Fotografia Humanista em Tempos de Ditadura: Análise Iconológica do Fotolivro \'Chile desde Adentro\' [Humanistic Photography in Times of Dictatorship: Iconological Analysis of the Photobook \'Chile from within\']

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Descrição do Produto

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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

CASSIANA MACHADO MARTINS

FOTOGRAFIA HUMANISTA EM TEMPOS DE DITADURA: ANÁLISE ICONOLÓGICA DO FOTOLIVRO CHILE DESDE ADENTRO

PORTO ALEGRE 2016

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2 CASSIANA MACHADO MARTINS


 
 
 


FOTOGRAFIA HUMANISTA EM TEMPOS DE DITADURA: ANÁLISE ICONOLÓGICA DO FOTOLIVRO CHILE DESDE ADENTRO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 



 Orientador: Me. Eduardo Seidl

Porto Alegre 2016

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3 CASSIANA MACHADO MARTINS


 


FOTOGRAFIA HUMANISTA EM TEMPOS DE DITADURA: ANÁLISE ICONOLÓGICA DO FOTOLIVRO CHILE DESDE ADENTRO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Aprovada em: 1 de dezembro de 2016 BANCA EXAMINADORA: ________________________________________________________ Prof. Me. Eduardo Seidl ________________________________________________________ Profa. Ma. Flávia Campos de Quadros ________________________________________________________ Prof. Dr. Marco Antonio Villalobos

Porto Alegre 2016

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4 AGRADECIMENTOS Gostaria de aproveitar esse momento, em que encerro um ciclo de seis anos

na universidade, para agradecer aos amigos, colegas e professores que me apoiaram. Especialmente, meu orientador Me. Eduardo Seidl que, com muita paciência, me ensinou a fotografar há quatro anos atrás. E com o qual eu tive o privilégio de ser a primeira aluna em receber seus conselhos num trabalho de conclusão. À Ma. Flávia Campos de Quadros e ao Dr. Marco Antonio Villalobos pelo tempo dedicado em ler este trabalho, fico contente de ter nessa última avaliação dois professores que respeito. Aos professores Nelson Todt e Cristina Becker, pela parceria que já atravessa anos e faculdades. Obrigada por me apresentarem ao mundo da pesquisa. À amável Vanessa Schenkel, que durante dois anos me emprestou seu equipamento fotográfico. E ao ‘meu futuro ex-marido’ Junior Gauer. Obrigada pela imensa generosidade de vocês. To my dear Jan, thanks for supporting me. I hope you fancy some Chilean wine to celebrate this. Gracias a Chile y a toda la gente que conocí allá. Gracias a la vida.

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“Uma fotografia vale mil palavras. ‘Sim, e acrescenta o romancista William Saroyan, ‘somente se você olha a imagem e diz ou pensa mil palavras’.” (Jean Keim)


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6 RESUMO

O fotolivro Chile Desde Adentro traz um relato fotográfico humanista do Chile durante os anos de regime militar. A partir dessa obra, o trabalho de conclusão faz uma análise iconográfica e iconológica que demonstra o porquê desse fotolivro ser considerado fotojornalismo literário. Para isso, são explicadas as teorias acerca de fotolivro, fotojornalismo, fotografia documental e fotografia humanista, ou fotojornalismo literário. Também é apresentada uma contextualização histórica das ditaduras na América Latina, em específico no Chile, e as circunstâncias em que Chile Desde Adentro foi feito. Portanto, a pesquisa oferece um panorama do conteúdo iconográfico e iconológico de Chile Desde Adentro, que revela a importância deste fotolivro para a história da fotografia latino-americana. Palavras-chave: Fotografia Humanista. Fotojornalismo Literário. Iconografia. Iconologia. Fotolivro. Chile Desde Adentro

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7 ABSTRACT

The photobook Chile Desde Adentro brings a humanistic portrait of Chile during the years under the military regime. Based on that, the present study does an analysis through iconography and iconology to demonstrate why this photobook is considered as narrative photojournalism. Therefrom, it’s introduced the theories around photobook, photojournalism, documentary photography and humanistic photography, also known as narrative photojournalism. It’s also presented a historical context of dictatorships in Latin America, more specific in Chile, and the circumstances under Chile Desde Adentro was made. From theses informations, it’s posible to have a better comprehension of this photobook’s importance to Latin American photography history. Key words: Humanistic photography. Narrative Photojournalism. Iconography. Iconology. Photobook. Chile Desde Adentro

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8 LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Incêndio em Hamburgo ……………………………………………………… 16 Figura 2 - Guerra da Crimeia ……………………………………………………………. 16 Figura 3 - Niño en el vientre de concreto ……………..……………………………….. 17 Figura 4 - Fotolivro American Photographs …………………..……………………….. 19 Figura 5 - Chile Ayer Hoy …………………………….….……..………………….…….. 27 Figura 6 - Capa Chile Ayer Hoy ………………………..……………….………………. 27 Figura 7 - Capa Chile o Muerte …………………………………………….……..….…. 28 Figura 8 - Chile o Muerte …………………………………………………………..……. 28 Figura 9 - Capa da revista Cauce nº 22 ……………………………………………….. 39 Figura 10 - Cartaz da campanha ‘NO’ .………………………………………………… 40 Figura 11 - Fotógrafos da AFI …………………………………………………..…..…… 42 Figura 12 - Fotógrafos trabalhando em meio ao gás lacrimogêneo …….………….. 43 Figura 13 - Fotógrafos olhando os negativos …..………..………………………..….. 45 Figura 14 - Produção de Chile Desde Adentro ……………………………..……..….. 46 Figura 15 - Capa de Chile From Within ………………………………….…..……..….. 48 Figura 16 - E-book Chile From Within/Chile Desde Adentro ……..………………….. 49 Figura 17 - Detalhe da exposição Chile Desde Adentro …………………….……….. 50 Figura 18 - Exposição Chile Desde Adentro .…………..………………….………..… 51 Figura 19 - Público observa a exposição Chile Desde Adentro .……………………. 51 Figura 20 - Evento pelo fim dos pactos de silêncio ……………………………….….. 52 Figura 21 - Protesto contra os pactos de silêncio ………………………………….…. 53 Figura 22 - Exposição Chile Desde Adentro no GAM .……………………..………… 53 Figura 23 - O processo de criação do fotógrafo …………………….……………..….. 56 Figura 24 - Capa Chile Desde Adentro ……..……………………….…………………. 58 Figura 25 - Marcelo Montecino (1973) .………..……………………..…….……..…… 60 Figura 26 - Páginas 4 e 5 de Chile Desde Adentro ………….…………..…………… 61 Figura 27 - Pinochet por Héctor López (1986) ...………………..………………..…… 62 Figura 28 - Óscar Wittke (1982) …………………………………..………………..…… 63 Figura 29 - Toque de recolher por Helen Hughes (1981) ...……………………..…… 63 Figura 30 - Helen Hughes (1979) …………………………….………………………… 64 Figura 31 - Héctor López (1986) ………………..………………………..………..…… 65

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Figura 32 - Óscar Wittke (1983) ………………………………………..……………….. 66 Figura 33 - Paz Errázuriz (1981) …………………………..……………………………. 67 Figura 34 - Páginas 28 e 29 com fotos de Paz Errázuriz (1988) e Luis Weinstein (1984) ……………………………………………………………………………………… 67 Figura 35 - Luis Weinstein (1984) ……………………….……………………………… 68 Figura 36 - Paz Errázuriz (1988) ……………………………………..…………………. 68 Figura 37 - Helen Hughes (1971) ……………………………….……………………… 69 Figura 38 - Helen Hughes (1983) ……………………….……………………………… 70 Figura 39 - Ocupação de terreno e reunião Mapuche …………………………….…. 71 Figura 40 - Mapuches por Helen Hughes (1979) .………………..…………………… 71 Figura 41 - A Igreja por Óscar Wittke (1986) ………………………………………….. 72 Figura 42 - Juan Domingo Marinello (1973) .………………………………….………. 72 Figura 43 - O general e o torturado, por Marcelo Montecino ……..…………………. 73 Figura 44 - Marcelo Montecino (1988) e Jorge Ianiszewski (1985) .……………..…. 74 Figura 45 - Claudio Pérez (1984) ………………………………..……………………… 75 Figura 46 - Óscar Navarro (1987) …………..………………………………………….. 75 Figura 47 - Alejandro Hoppe (1988) …………………………………………………… 76 Figura 48 - Fotos de Claudio Pérez (1984) e Alejandro Hoppe (1986) ……..……… 76 Figura 49 - Alejandro Hoppe (1985) e Héctor López (1986) .……………..………… 77 Figura 50 - Álvaro Hoppe (1983) e Claudio Pérez (1986) …………………..……..… 77 Figura 51 - Kena Lorenzini (1983) ……………………………………………..……..… 78 Figura 52 - Plebiscito de 1988 por Héctor López e Alejandro Hoppe ……..……..… 79 Figura 53 - Álvaro Hoppe (1987) e Óscar Wittke (1982) …………………………..… 79 Figura 54 - Grafite por Óscar Wittke (1988) …………………………………….…..… 80 Figura 55 - Vitória do ‘NO’ por Claudio Pérez (1988) ……………………..………..… 81 Figura 56 - Claudio Pérez (1988) ……………………………………………………..… 82 Figura 57 - Héctor López (1985) …………..….………………………………………… 82

