Formas básicas de sociabilidade: a cara “alegre” e “triste” das relações sociais humanas (Parte 2)

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Formas básicas de sociabilidade: a cara «alegre» e «triste» das relações
sociais humanas (Parte 2)

Atahualpa Fernandez(




"El Yo es la estratagema más oculta de la
evolución para asegurar el éxito de la vida en
grupo". Matthew Lieberman






De fato, nosso próprio comportamento moral também está marcado sempre
pelo grupo de referência em que nos movemos, voluntária ou
involuntariamente (inclusive os inconformistas se buscam sempre um grupo de
referência e, em caso de dúvida, a solidariedade de sentimentos com outros
não conformistas)[1]. É ao menos tão importante como nossas convicções
interiores ser "aceptado por el grupo en el que nos relacionamos.
Anticipamos la mirada de los demás hacia nosotros mismos, sintonizando con
ello nuestras decisiones y nuestras acciones" (R. D. Precht). Desde o ponto
de vista moral, esta conduta pode ajudar-nos a comportar-nos em
conformidade com o grupo no bom sentido.
Mas, com a mesma facilidade, é frequente também que pelo
comportamento de grupo nos deixemos manipular e levar à prática de
determinadas ações que em realidade contradizem nossas convicções
interiores: em lugar de sopesar sem prejuízos as necessidades e imperarivos
dos demais, seguimos intuitivamente aos "nossos" e compartimos o domínio de
consciência do grupo ao que sentimos pertencer. E aqui reside uma das
maiores ameaças de nossa faculdade de juízo moral: o conformismo, a
"legitimação por conformidade", cuja pressão pode ser em algumas situações
vitais mais determinante que qualquer outro instinto social e qualquer
valor moral fundamental. (Solomon Asch)
Podemos conjeturar – e parece ser uma hipótese muito segura – que
nossa capacidade para processar informação relacional deste tipo (quer
dizer, para dividir o mundo em classes de equivalência) vai estreitamente
ligada com nosso programa ontogenético ao desenvolvimento da faculdade, e
ainda da necessidade emocional, de travar relações sociais de comunidade
com outros. A informação processada aqui é relativamente pequena, e não é
surpreendente que essa capacidade cognitiva (e várias emoções ligadas ao
sentido comunitário de pertencer) apareça muito cedo na criança, nos
primeiros anos de idade (antes do primeiro ano de vida).
Processar informação relacional hierárquica ou de autoridade resulta
algo mais complicado, e por isso tampouco é surpreendente que nenhuma
criança tenha a menor noção do que é a "autoridade" antes dos dois anos de
vida. É que a estrutura lógica da relação de autoridade é uma ordem linear
parcial: pressupõe a estrutura formal das classes de equivalência, e a
complica convertendo a simetria em um caso particular da antissimetria. Uma
criança não pode, antes dos dois anos, ordenar linearmente o mundo e, por
consequência, é incapaz de processar e de armazenar informação relacional
social de tipo hierárquico.
Também as relações sociais de autoridade têm seu lado claro e seu
lado fosco, e até, se assim se prefere dizer, sua cara risonha e sua cara
sombria. O lado eticamente interessante das relações sociais de autoridade
é o reconhecimento da excelência, da virtude alheia, que vai ligado, entre
outras coisas, à admiração que as qualidades e os logros do outro desperta
em nós, em particular – mas não somente –, a excelência moral.
Para dizer a verdade, quem é incapaz de admirar e ainda de reconhecer
a excelência alheia, não pode ser ele mesmo excelente: a inveja, o
ressentimento ou a perversão escarnecida do gosto são outros tantos
obstáculos atravessados na senda que conduz à automodelação virtuosa do
próprio caráter, a nossa autoconstituição como existência separada e
autônoma, ao nosso mútuo aperfeiçoamento – e autoaperfeiçoamento – no
processo de intercâmbio social; quer dizer, a nossa individualização
propriamente dita.
E recorde o amável leitor (a) que a inveja – a mais desafortunada de
todas as peculiaridades da natureza humana e uma das causas mais
importantes de nossa desgraça, nas palavras de B. Russell[2] – é também um
pecado capital, e o único que parece desafiar a ideia de que os pecados
capitais são exagerações, hipertrofias de algo em si mesmo valioso[3]. De
fato, ademais de que a inveja parece surgir quando se desborda a tendência
espontânea a buscar nosso ponto de comparação nos demais[4], o certo é que,
dos sete pecados capitais, este é o único que não tem nada de divertido ou
equilibrado; se trata mais bem da hipertrofia da afirmação da
individualidade: o invejoso é sempre um pobre homem que sente
permanentemente ameaçados os lindes de sua existência separada e autônoma,
e atua descomedidamente em sua defesa.
Mas, como dizia antes, as relações sociais de autoridade têm também
sua cara torva; e é esta: nelas está sempre aberta a possibilidade de que
alguém reclame, para si e para os seus, o monopólio da excelência, ou –
também – de que alguém se arrogue a faculdade de restringir a seu entorno o
abanico das excelências humanas. Não somente há, pois, inveja, incapacidade
de reconhecer as excelências alheias. Também há impostura e abuso de poder
baixo o pretexto de excelência. E este é o lado terrível da relação social
de autoridade.
Por este lado – e não pelo outro – se rompe o vínculo comunitário
