Forte, para resistir Sarah Affonso, um percurso ímpar no modernismo português

June 4, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Mulheres Artistas
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Forte, para resistir Sarah Affonso, um percurso ímpar no modernismo português1 Emília Ferreira

Refilona e mandona, contava a irmã mais nova. No entanto, Sarah Affonso não ficou na história como contestária, mas como pintora. Aluna de Columbano, notada positivamente pela crítica, desenvolveu um trabalho de grande ingenuidade poética e acentuado lirismo. Casada com Almada Negreiros, em 1933, abandonaria a carreira, por motivos familiares, em meados da década de 40, apenas a retomando nos últimos anos da sua vida. Uma mulher invulgar e uma artista ímpar, nascida há um século.

Os primeiros anos Nascida em Lisboa, a 13 de Maio de 1899, Sarah Affonso viu nascer cinco irmãos. A infância assim acompanhada foi passada, em grande parte, em Viana do Castelo, para onde a família se mudou por obrigações da carreira do pai, oficial do Exército. Então, Sarah tinha quatro anos. O Minho que emoldurou a sua meninice e juventude moldaria as piasagens e ambiências da sua obra. Como escreveu Maria José de Almada Negreiros, Sarah "ficou marcada por Viana e os seus palácios, pela luz e confusões e pela atmosfera transparente que avivava ainda mais tudo o que ela via, e o que Sarah Affonso via, há oitenta anos atrás, era realmente genuíno, verdadeiro e puro: as alminhas, as procissões, as promessas, os arraiais, os coretos, as ceifas, os bois. E ainda as histórias de crianças e os dramas de pessoas crescidas, em que entravam geralmente emigrantes brasileiros, ou então histórias de mar e barcos perdidos." 2 Em 1914, a família regressou a Lisboa. Então com 15 anos, Sarah encontrou-se num dilema de escolhas escolares. Dotada de múltiplos talentos, a jovem hesitou entre a música e a pintura. Mas um balanço mais ponderado levou-a a inscrever-se na Escola Superior de BelasArtes, preterindo o curso de piano. Numa Lisboa ainda proviciana e Oitocentista, onde os corredores e salas da velha academia de belas artes ainda só há pouco tempo se haviam aberto à presença feminina, Sarah marcaria desde logo uma presença de excepção. 1

Texto publicado na Revista MID, Lisboa, 1999. In NEGREIROS, Maria José de Almada, Sarah Affonso, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Colecção Arte e Artistas: s.d., p. 11.

