Formas básicas de sociabilidade: a cara “alegre” e “triste” das relações sociais humanas (Parte 3)

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Formas básicas de sociabilidade: a cara «alegre» e «triste» das relações
sociais humanas (Parte 3)


Atahualpa Fernandez(




"Todos los animales están sometidos a la
exigente presión selectiva de ser todo lo estúpidos
que puedan permitirse." Peter Richerson & Robert Boyd






A relação de igualdade é uma relação de igualdade básica e equilíbrio
entre pares: não havendo equivalência e não sendo indiferenciados em
sentido moral, o que cabe a cada indivíduo é atribuído por "direito
próprio", em função de sua individualidade separada e autônoma. Sua
estrutura lógico-formal é a de um grupo abelhiano: pressupõe a estrutura
das classes de equivalência e a estrutura da ordem linear parcial,
complicando-as ulteriormente mediante a introdução de um operador de soma,
de um elemento neutro e da definição das propriedades de comutatividade e
associatividade.
De acordo com essa estrutura, se pode "somar" e "diminuir", mas não
multiplicar ou dividir (para o que se necessita de ulteriores estruturas,
que são as que permitem relações de proporcionalidade). As relações de
amizade (assim também as relações familiares fundadas na amizade entre seus
membros), como as de cidadania[1], são relações enquadradas neste tipo de
estrutura de igualdade. Por isso não é de estranhar que na tradição
republicana resulte fundamental este tipo de vínculo social relacional de
igualdade, porque nele se joga basicamente o processo de aperfeiçoamento
mútuo – e de autoaperfeiçoamento – e, portanto, a parte nuclear do processo
de correta formação do caráter pessoal e de uma adequada via de
individualização.
Pensemos por um momento nas implicações de algo tão simples como a
divisa: "um homem, um voto" (ou, "um filho, uma opinião"). Esta divisa
aponta a um modo de resolver uma determinação coletiva, dando a cada um,
independentemente de quaisquer méritos que seja possível reconhecer-lhe
(riqueza, instrução, suposta excelência moral ou intelectual, etc.),
exatamente o mesmo peso à hora de inclinar a balança da decisão comum; ou
seja, guarda uma relação de equilíbrio no que se refere às diferenças dos
indivíduos que dela participam e dispõe de meios para restaurar o
equilíbrio nos casos em que a situação assim o requeira[2].
Em resolução, a relação de igualdade é distinta de – e mais complexa
que – a relação social de comunidade, distinta de – e mais complexa que – a
relação social de autoridade, e distinta de – e menos complexa que – a
relação social de proporcionalidade; a qual, por sua vez, também tem seu
lado fosco, sua cara triste: o egoísmo extremo.
Dito de outro modo, as relações de mercado, quando orientadas
exclusivamente para perseguir sem cessar um benefício, consomem um grande
contingente de moral e esgotam as reservas éticas que se encontram nos
demais vínculos sociais relacionais: basta apenas um egoísta para arruinar
a cooperação, aniquilar a equidade e destruir a confiança no grupo,
diminuindo suas possibilidades de êxito. Isto valeu para os monos, valeu
para os hominídeos e vale para qualquer grupo humano hoje – seja uma
empresa, seja uma escola, seja um pelotão da infantaria naval, seja a
administração pública...
Assim as coisas, o lado triste dos vínculos sociais de
proporcionalidade acaba por complicar a realização dos melhores lados dos
vínculos sociais de comunidade e de igualdade: seus dispositivos
motivacionais socavam o cenário comunitário; a desigualdade desde a qual
funciona atenta imediatamente contra a igualdade de poder e, não menos,
contra o sentimento de fraternidade e de cooperação; as relações motivadas
pelo consumo despiedado de moral que por vezes o definem tornam improvável
o autogoverno pessoal e propiciam a arbitrariedade e o despotismo – isto é,
fomentam o lado escuro das relações de autoridade. [3]