global, se escinde e polariza uma sociedade, e se constitui, enfim, o que o
tory Benjamin Disraeli descreveu como as "duas nações" (a dos ricos e a
dos pobres, a dos melhores e a dos piores, a dos triunfadores e a dos
fracassados, a dos vencedores e a dos perdedores), ao que o monárquico
orleanista Guizot batizou como "luta de classes" (talvez recordando-se da
(((((( de Aristóteles) e ao que Marx chamou "a não-existência política" dos
que vivem por suas mãos, ou seja, dos que se encontram na parte mais escura
da vida, "en el peor de los mundos posibles", para usar a expressão de
Schopenhauer.
Assim as coisas, parece muito intuitivo que a relação social de
igualdade é distinta da relação social de comunidade; é distinta também da
relação social de autoridade; e é distinta da relação social de
proporcionalidade (ou de mercado).
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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] "Puede reflexionarse todo el tiempo que se quiera sobre si los monos
tienen un sentimiento de "nosotros" y hasta dónde alcanzaría en tal caso.
Pero hay una cosa que funciona en todos los primates: quien no pertenece a
ellos pertenece a los otros. Y cuando hay conflictos con los otros,
nosotros somos los buenos. Aunque solo sea porque nosotros somos nosotros y
no los otros. […] Esta orientación de grupo y moral de tribu (también) son
modos de comportamiento típicos del ser humano que delimitan nuestra
capacidad de simpatía y ponen fronteras a nuestra razón cotidiana" (R. D.
Precht). Quer dizer: quando valoramos moralmente a outras pessoas medimos
com rasoura diferente; e não é a razão a que pronuncia nosso juízo, "sino
más a menudo la simpatía y el hecho de ser como nosotros".
[2] Por dizê-lo de alguma maneira, a inveja põe de manifesto o lado escuro
de nossa condição humana, bloqueia a claridade de nossa autoestima,
entorpece a visão das pessoas a quem invejamos, aniquila a capacidade de
admiração e de reconhecimento da excelência alheia, empobrece e avilta a
razão, entristece o pensamento, embota a generosidade, sufoca qualquer
esperança de sensatez e acaba por consumir nossas relações
(http://emporiododireito.com.br/sobre-a-amizade-e-o-espectro-da-inveja-por-
atahualpa-fernandez-2/).
[3] Como explica Élisabeth Roudinesco: "Los famosos siete pecados
capitales, definidos por el cristianismo, son en realidad vicios, excesos,
y en consecuencia la expresión de la desmesura pasional y el goce del mal
que caracterizan a la perversión. Se llaman capitales porque de ellos se
derivan los demás, y a cada uno se atribuye una figura del Diablo: avaricia
(Mammón), ira (Satanás), envidia (Leviatán), gula (Belcebú), lujuria
(Asmodeo), soberbia (Lucifer), pereza (Belfegor)". Com efeito, as coisas
que se condenam moralmente são sempre o lado fosco, a exageração de algo
que mais bem resulta apreciável em sua justa medida. Por acaso não são a
ira, a luxúria, a preguiça, a avareza, a soberbia e a gula senão demasia,
hipertrofia de disposições humanas de todo ponto estimáveis até para a
deôntica cristã? Ao fim e ao cabo, o que é a soberbia, no fundo, senão um
amor próprio desaforado; ou a avareza, senão a exageração do espírito de
economizar ou poupar. Se cai na gula quando o organismo não responde à
ingestão de alimentos com a sensação normal de saciedade. E os escravos da
luxúria são os que não encontram no sexo uma satisfação plena, por cujo
motivo andam sempre em busca de mais. A ira é a agressividade não sujeita
pela razão; e a preguiça, o estado de quem depois da relaxação saudável não
recupera o tom nem a motivação naturais. A ética de Aristóteles,
particularmente sua doutrina das virtudes, admitia ademais, dito seja
incidentalmente e de passagem, a crítica normativa da hipotrofia dessas
disposições, do "temer ir mais além": a hipertrofia da valentia é a
temeridade; sua hipotrofia, a covardia. Também o ódio tem sua hipertrofia e
sua hipotrofia, e Aristóteles recomendava, uma vez mais, o ponto médio,
odiar retamente – "no poner siempre la otra mejilla". Daí sua célebre
advertência: "Cualquiera puede enfadarse, eso es algo muy sencillo.
Pero enfadarse con la persona adecuada, en el grado exacto, en el momento
oportuno, con el propósito justo y del modo correcto, eso, ciertamente,
no resulta tan sencillo."
[4] Os fracassos e as desgraças dos demais não ameaçam nossa autoestima.
Para uma pessoa saturada de amor próprio (como a maioria dos mortais) é
gratificante sentir empatia por alguém necessitado. Mas são precisamente as
habilidades e os êxitos alheios o que mais ataganta ou aborrece aquelas
pessoas que para conservar intacta ou aumentar sua autoestima necessitam
(têm que) sentir-se superiores aos (ou inveja dos) demais. Nas palavras de
Susan Fiske: "Lo que no soportamos no es estar mal, es estar peor que
otros. Nos hace sentir inferiores, menos seguros, menos valiosos y nos da
un síndrome de bajo estatus que tiene un coste para nuestra autoestima. Se
trata de una emoción que sirve para proteger la imagen que uno tiene de sí
mismo. Los seres humanos nos estamos comparando continuamente, somos unas
máquinas de compararnos. Y siempre deseamos pertenecer al grupo de los
mejores, aunque apenas seamos mediocres. Por ello envidiamos, intentamos
relativizar, incluso demonizar, el éxito y las habilidades de otros."
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