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As poucas aproximações ao século XX eram as já bem conhecidas e envoltas em escândalo: por um lado, a revista Orpheu, saída em 1915 e dirigida por um menor (e por isso inimputável), cinéfilo e escritor modernista, sobre o qual muito ainda haveria de se falar e escrever — António Ferro —, evidenciava já alguns pontos de afirmação do desejo de uma nova urbanidade marcada por ardores futuristas. Amadeo de Sousa-Cardoso, recém-chegado de Paris, e longe da capital portuguesa impreparada para a sua obra inovadora, pintava quadros em Amarante, preparando o regresso a França e à carreira internacional, que a gripe espanhola (a tristemente célebre pneumónica) acabaria por cercear prematuramente. E, entretanto, morreriam também o poeta Mário de Sá-Carneiro e Santa-Rita Pintor. Enquanto isso, Almada Negreiros desdobrava-se em páginas incendiárias, mandando abaixo um velho algarvio a quem acusava — entre vários mimos — de cheirar mal da boca e usar ceroulas, desejando a sua morte simbólica com um grito famoso "Morra o Dantas, morra, pim!" e instava os portugueses a correrem aos novos tempos com um elucidativo "Coragem, portugueses, só vos faltam as qualidades!" O quadro geral era de incultura e pasmaceira, pontuado embora por sobressaltos e revoluções, numa instabilidade política que não convidava a organizações escolares, acentuando os males já antigos do ensino artístico em Portugal. A própria Sarah Affonso afirmaria que, então, "tanto o Conservatório como as Belas-Artes eram portas abertas para deixarem entrar analfabetos, quase só com a instrução primária.” Necessário também o 5º ano de Francês, visto os livros de estudo serem todos nessa língua, muito lhe tendo servido o ter passado o ensino básico num colégio das freiras francesas, em Viana. Ainda assim, a pintora aproveitaria bem os anos de academia. Aluna de Columbano que, mesmo reformado, continuou a ir à escola só para lhe dar aulas, a jovem determinada, que mantinha os outros à distância, expôs, enfim, em 1923, nas Belas-Artes, numa colectiva de alunos. O crítico Mário Domingues escreveu então: "Sarah Affonso, embora ao primeiro golpe de vista nos recorde imediatamente a pintura mole de Columbano, possui, entretanto, qualidades suas que deve lutar por conservar ou desenvolver. Os retratos que apresenta são tecnicamente bem feitos — academicamente falando. Possuem, entretanto, um quê de impalpável que só consegue fixar nas obras de arte quem tem alma para sentir. Desses retratos ressalta ainda uma qualidade que não se assimila: o carácter. Há um certo à-vontade que só obtêm aqueles que têm um pensamento superior a nortear-lhes o pincel." E na sequência de tais apreciações aconselhava a pintora a "a sair imediatamente da Escola — porque de hoje em diante todo o tempo que lá estiver representará a perda gradual dos seus méritos naturais. D. Sarah Affonso devia — que nos seja permitido dar conselhos — fazer as malas, meter-se no Sud-Express e desembarcar em

Paris. Nessa cidade entregar-se-ia ao estudo dos pintores modernos e antigos, clássicos e bizarros. Veria tudo com olhos de ver, examinaria sem parti-pris, abriria a sua alma às mil almas de artista que, por intermédio da arte, pudesse conhecer. Ao cabo de seis meses ou de um ano de permanência em Paris, não andaria mal D. Sarah Affonso em empreender uma viagem à Alemanha. Aí completaria a sua educação artística, analisando toda a pintura moderna alemã e russa, convivendo em Munique com os artistas que naquela cidade se acolhem. Depois de respirar a plenos pulmões as mais diversas manifestações da arte moderna, regressaria D. Sarah à sua casa sossegada de Lisboa, consultaria a sua alma e tentaria fixar nas telas com toda a pureza, com a máxima sinceridade, sem temer preconceitos, nem leis, nem métodos, nem escolas, nem críticas, o que sentisse e o que visse." 3 Sem vontade nem feitio para concorrer a bolsas de estudo, a jovem pintora enviou a crítica para o seu pai, que se encontrava em África, recebendo, na volta do correio, o dinheiro necessário para viagem. E partiu. Difícil imaginar hoje o que isso significou então para uma portuguesa, com apenas 24 anos, viajando sozinha, a caminho de Paris, rumo a uma carreira artística. Paris Em Paris, Sarah estudou na Academia da Grande Chaumière, teve aulas de desenho livre, viu exposições e espectáculos, trabalhou com muitos artistas e visitou museus. Regressou a Lisboa ao cabo de um ano, no final de 1924. A tempo ainda de expor no I Salão de Outono, promovido por Eduardo Viana. Mesmo desencantada com o que encontraria por cá, voltaria a participar no II Salão de Outono, em 1926. Dois anos depois, expôs individualmente. Mais uma vez, a crítica reagiu com agrado à sua visão encantatória do mundo, servida por formas sintéticas e por uma paleta quente e vibrante. Depois de 4 anos a arranjar dinheiro para uma nova viagem, Sarah voltou a partir com destino a Paris. Aí, juntou à pintura o trabalho num atelier de costura. Continuava também a ver exposições. Um dia, viu uma de Matisse. Como ela própria contou. "Uma exposição de quinze quadros pequenos, com aquelas flores da Primavera, que são brancas, azuis e encarnadas, que se chamam anémonas. Vi essa exposição e fiquei tão maravilhada que, como havia na rua umas barraquinhas com essas flores, comprei um ramo e fui para casa fazer um quadro. A pintura dele era uma pintura por camadas, para tirar um tom, por exemplo roxo, ele dava uma camada de encarnado transparente e depois por cima uma camada de azul, mas de um azul flou. Uma 3