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10 SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .……………………………………………………….………………... 11 2 FOTOGRAFIA ………………………………………………………….………………. 13 2.1 FOTOGRAFIA DOCUMENTAL E FOTOJORNALISMO …………………………. 13 2.2 FOTOJORNALISMO LITERÁRIO ………………………………………………….. 18 2.2.1 Fotodocumentarismo Literário ……………………………………………………. 22 2.3 FOTOLIVRO ………………………………………………………………………….. 23 3 DITADURA NA AMÉRICA LATINA .………………..……………….……………….. 30 3.1 OPERAÇÃO CONDOR ……………………………………………….…………….. 32 3.2 DITADURA MILITAR NO CHILE ……………………………………..…………….. 35 3.3 A HISTÓRIA DE CHILE DESDE ADENTRO ………………………..…………….. 41 4 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA ………………..……………………………….….. 54 4.1 MÉTODO ICONOGRÁFICO/ICONOLÓGICO EM FOTOGRAFIAS …..……….. 55 4.2 ANÁLISE DE CHILE DESDE ADENTRO …...…………………………..………… 58 4.2.1 Capa ………………………………………………………………………………… 58 4.2.2 Moneda aberta ao público ………………………………………………………… 60 4.2.3 Toque de recolher ………………………………………………………………….. 61 4.2.4 Vida e morte ………………………………………………………………………... 65 4.2.5 O pêndulo …………………………………………………………………………… 71 4.2.6 Protestos e repressão ………………..……………………………………………. 74 4.2.7 Chile la alegría ya viene ……………………………..……………………………. 78 4.2.8 Incertezas ……………………………………..……………………………………. 81 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS …………………………………..…………….………… 83

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1 INTRODUÇÃO Este trabalho analisa o fotolivro Chile Desde Adentro, uma obra criada por 15 fotógrafos chilenos sobre a ditadura no respectivo país. As imagens abrangem desde 1973 a 1988 e constroem uma narrativa baseada em um recorte da realidade. Embora existam eventuais presenças de figuras históricas e de acontecimentos pontuais, o livro foca em mostrar o cotidiano da época e personagens anônimos. Portanto, o objetivo geral desta monografia é explorar o conteúdo desse fotolivro e entender as diferentes perspectivas que ele oferece. A partir desse posicionamento temos o seguinte problema de pesquisa: Chile Desde Adentro faz parte do cânone dos fotolivros latino-americanos? Para responder essa pergunta é necessário entender se existe essa identidade latino-americana, quais fatores demais pesquisadores abordaram para falar sobre fotolivros no continente e, afinal, o que é um fotolivro. Analisar Chile Desde Adentro também torna oportuno rever conceitos sobre os gêneros da fotografia de realidade. Os limites entre fotografia documental e fotojornalismo naturalmente levantam discussão entre autores, mas nos últimos anos uma outra concepção foi formulada, a fotografia humanista. Relacionando essas ideias com o objeto Chile Desde Adentro é importante fazer o seguinte questionamento: O que é fotografia humanista/ fotojornalismo literário? E através do método iconográfico-iconológico, o fotolivro Chile Desde Adentro pode ser identificado como fotografia humanista/ fotojornalismo literário? Dessa maneira, temos três objetivos específicos: explicar se a obra é uma referência de fotolivro latino-americano e porque, o que é fotografia humanista/ fotojornalismo literário e se é possível classificá-la como tal. A principal hipótese é de que a identificação do gênero fotográfico de Chile Desde Adentro depende se a análise é feita das fotos singularmente ou se há uma consideração do conjunto fotolivro. Para isso, o método iconográfico-iconológico com base nos textos de Panofsky (2004) e Kossoy (2009) será aplicado para entender as imagens e seus respectivos contextos. Além disso, a metodologia também fará uso de pesquisa bibliográfica e documental. A bibliografia respalda a descrição do que foi a ditadura militar no Chile e no resto do Cone Sul durante o século XX com autores como

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Sader (1984) e Dinges (2005). Enquanto a pesquisa documental, é de extrema relevância com os relatos dos fotógrafos em entrevistas, vídeos e documentários. Em vista de uma melhor organização do conteúdo, este trabalho está dividido em três capítulos, ademais da introdução e conclusão. No tema ‘Fotografia’ serão explicados os conceitos de fotolivro, fotografia documental, fotojornalismo, fotojornalismo literário e fotodocumentarismo literário. Autores como Sontag (2004) e Baeza (2007) servirão de base teórica para este momento. Em ‘Ditadura na América Latina’ serão apresentados os diversos tipos de golpes contra a democracia que os países do bloco tiveram. Mais especificamente, será abordado o Estado Ditatorial dos anos 60 e 70 com os regimes militares que tomaram a América do Sul através da Operação Condor. Dentro dessa conjuntura, é apresentada a ditadura no Chile e como isso resultou na produção de Chile Desde Adentro. Por último, ‘Iconografia e Iconologia’ explicará o método, como é seu uso em fotografias e, então, desenvolverá a análise. Embora haja uma divisão clara de tópicos, é necessário destacar que o entendimento de um assunto está relacionado com outro, principalmente na análise. FOTOGRAFIA HUMANISTA EM TEMPOS DE DITADURA: ANÁLISE ICONOLÓGICA DO FOTOLIVRO CHILE DESDE ADENTRO quer proporcionar uma pesquisa multidisciplinar que envolve a história de nosso continente, métodos de análise de imagens e discussões acerca de gêneros fotográficos. Além de introduzir à academia o fotolivro Chile Desde Adentro que é, seguramente, um importante documento.

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2 FOTOGRAFIA A fotografia desempenha, entre outras funções, um papel cultural ambíguo. Como aponta Boris Kossoy (2014), a capacidade de informar e desinformar, denunciar e manipular, emocionar e transformar, das imagens exerce fascínio sob nós, humanos, que a inventamos e a consumimos. Ao mesmo tempo em que tem preservado as referências e lembranças do indivíduo, documentado os feitos cotidianos do homem e das sociedades em suas múltiplas ações, fixando, enfim, a memória histórica, ela também se prestou – e se presta – aos mais interesseiros e dirigidos usos ideológicos. O papel cultural das imagens é decisivo, assim como decisivas são as palavras. As imagens estão diretamente relacionadas ao universo das mentalidades e sua importância cultural e histórica reside nas intenções, usos e finalidades que permeiam sua produção e trajetória. (KOSSOY, 2014, p. 31, 32)

Dentro desse entendimento fotográfico, gêneros como o fotojornalismo e a fotografia documental se destacam por tentar manter um compromisso com a informação dos fatos. 2.1 FOTOGRAFIA DOCUMENTAL E FOTOJORNALISMO Intrínseco ao entendimento de fotojornalismo está o conceito de fotografia documental. De acordo com Pepe Baeza (2007), o primeiro está vinculado a valores de informação, notícia, e talvez o mais significativo deles, atualidade. O fotodocumentarismo, que compartilha o compromisso com a realidade, direciona-se mais aos fenômenos estruturais, como por exemplo, o ativismo social, do que critérios noticiosos que dominam as seções habituais da imprensa. Todavia, o uso da palavra ‘realidade’ não implica uma isenção de consciência, como lembra Susan Sontag (2004). Aquelas ocasiões em que tirar fotos é relativamente imparcial, indiscriminado e desinteressado não reduzem o didatismo da atividade em seu todo. Essa mesma passividade – e ubiquidade – do registro fotográfico constitui a ‘mensagem’ da fotografia, sua agressão. (SONTAG, 2004, p. 17).

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14 Dessa maneira, a fotografia documental é associada a uma maior liberdade

temática e expressiva do fotógrafo, com mais tempo de reflexão sobre o assunto. Baeza (2007) aponta que essa diferença no prazo de produção do fotodocumentarismo é possível graças à distribuição do material em variados circuitos, como, exposições e livros. Por outro lado, o fotojornalismo depende dos deadlines1 que os meios de publicação, jornais, revistas, permitem. Jorge Pedro Sousa (2002, p. 8) concorda neste ponto com Baeza (2007): “Um fotodocumentalista (sic) trabalha em termos de projecto fotográfico. Mas essa vantagem raramente é oferecida ao foto-repórter, que, quando chega diariamente ao seu local de trabalho, raramente sabe o que vai fotografar e em que condições o vai fazer”. Para Sousa (2002), o fotojornalismo usa da imagem para observar, informar, analisar, revelar, expor e opinar sobre as pessoas e o impacto que elas produzem sobre o meio onde vivem. Se para Baeza (2007) o fotojornalismo tem sido profundamente influenciado pelo fotodocumentarismo, Sousa (2002, p. 8) diz que “o fotodocumentalismo (sic) pode reduzir-se ao fotojornalismo”. Este desacordo entre autores traz um relevante adendo ao porquê das classificações serem importantes. As classificações são cada vez mais necessárias para esclarecer o tipo de conteúdo que se está apresentando na imprensa. Necessitamos caixotinhos aonde colocar as coisas, mesmo que tenhamos que revisar constantemente em qual caixa deve ir cada um e, certamente, necessitamos experimentar no registro artístico e desde a provocação crítica, com a mudança de lugar dos caixotes e de seus conteúdos e, inclusive, ver o que acontece se invertemos e misturamos o que contenham. Mas respeitando o que pertence a cada caixa para que simplesmente possamos encontrar as coisas quando as buscamos. (BAEZA, 2007, p. 31) 2

O entendimento de Baeza (2007) é de que além das características técnicas de cada gênero fotográfico, a classificação de imagens na imprensa contemporânea deve-se muito mais à finalidade do uso da imagem. Assim, parte do processo de significação de gênero deve-se “[…] das intenções comunicativas em que estão

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Em inglês, prazo final. O uso do termo é corriqueiro no jornalismo.

