Fotografia como arte e arte como fotografia: o caso Weegee

June 5, 2017 | Autor: Marcos Fabris | Categoria: Photography, Weegee
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Fotografia como arte e arte como fotografia: o caso Weegee

Marcos Fabris

"[...] por realismo não podemos razoavelmente entender a
representação da realidade objetiva, como é dada na experiência
empírica comum. [...] [O] realismo não pode em nenhum caso
postular ou pressupor uma concepção organizada da realidade, mas
apenas indicar uma determinada atitude da consciência perante a
problemática do real; mais precisamente, uma atitude de
engajamento e participação, em vez de evasão ou distanciamento.
Mais precisamente ainda: é realista toda posição de luta ou de
intervenção ativa na realidade de uma situação histórica; e é
realista a recusa de toda metafísica, tanto do conteúdo quanto
da forma – aliás, a recusa de toda possível distinção ou
categorização de conteúdo e forma."[1]

Uma das revoluções causadas pelo surgimento dos Estudos Culturais
contemporâneos tem a ver, como é sabido, não apenas com a renovação do que
estudar (a ampliação do corpus para além da "grande literatura" ou da "alta
arte"), mas também com para que estudar determinado objeto de cultura.
Segundo um dos maiores teóricos do campo, o crítico inglês Raymond
Williams, os Estudos Culturais mais progressistas devem se opor a uma visão
hegemônica de cultura: aquela visão que prega que a cultura deve
desempenhar o papel social de "apaziguar e organizar a anarquia do mundo
real dos conflitos e disputas sociais"[2]. A fotografia ocupa um lugar
complexo dentro dessa concepção de Estudos Culturais, pois grande parte da
produção mundial contemporânea está indissoluvelmente ligada, direta ou
indiretamente, ao mundo da publicidade, o que reduz seu poder crítico de
oposição ao universo das regras do mercado. Mas nem sempre é assim e a
produção que caminha em sentido contrário ao hegemônico aguarda a atenção e
a análise dos interessados.
A partir do conceito de "estrutura de sentimento" de Raymond Williams[3],
segundo o qual o objeto de cultura não pode ser analisado autonomamente nem
tampouco ser dissociado dos modos de sua produção (instituições,
convenções, formas artísticas disponíveis), pretendo voltar-me para o
trabalho do fotógrafo norte-americano Weegee. Como veremos, a escolha não é
fortuita: a partir da intersecção de inúmeros fatores, onde se mesclam
dados biográficos, a história do desenvolvimento de determinadas
instituições culturais e o próprio estado de desenvolvimento das formas
artísticas, Weegee produziu um trabalho que ajudou a mudar o conceito de
cultura na área da fotografia, descrevendo um caminho a ser trilhado por
artistas no futuro.


*


Weegee carece de sofisticação técnica; a banalidade de temas envoltos por
uma névoa de vulgaridade generalizada e desnecessária resulta em uma
retórica ao mesmo tempo ordinária e excessiva, imperdoavelmente agressiva e
kitsch, que não faz senão expor publicamente um segredo já por todos
conhecido. Trata-se de mais um cínico oportunista; sua produção não pode,
portanto, ser confundida com a verdadeira arte de vanguarda norte-
americana. Weegee se utiliza de uma linguagem demasiadamente popular, é
certo, mas seu mérito consiste sobretudo em documentar, em suas melhores
imagens, aspectos do cotidiano da grande metrópole, revelando as privações
e o isolamento que atormentam as almas de seus habitantes. Weegee é um
gênio oriundo do sub-mundo, um talento sem par que, a despeito de todas as
adversidades materiais que o acometeram, conseguiu ascender ao panteão dos
maiores fotógrafos americanos ao estabelecer, graças à sensibilidade
inerente aos maiores Artistas (com "A" maiúsculo!), elos estéticos dos mais
sofisticados entre a arte popular e a alta-cultura. Weegee faz arte
engajada e suas fotografias almejam uma apreciação incisiva da máquina
capitalista. Quando o assunto é o fotógrafo europeu naturalizado norte-
americano Arthur Fellig, mais conhecido por Weegee, o dissenso parece ser o
único consenso entre a crítica especializada.