Citado em idem, p. 13-16.

técnica criada por ele. Com duas cores, dava uma terceira. O que se aprende a ver um quadro! O que eu aprendi com Matisse! Aquela liberdade de construção, sem parar nas coisas. Eu não tinha era cultura para ir mais longe." 4 O olhar crítico que sempre lançou sobre si mesma e sobre a sua obra não foi, contudo, partilhado pela crítica nem pelos pares, que a viram sempre com interesse. Logo nesse ano de 1928, participou no Salon d'Automne. O seu quadro "Meninas", aí recebido sem favores, foi exposto com destaque e boa iluminação. Essa homenagem marcou o início de uma carreira internacional que prometia sucesso. Porém, a morte da mãe trá-la-ia de regresso a Lisboa. De volta a Lisboa Na Brasileira do Chiado, a pintora encontrou-se com os amigos Jorge Segurado, Bernardo Marques, Abel Manta, Mário Eloy, e Carlos Botelho, integrando as tertúlias desse "museu alternativo" que Lisboa vira surgir em 1925. Dificuldades na sobrevivência pela pintura fizeramna dedicar-se a tricots e bordados; mas já aí se interligavam referências e desde logo surgiram motivos que usaria mais tarde na pintura. Em 1933, casou com Almada Negreiros. Nos anos 30, e depois de exposições em 32, nos "Independentes", e em 36 e 39 (última exposição individual), a sua carreira afirmava-se com um trabalho cada vez mais individual, e livre. Entretanto, continuava a bordar e a ilustrar livros para crianças. As primeiras ilustrações que produziu foram para Fernanda de Castro. Datam de 1925, logo no primeiro regresso de Paris. Foram para os livros "Mariazinha em África" e "Novas Aventuras de Mariazinha". Seguiu-se a peça de Carlos Amaro, "S. João Subiu ao Trono". Depois de ilustrações para livros de Teresa Leitão de Barros, e Fernando Pires de Lima, houve um intervalo. Recomeçou essa actividade apenas após um convite de Sophia de Mello Breyner Andresen, para "A Menina do Mar". Também fez cartões para tapeçaria, e trabalhos decorativos, como cerâmica, nomeadamente para a Fábrica Viúva Lamego 5. Almada Negreiros incentivava-a constantemente; as cartas que lhe escrevia são disso testemunho. Mas, apesar de tudo isso, da apreciação dos críticos, das participações nas Exposições Modernas do SNI (1940, 44, e 45) e do Prémio Souza-Cardoso em 1944, e de manter uma produção bastante grande nos primeiros anos do casamento, Sarah Affonso acabaria por abandonar a pintura. Apontou para isso razões várias: a família, a falta de condições logísticas, a 4 5

Citado em idem, p. 22. Cf. idem, p. 38 e 42.