Tradução livre do original: “Las clasificaciones son cada vez más necesarias para clarificar el tipo de contenido que se está presentando en la prensa. Necesitamos cajoncitos donde poner las cosas, aunque tengamos que revisar constantemente en qué cajón debe ir cada una y, por supuesto, necesitamos experimentar, en el registro artístico y desde la provocación crítica, con el cambio de lugar de los cajones y de sus contenidos e, incluso, ver qué pasa si los volcamos y mezclamos todo lo que contengan. Pero respetando que cada cajón contenga lo que le pertenece para, simplemente, encontrar las cosas cuando las buscamos.” 2

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baseadas, da difusão de sua mensagem visual e […] da análise do contexto comunicativo em que está inserida” (BAEZA, 2007, p. 32)3 . Ou seja, uso e contexto. Em relação ao estilo, o autor prefere não limitar se existe algum caráter dominante. Embora, admita que os códigos existam como uma forma de reconhecimento que influencia nos protocolos de emissão e recepção para com a atitude de consumo de fotografias. É difícil impor limites as formas de representar a realidade. Submeter o documento a regras de estilo, a uns códigos restringidos é empobrecer a qualidade da comunicação, cercear com estereótipos invariáveis e, além de, retroceder no caminho que a fotografia do real trabalhou ao longo de sua história. (BAEZA, 2007, p. 50) 4

No caso da fotografia jornalística e do fotodocumentarismo é justamente contexto e uso que as diferenciam. Dentro de cada existem inúmeras possibilidades de novas classificações. Para Dulcilia Buitoni (2011), assim como para Baeza (2007), o fotojornalismo pode apresentar a fotonotícia, foto de leitura unitária, fotossequência e a fotorreportagem. Essa última, como apontando pela autora, é talvez das mais prestigiadas e a que apresenta maiores semelhanças ao fotodocumentarismo ao usar uma narrativa em torno de um mesmo tema. De qualquer maneira, para Sousa (2002, p. 8,9) há um elo entre os dois: “[…] fazer fotojornalismo ou fazer fotodocumentalismo (sic) é, no essencial, sinónimo (sic) de contar uma história em imagens, o que exige sempre algum estudo da situação e dos sujeitos nela intervenientes, por mais superficial que esse estudo seja”. Historicamente, podemos dizer que desde a invenção do daguerreótipo, em 1839, a fotografia sempre acendeu debates sobre sua função. Na sociedade europeia do século XIX os argumentos sobre o papel científico ou artístico das fotos refletiam a própria transição de costumes que a revolução industrial tinha gerado. Nessa época, uma das primeiras fotos considerada documental foi a imagem de um incêndio em Hamburgo, Alemanha.

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Tradução livre do original: “[…] de las intenciones comunicativas sobre las que se elabora y difunde un mensaje visual y todo ello debe, además, completarse con el análisis del contexto comunicativo en el que viene inserto […].” Tradução livre do original: “Es difícil poner límites a las formas de representar la realidad. Someter el documento a unas reglas de estilo, a unos códigos restringidos es empobrecer la calidad de la comunicación, cercenarla con estereotipos invariables y, además, retroceder en el camino en el que la fotografía de lo real ha trabajado a lo largo de su historia.” 4

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Figura 1 - Incêndio em Hamburgo

Fonte: Carl F. Stelzner (1842)

Outro marco foi a cobertura da Guerra da Crimeia (1853-1856) pelo fotógrafo inglês Roger Fenton (1819-1869). As fotos foram feitas a pedido do editor da revista The Illustrated London News, onde foram inseridas sob forma de gravuras. Por esse trabalho, Fenton é considerado por autores, como Gerry Badger (2014) e Buitoni (2011), o responsável pelo nascimento do fotojornalismo. Figura 2 - Guerra da Crimeia, Valley of the Shadow of Death

Fonte: Roger Fenton (1855)

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17 Na América Latina, a fotografia documental de viés político social foi por

muitos anos considerada como o gênero representante de uma suposta identidade fotográfica latino-americana. Ana Carolina Lima Santos (2014) explica que uma tendência inicial surgiu com os europeus que passaram pelo continente Americano no final do século XIX, e que buscavam fotografar o exótico ao seu cotidiano. Com o tempo, os próprios latino-americanos incorporaram essa visão. A autora cita, entre outros fotógrafos, o trabalho do mexicano Héctor García (1923-2012). Figura 3 - Niño en el vientre de concreto

Fonte: Héctor García (1952) Se, em um primeiro momento, a fotografia realizada nesses países buscava no rural e no indígena marcas de alteridade; nesse instante, dando seguimento a essa disposição, os fotógrafos focavam suas atenções novamente em grupos sociais que enxergavam como ‘o outro’, isto é, as classes mais baixas e marginalizadas. A visão de fora para dentro era substituída por um olhar igualmente deslocado, de baixo para cima – e que em muito também repetia os códigos que os países desenvolvidos mobilizavam para representar o chamado Terceiro Mundo. (SANTOS, 2014, p. 157,158)

Para a autora, essa ideia de identidade latino-americana foi intensificada após 1977, com a fundação do Consejo Mexicano de Fotografía (CMF) e sob a

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presidência de Pedro Meyer5, que em diversos colóquios a delineou. Santos (2014, p. 160) afirma que: “Ainda que, sem perceber, esses fotógrafos dessem forma a uma identidade que reverberava um anseio estabelecido pela mirada estrangeira e, em muitas manifestações, fosse igualmente carregada de exotismo”. Consequente a esse imaginário, Santos (2014) aponta que as produções fotográficas que se encaixaram nessa delimitação ganharam visibilidade internacional e, ao mesmo tempo, os trabalhos que seguiam outras propostas foram ocultados. “A partir daí foi possível perceber, afinal, que a denominação ‘fotografia latino-americana’, nesse sentido classificatório e reducionista, não passa de uma abstração” (SANTOS, 2014, p. 167). Entender as semelhanças e diferenças entre estes gêneros fotográficos que retratam a realidade é importante para uma melhor compreensão do Fotoperiodismo Literario, que em tradução livre atende por Fotojornalismo Literário. A principal obra que discorre sobre o assunto, Periodismo literario: naturaleza, antecedentes, paradigmas y perspectivas, de Irala e Rodríguez (2010), serve como um guia para explicar os principais conceitos. Os autores entendem que a fotografia, assim como a produção textual, também pode fazer Jornalismo Literário. 2.2 FOTOJORNALISMO LITERÁRIO O fotojornalismo literário foi alcunhado como gênero há poucos anos, mas a discussão sobre uma fotografia que extrapola “caixotinhos” é tão antiga quanto sua invenção. O renomado fotógrafo e pesquisador Badger (2015), em artigo à Revista ZUM6, faz uma interessante provocação sobre qual a essência da fotografia. Não seria a fotografia, em essência, uma arte literária, uma arte em que o fotógrafo não é propriamente um manipulador de formas no interior da moldura fotográfica, mas antes um narrador que se vale de imagens em vez de palavras, alguém que conta uma história? (BADGER, 2015, p. 135)

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Fotógrafo espanhol naturalizado mexicano que ajudou a fundar o CMF.

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Porque fotolivros são importantes. Revista ZUM, Edição 8. São Paulo: Agosto, 2015.

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19 Badger (2015) responde seu próprio questionamento citando Walker Evans7

(1938) e o fotolivro American Photographs. Através desse trabalho, o pesquisador acredita que Evans (1938) demonstrou que sim, a fotografia é uma arte literária “[…] na qual fotos ordenadas em uma sequência específica podiam fazer algo mais que a mera soma de suas partes isoladas” (BADGER, 2015, p. 135). Figura 4 - Fotolivro American Photographs

Fonte: Walker Evans8 (1938)

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O fotógrafo estado-unidense Walker Evans é conhecido como o pai da fotografia documental e o citado livro apresenta imagens feitas durante a Grande Depressão, nos Estados Unidos, que refletiam o momento que o país passava. 8

Montagem das páginas feita pela autora.

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20 Os pesquisadores de fotografia e jornalismo Irala e Rodríguez (2010) fizeram

um apontamento para um jornalismo literário, que, além do texto, também pode acolher imagens. Primeiro, os autores consideraram que falar em jornalismo literário envolve o entendimento de determinadas características, como, o uso de recursos linguísticos tradicionalmente associados à ficção para relatar histórias reais. E também, o caráter histórico que esses relatos possuem ao conseguir romper a fugacidade do jornalismo imediatista. “[…] devido a profundidade do olhar e da descrição excepcional alcançada pelo narrador, atravessam a dimensão particular e se convertem em paradigmas da condição humana” (IRALA e RODRÍGUEZ, 2010, p. 192)9. Esses aspectos partiram do conceito utilizado por Mark Kramer (1995) para definir jornalismo literário. Kramer (1995) lista algumas qualidades para que um trabalho seja considerado parte do gênero. Como, por exemplo, longas imersões do jornalista com seu assunto, às vezes demorando anos para que seja atingido um nível de confiança e comprometimento. Pesquisa, observação e uso preciso de dados e informações também são essenciais, afinal, o resultado do trabalho é, acima de tudo, jornalismo. Uso da voz autoral, o que deixa a personalidade do narrador transparecer e pode gerar sensações de intimidade do leitor com a história. Consequentemente, o estilo de narrativa é livre, com o uso de simbolismos e metáforas, sem um roteiro pré-estabelecido. São incentivados desvios momentâneos da narrativa principal para divagar sobre o que um momento representa, ou que outros contextos merecem ser citados. E por fim, uma profunda humanização sobre o tema. Eu vou até mesmo clamar que há algo intrinsecamente político – e extremamente democrático – no jornalismo literário, algo plural, próindivíduo, anti-hipocrisia e anti-elite. Isso parece inerente nas práticas comuns do gênero. O estilo informal corta através das ofuscantes generalidades de crenças, países, empresas, burocracias e experts. E as narrativas de vida das pessoas ordinárias põe à prova

Tradução livre do original: “[…] debido a la profundidad de la mirada y de la excepcional descripción lograda por el narrador, transponen la dimensión particular y se convierten en paradigmas de la condición humana.” 9