Implicações jurídicas das relações sociais correntes
Parece razoável admitir que o modelo proposto por Fiske, por sua
natureza e riqueza prático-experimental, deveria fazer refletir
profundamente a qualquer um que pretenda fazer filosofia ou ciência
jurídica. Por quê? Pelo simples fato de que, entre outras coisas, permite
explorar o problema do direito e o da relação entre o natural e o cultural
desde uma perspectiva distinta, capaz de articular a diversidade das formas
culturais com a unidade do gênero humano: uma natureza humana comum em que
a mente humana não é um recipiente vazio à espera de ser completado por um
número infinito e ilimitado de relações sociais tuteladas pelo direito,
senão que está constituída por um conjunto muito rico e diverso de
mecanismos específicos produto da evolução natural e que inclui capacidades
cognitivas relacionais especificamente sociais.
Este peculiar modelo unificado das relações sociais, fundado na
natureza humana, é central para a finalidade (e funcionalidade) do direito
porque permite a sua utilização e manipulação para enfrentar-se, de forma
real e factível, às hipertrofias e hipotrofias dos distintos (quatro)
vínculos sociais relacionais; quer dizer, aos excessos e defeitos das
relações de comunidade[4], de autoridade, de proporcionalidade e ainda dos
mesmos vínculos sociais de igualdade nos que se inserta a própria relação
de cidadania.
Da mesma forma, e em igual medida, porque permite enfrentar-se também
à fagocitação de um tipo de vínculo social por outros: as restrições
antiacumulatórias e antirreacionárias ao uso do poder, por exemplo, tratam
de evitar que os vínculos sociais de autoridade (o poder político) socavem
tanto as bases da igualdade e da vida social comunitária como a eficácia
mesma da liberdade; as restrições antialienatórias e antiacumulatórias ao
uso da propriedade privada, por exemplo, tratam de evitar que os vínculos
sociais de proporcionalidade (o mercado) socavem as bases da vida social
comunitária; as restrições antialienatórias e antiacumulatórias ao uso do
direito de sufrágio tratam de evitar a corrupção da relação de igualdade
cidadã por contágio dos vínculos de proporcionalidade. E a "eterna
vigilância cidadã", manifestação prioritária dos vínculos de comunidade e
de igualdade, que trata de evitar que o abuso de autoridade por parte do
Estado afete a qualquer dos quatro vínculos sociais relacionais e degrade a
res publica a imperium.
Depois de tudo, se o direito é um fenômeno que acontece nas relações
intersubjetivas em que os homens se reconhecem recíproca e legitimamente
como pessoas (quero dizer, na convivência humana, cuja natureza repousa nas
quatro formas de vida social arraigadas em nossa arquitetura cognitiva e
que são exibidos por qualquer cultura humana) e se os conflitos sociais, em
sua maior parte, estão motivados, são organizados e julgados por referência
aos "vícios" ou defeitos" dos quatro modelos básicos, o que seja justo em
uma relação concreta depende crucialmente de em que modelo relacional, ou
combinação deles, se encontre modelada a relação no contexto social de
referência.
Cada um deles é usado como padrão para definir formas de coordenação
entre as pessoas e de reconhecimento entre elas como sujeitos sociais e
titulares de direitos e deveres válidos que surgem no marco do modelo
elementar de que se trate. Cada modelo gera dentro de si e de sua dinâmica
critérios específicos de justiça, que exigem ajustar o reconhecimento do
que é devido aos agentes envolvidos segundo a natureza da relação que
estabelecem.
O que implica que os modelos elementares, com seus respectivos
aspectos positivos e negativos, também resultam relevantes para o direito e
o sentido do "justo concreto", na medida em que o conteúdo, a finalidade e
a função destes residem precisamente na forma como se soluciona os
conflitos parciais ou totais de interesses inerentes aos quatro tipos de
vínculos sociais relacionais, cada qual dependente de um conjunto de
potencialidades psicológicas exclusivas, evolucionadas e distintas segundo
o padrão dos interesses convergentes e divergentes próprios de cada
relação.




