FOTOGRAFIA E DOCUMENTO

July 14, 2017 | Autor: Renato Roque | Categoria: Fotografia, Fotografia Documental
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FOTOGRAFIA E DOCUMENTO

Cancioneiro de Matosinhos[1] Gostei que a minha publicação no FB sobre fotografia e documento tivesse começado a provocar uma troca de ideias entre algumas pessoas. Tentarei por isso aqui aprofundar um pouco o tema, distinguindo alguns planos de discussão. De facto, ao conversar sobre documentos e fotografia há por vezes a tendência em intersectar demasiado esses planos, dificultando a clarificação do assunto . 1º Plano de discussão – parece ser inegável que podemos identificar em todas as fotografias duas componentes: documento e ficção.

1. Uma componente indicial, documental, que resulta do processo de registo do real, do tal referente a que se referia Barthes: Uma determinada foto não se distingue nunca do seu referente… Não há foto sem alguma coisa ou alguém … Uma foto é sempre invisível: não é a ela que nós vemos. Em suma o referente adere. Câmara Clara, Roland Barthes Quando dizemos a partir do real, pomos aqui de lado, como é óbvio, imagens artificiais construídas com recurso a ferramentas digitais. A ideia de que só temos documentos, se houver uma validação desse objecto por uma qualquer entidade idónea, parece-me bizarra. No Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss podemos ler: Documento – qualquer objecto – fotografias, escritos, peças, filmes, etc. que elucide ou prove algum facto ou acontecimento. De facto o conceito de documento é muito amplo e engloba qualquer registo que contenha indícios de algo que aconteceu. Ou seja, as fotografias que guardo carinhosamente nos álbuns que a minha mãe organizou, ou os postais que escrevi na juventude, em férias, são de facto documentos e não precisam de ser validados por ninguém para além de mim. Claro que os documentos poderão ser mais ou menos valiosos e não pretendo comparar os meus pobres postais com o Pergaminho de Vindel ou com o Cancioneiro da Biblioteca Nacional. 2. Uma componente ficcional ou simbólica, associada a um processo de construção da imagem pelo autor. Existe assim em cada imagem um equilíbrio instável entre estes dois elementos. Instável, não só porque esse equilíbrio depende do leitor/observador, mas porque se move ao longo do espaço/tempo. Como paradigma dessa instabilidade no tempo poderíamos referir a fotografia de Atget, que foi tão (des)considerada durante muito tempo, como desinteressante, precisamente porque era “demasiado” documental, e que surpreendentemente foi “descoberta” pelos surrealistas[2] e ganhou um novo conteúdo simbólico, que a tornou numa das fotografias mais relevantes, e mesmo no presente idolatrada no seio da chamada fotografia contemporânea. Uma fotografia que nos é oferecida foi sujeita a dois processos. 1.Um processo de construção de uma representação, da responsabilidade dos autores, que engloba factores técnicos e factores culturais/ideológicos. 2. Um processo de interpretação por parte de cada leitor/observador, com a intervenção de agentes como os media, onde mais uma vez serão relevantes aspectos culturais e ideológicos.