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21 idealizações contra realidades. A verdade está nos detalhes de vidas reais. (KRAMER, 1995)10

A partir da compreensão que o jornalismo literário possui essas características universais para texto e fotografia, Irala e Rodríguez (2010) falam sobre uma Fotografia Humanista, que também atende por Fotojornalismo Literário. Com um caráter híbrido entre o informativo-documental e recursos estéticos-visuais, as imagens resultam em testemunhos de um tempo e lugar. “É dizer que são Jornalismo, porque cumprem sua função fundamental de informar e, ao mesmo tempo, são Literatura, pois servem-se dos recursos artísticos-poéticos para acentuar certos aspectos da realidade” (IRALA e RODRÍGUEZ, 2010, p. 208-209) 11. Os autores também sintetizaram em sete itens primordiais para identificar e explicar os atributos do fotojornalismo literário. O primeiro é a preferência por assuntos que adentrem nos problemas humanos na sociedade atual, experiências dramáticas como, por exemplo, a miséria, guerra, catástrofes, migrações em massa, doenças. Dessa maneira, as imagens provocam o espectador a ter uma reação emocional e solidária. Segundo, o fotógrafo humanista tem de usar a linguagem fotográfica como o jornalista literário usa dos recursos linguísticos para a construção narrativa. Isto é possível através da composição, a ordem em que os objetos aparecem, escolha da distribuição dos elementos através dos planos; ângulos, como o fotógrafo se posiciona, qual seu ponto de vista; a iluminação; a escolha entre o preto e branco ou cores. O que significa que o fotógrafo tem independência estética para refletir o tom e a textura das histórias em suas escolhas e, consequentemente, imagens. Terceiro, a imersão na história e no próprio habitat dos protagonistas. “Se trata de levar a reportagem a tal nível que se olhe através dos olhos das vítimas. Os fotógrafos humanistas se convertem em mais um entre os rostos que retratam. Estabelecem uma relação de franqueza e confiança com o entorno” (IRALA e

Tradução livre do original: “I’ll even claim that there is something intrinsically political — and strongly democratic — about literary journalism, something pluralistic, pro-individual, anti-cant, and anti-elite. That seems inherent in the common practices of the form. Informal style cuts through the obfuscating generalities of creeds, countries, companies, bureaucracies, and experts. And narratives of the felt lives of everyday people test idealisations against actualities. Truth is in the details of real lives.” 10

Tradução livre do original: “Es decir, son Periodismo porque cumplen su función fundamental de informar y, al mismo tiempo, son Literatura en tanto se sirven de los recursos artístico-poéticos para acentuar ciertos aspectos de la realidad.” 11

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RODRÍGUEZ, 2010, p. 194)12. Um fator que contribui para um relato imagético de credibilidade substancial. Por essa relação com as fontes, o fotojornalista literário possui uma cobertura com perspectivas variadas. Essa quarta característica demonstra um conhecimento profundo da realidade e perceptível através de imagens intimistas, informais, francas e, até mesmo, irônicas. O exercício da cidadania é colocado como o quinto item por Irala e Rodríguez (2010). A consciência de cumprir uma função social através da fotografia e não ser apenas um expectador. Ter a responsabilidade sob um trabalho que pode suportar relatos com a capacidade de mudar as condições do fotografado. Ter uma edição consciente do material bruto, da mesma maneira que um escritor refina seus textos. Jamais alterando ou adicionando algo que não está na fotografia, sem manipulação de imagem. “A retórica visual (luz, cor, plano, ângulo) não altera a verdade, mas a sublinha” (IRALA e RODRÍGUEZ, 2010, p. 195) 13. E, por último, a utilização de novos canais de difusão, fora da imprensa tradicional, como, por exemplo, exposições em museus e galerias, fotolivros, revistas ilustradas, blogs, sites especializados e demais publicações alternativas. “A razão é que se dão conta de que o formato em papel não basta para expressar a força visual das histórias, atém de buscar uma permanência que o jornal diário não oferece” (IRALA e RODRÍGUEZ, 2010, p. 195)14. De certa maneira, é semelhante ao que ocorre com os jornalistas literários que acabam recompilando seus textos em antologias. 2.2.1 Fotodocumentarismo Literário No Brasil, o tema fotografia e jornalismo literário foi abordado em artigo por Juliana Spitaliere (2014). Embora a autora não cite Irala e Rodríguez (2010), ela Tradução livre do original: “Se trata de llevar el reporterismo hasta una experiencia vital propia, de tal modo que mire a través de los ojos de las víctimas. Los fotógrafos humanistas se convierten en uno más de entre los rostros que retratan. Establecen una relación de franqueza y confianza con el entorno que fotografían.” 12

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Tradução livre do original: “La retórica visual (luz, color, plano, ángulo, etc.) no altera la verdad, sino que la subraya.” Tradução livre do original: “La razón es que se dan cuenta de que el formato en papel no basta para expresar la fuerza visual de las historias, además de lograr una permanencia que el periodismo diario no ofrece.” 14

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propõe um gênero denominado Fotodocumentarismo Literário “[…] que compreenderia a utilização de elementos documentais e literários na produção e veiculação de imagens” (SPITALIERE, 2014, p. 1). A preferência pelo termo fotodocumentarismo ao invés de fotojornalismo é compreensível devido as já citadas divergências entre autores. Sobre este fotodocumentarismo literário, Spitaliere (2014) determina algumas características. Por exemplo, a imagem, ou um conjunto delas, deve observar os aspectos não-verbais que são encontrados nas teorias acerca da fotografia documental, como um olhar diferenciado e ampliado sobre o tema retratado. Desse modo, a fotografia é interpretada como um discurso que considera a “[…] formação social do sujeito-autor na produção fotográfica e a policromia das vozes presentes nos elementos linguísticos da imagem (cor, angulação, luz, sombra, etc.)” (SOUZA, 1998, apud SPITALIERE, 2014, p. 14). É interessante destacar que a conclusão da pesquisa de Spitaliere (2014) possui apontamentos semelhantes ao dos outros autores, o que reforça a ideia de que a discussão sobre o tema é antiga e ocorre paralelamente em diversos lugares. Porém, a definição e o próprio uso dos termos Fotojornalismo Literário, ou, Fotografia Humanista serão mediados pela pesquisa de Irala e Rodríguez (2010), por terem desenvolvido o conceito mais profundamente. A maneira como consumimos fotografia influencia o modo como a interpretamos. Observar uma imagem sozinha, ou, um conjunto de fotos, emolduradas em uma parede, fixadas em um álbum, publicadas em uma revista e, em tantas outras opções, afeta nossa percepção do conteúdo. Conforme Sontag (2004, p.15), “fotos, que enfeixam o mundo, parecem solicitar que as enfeixemos também”. Dentro deste contexto, um dos meios de publicação mais relevantes dos últimos anos, de acordo com Badger (2015), são os fotolivros. 2.1 FOTOLIVRO O uso de álbuns e livros como repositório de fotos é uma prática que existe desde o séc. XIX. De acordo com Badger (2015), pioneiros vitorianos como Anna Atkins (1799-1871) e e William Henry Fox Talbot (1800-1877) já organizavam suas

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fotografias assim por volta de 1843. Porém, o termo fotolivro significa algo além de reunir imagens num mesmo meio. A definição que Badger (2015, p.134) apresenta é de “um tipo particular de livro fotográfico, em que as imagens predominam sobre o texto e em que o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico contribui para a construção de uma narrativa visual […]”. Ele também cita o fotógrafo norte-americano John Gossage15 que numerou quatro critérios necessários para o sucesso do gênero: um excelente trabalho, fazer com que esse material funcione como algo autônomo, que possua um projeto gráfico que enalteça o que está sendo abordado e que tenha um conteúdo que mantenha o interesse do leitor. O pesquisador aponta o primeiro e o último apontamento como os mais cruciais. Em outras palavras, o grande fotolivro não se constitui simplesmente de um punhado de fotos feitas por um único e mesmo fotógrafo, não importa quão boa cada uma delas seja. O grande fotolivro precisa ter um tema, uma ideia abrangente, e deve funcionar, como me disse o fotógrafo John Gossage numa conversa, como “um mundo próprio”. Ou seja, ele deve mostrar uma voz autoral única - talvez única apenas para esse volume em particular. (BADGER, 2015, p. 141)

Badger (2015) também fala que um dos motivos dos fotolivros serem tão significativos são sua aptidões políticas, ou seja, o poder de refletir a visão de mundo do autor e questões que o preocupam. Outro argumento a favor seria uma menor necessidade de manter um estilo visual característico do autor, ao qual, por exemplo, galerias demandam. O internacionalismo que o livro proporciona, assim como a internet, “[…] ensejou uma nova democracia das imagens fotográficas, um novo ecletismo […]” (BADGER, 2015, p. 144). Horácio Fernández (2011, p. 13) é outro autor que concorda com a mobilidade que os livros alcançam: “As exposições são bem menos maleáveis: viajam mal, duram pouco tempo, chegam a menos pessoas. Já nos livros as ideias e a informação circulam melhor”. O autor também apresenta um conceito semelhante ao de Badger (2015) para definir fotolivros. “[…] é imprescíndivel que sejam livros nos quais um autor tenha organizado um conjunto de fotografias como uma continuidade de imagens, com o objetivo de produzir um trabalho visualmente legível” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 14). 15

Badger (2015) faz referência a uma entrevista que ele realizou com John Gossage em 2004.