Ao divergir categoricamente sobre sua obra, ou simplesmente a ignorar, o
que não é incomum em compêndios ou mesmo em cursos de fotografia, a crítica
tende a fazê-lo quase sempre de modo passional e intenso, um reflexo e um
sub-produto de algo por demais marcante nas imagens por ele produzidas. E o
que, afinal, existiria nestas fotografias em grau suficientemente elevado
para provocar tal reação? O que revelariam, para além das aparências,
edifícios em chamas, amantes furtivos em praias desertas, habitantes de
cortiços nova-iorquinos exauridos em escadas de incêndio, fãs histéricas
por seus ídolos, assassinatos variados, crianças reunidas ao redor de
cadáveres, vagabundos e pedintes, personalidades e socialites ou animais de
circo em posições inusitadas? E mais: o que significam todas estas imagens
agrupadas sob forma de livro organizado pelo fotógrafo e publicado em Nova
York em meados dos anos quarenta? Refiro-me a Naked City (1945), primeiro
livro do fotógrafo e sucesso instantâneo no mercado editorial americano da
época, que propõe ao leitor um city tour bizarro pela cidade, ou, por
outra, pela cidade de Weegee.

Oferecendo-nos a possibilidade de uma visita guiada (com direito a "áudio"
simultâneo, papel desempenhado pelo texto e legendas que acompanham as
imagens, também de sua autoria), que se inicia ao sabor do que promete ser
um certo tipo de entretenimento mas que de imediato se prova uma viagem
mais que perturbadora, Weegee nos desorienta em inúmeras frentes. O sabor
final do passeio é um estado de estranhamento geral. Mas poderíamos mesmo
chamá-lo de "passeio"? Houve, no passar das páginas, o esboço de algum
riso; entretanto, no cômputo geral, as expectativas iniciais de
entretenimento dos viajantes foram todas frustradas. Em alta velocidade,
arrastados por um turbilhão, entre solavancos e cotoveladas, descobrimos
uma cidade distópica na qual imperam a desordem e a comoção social. Re-
visitamos lugares que nos parecem familiares, embora diversos daqueles há
pouco vistos. Variedade e repetição do mesmo têm fronteiras tênues. Em
movimento espiralado, figuras aparecem e reaparecem em formatos distintos,
como próteses de identidade no picadeiro de um circo macabro onde
representam seus números cotidianos. Uma atmosfera de pesadelo urbano
finalmente inunda o viajante. Azedadas nossas esperanças de diversão, ao
menos na acepção mais corrente do termo, sentimos inicialmente o gosto acre
de um "salve-se quem puder" generalizado; dele logo decorre outro dissabor:
o que deveria servir ao propósito de melhor conhecimento dos pontos
turísticos daquele terreno urbano parece ter causado precisamente o efeito
oposto. Nossos referenciais, estruturalmente abalados, não nos permitem
reconhecer a cidade nos termos em que suspeitávamos que o faríamos; nenhum
cartão postal ou vista edificante nos é oferecido. Tudo é instável,
insólito e nos foi tornado estrangeiro; da experiência resta um estado
inicial de acedia, logo substituído por uma compreensão atônita, a sensação
de acesso a um outro tipo de conhecimento, de natureza e magnitude
distintas. E que conhecimento é este? Sobre que bases está assentado? Quais
as formas artísticas encontradas, ou, por outra, forjadas a partir de
estruturas sociais percebidas ou "sentidas" pelo fotógrafo?[4] Noutros
termos, como foram urdidas as formas artísticas concebidas pelo fotógrafo a
ponto de tornarem-se o princípio estrutural de todo o livro? Qual o diálogo
estabelecido com a matéria social a partir da qual foram plasmadas e como
dão inteligibilidade tanto ao real como ao fictício, explicando, ao mesmo
tempo, um e outro?[5] Formular tais questões e arriscar possíveis respostas
equivale a refazer uma parte do percurso proposto por Weegee em Naked City,
que cumprirá o que promete logo no título: desnudar a cidade de modo
insuspeitado.





