Fotografia: essência e hibridismo

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Fotografia: essência e hibridismo Cristiano Franco Burmester (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor doutor )1

Resumo Esta pesquisa investiga as transformações do campo midiático da fotografia em função das intensas transformações decorrentes das inovações tecnológicas provocadas pela digitalização dos meios. A questão central de pesquisa assim se coloca: o que essas transformações podem significar e possibilitar nos termos da renovação das narrativas fotográficas? O processo de hibridização a que estão submetidos os meios de comunicação pode gerar uma forma coerente ? Como base metodológica foram utilizados os trabalhos: A Imagem-Tempo de Gilles Deleuze, a análise das mídias, em Entre-Imagens e L’entreImages 2 de Raymond Bellour, o estudo de Edmond Couchot sobre a presença da tecnologia na arte, na obra de mesmo nome, e a pesquisa de François Soulages em A Estética da Fotografia. Palavras-chave: Fotografia. Cinema. Vídeo. Tecnologia. Convergência. Linguagem.

Introdução O diálogo realizado entre a fotografia e o cinema se desenvolve desde a origem do cinema, posterior a da fotografia, quando da ocasião da invenção do cinematógrafo pelos irmãos Lumiére (CAMPANY, 2008. p.10). A fotografia, aprimorou-se ao longo do tempo na busca pelo registro do instante, aquele momento ínfimo de tempo que não sucederá mais e que assim congela em imagem um traço de realidade em tempo passado. Já o cinema, buscou a imagem movimento, o registro do visível em imagens em formato dinâmico, em movimento contínuo. O aprimoramento das linguagens fotográfica e audiovisual ao longo da história, estabeleceu as identidades de ambos os meios, porém suas construções são resultado de um intenso processo de embate, através de aproximações e 1 Email: [email protected] - Website: www.crisburmester.com.br

distanciamentos que puderam adquirir contornos mais profundos na medida em que ocorreu o processo de digitalização dos meios. Ainda no século XIX, enquanto o fotógrafo Edward Muybridge, demonstrou através de fotografias, congelando em instantes distintos, a configuração do ciclo de passadas do galope de um cavalo. Contemporaneamente, o cineasta Georges Méliès encontrou na experimentação com a imagem em movimento um espaço para a criação ficcional e o entretenimento. De certa maneira, a linguagem fotográfica se afirmou como uma linguagem documental, onde o registro da realidade visível, em formato estático, se tornou o principal motivo da linguagem fotográfica. A imagem em movimento proporcionou ao cinema uma abordagem diferente, onde as sequências de imagem em movimento, criaram um espaço para a ficção, construída a partir da atuação do cineasta. Será decorrente das suas diferenças que ambos os meios irão criar uma relação de diálogo, por vezes de aproximação, por outras de distanciamento. Este trabalho de pesquisa busca olhar mais atentamente esta interação, especificamente a partir da digitalização dos meios, e se apoia no surgimento de aparatos fotográficos digitais capazes de fotografar e filmar a partir de um mesmo equipamento como ponto de inflexão. Fotografia e Cinema Inicialmente, será o desejo por imprimir o movimento nas imagens que empurrará a fotografia em direção ao cinema, e neste sentido, diversas experiências serão realizadas por fotógrafos que buscam se desprender da rigidez do congelamento da imagem fotográfica. O francês Jacques Henri Lartigue irá produzir no início do século XX, registros fotográficos que incorporam o “borrão” ou o “tremido” como forma de exaltar o movimento na imagem estática. A ruptura com a rigidez do congelamento da fotografia estará no centro de muitas experimentações realizadas ao longo da história da linguagem fotográfica e será realizada com a utilização de vários métodos. A edição fotográfica também é uma forma de construção narrativa, primeiramente tendo sido operada com o objetivo da máxima síntese possível, ou seja, a expressão em uma única imagem, um conjunto de informações e significados. Sob um ponto de vista, podemos entender que este resultado também representa uma concepção rígida da linguagem fotográfica.

Papai a quase 80 quilômetros por hora. Jacques Henri Lartigue. Paris, 1913.

O suíço Robert Frank realizou um belo trabalho de documentação da sociedade norte-americana no início da década de 1950 e provocou uma ruptura com o excesso de controle exercido pelos conceitos de edição ao propor um formato de apresentação do seu trabalho onde fotografias conflitantes foram dispostas lado a lado, provocando uma leitura não linear das imagens pelo público.

The Americans. Robert Frank. EUA, 1952-1954.

