Formas básicas de sociabilidade: a cara “alegre” e “triste” das relações sociais humanas (Parte 1)

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Formas básicas de sociabilidade: a cara «alegre» e «triste» das relações
sociais humanas (Parte 1)


Atahualpa Fernandez(




"Jamás aceptaría pertenecer a un club
que admitiera como miembro a alguien como
yo." Groucho Marx




Recapitulemos: Alan P. Fiske (Structures of Social Life: The Four
Elementary Forms of Human Relations) desenvolveu um modelo de vínculos
sociais humanos que constituem uma sorte de arquétipos fundamentais inatos
(que todas as culturas humanas utilizam, normalmente combinando vários
deles) para definir relações e roles típicos, com os que logo organizar os
diversos âmbitos da estrutura social. Sobre a base deste trabalho acerca da
natureza das relações humanas e sua respectiva variação transcultural,
Fiske propõe que existem quatro formas elementares de sociabilidade, quatro
modelos básicos para compreender as relações sociais, cada qual com uma
psicologia distinta.[1]
Pois bem, o que farei à continuação será analisar, com mais cuidado de
detalhes, os aspectos positivos e negativos dos vínculos sociais
relacionais propostos por Fiske, que, dito seja incidentalmente e de
passagem, subjazem a toda e qualquer relação jurídica.[2]