*


No início do século XX a única ferramenta e termo de aferição da
importância, prestígio e valor artístico – e venal – de qualquer produção
fotográfica era um metro intitulado pictorialismo. Quanto mais próximo das
regras prescritas pelo movimento artístico-fotográfico, que nos Estados
Unidos fora organizado em torno do fotógrafo norte-americano Alfred
Stieglitz e seu círculo, maior a grandeza da obra, que por estas vias
lutava arduamente para ser aceita no círculo "sério" das belas artes. Neste
cenário, pode-se imaginar o local destinado aos retratistas ambulantes[6].
Párias no último estágio da hierarquia da indústria fotográfica, eram os
intocáveis que os aspirantes a artistas de prestígio repudiavam com
veemência superior apenas aos axiomas que prescreviam em cada uma das
imagens que produziam. Arthur era um garoto pobre, filho de imigrantes
judeus que chegaram a Nova York para, como tantos outros, "fazer a
América". A precariedade das condições de vida do menino (e de todos os
outros "Weegees") sequer permitia que tomasse conhecimento de tal movimento
artístico ou do ódio que nutria por tudo que remotamente ousasse deslocar a
fotografia das paredes das galerias de arte para os muros das ruas. Sem
ciência ou opção, era ali que o garoto iniciaria seu contato com a
profissão, descobrindo um nível ainda menos elevado no ranking artístico:
aprendiz e assistente de fotógrafo ambulante.

Entre 1913 e 1916, já fora da casa de seus pais, conhece um fotógrafo
ambulante para quem trabalha durante algum tempo aprendendo o ofício.
Conhecidos como tintype photographers, eles produziam essencialmente
retratos de transeuntes utilizando a técnica do ferrótipo. Esta consistia
essencialmente na umidificação de uma plaqueta de ferro (daí a associação
com a palavra inglesa "tin", que significa lata ou latão) com colódio, um
composto de éter e álcool em partes iguais numa solução de nitrato de
celulose, substância que possibilitava a aderência do nitrato de prata foto-
sensível ao suporte utilizado. A técnica era popular entre os profissionais
do ramo em virtude da rapidez de sua produção, seu baixo custo e,
principalmente, por não oferecer riscos de quebra ou danos evidentes ao
produto final entregue ao cliente (ao contrário do que acontecia com os
negativos de vidro). Como principiante, Weegee era responsável por auxiliar
o mestre no processo de revelação das imagens, entregá-las aos clientes e
cuidar do pônei do fotógrafo, misto de estrela e chamariz que ajudava a
conquistar a simpatia e os trocados dos pais das crianças mais insistentes.
O emprego lhe rendia muito pouco mas oferecia atraentes benefícios que se
somavam a seus ganhos: já fora da casa de seus pais, não precisava mais se
preocupar em buscar abrigo noturno, pois o fotógrafo permitia que dormisse
no estábulo com o pônei.

O garoto tinha tino comercial e aprendeu rápido os traquejos da profissão,
que de fato não encerrava maiores segredos. Almejando ganhos mais
significativos e um pouco mais de conforto material decidiu tentar a sorte
autopromovendo-se à condição de fotógrafo ambulante, não sem antes sondar o
mercado das redondezas do Lower East Side, região da cidade onde morava e
aquele que melhor conhecia. A área provara-se potencialmente lucrativa, ao
menos para o início de sua carreira solo, pois verificou, a partir da
própria experiência doméstica, que as famílias de imigrantes que ali
moravam tinham por hábito guardar com particular afeto as fotografias de
seus entes queridos. Também percebeu que tais famílias, por mais
empobrecidas que fossem, não costumavam poupar esforços ou dinheiro para
fazer um retrato dos menores. "As pessoas amavam suas crianças e não
importava quão pobres elas fossem, acabavam sempre por arranjar a grana
para as minhas fotos"[7], lembra Weegee. Munido da câmera fotográfica
comprada de segunda-mão e do pônei que alugara para si, apelidado de
"Hypo", saiu a campo.

A esta altura, Weegee já deveria possuir um bom domínio da técnica
fotográfica. Sabia o papel que cada componente químico desempenhava no
processo de captura, revelação e ampliação das imagens que produzia, dando
indícios concretos do humor e do caráter investigativo de suas futuras
imagens. Em inglês, hypo significa, no campo da fotografia, hiposulfito, um
material químico utilizado para a fixação das imagens fotográficas no papel
ou suporte desejado, após as etapas de ampliação e revelação. Também se
refere à abreviatura da palavra hipopótamo, o que provavelmente seria um
atrativo extra para as crianças que seriam fotografadas no animal, em
teoria de proporções "semelhantes" (importante notar que esta técnica foi
também derivada do aprendizado adquirido com o profissional que lhe
ensinara o ofício). Por fim, o termo também pode se referir à forma
abreviada de hipodérmico, ou seja, aquilo que se encontra por debaixo da
pele (ou, no caso de Weegee, da superfície aparente ou visível dos
fenômenos investigados). Weegee paulatinamente encaminharia sua prática
cada vez mais no sentido da última definição conforme se desenvolviam suas
atividades no meio fotográfico.