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25 Na obra Fotolivros Latino-Americanos, Fernández (2011) ajudou na

compilação dos títulos mais relevantes para comporem o trabalho e, através da determinação do que não é um fotolivro, apresenta um diagnóstico. “Nem tudo são fotolivros: desprezamos as meras compilações de imagens independentes, como os catálogos-suvenir das exposições, com padrões fixos de projeto gráfico” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 16). Por outro lado, Letícia Lampert (2015), e também Silveira (2008), incentivam uma discussão sobre se os fotolivros não seriam a mesma coisa que livro de artista. Para ela, o limite entre um e outro é flexível. “Vejo mais com uma questão de campo. Quem vem da arte, chamará a obra de livro de artista, quem vem da fotografia, de fotolivro. Alguns se tornarão tão fronteiriços que talvez seja difícil estabelecer qualquer denominação” (LAMPERT, 2015). Embora o apontamento feito pela pesquisadora seja relevante para a compreensão das diferentes nomenclaturas que rondam o campo fotográfico, o objetivo deste trabalho de conclusão não é discutir esse tema. Por tanto, a descrição e terminologia usada por Badger (2015) irá prevalecer. Ainda assim, Lampert (2015) concorda com um dos aspectos tradicionalmente associado ao fotolivros: a coletividade do projeto. “Um fotógrafo produzia um ensaio, este ensaio era editado por ele ou por editores, passava pelo projeto de design, por um produtor gráfico, por revisões” (LAMPERT, 2015). Em relação aos fotolivros latino-americanos, Fernández (2011) constata a dificuldade de bibliografia e material especializado sobre o assunto. Porém, faz uma ressalva de que essa situação é encontrada em outros lugares, já que o interesse por fotolivros é recente. Esse reconhecimento tardio é percebido através da reação do mercado, com uma alta de preços, e visibilidade em exposições e publicações. No que se refere à pesquisa com fotolivros, Carlos Barbosa (2013) destaca que deve-se prestar atenção ao contexto social, cultural e político das obras e dos fotógrafos. Além de uma análise do “[…] projeto gráfico: composição, seleção das imagens, impressão, encadernação e narrativa fotográfica. Procura-se também estabelecer o diálogo com outros discursos iconográficos (cinema, gravura, pintura, etc) e com outros fotógrafos e fotolivros” (BARBOSA, 2013, p. 569). Alguns temas são recorrentes nos fotolivros latino-americanos e, de certa maneira, ajudam a reformular o cânone da história da fotografia, em específico a

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latino-americana. Fernández (2011) apresenta em sua pesquisa sobre fotolivros um cânone múltiplo em gêneros, em que o artístico convive com o documental. O que o autor destaca é a predileção de alguns assuntos, e não de gêneros fotográficos. Alguns desses temas seriam: paisagem urbana, palavra e imagem, memória, denúncia e protesto, propaganda governamental, fotolivros de artista, cor, temas contemporâneos (devastação da natureza, esportes, migrações), registros antropológicos. Embora ele não cite especificamente o trabalho de Santos (2014), os dois pesquisadores concordam sobre essa falácia da identidade latino-americana com base no fotodocumentarismo. Por exemplo, em relação à preferência pelo meio urbano ao rural Fernández (2011) destaca que os índios são marginalizados, com poucos fotolivros sobre o tema. Uma das diferenças entre os fotógrafos de passagem e os latinoamericanos pode ser apreciada nesse tema. Os viajantes provêm de contextos urbanos da Europa ou dos Estados Unidos e não se encontram muito à vontade nas versões locais da cidade global. Preferem sair dos hotéis e buscar as surpresas para as quais estão preparados por suas leituras prévias de textos e imagens feitas por viajantes anteriores. Em compensação, os latino-americanos prestam atenção quase exclusivamente no próprio contexto urbano, com menos curiosidade pelas enormes extensões quase vazias que rodeiam algumas cidades […]. (Fernández, 2011, p. 21)

Outro apontamento feito pelo autor diz respeito à tradição letrada da cultura latino-americana. “[…] as obras literárias com fotografias são uma característica definidora dos fotolivros latino-americanos” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 22). Para ele, a cultura escrita e a visual estão intrinsecamente associadas, a julgar pela quantidade de fotografias de grafite, “[…] que reinventam o velho muralismo dos pintores de afrescos” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 22). Fernández (2011) faz uma interessante constatação ao perceber que além dos livros que abordam memória, jornalismo independente, denúncia e protesto, há o contraponto dos fotolivros de propaganda governamental. Com os fotolivros de documentação, protesto e propaganda, poderia ser feita uma história em imagens da América Latina, incompleta no detalhe, mas que mostraria as tensões entre as ideologias conservadoras e as reformistas mais ou menos revolucionárias que formam a política do século XX. (FERNÁNDEZ, 2011, p. 20)

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27 No Chile, tanto o governo da Unidad Popular, como a ditadura de Augusto

Pinochet, realizaram edições de fotolivros. Como por exemplo, Chile Ayer Hoy (1975), da Editora Gabriela Mistral, que antes do golpe se chamava Quimantu, que utiliza a edição como ferramenta ideológica. Do lado esquerdo, em páginas de fundo preto, ficam as fotos tiradas durante o governo da Unidad Popular, mostrando desordem, violência e caos. Do outro lado, à direita, estão imagens que, em sua maioria, retratam o mesmo lugar, mas com situações que remetem tranquilidade e estabilidade. As fotos levam a assinatura da Direção Nacional de Comunicação Social, encarregada pela censura de imagens e notícias no país. Figura 5 - Chile Ayer Hoy

Fonte: DINACOS (1975) Na capa, com as cores da bandeira chilena, ayer [ontem] está escrito em vermelho e hoy [hoje], em branco. O esquematismo antes-depois do livro é um total manifesto de design gráfico militarizado, tão maniqueísta que não pode haver dúvida de quem são os bons e o que se reserva aos maus. (FERNÁNDEZ, 2011, p. 103) Figura 6 - Capa Chile Ayer Hoy

Fonte: DINACOS (1975)

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28 Chile o Muerte (1974), publicado pela Editora Diógenes, no México, é

antagônico a Chile Ayer Hoy. Fernández (2011) analisa o uso de palavras de ordem, discursos e fotos documentais para a construção do livro. As fotografias não contêm identificação para proteger seus autores. Figura 7 - Capa Chile o Muerte

Fonte: Germán Marín (1974) O escritor e editor Germán Marín compôs o fotolivro no exílio com o arquivo do fotógrafo Armindo Cardoso […] Em 11 de setembro de 1973, Cardoso enterrou seus negativos e se refugiou em uma embaixada, que o tirou do país e pouco tempos depois também resgatou as fotografias de Chile o Muerte. (FERNÁNDEZ, 2011, p. 104) Figura 8 - Chile o Muerte

Fonte: Germán Marín (1974)

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29 Ao encerrar o capítulo que introduz seu livro, Fernández (2011) alerta e

celebra o motivo de tantos fotolivros terem sido censurados, ou, confiscados, e os compara com uma bomba-relógio. “[…] um artefato que aparentemente não apresenta o menor risco e que, no entanto, contém um mecanismo propício a desencadear uma grande onda expansiva” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 27). Uma definição que também poderia ser usada para adjetivar a “fértil e convulsa” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 29) América Latina do século XX.

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3 DITADURA NA AMÉRICA LATINA Ao longo da história latino-americana é possível distinguir diversas formas de ditaduras. Rojas (2004) aponta três em específico: a ditadura positivista, a bananeira e a militar; “[…] separando essa última das demais por sua concepção de Estado e porque aparece sob a forma de ideologia continental” (ROJAS, 2004, p. 11)16. A primeira, Rojas (2004) discorre ter tido uma relevância política no séc. XIX, personificada no ditador mexicano Porfirio Díaz. Através das ideias positivas de Augusto Comte, o regime autoritário tentava justificar sua existência como algo oposto à anarquia, razão contra confusão e que, por fim, concluiu seu objetivo de impor uma economia liberal. No Brasil, um interessante exemplo que Sêga (2014) propõe é a ditadura positivista que perdurou por quase 40 anos (1891-1928) no Rio Grande do Sul com Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e, por fim, Getúlio Vargas. “Do ponto de vista doutrinário, o positivismo não compartilha os princípios da representação eleitoral preconizados pela democracia liberal burguesa, e seu princípio de delegação política por meio da eleição à representação de cargos” (SÊGA, 2004). A segunda, a ditadura bananeira, é caracterizada por Rojas (2004) pela centralização da persona do ditador, como um patrón, uma figura quase mítica. Ele cita o exemplo de Rafael Trujillo em Santo Domingo que construiu duas mil estátuas em sua própria homenagem. “Carentes de exército profissional e com um alto grau de desorganização política, a base de sustentação dessas ditaduras são um batalhão da polícia e um guarda pretoriano […] é dizer, guardas cuja razão de existir é o chefe” (ROJAS, 2004, p.12)17. A diferença entre esse regime para o militar é que no último quem está no poder é o exército, e não um indivíduo. Rojas (2004) refere-se ao Brasil de 1964 à 1985 como um exemplo dessa afirmação. Mesmo com mudanças de comandantes, quem permaneceu no poder foi o regime militar.