Ao se aproximar do cinema, a fotografia buscou o movimento. Nos exemplos anteriores, expressos pelo “borrão” e pelo conflito provocado pela edição, a imagem congelada busca uma atualização temporal, tentando escapar do passado e se colocar novamente no presente, ao menos em sua intenção de revelar que algo a sucederá e assim repetidamente (DELEUZE; 1990. p.102).

O cineasta japonês Akira Kurosawa se apropriou da linguagem fotográfica em muitas das suas produções cinematográficas. Agora, ao contrário da busca pelo dinamismo, foi o efeito da pausa, do estático ou “still” que o cineasta perseguiu. O sentido natural de continuidade provocado no espectador pela imagem em movimento sofre uma ruptura através da operação da pausa, propondo um atitude mais reflexiva para o público (BELLOUR, 1993. p.10).

RAN. Akira Kurosawa. Story-board e still. 1985.

Em suas obras, muitas delas com temática de conflitos e guerras em diferentes períodos da história do Japão, o cineasta apresentou personagens fortes em momentos de confronto e intimidação através da parada do movimento da câmera, produzindo assim um reforço da tensão quando personagens cruzavam olhares em posição estática, à semelhança de um registro fotográfico. De certa maneira, a busca pelo movimento operado pela fotografia propõe um olhar de dentro para fora da imagem, ocorre uma busca para aquilo que está fora do quadro, ou seja, a continuidade em seu potencial. Em sentido oposto, a pausa provocada pelo “still” no cinema estimula o espectador a entrar na imagem, atentar para a tensão do momento ali representado. La Jetée, é um filme construído a partir de fotos documentais, imagens de arquivo, breves sequências de fotogramas extraídas de filmes e algumas fotos encenadas para complementar a narrativa do filme, sendo todo este material montado individualmente na mesa de edição. Seu autor, o cineasta francês Chris Marker, articulou todo este material visual através de uma série de recursos executados na etapa de pós-produção, tais como movimentos panorâmicos, zoom, dissolve, fusões, além de música e narração em off. Sua temática de ficção científica que se passa entre um tempo passado e a possibilidade do futuro permitiu que através da linguagem

audiovisual, a fotografia adquirisse a percepção do tempo presente (BELLOUR, 1999. p.10). Este filme, produzido em película na década de 1960, tornou-se uma referência no campo da produção audiovisual, pois conseguiu revelar a pluralidade interna dos meios, revelando assim a porosidade natural presentes na fotografia, no cinema e nos meios audiovisuais como um todo. Em que medida então os processos de ressignificação dos meios transformam as narrativas visuais ? E deste processo de transformação, o que permanece como essência dos meios ? Imagem e Tecnologia A tecnologia da informação aplicada aos meios de comunicação provocou um profundo processo de digitalização das mídias, ampliando largamente as possibilidades de aproximação das linguagens audiovisuais decorrente da sua configuração em base numérica, ou seja, digital. Inicialmente, a tecnologia digital no campo das imagens facilitou os processos de edição e pós-produção, trazendo não somente agilidade, fluidez e flexibilidade, mas também possibilidades de aproximações e apropriações de linguagem mais profundas. Gradualmente, a hibridização vai se intensificando no campo audiovisual. A revolução que ocorre no campo da comunicação é a constatação de um certo grau de dificuldade de se pensar esteticamente um meio sem considerar a sua pluralidade interna (COUCHOT, 2003. p.265). Em certa medida, o hibridismo vai ganhando uma presença mais expressiva no campo do audiovisual, trazendo a tona a necessidade de compreensão mais ampla sobre como operam os mecanismos de hibridização dos meios. A convergência tecnológica é o termo que ficou conhecido para este processo de aproximação dos meios em sua faceta técnica. No campo da fotografia, um desdobramento contemporâneo da convergência tecnológica é o surgimento de câmeras fotográficas capazes de fotografar e filmar a partir de um mesmo equipamento. Esta transformação tecnológica amplia o escopo da hibridização dos meios audiovisuais, pois agora é possível trabalhar ainda mais intensamente a apropriação de linguagem, porém existe um limite para este processo ? Qual seria o ponto em que fotografia e cinema deixariam de representar suas identidades essenciais ?