Os dias de trabalho mais rentáveis eram aqueles do fim de semana, momento
em que boa parte das crianças vestia suas melhores roupas para brincar nas
ruas do bairro. O garoto as fotografava, não raro sem mesmo o conhecimento
de seus pais, após um ritual que concebeu (a partir de seu treinamento
inicial) para cativar a clientela: limpava e alinhava o freguês tanto
quanto possível, apresentava-lhe o animal e fazia com que se aproximasse
dele. Persuadi-lo a dar uma volta pela rua no lombo de Hypo não demandava
esforço; a técnica contribuía não apenas para convencer o "felizardo" a
tirar seu retrato mas expunha e anunciava o serviço oferecido pelas
redondezas. Tendo anotado o nome e endereço dos fotografados, levava nos
dias que se seguiam as provas iniciais das imagens às casas dos adultos
responsáveis, que invariavelmente encomendavam cópias definitivas pagando
vinte e cinco centavos de dólar por uma fotografia ou, na promoção, três
por cinquenta. As cópias eram feitas ali mesmo, na própria cozinha do
cliente, misto de laboratório momentaneamente improvisado, recepção de
atelier fotográfico, gabinete de curiosidades, palco e platéia[8], um
cenário ajambrado primordialmente para demonstrar e evidenciar, ou ainda,
para encenar o trabalho executado. Dependendo de sua habilidade técnica, o
"artista mambembe" conquistaria também a simpatia e os cobres do restante
do público, os parentes ou vizinhos curiosos que normalmente se apinhavam
na "galeria" para assistir à "encenação".

Mas o que esperava esta platéia de Weegee? Como triunfar perante seu
público, ser agraciado com o prêmio máximo e voltar na semana seguinte com
chances redobradas de vitória? No caso do jovem fotógrafo, a resposta era
inequívoca: o ápice de seu número, a saber, o fruto de seu trabalho,
deveria ser a produção de imagens que seguissem à risca as demandas da
freguesia. E a clientela de imigrantes pobres decretara que suas crianças
deveriam aparecer brancas nas imagens. Nada de aproximações delicadas ou
sutileza de tons; queriam todos brancos, pseudo-caucasianos, espectrais[9],
ainda que isso significasse a mais brutal ruptura com qualquer possível
vestígio de "realidade" da imagem fotográfica. O garoto, uma dessas
crianças, não carecia de maiores explicações quanto às dificuldades que
encontrava a população imigrante de assimilação à cultura e sociedade
locais. Racismo e preconceito não lhe passaram desapercebidos. Como objeto
e sujeito de suas próprias fotografias, compreendia que a platéia exigia
presente nas imagens o retrato fiel da percepção que tinha da realidade e
possivelmente também tudo o que sabia dela se ausentar. Weegee conhecia as
consequências do malogro e não estava em posição de sugerir padrões
estéticos. Tornando expressivo seu ponto de vista, satisfaria as
expectativas do público forjando uma forma artística em consonância com uma
determinada forma social.

Concebeu assim um método quase infalível (que desenvolveria à perfeição no
decorrer de sua prática fotográfica) de fazer com que crianças de
praticamente qualquer cor aparecessem esbranquiçadas nas fotografias em
preto e branco: ampliava as imagens em papéis de alto-contraste, o que
significava, na maioria dos casos, a presença de brancos alvos e negros
intensos, com a quase completa ausência de meios-tons (as correspondentes
variações de cinzas) entre um e outro. A profundidade de campo era
praticamente reduzida a zero; não criava, portanto, distância, mas, ao
contrário, aproximava elementos e adensava suas relações. Visualmente, o
espectador se confrontava com um produto final bastante "grosseiro": uma
superfície bi-dimensional que servia de tablado para o combate explícito
entre cores, brancos e pretos profundos que não mais se apresentam como tom
cromático local mas como substância do espaço pictórico, e formas, corpos
com volumes matéricos espessos como reboque construídos a partir desta
concepção cromática. Nesta arena, uns investiam contra os outros, atracando-
se entre si e intensificando em termos visuais a encenação de um conflito
irreconciliável, travado entre elementos diametralmente opostos. Aqui, até
a luz é matéria, vibração maciça num espaço que não é construção
perspéctica concebida aprioristicamente (ou seja, a estrutura basilar da
perspectiva artificialis em voga a partir do cinquecento italiano) mas
algoritmo da consciência fenomênica. Neste universo, o fotógrafo varre todo
resquício de expressão psicológica ou traço de particularidade
característico. Cada criança, oca de si, ganha um quantum significativo de
universalidade. Despejada a subjetividade da qual jamais gozara, extrai do
fotografado sua essência ao reduzi-lo ao típico. Cada criança torna-se,
então, um fragmento que contém em si seu todo: personagem sem persona, é um
e todos, crianças e adultos[10]. A grosseria das imagens equivalia à
marginalização que sofriam pela sociedade bem educada e à brutalidade
generalizada da vida. Mas qualquer artista-fotógrafo concordaria que se
tratava de depreciação da Arte: Weegee fazia uma "fotografia suja".