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Tradução livre do original: “[…] separándose esta última de las otras por su concepción del Estado y porque aparece bajo la forma de ideologías continental.” Tradução livre do original: “Carentes de ejército profissional y con un alto grado de desorganización política, señálense también estas dictaduras porque su base de sustentación es un cuerpo de polícia, una guardia pretoriana […] es decir, guardias cuya razón de ser era la persona del jefe.” 17

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32 Em relação ao Chile, o autor não tem dúvidas de que, embora a figura de

Augusto Pinochet Ugarte representasse o golpe, a ditadura instaurada de 1973 à 1990 foi institucional. É o caso de Pinochet que, pese as aparências, confirma esta alegação, pois incluso depois de abandonar a presidência conservase como chefe do exército. Mais que o ditador, o problema para a transição democrática é este exército; que mesmo quando se retira dos organismos tradicionais do poder estatal se põe em reserva aos interesses do modelo que defende: o do capitalismo ocidental na América Latina. (ROJAS, 2004, p. 12) 18

Sobre o Estado ditatorial, o autor expressa que, ao contrário dos regimes democráticos, o exército é quem controla o poder civil. “O Estado ditatorial é baseado em uma doutrina - a da segurança nacional - e em um mito: a da civilização cristã e ocidental. […] Sem dúvidas, o mais importante é que a ditadura militar é uma concepção deste Estado” (ROJAS, 2004, p. 13)19. Essa doutrina considera a política como uma continuação da guerra. “O que resulta em várias consequências: entrega do poder ao exército, transforma-o em um exército de ocupação em seu próprio país e militariza a sociedade civil; ideologicamente a militariza, pois a faz funcionar através de repressão” (ROJAS, 2004, p. 14)20. A ideologia de extrema direita em que se baseiam as ditaduras nas décadas de 60 e 70 refletem outros fatores sobre a legitimação da violência. De acordo com o autor, o imaginário de classe, de nacionalismo, circulam pelo senso comum através do racismo, exclusão de classe e práticas culturais. Além desses fatores, o momento geopolítico incubou o Estado ditatorial. A distinção Leste/Oeste da Guerra Fria, a aliança e suporte dos Estados Unidos com esses regimes, e o entendimento de combate a um inimigo interior para aqueles que não reproduzem o mesmo discurso também são aspectos cruciais.

Tradução livre do original: “Y el caso de Pinochet, pese a sus apariencias, no hace sino confirmar este aserto, pues incluso después de abandonar la presidencia conserva la jefatura del ejército. Por ello, más que el dictador, el problema para la transición democrática es ese ejército; que aún cuando se retire de los organismos tradicionales de poder estatal, se pone en reserva de los intereses del modelo que defiende: en América Latina, el del capitalismo ocidental.” 18

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Tradução livre do original: “El Estado dictatorial se funda en una doctrina - la de la seguridad nacional - y en un mito: el de la civilización cristiana y occidental. […] Lo más importante sin embargo es que la dictadura militar es una concepción del Estado.” Tradução livre do original: “Lo que tiene varias consecuencias: entrega el poder al ejército, transforma éste en un ejército de ocupación en su propio país y militariza la sociedad civil; ideológicamente la militariza, pues la hace funcionar por la represión.” 20

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3.1 OPERAÇÃO CONDOR O Cone Sul da América Latina foi tomado pelo Estado Ditatorial nas décadas de 60 e 70 do séc. XX. Decorrente ao domínio da região, foi organizada uma aliança secreta de âmbito internacional e com práticas terroristas, a Operação Condor. Os ‘anos do Condor’, como Dinges (2005) chama o período de 1973 a 1980, foram marcados pela perseguição aos opositores dos regimes militares em Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Destes, o Paraguai foi o primeiro a sofrer um golpe militar em 1954 com o general Alfredo Stroessner e, por consequência, o primeiro a sentir a intervenção direta dos Estados Unidos. Calloni (1999) explica que essa ditadura foi uma base de operações para as agências de inteligência norte-americanas num primeiro momento. “Já em 1973 se descobriu que o dinheiro para financiar a greve dos caminhoneiros chilenos contra o presidente Salvador Allende venho precisamente do Paraguai, da central da CIA neste país” (CALLONI, 1999, p. 36)21. Uma década após o início da ditadura no Paraguai foi a vez do governo brasileiro de João Goulart ser derrubado. A Bolívia, com um histórico de golpes, em 1971 viu Hugo Banzer tomar o poder. Chile e Uruguai que, conforme Sader (1984), eram chamados de ‘Suíça da América Latina’ em referência à estabilidade política e institucional, também tiveram seus governos democráticos destituídos em 1973. Por fim, a Argentina, que desde os anos 30 teve escassos períodos democráticos, foi novamente tomada por militares em 1976. “Depois dos golpes no Chile e Uruguai, muitos haviam buscado refúgio na Argentina, onde já viviam milhares de paraguaios que fugiram do regime stroessnerista. Todos ficaram encurralados sob a ditadura argentina […]” (CALLONI, 1999, p. 16)22 . Embora a Argentina tenha produzido, de acordo com Calloni (1999), em torno de 30 mil desaparecimentos, o principal articulador para que a Operação Condor acontecesse foi o ditador chileno Augusto Pinochet. Segundo Dinges (2005), até o

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Tradução livre do original: “Ya en 1973 se conoció que el dinero para financiar la huelga de los camioneros chilenos contra el presidente Salvador Allende vino precisamente del Paraguay, de la central de la CIA en ese país.” Tradução livre do original: “Después de los golpes en Chile y Uruguay muchos habían buscado refugio en Argentina, donde ya vivían miles de paraguayos que huyeron del régimen stroessnerista. Todos ellos quedaron entrampados bajo la dictadura argentina […].” 22

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nome é uma referência ao pássaro símbolo do país, uma ave que se alimenta de carniça. Teve início na América Latina, sob a liderança geopolítica de Pinochet, uma espécie de efeito dominó invertido. Os países cujo sistema democrático fornecera um ponto de apoio à ideologia esquerdista caíram sob o domínio militar e foram sujeitos a uma limpeza política impiedosa – país após país. […] A ideia era fazer com que os Serviços de Segurança reunissem forças para perseguir e capturar “terroristas” de todas as nacionalidades, onde quer que residissem. (DINGES, 2005, p. 21)

É importante ressaltar, como faz Calloni (1999), que por trás da Operação Condor estava o apoio dos Estados Unidos e seu esquema da Doutrina de Segurança Nacional23. O autor explica que pelo contexto global da Guerra Fria, o governo americano não mediu esforços e recursos para interferir na situação política do continente. Essa atenção foi intensificada depois que o governo socialista de Salvador Allende foi eleito no Chile, em 1970. Foi a CIA que coordenou uma primeira interação entre o serviço secreto dos países da região, tendo intermediado reuniões entre dirigentes dos esquadrões da morte. Inclusive, a divisão de serviços técnicos do órgão ofereceu equipamentos de tortura elétrica e assessoramento sobre qual o nível de resistência humana à choques. Operação Condor significa ‘continentalização’ da criminalidade política. É dizer, a difusão em todo o continente das ações terroristas que partem desde Washington. […] Em um princípio colaboraram apenas alguns regimes ditatoriais, hoje já se fala de uma organização para todo o hemisfério ocidental que atua sob o amparo da CIA. Ela pode se vangloriar de saber, preparar e conduzir os piores crimes políticos de nossa época na América Latina e nos Estados Unidos, como prova o assassinato de Orlando Letelier, exministro e embaixador do Chile em Washington. (MAHSKIN, 1985 apud CALLONI, 1999, p. 22) 24 23

A Doutrina de Segurança Nacional foi elaborada nos Estados Unidos pós Segunda Guerra Mundial, em que coloca o país como um defensor da civilização ocidental e cristã, a qual estaria ameaçada por inimigos internos e externos. É interessante destacar que a ameaça externa é representada por outros países que não sigam essa ideologia, por exemplo a URSS, e a interna é a ação de qualquer grupo que subverta e não queira seguir essa doutrina, como movimentos sociais. Tradução livre do original: “Operación Condor, significa ‘continentalización’ de la criminalidad política. Es decir, difusión en todo el continente de las acciones terroristas que manejan desde Washington. […] En un principio colaboraban entre si sólo algunos regímenes dictatoriales, hoy se habla ya de una organización general para todo el hemisferio occidental, que actúa bajo la égida de la CIA. Esta organización puede vanagloriarse de haber sabido preparar y llevar a cabo los crímenes políticos más horrorosos de nuestra época en América Latina y aun en Estados Unidos, como lo prueba el asesinato de Orlando Letelier, ex ministro de Defensa y embajador de Chile en Washington.” 24

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35 O próprio diretor da CIA na época, William Colby, declarou que os Estados

Unidos teriam o direito de atuar ilegalmente em qualquer região do mundo. Colby também tinha participado em 1966 na Operação Phoenix no Vietnã, que matou mais de 20 mil pessoas e serviu de inspiração para a Condor. “Os agentes de segurança latino-americanos também receberam treinamentos da CIA enquanto à fabricação de bombas, na sede da oficina de Segurança Pública do Departamento de Estado no Texas” (CALLONI, 1999, p. 17)25. Após a queda de Allende, em 1973, o Chile serviu de central de comando para a CIA. E o que se viu foi uma ‘espetacular coincidência’ de mortes de figuras políticas: No 30 de setembro de 1974, o general chileno Carlos Prats foi assassinado junto a sua esposa Sofía Cuthbert em Buenos Aires. Ele havia sido ministro da defesa de Allende, entre outros cargos, e estava asilado na Argentina. Uma bomba explodiu debaixo de seu carro quando voltava de uma reunião com amigos. Foi um sinal terrível. (CALLONI, 1999, p. 21) 26

O assassinato de Prats e de outros políticos serviu para despertar a atenção sobre o que acontecia na América Latina, mas foi o assassinato de Letelier, também em setembro de 1976, que evidenciou a Operação Condor. “Uma bomba colocada – como logo ficaria evidente – por um grupo operativo em que participavam Michael Townley (ex agente da CIA), enviados especiais da ditadura chilena e terroristas cubanos anti-Castro […]” (CALLONI, 1999, p. 23)27. O atentado à Letelier foi um marco para que a imprensa internacional desse mais cobertura aos abusos cometidos pelo Estado Ditatorial da América Latina. E, anos mais tarde, inspirou uma passagem do filme Scarface (1983), dirigido por Brian de Palma. Escrita pelo então roteirista Oliver Stone, as cenas reproduziam um grupo, com a mesma descrição do acontecimento real, tentando detonar uma bomba colocada embaixo Tradução livre do original: “Los agentes de seguridad latinoamericanos también recibieron entrenamiento de la CIA en cuanto a fabricación de bombas, en la sede de la oficina de Seguridad Pública del Departamento de Estado en Texas.” 25