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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Para o que aqui nos interessa, esta questão é entendida em termos de
uma concepção democrático-republicana, em que a relação de cidadania é uma
relação de igualdade básica entre pares; de uma relação de vida em que ter
cédula de plena cidadania é ter voz e voto nas deliberações comuns, é ter a
capacidade para resistir à interferência arbitrária dos outros e,
consequentemente, para resistir (como o homem enkrático de Aristóteles) a
interferência arbitrária do "inimigo" que todos nós levamos dentro - daí a
razão porque na tradição republicana não há cidadania sem virtude, sem
vontade soberana, sem autogoverno pessoal. Parece claro que o mero
bourgeois ainda está muito longe do citoyen .
[2] Há, com efeito, outras maneiras de resolver esse problema de decisão
coletiva. Por exemplo: a) por consenso unânime (um modo congenial com o
éthos dos vínculos comunitários); ou b) autoritariamente, por decisão dos
superiores hierárquicos ; ou c) dando a cada um, não o mesmo peso, senão
um peso proporcional a algum de seus méritos, a sua riqueza, ponhamos o
caso.
[3] Para exemplificar, pensemos no capitalismo, entendido, muito
sumariamente, como propriedade privada dos meios de produção, mais mercado:
a primeira circunstância, essa peculiar distribuição (e acumulação) dos
direitos de propriedade, carrega consigo importantes implicações
distributivas e de relações de poder; a segunda, propicia uns determinados
dispositivos motivacionais (a desigualdade como estímulo produtivo, o
egoísmo) que operam como combustível social. Tudo isso tem consequências
relevantes para os vínculos sociais de comunidade, de autoridade e de
igualdade: a) o mercado opera sobre um transfundo motivacional egoísta que
atenta contra valores ou disposições emocionais como a confiança, a
lealdade, a compaixão e a generosidade, que constituem o cimento da
comunidade política e cuja relevância para a boa sociedade é, seguramente,
superior à importância das virtudes supostamente favorecidas pelo comércio;
b) no mercado a participação nas tarefas coletivas é puramente instrumental
e com consequências anti-igualitárias: opera segundo um princípio regulador
do comportamento que mina a coesão comunitária e que, sem embargo, se
associa à eficiência econômica; c) a acumulação da propriedade privada dos
meios de produção constitui um importante fator da (desigual) distribuição
de poder e da capacidade discricional em uma determinada comunidade; e, por
último, d) em um mercado de corte capitalista, inclusive no mais perfeito,
as desigualdades de recursos acabam em desigualdades de riqueza que, de
diversas formas, atentam contra os vínculos sociais de igualdade (por
exemplo, a igualdade de participação e influência política).
[4] Recordemos que através da experiência comunitária, da cultura
compartida (já que todos aprendemos nossa cultura, ou nos adaptamos à
cultura a que pertencemos, com o tempo, sem pensar no processo),
desenvolvemos o sentido do que é e o que não é normal, do que as pessoas
dizem e não dizem em determinadas circunstâncias, do que se deve e não se
deve fazer, em que se deve ou não se deve crer, etc...etc. E isto não deixa
de ser também potencialmente perigoso, problemático e/ou alienante, dado
que o fato (ou necessidade) de pertencer a uma determinada
comunidade/cultura pode ter uma tangência muito precária com a órbita do
pensamento motivado pela razão, o bom senso ou a sensatez. Pensemos, por
exemplo, na religião: te ensinam, desde muito pequeno, fábulas fantásticas
sobre um «amigo invisível» (ou vários) com superpoderes que te protegerá,
que não te castigará e que atenderá diligentemente tuas súplicas, sempre e
quando cumpras, com cega adesão, seus mandamentos ou te comprometas
incondicionalmente com as leis e valores de outro mundo que seus vicários
deste mundo decidiram impor em seu nome. O peculiar e o incoerente deste
tipo de «pensamento mágico» é que os poderes, características e caprichos
desse «amigo invisível» a quem deves obedecer, crer e "amar sobre todas as
coisas" variam (essencial e ostensivamente) segundo a cultura/comunidade em
que te educam: Deus, Yahveh, Odin, Thor, Shiva, Júpiter, Zeus, J. C., Buda,
Allah, Brahma, Yoda...
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