Paris. Stephen Wilkes. 2015

O fotógrafo norte-americano Stephen Wilkes cria imagens que em sua concepção visual final revelam a passagem do tempo em um período extenso, revelando o transcorrer do dia até o cair da noite sobre uma mesma paisagem. Aqui, ao contrário da fotografia do francês Jacques Henri Lartigue que suscitava o transcorrer do tempo para fora do quadro, o olhar se volta para o interior, provocando a imaginação e o entendimento do observador pela ruptura com a linguagem fotográfica até então. A imagem final é uma montagem de mais de 1000 fotos capturadas em intervalos regulares durante um período de aproximadamente 12 horas. A concepção estática da fotografia se vê subvertida pela nítida percepção da extensa duração do tempo de registro. Mecanismos de Ressignificação Para entendermos melhor os processos de hibridização dos meios, particularmente da fotografia, é importante compreendermos alguns dos mecanismos de tradução em operação nas aproximações e distanciamentos da fotografia com os demais meios audiovisuais. Provavelmente o mecanismo mais próximo da origem fotográfica é o registro, que se coloca não apenas como um meio, mas como um fim, ou seja, permite que uma fotografia represente a realidade visível, à semelhança ou não de qualquer outra forma de expressão.

O mecanismo da transferência é o deslocamento de um meio para o outro, a exemplo, do que realizou o diretor francês Chris Marker em seu filme La Jetée. Ali, as fotografias foram deslocadas para o audiovisual, na medida em que foram editadas e montadas como uma película cinematográfica, proporcionando uma passagem das imagens do tempo passado para o tempo presente, característica inerente da linguagem cinematográfica (SOULAGES, 2010; p.279) A referência é outro mecanismo em operação, podendo ser explícita ou implícita. Sua concepção final permite uma abertura ou um fechamento, como por exemplo, Akira Kurosawa executou em seu filme Ran. Durante o filme há diferentes momentos de parada, onde cavaleiros ou exércitos permanecem imóveis, quase congelados como em uma fotografia, forçando ali uma pausa para a reflexão antes do avançar do pensamento, da história e do filme. Já a co-criação é o mecanismo do trabalho realizado em conjunto com outro meio. Podemos observar este processo em diferentes produções multimidiáticas, onde uma peça audiovisual é composta por fotografias, trechos de vídeos, narração , áudio e texto. La Jetée também é um bom exemplo de produção em co-criação. Narrativas Visuais Em meio à efervescência das transformações, qual é o espaço a ser ocupado pela fotografia contemporânea? O campo entre a narrativa e o estático parece delimitar uma área ampla o suficiente para que a fotografia possa se colocar, mantendo suas características essenciais, ao mesmo tempo em que acolhe e expressa o seu potencial de hibridismo. Os processos de hibridização dos meios acontecem pela operação de mecanismos de tradução que ao se colocarem em ação reforçam as características essenciais dos meios, ou seja, uma imagem híbrida somente adquire esta condição na medida em que se torna mais evidente a essência do meio em questão, seja ele a fotografia, o cinema, o vídeo ou outra forma de expressão do campo audiovisual. De qualquer maneira, o processo de hibridismo também ocorre por purificação, criando assim zonas ontológicas distintas, e não somente por mecanismos de tradução (LATOUR, 1994. p.16). Ao mesmo tempo em que pensamos a convergência tecnológica e os mecanismos de tradução e suas reelaborações de linguagem, podemos perceber que as

traduções entre os meios acontecem mais intensamente nos indivíduos do que na tecnologia. Em sua origem, é o humano que catalisa os processos de transformação. Como resultado deste processo de reflexão sobre as transformações das narrativas fotográficas, algumas observações apontam para caminhos tanto para o pesquisador quanto para o realizador. Para ambos, a análise constante dos percursos das transformações é provavelmente o método mais eficaz tanto para o olhar crítico quanto para a reelaboração criativa. A aceitação de que o contexto cultural atual é híbrido em sua essência pode colaborar para as proposições metodológicas, na medida em que o entendimento dos processos passa a ter igual relevância quando comparado à necessidade de nomeação dos signos. Referências Bibliográficas BELLOUR, Raymond. L’Entre-Images 2 – Mots, Images. P.O.L.. Paris, 1999. BELLOUR, Raymond. Entre Imagens – fotografia, cinema e vídeo. Papirus. Campinas, 1993. CAMPANY, David. Photography and Cinema. Reaktion Books. Londres, 2008. COUCHOT, Edmond. Tecnologia na Arte. Editora da UFRGS. Porto Alegre, 2003. DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. Editora Brasiliense. São Paulo, 1990. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Editora 34. Rio de Janeiro, 1994. SOULAGES, François. Estética da Fotografia – perda e permanência. Editora Senac. São Paulo, 2010.

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