Assim, a partir do real, temos a fotografia criada pelo autor, onde os dois componentes que referimos dialogam e se completam, e temos a imagem vista por cada um de nós, onde o equilíbrio desses dois componentes irá ser diverso. 2º Plano de discussão – o que é a fotografia documental? Faz sentido utilizar esta designação? Independentemente de haver uma componente documental em cada fotografia, mesmo em imagens encenadas[3], que afinal documentarão essa encenação, tal como acontece com uma fotografia de uma peça de teatro, coloca-se a questão de classificar um trabalho fotográfico, ou não, como documental. Fará sentido usar esta designação? E se sim, em que condições? Poder-se-ia argumentar que, se toda a fotografia contém um vector documental, todos os projectos fotográficos seriam documentais, ou, em oposição que, se todos os projectos fotográficos contêm uma construção de uma representação pelo fotógrafo, nenhum trabalho seria documental. Que todos seriam ficções. Em qualquer desses dois casos o atributo “documental” associado à fotografia deixaria de nos ser útil, pois não haveria uma distinção entre fotografia documental e não-documental. Verificamos, no entanto, não só que o atributo é usado correntemente mas que ganhou uma relevância muito grande no seio da chamada fotografia contemporânea. Curiosamente, esse epíteto, que tivera uma leitura pejorativa no passado, tem adquirido na chamada contemporaneidade uma auréola de prestígio. Bastará procurarmos e encontraremos com relativa facilidade inúmeras exposições de fotografia contemporânea e muitos livros em que a fotografia chamada documental aparece como central. Poderíamos citar, uma vez mais como simples exemplo, a primeira grande exposição na Modern Tate em Londres, em 2003, dedicada à chamada fotografia contemporânea chamada “Cruel and Tender: The Real in the 20th Century Photograph”. O atributo tornou-se tão prestigiante que muitos fotógrafos parecem lutar encarniçadamente por o adquirir, mesmo em casos onde esse atributo é no mínimo de duvidosa atribuição, pois como é óbvio não se pretende dizer que toda a fotografia é documental, mas que se trata de um documental igual a contemporâneo. Lembramo-nos de uma polémica com uma fotógrafa, durante uma apresentação do seu trabalho como documental, que afirmava que Jeff Wall seria o paradigma da fotografia documental contemporânea: fotografia documental seria na sua opinião uma fotografia que criava ficções a partir do real. Em nossa opinião, apesar de a componente documental estar sempre presente na fotografia, poderá justificar-se falar numa fotografia documental, até porque essa é uma designação com enorme peso histórico e constituirá uma luta inglória pretender banir este atributo. Além disso, essa designação pode ajudar-nos a identificar um determinado tipo de fotografia, realmente muito ligada à documentação do real, mesmo se numa perspectiva muito pessoal e muito autoral. Como exemplo de fotógrafos documentais da actualidade muito conhecidos poderíamos referir os americanos Robert Adams, Lee Friedlander e William Eggleston, os europeus Thomas Struth e Andreas Gursky, ou em Portugal, Paulo Nozolino.

A designação fará então sentido se a componente documental for relevante e permitir ao observador uma ligação mais ou menos evidente com os factos ou os acontecimentos fotografados. Existe nesta decisão, como é óbvio, um certo grau de subjectividade que possibilita um grande território de indefinição. Seria por exemplo legítimo que possa haver quem defenda que alguns projectos de Nozolino, porque mais poéticos ou metafóricos, não devam ser incluídos nessa designação. Ou seja, para a aceitação da designação poderá contribuir o tal processo de interpretação pessoal da fotografia, que referimos. Curiosamente Walker Evans, um marco por todos referido da chamada fotografia documental, utiliza o adjectivo “documentary” em vez de “documental” e afirma que a a arte não pode sr documental, pode quando muito adoptar um estilo documental. Numa entrevista, à pergunta de Leslie Katz, se uma fotografia documental poderia ser também um objecto de arte, respondeu com a frontalidade que lhe é reconhecida, e também alertou para a ambiguidade e até para os equívocos que a designação pode conter: Documentary? That’s a very sophisticated and misleading word. And not really clear. You have to have a sophisticated ear to receive that word. The term should be documentary style. An example of a literal document would be a police photograph of a murder scene. You see, a document has use, whereas art is really useless. Therefore art is never a document, though it certainly can adopt that style. Waker Evans, Leslie Katz, an Interview with Walker Evans, (1971)

3º Plano de discussão – fotografia documental e foto-jornalismo Deixo esta parte para depois. Prometo voltar.

[1] Imagem construída em Photoshop pelo autor para artigo “CA NON SEI QUANDO MI O VEREI - A SINGULARIDADE DAS CANTIGAS D’AMIGO NO CANTAR TROVADORESCO EM GALAICO-PORTUGUÊS” [2] Man Ray terá descoberto Eugene Atget nos anos 20, pois era seu vizinho, e comprou-lhe um grande número de fotografias, porque afirmava que elas continham muitos das qualidades essenciais para o surrealismo e para o dadá. Man Ray contou que quando perguntou a Atget se as poderia publicar, Atget teria respondido que sim, mas para não mencionar o seu nome “pois as imagens eram simples documentos que ele fazia”. [3] A fotografia encenada é muito comum no presente. Poderíamos referir, apenas a título de exemplo, dois conhecidíssimos fotógrafos americanos, Duane Michals e Jeff Wall.

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