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Tradução livre do original: “El 30 de septiembre de 1974, el general chileno Carlos Prats, quien había sido ministro de Defensa de Allende, entre otros cargos, y estaba asilado en Argentina, fue asesinado junto a su esposa Sofía Cuthbert en Buenos Aires. Una bomba estalló debajo de su automóvil cuando regresaba de una reunión con amigos. Fue una señal temible.” Tradução livre do original: “Una bomba colocada – como se demostraría luego – por un grupo operativo en el que participaban Michael Townley (ex agente de la CIA), enviados especiales de la dictadura chilena y terroristas cubanos anticastristas […].” 27

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do carro de um importante exilado político. No entanto, a ficção não foi tão longe e o personagem de Al Pacino decide não cometer o atentado. Uma crítica direta à perseguição imposta por Pinochet, que apenas em 1988 colocaria um fim ao exílio. O escarcéu gerado por esses atentados fez os Estados Unidos mudarem a relação que tinham com os regimes militares do Cone Sul. Sob a presidência do democrata ‘Jimmy’ Carter, em 1977, a estratégia de intervenção foi alterada, “[…] o governo de Carter começou a ter reservas em relação aos pedidos de colaboração depois de tantos escândalos, fundamentalmente os no Chile” (CALLONI, 1999, p. 17)28. Mesmo com o desarme da Operação Condor, o Chile continuaria sob a ditadura de Pinochet até uma lenta transição à democracia em 1990, um total de 17 anos de regime militar. 3.2 DITADURA MILITAR NO CHILE Terça-feira, 11 de setembro de 1973 é a data que marca oficialmente o golpe militar no Chile. Sob o comando do general Augusto Pinochet Ugarte, a junta militar depôs o presidente democraticamente eleito, Salvador Allende, com um bombardeio ao Palácio Da Moneda, sede do governo. Esse evento culminou no suicídio de Allende e um período de 17 anos de ditadura. Porém, é preciso entender como essa ruptura com a democracia foi germinada, como foi o regime e, por fim, o ressurgimento da democracia. “O golpe militar não foi um raio num céu azul. Nuvens negras foram se acumulando no horizonte logo ao fim do primeiro ano do governo de Allende […]” (SADER, 1984, p. 15). Na América Latina, o início da década de 70 já trazia a presença militar em diversos países. Em meio a este cenário, Sader (1984) explica que em relação aos outros lugares, que tiveram diversos governos interrompidos, o Chile mantinha desde 1830 uma continuidade eleitoral e parlamentar. “Claro que somente desde fins dos anos 30 deste século essas eleições contaram com a participação do povo como votante e a incorporação de partidos de esquerda […]” (SADER, 1984, p.8). Ou seja, a longa democracia chilena pode ser explicada por sempre manter no

Tradução livre do original: “[…] el gobierno de Carter comenzó a tener reservas ante los pedidos de colaboración después de muchos escándalos, fundamentalmente los sucedidos en Chile.” 28

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poder figuras políticas de ideologias semelhantes, centro ou direita, que não causavam ameaça entre si. A eleição presidencial de 4 de setembro de 1970 foi justamente precedida da insatisfação do povo com esse cenário. A vitória de Allende e da Unidade Popular, uma aliança dos partidos de esquerda, demonstrava um anseio por transformações sociais. Naquele ano, o Partido Nacional que, com posturas conservadoras, representava a tradicional oligarquia fundiária e setores financeiros, lançou candidatura própria depois de desfazer aliança com o Partido Democrata Cristão. Por sua vez, os democratas cristãos haviam perdido popularidade após o mandato presidencial de Eduardo Frei. Um governo que, para Guazzelli (2004), era de caráter reformista moderado e representava grupos médios urbanos e a pequena burguesia. O fracasso do projeto democrata-cristão arrastou consigo o conjunto do sistema de dominação democrática arquitetado longamente pela burguesia chilena. As reformas não haviam logrado diluir a ameaça revolucionária. A partir do momento em que mostraram seus limites e à medida que cresceu a organização própria dos trabalhadores, as reformas cindiram o bloco dominante e estimularam a luta dos dominados. A vitória eleitoral de Salvador Allende em 1970 constituiu não apenas expressão culminante dessa crise, como ainda fatos de sua exacerbação final. A democracia burguesa chilena havia esgotado seus últimos artifícios. (SADER, 1982, apud GUAZZELLI, 2004, p. 82)

Mesmo assim, sua vitória teve uma pequena margem de diferença para os outros candidatos, o que condicionou sua posse a uma eleição pelo Congresso Nacional. Desde aí, começaram campanhas golpistas para impedir seu governo. Em um primeiro momento, os grupos contrários a Allende foram inibidos pela presença do comandante do exército René Schneider. Porém, apenas um mês após a eleição, em 22 de outubro de 1970, uma facção terrorista de extrema-direita assassinou o general. No lugar dele, assumiu Carlos Pratts, que também era um militar constitucionalista. Salvador Allende, de acordo com Sader (1984, p. 19), “[…] representava uma tentativa de realização de transformação de caráter socialista a partir das próprias estruturas políticas burguesas”. Soma-se a isso uma série de sabotagens econômicas, que para Guazzelli (2004, p. 85) tentavam “[…] criar um clima caótico para o governo que assumia, alertando para os riscos que enfrentaria o país sob o projeto de transformações sociais da Unidade Popular”. Além do fato que o Executivo era refém do Legislativo,

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no qual a oposição era maioria, e do Judiciário, que desprezava a Unidade Popular. Quando as medidas da ‘via chilena ao socialismo’ não agradaram mais as camadas da pequena burguesia, foi a vez desta se unir contra o governo. Em meio a isso, grupos nas Forças Armadas começaram a se organizar. No dia 29 de junho de 1973 foi realizada uma ação golpista que cercou o Palácio da Moneda e exigiu a renúncia do presidente. Posteriormente, Pinochet chamaria o episódio como um ‘ensaio geral’ para o 11 de setembro. Allende, que diante da tentativa golpista não tinha tomado maiores medidas de sanção contra esses setores, promoveu Pinochet a comandante-em-chefe da Forças Armadas em substituição a Prats, com o raciocínio de que era preferível relacionar-se diretamente com o oficial mais representativo da oficialidade militar. (SADER, 1984, p. 28)

Esse ato sentenciou o fim do governo Allende. Até então, Allende e Pinochet haviam trabalhado numa operação para impedir um possível golpe. Na manhã do dia 11, o general se reuniu com as Forças Armadas e lançou um contraplano. O que ele fez foi inverter a própria ação e com o apoio do Exército, Marinha, Aeronáutica e Carabineros, a polícia, cercar novamente o Palácio da Moneda. Um ultimato foi feito contra o então presidente, para que deixasse o local antes das 11h da manhã, quando o palácio seria bombardeado. Allende se recusou a sair e realizou seu último discurso, um testamento político em que incitava “as grandes alamedas por onde avançará o povo chileno voltarão a abrir-se mais cedo que tarde” (ALLENDE, 1973, apud SADER, 1984, p. 31). Às 11h30min os aviões Hawk-Hunter bombardearam o Palácio da Moneda. Allende é encontrado morto, com o fuzil que havia ganho de Fidel Castro em mãos, e que anos mais tarde comprovou-se oficialmente como suicídio. Alguns bairros tentaram resistir, mas a repressão do exército era infinitamente superior. Com as prisões cheias, lugares como o Estádio Chile, Estádio Nacional, Estádio Santa Laura, clube União Espanhola, foram usados como campos de concentração. O Estádio Chile iria ficar conhecido como um centro de tortura, onde o cantor Víctor Jara foi assassinado, e que após a ditadura foi renomeado em homenagem ao artista.

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39 O toque de recolher foi decretado na própria terça-feira, enquanto o Palácio da Moneda ainda era bombardeado, e só foi suspenso 48 horas depois, mas passou a vigorar diariamente a partir das 18 horas. O poder militar conquistava as ruas, os campos, as escolas e todo o espaço democrático, que tinha sido conseguido pelo povo através de lutas de várias décadas. (SADER, 1984, p. 35)

A partir daí, o Chile sofreu mudanças drásticas pelo 17 anos seguintes. O parlamento foi fechado, o judiciário sofreu intervenções, o toque de recolher virou rotina, a imprensa foi censurada, empresas estatais foram privatizadas, partidos considerados marxistas foram proibidos, latifundiários dominaram os campos visando a exportação. Inspirado não só no milagre econômico brasileiro, mas também em técnicas de repressão, o Chile de Pinochet abafou qualquer voz contrária. “Se os métodos repressivos foram calcados nos brasileiros, a escala da sua aplicação ganhou contornos sociais que a transformaram numa ação do Estado contra a sociedade civil no seu conjunto” (SADER, 1984, p. 38). De acordo com relatório de 2011, da Comissão Valech, a estimativa oficial entre torturados, mortos e desaparecidos é em mais de 40 mil pessoas. Embora, grupos de familiares de vítimas consideram a possibilidade de esse número chegar a 100 mil. O início da década de 80 mostrou a real fragilidade que o país se encontrava. O endividamento e o desemprego obrigaram os chilenos a uma ‘estratégia de sobrevivência’, “[…] que inclui uma comida diária, normalmente de macarrão, e no fim da tarde um chá, para esquentar a barriga das crianças, que logo vão para a cama, sob o seu efeito tergiversador” (SADER, 1984, p. 61). Com a edução privatizada e encarecida, os jovens que não tinham meios foram excluídos do sistema. Os Chicago-Boys, os economistas que idealizaram o plano neoliberal chileno, por fim, pareciam ter sido os maiores beneficiados, enquanto o resto do país enfrentava graves problemas. A orientação neoliberal do regime se foi contradizendo nos fatos, quando a posição de deixar jogar livremente as leis do mercado se voltou contra a precária estabilidade economia chilena, porque os ventos do mercado internacional tinham mudado. (SADER, 1984, p. 59)