«Vícios» e «virtudes» dos vínculos sociais relacionais
Vejamos o que passa primeiro com as relações de comunidade.
Suponhamos que um determinado grupo de indivíduos forme uma comunidade. O
primeiro sobre o que há de estar bem claro é que nem todo grupo de
indivíduos forma uma comunidade[3]. O que quer dizer que um grupo
determinado forma uma comunidade? O que quer dizer que seus membros têm
relações de tipo comunitário entre si?
Há um incêndio em uma das salas que compõem minha universidade.
Avisados os alunos e professores, todos, velhos, jovens, mulheres e homens,
ricos e pobres, todos acodem para apagá-lo, aportando cada um dos meios de
que caritativamente dispõem. Diremos que este grupo humano, ao menos neste
aspecto, constitui uma comunidade. Suponhamos que no órgão em que eu
trabalho todos os membros e servidores, veteranos e jovens, efetivos e em
comissão, ajudantes, o secretário e o último e recém chegado estagiário,
todos, pelo só fato de pertencerem a este órgão, possam tirar do armário
da secretaria todo o material de escritório de que necessitem, até que se
acabem. Pelo menos a este respeito, em meu trabalho haveria relações de
comunidade entre seus membros, servidores e/ou estagiários.
Agora imaginemos que em minha universidade os incêndios se apagassem
de outra maneira. Imaginemos que, declarado um, o reitor organizasse uma
subasta pública entre os alunos e professores para ver quem ou qual deles
se dedicariam a apagar incêndios e com que gratificação. Ou imaginemos que
o reitor mesmo, em um gesto de autoridade, decretasse sem mais quem, a
partir de um ato de poder, teria a função de apagar o fogo. Desde estas
perspectivas, a relação de covizinhança não seria uma relação comunitária:
seria uma relação de mercado ou proporcionalidade na primeira suposição;
uma relação de tipo hierárquico ou de autoridade, na segunda. Se no meu
trabalho se subastara entre seus membros, servidores e estagiários o
material de oficina – papel oficial, canetas, tinta para impressora,
envelopes, etc. –, ou se o chefe decidisse a quem distribui, como se
distribui e o quanto se distribui a cada um, tampouco neste aspecto haveria
uma relação de comunidade: haveria uma relação de proporcionalidade ou
intercâmbio egoísta, no primeiro caso; de autoridade hierárquica, no
segundo.
Quando em um grupo se dão relações comunitárias entre seus membros,
rege nelas algo muito parecido ao velho princípio distributivo saint-
simoniano – que Marx fez seu –: a cada um segundo suas necessidades, de
cada qual segundo suas capacidades. Nas relações comunitárias apenas ou
pouco nos importa a contribuição do outro; ao que atendemos são as suas
necessidades (observe-se, em câmbio, que em uma relação de
proporcionalidade ou intercâmbio egoísta, rege mais bem o princípio de: a
cada um, segundo sua contribuição; e em uma relação de autoridade: de cada
um e a cada um, segundo estipule quem tenha reconhecida autoridade para
determinar).
É fácil dar-se conta de que em quase todos os grupos ou famílias
humanas se dão com muita frequência entre seus membros, em distintas
proporções, os três tipos de relações: de comunidade, de autoridade e de
proporcionalidade (e ainda se dá outro tipo de relação, ao que me referirei
em seguida). Na verdade, é difícil encontrar um grupo de indivíduos
humanos, uma organização ou uma instituição que encarne o "tipo ideal" de
grupo puramente comunitário, ou puramente hierárquico, ou de puro
intercâmbio proporcional egoísta.
Reflexione o amável leitor(a) sobre sua família, seu ambiente de
trabalho ou sua associação favorita: facilmente descobrirá em cada uma
delas a presença simultânea de relações dos três tipos. Em uma família há
comunidade – onde, senão aí? –, mas há também hierarquia (por laxa que
seja), e não exclui por princípio um âmbito de relações de
proporcionalidade – egoísta - entre seus membros (um irmão pode comprar a
preço de mercado uma parte da herança imobiliária de outro irmão; um
pai/mãe, já seja para fins educativos, pode aumentar a mesada de um filho
em troca de algum trabalho doméstico ou dar-lhe caros presentes em troca de
melhores notas na escola ou de bom comportamento).
O certo é que as relações de comunidade são maravilhosas: quem carece
delas tem seguramente um vazio impreenchível em sua vida. Saibamos ou não,
todos os humanos necessitam pertencer a alguma (s) comunidade(s): somos
irremediavelmente criaturas tribais (M. Ridley). O mesmo que, segundo a
feliz expressão de Ortega y Gasset, ocorre com as tradições – a saber:
que não se "tem", senão que "se está" nelas –, ocorre também que não se
"tem" vínculos comunitários, senão que, em geral, "se está" neles. E
intentar evadir-se desses vínculos comunitários pode ter consequências nada
desejáveis: é na ideia de comunidade em que cada membro identifica seu
próprio sentimento de autoapreço, no recíproco (e não egoísta) entender-se
de determinada maneira e na exigência mútua de entender-se a si mesmo.[4]
Pensemos, por exemplo, na cultura. Em geral, não nos decidimos
deliberadamente a aprender nossa cultura. Ao contrário, todos aprendemos
nossa cultura, ou nos adaptamos à cultura a que pertencemos, com o tempo,
sem pensar no processo. Através da experiência comunitária, da cultura
compartida, desenvolvemos o sentido do que é e o que não é normal, do que
as pessoas dizem e não dizem em determinadas circunstâncias, do que se deve
e não se deve fazer, etc. (daí que comunidade, cultura e tradição,
frequentemente, sejam conceitos indissociáveis; com efeito, até que não nos
vemos ante outra cultura, tradição ou comunidade não nos percatamos de
tudo o que damos por suposto na nossa).
Mas os vínculos comunitários são perigosos também. Ao potencial
perigo que supõe o que a necessidade de pertencer a uma comunidade tenha
uma tangência muito precária com a órbita da decisão consciente ou racional
(e emocional), há que acrescentar ainda o fato de que o sentido (ou o
sentimento) de "pertencer" vai necessariamente ligado ao sentido de
exclusão. Deste modo, uma comunidade, vista lógico-formalmente, pode ser
definida como uma classe de equivalência (porque tem as três
características formais que a definem como tal: transitividade, simetria e
reflexividade), fechada com respeito às demais classes de equivalência:
que nós pertencemos a uma comunidade quer iniludivelmente dizer que outros
não pertencem a ela, porquanto as classes de equivalência são excludentes.
Em seu estudo etnográfico, por exemplo, Fiske mostrou que o ethos da
partilha comunal surge espontaneamente entre os membros de uma família, mas
somente se estende a outros grupos com a ajuda de elaborados costumes e
ideologias. Pessoas não aparentadas que desejam compartilhar como uma