Para aqueles educadores do gosto, a produção artística pictorialista
buscava refletir a idéia de qualidade, ordem, proporção, ritmo, equilíbrio
e harmonia, em suma, a busca de experiências estéticas da ordem do belo
metafísico pelas alamedas de um classicismo empedernido, apanágio das
academias e salões de belas artes, aos quais, como vimos, esta fotografia
sequer estava plenamente integrada. Como mordomos das artes superiores,
insistiam na representação da beleza do mundo visível, o que significava
essencialmente duas posições distintas com idêntica abordagem: ou voltar-se
ao universo bucólico da natureza, representando-o a partir dos códigos e
regras concebidos e consagrados (aqui a matriz era a pintura francesa de
cavalete de Poussin e Claude Lorrain) ou embelezar artificialmente as
grandes metrópoles, nos mesmos termos nostálgicos e estetizados (na esteira
dos asseclas de Alfred Stieglitz). Nenhuma destas posturas poderia
prescindir da estilização estática e cerimonial que mascarava o caos da
vida urbana, em imagens concebidas sobretudo para o aquecimento do mercado
das artes fotográficas. É certo que o movimento pictorialista já se
encontrava enfraquecido e em breve veria seu próprio fim. Mas muitas de
suas concepções fundantes encontrariam ecos nas mais diversas variações ou
expressões estéticas que se seguiriam – uma das mais difundidas seria a
concepção divinizante da arte. Ao afastar-se de toda prática normatizada,
aproximando-se da linguagem cotidiana (aquela do jornal, e mais
especificamente a do tablóide), Weegee explicita a deficiência do modelo
petrificado, desferindo contra ele os mais violentos golpes (como fizera
Gustave Courbet com a pintura francesa quase um século antes). Retrata o
ambiente urbano de modo a representar seu objeto como ao mesmo tempo uma
vítima da cidade e o agente de sua transformação, introduzindo-o
formalmente no campo visual pela via do alto contraste exacerbado, efeito
de estranhamento que desmantela as leis "naturais" da indexação[11] da
imagem fotográfica. Ao introduzir e explicitar um ponto de vista, explicita
um crime cometido, rebela-se contra ele e adere à tese de que a história
não se conta, mas é contada.

Mas a revolta de Weegee não era contra o gosto acadêmico que desconhecia ou
a liberdade de fruição artística isenta de preconceitos estéticos atrelados
a formas nostálgicas passadas. Impõe-se para ele a necessidade de um novo
classicismo, não mais calcado na imitação livresca dos antigos, mas
dedicado a forjar uma imagem realmente original e concreta do mundo
material do qual faz parte o coletivo ao qual pertence, imagem esta que não
deveria ser buscada na cópia visível das aparências da realidade exterior,
mas na consciência de seu produtor. Esta operação artística, que propõe a
compreensão de processos, não reproduz o mundo; produz a sensação de nele
estar, mantendo-a viva, e não como dado para reflexão a posteriori mas como
consciência em ação. Não opera por silogismos mas efetua-se concomitante à
experiência viva e atual da realidade. Ao elevar a sensação visual ao nível
da consciência, Weegee amplia o horizonte de seus experimentos filiando-se
à produção de vanguarda que será característica da Frente Cultural norte-
americana. Sem o saber, o jovem trabalhador inicia o percurso que aos
artistas-fotógrafos da época jamais ocorreria: refazer Poussin,
reencontrando "a história na natureza, a experiência refletida do passado
no flagrante da sensação"[12].

