um universo amplo de subjetividades, que inclui os animais” (Vilaça, 2001: 4-5). No caso dos cães, eles também são seres constantemente produzidos, por meio da alimentação, do cuidado, de uma nomeação diferenciada e sobretudo da capacitação de suas habilidades cinegéticas. Enfim, espero ter explicado o fundo por trás da instável e ambígua relação com o cachorro na Amazônia indígena. Ao argumentar que a inserção do cão na atividade cinegética - e consequentemente as técnicas elaboradas para tanto - são imprescindíveis e determinantes13 em relação ao estatuto deste animal na Amazônia, não pretendo estabelecer

12

Confesso não estar certo de que os cães adquirem um estatuto humano, tal como propõem Medrano (n.p) e Howard (2001). Discordo de que o uso do borar no caso dos Gavião, ou o “embelezamento” no caso dos Waiawai, são marcações corporais em uma relação de (quase)parentesco onde ambas as partes são humanas. Penso, por outro lado, que tais relações marcam o estatuto social dos cães, mais que humano, possibilitando a relação entre sujeitos. Enfim, permanece a questão: ser social é ser humano, e vice-versa? 13 De fato, muitos grupos indígenas não fazem da caça sua principal atividade de subsistência, e isso claramente problematiza uma generalização tal qual eu busco neste artigo. Entretanto, muitos grupos que não praticam a caça, mas que têm cachorros, utilizam-nos como protetores das residências e da aldeia em geral. Mesmo que não

uma relação de passagem de um estatuto a outro, ou modelar um curso no qual o cão vai percorrendo do abandono à valorização, do sujeito ao objeto.

Diferente disso, busquei

demonstrar o caráter construído de sua concepção como sujeito social, concepção essa que permite a capacitação (cujo processo chamo de objetificação) de suas habilidades cinegéticas. Tal caráter transitivo da relação dos humanos com os cães aplica-se ao que Harry Walker (2013) chamou de context dependency, ao analisar a forma como os Urarina, localiazdos na Amazônia peruana, tratam e conceituam seus animais. Procurei demonstrar também o papel fundamental exercido pelos donos dos cães no processo de desenvolvimento do animal enquanto caçador. Os donos dos cães são “preconditions of its emergence” (Walker, 2013: 164). De um modo geral, as relações de controle são centrais para a compreensão das sociocosmologias ameríndias, como apresenta Carlos Fausto (2008), e no que cerne à relação dos humanos com os cães o controle é também central. A partir dele, no tempo pós-mítico, “objetos são fabricados, crianças são engendradas, capacidades são adquiridas” etc. (Idem: 341). Em relação aos cães, eles são formados sujeitos (na ‘socialização’) e tornados objetos (na objetificação). Por objetificação, refiro-me tanto ao processo de capacitação das habilidades cinegéticas do cão quanto à condição do animal de entrar nesse processo. Em outras palavras, os cães se inserem em uma relação de dependência e controle para com seus donos, isto é, tornam-se objetos, justamente para que em algum momento se objetifiquem (por meio do processo) e se tornem bons caçadores. Para ser capacitado como bom caçador, o cão precisa ser objeto nas relações com seu dono. Mesmo que não se torne um exímio caçador, todos os cachorros são inseridos no processo que tem como objetivo a capacitação das habilidades cinegéticas caninas.

tanto amazônico, o caso dos Mapuche, localizados na região centro-sul do Chile e do sudoeste da Argentina, parece ser pertinente: embora não se pratique a caça, os cães são utilizados neste grupo para expulsar os porcos das proximidades da casa. Faltam-me dados, contudo, para que eu me detenha a esse ponto.

Anexo 1 – Tabela com autores das respostas do questionário

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