família criam mitologias sobre um parentesco comum (padrinho, madrinha,
compadre, etc.), uma linhagem comum (tio, tia, primo, etc.) ou uma ligação
mística com um território (reveladoramente chamado terra natal, pátria,
nação, solo paterno, etc.). Reforçam os mitos com refeições sacramentais,
sacrifícios de sangue e rituais repetitivos, que submergem o self no grupo
e criam a impressão de um único organismo em vez de uma federação de
indivíduos.[5] Suas religiões falam de seres sobrenaturais, de possessão
por espíritos e outros tipos de mesclas de mentes que, segundo Fiske,
indicam que as pessoas podem frequentemente desejar ter relações de
partilha comunal (vínculo social relacional de comunidade) mais intensas ou
puras do que podem perceber com seres humanos comuns.
O lado sombrio dessa coesão é a mentalidade de grupo, a identificação
extrema de culto e os mitos de pureza comunitária (racial, sexual,
religiosa, etc...etc.) – o sentimento de que os forasteiros são
contaminadores que poluem a santidade do grupo, ou de que a "semente do
mal" provém sempre da casa do vizinho – que fornecem uma justificativa
direta para o conflito violento e a ideologia da luta entre grupos. Este
lado escuro do vínculo social de comunidade desencadeia uma característica
perversa da psicologia social humana: a tendência a dividir as pessoas em
pertencentes ao grupo e não pertencentes ao grupo, e a tratar os de fora
como menos do que humanos. Odiar os que não pertencem ao nosso círculo ou
grupo é uma parte da condição humana - e dos chimpanzés -, a parte mais
repugnante e nocente de nossa natureza.[6]
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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Os modelos elementares propostos por Fiske são: comunal sharing
(comunidade); authority ranking (autoridade); market pricing
(proporcionalidade ou mercado); e equality matching (igualdade):
http://emporiododireito.com.br/formas-basicas-de-sociabilidade-marco-para-
uma-teoria-unificada-das-relacoes-sociais-humanas-parte-1-por-atahualpa-
fernandez/.
[2] Parece estar além de toda dúvida razoável o fato de que as relações
jurídicas estabelecidas pelo ser humano nada mais são do que aqueles
vínculos sociais relacionais que o direito identifica como tal. Nesse
sentido, o direito não constitui a realidade, senão que é tributário dela,
no que na realidade exista (e como exista) ou não exista. Como explica
Emilio Betti, as relações jurídicas têm seu substrato em relações sociais
existentes já antes e inclusive fora da ordem jurídica, relações que o
direito não cria, mas encontra ante si, prevê e orienta na diretiva de
categorias e avaliações normativas.
[3] Para o que aqui interessa, considero a comunidade como o todo concreto
e intersubjetivo dos sujeitos, onde a intersubjetividade é o modo pelo qual
os sujeitos ficam constituídos uns a partir da subjetividade dos outros
(cerebral, linguística, cultural, histórica e ética). Poderia dizer-se que
o homem não é somente a consciência de si mesmo, senão o compartir
experiências com outros humanos, a intersubjetividade.
[4] À exceção de Groucho Marx, os homens são essencialmente animais que
pertencem a um clube, já sejam membros de alguma entidade associativa ou
seguidores de qualquer equipe de futebol. Não somente unir-nos em grupos
forma parte de nosso comportamento natural (e a existência de "outros" não
é um mal-entendido moral), senão que o entorno natural social do ser humano
é sua horda: ela é nosso mundo emocional, o lugar do amor, do ódio, da
compreensão, do trabalho em comum, do câmbio e o intercâmbio, da
preocupação pelos demais e da simpatia. "Lo que queda fuera de ese alcance
solo lo percibimos como lejano" (R. D. Precht). Ser membro de um grupo,
ademais, proporciona muitos "benefícios": um sentimento de "pertencer", um
sentido de coesão e de status social, ajuda a persecução de fins comuns e
favores dos demais membros. As pessoas costumam pertencer a grupos de
atitudes similares às próprias, assegurando-se deste modo apoio para suas
crenças e imitando as condutas e os costumes das pessoas do grupo a que
pertencem. Também vestir as prendas de uma determinada profissão distancia
a quem as leva dos demais e lhes anima a se comportar de forma extremamente
irracional: pensem, por um momento, na "toga" que carregam os juízes e na
forma como, às vezes, majoram seus vencimentos ou tratam seus subordinados
mais diretos (algumas vezes, inclusive, na mais inflamada demonstração do
que se soe denominar de "síndrome do ciclista": baixar a cabeça para os que
estão por cima e pisar nos que estão por baixo).
[5] Naturalmente que há um ingrediente de intensidade nos vínculos
comunitários. Em um extremo desse ingrediente estaria o grande ideal da
"cidadania universal" dos ilustrados Kant e Goethe: podemos ver aqui
indivíduos que têm muitos e variadíssimos vínculos de comunidade – e de
outras classes. Eu posso ter vínculos comunitários de um tipo com meus
familiares, vínculos comunitários de outro tipo com os membros de meu
trabalho, vínculos comunitários de outro tipo com os professores da
universidade a que pertenço, etc....etc. Além disso posso ter muitos
outros tipos de relações não comunitárias com estas e com muitas outras
gentes. No outro extremo estaria o que Simmel, em um estudo injustamente
ignorado, chamou a "comunidade total": um grupo fechado de indivíduos que
não têm nenhum outro vínculo comunitário fora desse grupo, e que ademais,
dentro do grupo, praticamente não têm outras relações que as de tipo
comunitário. (S. Giner)
[6] É este, por certo, o processo que encontramos nas grandes religiões. Em
suas origens, a religião surgiu como garante da coesão social e como
contenção da violência. Nada obstante, à medida que as religiões se foram
distanciando de suas origens, também se foram convertendo em promotoras da
violência. E isto é seguramente devido ao fato de que, como assinala David
Sloan Wilson, "la religión pudo haber propiciado el altruismo como
selección grupal de una tribu, pero al mismo tiempo esa cohesión tribal
proyectó violencia hacia otra tribu". Por exemplo, apesar de que o
mandamento "amarás a teu próximo como a ti mesmo" se soe interpretar como
"amarás a todo mundo", no contexto tribal da época em que e quando se
instaurou, é muito possível que quisera dizer algo mais literal, algo assim
como "ama a tua tribo e a tua família, mas não a todo mundo" (J. Hartung).
É bastante provável, inclusive, que inicialmente a advertência de "não
matar" só se referisse ao grupo mínimo, e Hartung assinala que os rabinos
do Talmud costumavam acusar de assassinato a qualquer judeu que matasse a
outro, mas não o tinham em conta se a vítima era estrangeira.
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