necessidade de dar apoio ao marido, a sua própria insegurança profissional, marcada pelo facto de jamais ter tido uma encomenda, a dificuldade em vender os seus quadros. Os anos do silêncio Haveria ainda retrospectivas em 1953 e 1962. E em 1957, participando numa exposição colectiva, ela enviou até, para surpresa geral, um desenho abstractizante. Mas não era esse o principal cunho do seu trabalho, como se sabe, marcado por um lirismo de imagística poética. Essa iconografia festiva, muito própria, afirma-se como um percurso original na segunda geração de artistas modernistas portugueses, não facilitando jamais a uma visão meramente folclórica do mundo, mas mostrando-o como um brinquedo, ingénuo e encantatório 6. O escultor Diogo de Macedo, amigo desde os tempos de Paris, disse dela que o isolamento da sua obra no quadro geral da arte a levava à revolta. Mas acrescentava: "O mais estranho é que Sarah Affonso não vê a vida senão pelo lado infantil, pelo mais puro, pelo mais ingénuo. A sua arte é alegre, sem sombras, sem dostoievskismos assustadores.” A sua avaliação, contudo, apesar de admirativa, não deixa de conter em si um germe daquilo de que ainda hoje padece grande parte da crítica sobre a obra da pintora: o sublinhar da produção como marca de uma visão meramente maternal, feminil e doce do mundo. Um mundo visto por um filtro benfazejo mas algo deslocado. “É uma arte simples, bem feminina, adorável. Os seus modelos no geral são crianças. E as suas crianças são bonecas lindas, pobres ou ricas, mas sempre bonecas. Há quem julgue — por facilidade no julgamento — que ela pinta brincando.” Diogo de Macedo não se ficava por aí, é certo; referia que a artista era maior do que parecia à primeira vista. E aí foi mais longe do que muitos ainda hoje querem ir, levados no engano dessas paisagens humanas de face adulcicada. “E, no entanto, aqui eu juro que ela sofre, que ela estuda profundamente, que é mais culta que a maioria, que as suas composições, as suas emoções, a intensidade dos seus deslumbramentos, dos seus quadros, os seus bordados, os seus desenhos, são exaltadamente sentidos, meditados, vividos." 7 Esse acrescento de ‘razão’ é, aliás, significativo, sentindo-se demasiado o peso de uma justificação (cultural, emocional, vivencial…) necessária para a aceitação da obra. Seja como for, emoção é, sem dúvida, a palavra que mais nos ocorre quando nos deparamos com a obra de Sarah Affonso. Ela própria dizia que perante a natureza não pretendia

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Cf. FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no Século XX (1911-1961), Lisboa, Bertrand Editora, 3ª edição: 1991, p. 303. 7 Citado in NEGREIROS, Maria José de Almada, op. cit., p. 29.

tirar-lhe o retrato, mas a emoção 8. Para o crítico e historiador de arte José-Augusto França, esta afirmação sintetiza o programa pictórico de Sarah Affonso, que considera "ímpar na arte portuguesa dos anos 30" 9. Sarah Affonso morreu em 1983. Da sua obra continua por fazer o estudo sério, que aborde algo mais do que o facilitismo de adjectivação de “adorável, feminina”… — afinal, pensarão muitos, por certo, epítetos mais que suficientes para a pintura feita pela mulher de Almada Negreiros. É verdade que para ela havia mais coisas na vida para além da pintura. E até dos botões de cerâmica — que fez pelos anos 40 para equilibrar o orçamento familiar — ela tirava alegria Mas a injustiça de silêncios e recusas — como o nunca ter tido encomendas, como referimos, ou nunca lhe terem proposto bons preços para os seus quadros, não deixou de a ferir. No fim do século XX, inquirimo-nos: se o autor fosse homem teria sido diferente? A resposta deveria ser que — embora não escamoteando os contextos — já vai sendo tempo de olhar mais para as obras, e menos para o sexo de quem as produz. O que a historiagrafia da arte, internacionalmente, já faz, sem preconceitos nem favores. Quando o mesmo se fizer entre nós, talvez então também se consiga descobrir, nos seus desenhos e pinturas, que não só de candura se fazem os seus personagens. Veja-se, por exemplo, o modo como ela se auto-retratava. Mulher de olhar decidido e atento, traços firmes e fortes. Personagem, ela própria, de um mundo onde as mulheres se dividiam por narrativas de encantar, fascinantes, festivas e solares, e por realidades e opções mais terra a terra. "Refilona" e "mandona", dizia dela a irmã mais nova. Ou, antes, "forte, para resistir". Dizia ela. Porque, neste país, isso era preciso.

(Publicado na revista MID, 1999)

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Cf. idem, p. 31. In FRANÇA, José-Augusto, op. cit., p. 303.

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