Sem consciência de suas conquistas iniciais, o aprendiz retoma séculos da
história da arte que o precedia e, a partir dos ensinamentos de mestres que
jamais conhecera, num arco que se estende do velho Bruegel a Manet e
Cézanne, avança em relação às produções artísticas mais consequentes de sua
hora histórica graças ao desenvolvimento dos meios e técnicas
reprodutíveis, utilizados aqui a serviço do proletariado no campo das lutas
de classes. Toda ferramenta que pretendia criar obras primas monumentais
fora substituída pela câmera fotográfica que torna eloquente o desiderato
da massa silenciosa. E ela determina expressamente que a sua verdade
cotidiana seja descrita. Pelas imagens produzidas por esta câmera escutam-
se seus urros. Pelo trabalho deste petit métier exigem, como outrora
fizeram com o fotografo francês Eugène Atget, a sua parcela do "lado belo
da vida" (ecoando o Baudelaire de O mau vidraceiro). Ao sussurro do mestre
francês corresponde o brado do imigrante. Estabelecendo o choque como o
princípio formal constitutivo de sua obra fotográfica, corolário de um
modernismo que não pode ser visto nem como experimento formal nem como
conjunto de pressupostos de caráter meramente estético mas sobretudo como
um projeto político coletivo, Weegee re-atualiza as bases fotográficas para
um novo Realismo no epicentro da Meca que forjara e consolidara o mito do
progresso nas bases do pragmatismo industrial capitalista. Na mesma
voltagem, põe em xeque a definição e o papel do artista consequente
indagando ao realismo ingênuo: "Onde está a verdade estrutural?". O olhar
plebeu de Weegee areja a fotografia. Se ele a conspurca, as nódoas são de
pura vida. Seu habitat natural é a sarjeta e é para lá que ele arrasta a
fotografia, elevando-a a este nível. Erigiu com os seus, tijolo por tijolo,
a dissonância como indicador de uma nova harmonia.











Bibliografia

ARGAN, G. C. Arte Moderna – do iluminismo aos movimentos contemporâneos.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
_______ . A arte moderna na Europa – de Hogarth a Picasso. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.

CANDIDO, A. O discurso e a cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1993.

CEVASCO, M. E. Dez lições sobre Estudos Culturais. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2003.

FELLIG, A. Weegee by Weegee – an autobiography. Nova York: Ziff-Davis
Publishing Company, 1961.

WEEGEE. Naked City. Nova York: Da Capo Press, 1973.

WILLIAMS, R. The Long Revolution. Londres: Penguin Books e Chatto & Windus,
1971.
-----------------------
[1] In ARGAN, G. C. Picasso: o símbolo e o mito. In A arte moderna na
Europa – de Hogarth a Picasso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.
560.
[2] Citado em CEVASCO, M. E. Dez lições sobre Estudos Culturais. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2003, p.15.
[3] Cf. WILLIAMS, R. The Long Revolution. Londres: Penguin Books e Chatto &
Windus, 1971.
[4] Cf. WILLIAMS, R. op. cit.
[5] Cf. CANDIDO, A. O discurso e a cidade. São Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1993.
[6] Vale notar a enorme semelhança entre o futuro trabalho de Weegee e o
local ocupado pelos retratistas ambulantes e seu desempenho como fotógrafos
e cinegrafistas retratados no filme O homem das novidades (The Cameraman,
de 1928), de Buster Keaton.
[7] Cf. FELLIG, A. Weegee by Weegee – an autobiography. Nova York: Ziff-
Davis Publishing Company, 1961, p. 18 (minha tradução).
[8] "O cômodo logo ficava repleto de vizinhos e parentes, que sentados em
caixas de sabão olhavam as provas iniciais." Cf. FELLIG, A. op. cit. p. 18
(minha tradução).
[9] "Chalky" ou "dead-white", nas palavras de Weegee. Cf. FELLIG, A. op.
cit. p. 18 (minha tradução).
[10] Tais fotografias encontram eco em Naked City na imagem da criança
indigente fotografada no capítulo 16: "Odds and Ends" (as "sobras" ou
"rebotalho"). O poodle bem tratado da Park Avenue na página da esquerda é
seu par na montagem proposta pelo autor. Ver WEEGEE. Naked City. Nova York:
Da Capo Press, 1973.
[11] Ao fazer uso do termo "indexação", acentuo minha distância das
abordagens críticas como a semiótica, que aqui certamente preferiria o uso
do termo corrente em seu vocabulário teórico-crítico, "indexicalidade".
[12] Cf. ARGAN, G. C. Arte moderna – do iluminismo aos movimentos
contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 113.
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