Em meio a este cenário, em 1980, foi aprovada uma nova constituição que dava o direito de Pinochet continuar no poder por mais 8 anos. Porém, com a economia demonstrando sinais de decadência, os mesmos setores da burguesia

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que apoiaram o golpe se voltaram contra ele. A crise começou financeira, se tornou social e, então, política. Logo, movimentos sociais voltaram a se organizar, alguns protestaram nas ruas, outros usaram de outros recursos. A partir de 1983 reapareceram os protestos de massa nas ruas, protagonizando enormes passeatas e cacerolazos, unindo associações operárias, camponeses, estudantes, defensores dos direitos humanos, familiares de presos. Aos setores populares somava-se a oposição de políticos moderados que haviam sido alijados da cena pelos militares, como era o caso dos democratas cristãos, e de muitos setores da Igreja Católica, que também fora apoiadora do golpe militar no Chile. (GUAZZELLI, 2004, p. 100)

Devido a uma medida proferida pela DINACOS, em 1984, as revistas Cauce, Analisis, Apsi e Fortin Mapocho tiveram suas fotos, ilustrações e desenhos censuradas. A Direção Nacional de Informações chilena era responsável pela censura dos meios de comunicação e poderia ser comparada ao que o CONTEL representava no Brasil. Caparelli (1989) explica que a engenhosa solução encontrada por estes meios foi publicar apenas uma legenda embaixo do espaço deixado em branco pela falta de imagens. A novidade foi lançada quando a revista Cauce apareceu nas bancas com um grande retângulo em branco sobre a sua capa de fundo azul. O espaço vazio simbolizava a imagem censurada e, no lugar da legenda da foto, o editor escreveu ‘Sua Excelência, General Augusto Pinochet Ugarte, que completa 11 anos no comando do País’. (FERNANDEZ, AFP, 1984, apud, CAPARELLI, 1989, p. 85). Figura 9 - Capa da revista Cauce nº22

Fonte: Revista Cauce (1984)

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41 Com a oposição fortalecida, o governo teve de realizar o plebiscito de 1988

para decidir se ‘SÍ’, a ditadura iria continuar, ou ‘NO’, para que prazos fossem estabelecidos para uma transição à democracia. O número de pessoas que manifestaram interesse foi alto, “[…] um mês antes do plebiscito, já haviam mais de 7 milhões de chilenos inscritos para votar, o que equivalia a 92% daqueles que podiam registrar sua preferência” (Memoria Chilena, Portal de la Cultura de Chile, 2016)29. Figura 10 - Cartaz da campanha ‘NO’

Fonte: Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (1988)

Em 5 de outubro de 1988 o ‘NO’ ganhou com uma pequena vantagem do ‘SÍ’, 53% contra 44% de votos. Nesse processo, no ano seguinte ainda foi realizado um outro plebiscito para reformar a Constituição, e, por fim, em 14 de dezembro de 1989 foi realizada a primeira eleição presidencial e parlamentar.

Tradução livre do original: “[…] un mes antes del plebiscito, había más de siete millones de chilenos inscritos para votar, lo que equivalía al 92% de aquellos que estaban facultados para emitir su preferencia.” 29

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42 Assim começou o período de transição para a democracia, que em seus primeiros anos ficou conhecido pela tensão entre o Governo e as Forças Armadas, que ainda estavam sob o comando de Pinochet, já que ao entregar o poder em 11 de março de 1990, ele ainda continuou como Comandante Chefe do Exército, tal qual como estava estabelecido na Constituição ainda ditada em seu governo. (Memoria Chilena, Portal de la Cultura de Chile, 2016)30

Pinochet só saiu deste cargo em 11 de março de 1998, quando assumiu como senador vitalício. Em sua morte, no 10 de dezembro de 2006, ele recebeu homenagens fúnebres do Exército. 3.3 A HISTÓRIA DE CHILE DESDE ADENTRO A repressão que a ditadura de Pinochet impôs durante os anos de 1973 a 1990 mudou o cenário da fotografia no Chile, tanto para o governo que usava das imagens como arma de propaganda, como para aqueles que se opunham ao regime. No início da década de 80, quando os movimentos sociais conseguiram se reorganizar, um grupo de fotógrafos decidiu criar uma nova associação. De acordo com artigo da Memoria Chilena, Portal de la Cultura de Chile (2016), a União de Fotojornalistas mantinha um estreito vínculo com o setor de comunicação do governo, a DINACOS. Este órgão era o responsável por proibir o uso de qualquer fotografia ‘não oficial’ na imprensa e, portanto, examinava de perto quem poderia se associar a União. Nesse contexto, surgiu em 1981 a Associação de Fotógrafos Independentes, uma maneira de fotógrafos que não tinham acesso à União conseguir respaldo institucional. Como ironiza Jorge Ianiszewski31, a AFI ficou conhecida como ‘Associación de Fotógrafos de Izquierda’, por suas imagens serem centradas nos protestos contra a ditadura. A Associação chegou a ter mais de 300 membros durante sua existência até o fim do regime militar. E teve um papel fundamental para a fotografia chilena e para que um determinado grupo de fotógrafos se conhecesse. Paz Errázuriz, em declaração feita à Video Exposición Chile Desde Adentro (2015), reconhece a 30

Tradução livre do original: “Con ello se inició un período de transición a la democracia que se caracterizó, en sus primeros años, por la tensión existente entre el Gobierno y las Fuerzas Armadas, aún bajo el mando de Augusto Pinochet pues, tras entregar el poder el 11 de marzo de 1990, este continuó como Comandante en Jefe del Ejército, tal como lo establecía la Constitución dictada durante su gobierno.” 31

Depoimento de Ianiszewski ao documentário La Ciudad de los Fotógrafos, 2006.

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importância da AFI: “Eu era fotógrafa de rua, podia me definir dessa maneira, gostava muito da rua e a AFI concretizou todo o sentido do trabalho”32. Oscar Navarro (2015) também admite que ser parte de um grupo fez diferença para ele. O trabalho na rua há de se ter uma leitura, ou seja, para onde vão e de onde vem os ‘porcos’, de se mover em grupos, para que sempre tenha gente ao redor. A princípio, eu andava só porque não conhecia ninguém para andar comigo, saia com a minha câmera e fotografava. Depois comecei a me relacionar com outros fotógrafos e saímos em bloco. De certa maneira, tudo isso é um processo de evolução, se cresce e aprende a linguagem das ruas. E acho que isso te deixa um pouco mais potente, te dá uma satisfação de sentir-se parte de algo, de uma comunidade, de um país que queria mudar toda a situação que estávamos vivendo, um país de merda que, sinceramente, não mudou muito. (VIDEO EXPOSICIÓN…, 2015) 33 Figura 11 - Fotógrafos da AFI

Fonte: La Ciudad de los Fotógrafos (2006)

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Tradução livre do original: “Yo era como fotógrafa callejera, por ejemplo, me podría definir de esta manera. Me gustaba mucho la calle y con la AFI se concretó todo el sentido del trabajo.” Tradução livre do original: “El trabajo en la calle tiene una lectura, o sea, de donde vienen los ‘pacos’, ‘pa’ onde van los ‘pacos’, y moverse agrupado, tener gente alrededor tuyo. Al principio yo andaba solo porque no tenía gente conocida, salía con mi camera fotografiaba. Después comencé a me relacionar con otros fotógrafos y ya salíamos en bloco. Entonces todo eso es un proceso de evolución, se quieres, ‘cachai’. Vas creciendo, de una o otra manera vas aprendiendo el lenguaje callejero y eso te va haciendo un poquito más potente.Yo creo que es la satisfacción de sentirme parte de algo, de una comunidad, de un país que quería cambiar toda la situación que estábamos viviendo, un país de mierda, que no ha cambiado mucho.” 33

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Figura 12 - Fotógrafos trabalhando em meio ao gás lacrimogêneo

Fonte: Video Exposición Chile Desde Adentro (2015)

Com o referendo de 1988 pela continuação ou não dos militares no poder, a imprensa internacional se juntou aos fotógrafos chilenos na cobertura dos acontecimentos. Assim, a americana Susan Meiselas, fotógrafa da Magnum, conheceu alguns membros da AFI que, posteriormente, viriam a ser os responsáveis por Chile Desde Adentro. Eu estava fotografando no Chile semanas antes do referendo de Outubro de 1988. Eu conheci os fotógrafos chilenos quando estávamos todos correndo dos canhões de água ou nos preparávamos discretamente na esquinas ante manifestações espontâneas. Vários deles tinham visto meu livro de 1981 sobre a Nicarágua e o projeto coletivo sobre El Salvador de 1983, que incluía o trabalho de 30 fotógrafos internacionais. Eu estava naturalmente interessada naquilo que eles vinham documentando naqueles anos de Pinochet. Então, foi aí onde a conversa começou. Depois evoluiu para uma série de reuniões e, eventualmente, em olhar mais atentamente ao trabalho e falar sobre fazer um projeto que reunisse tudo. (MEISELAS, 2013) 34

Tradução livre do original: “I was photographing in Chile several weeks before the referendum in October 1988. I thus began meeting Chilean photographers as we all raced from water cannons or discretely assembled on corners around spontaneous demonstrations. Several of them had seen my 1981 book on Nicaragua and the collective project on El Salvador from 1983 that included the work of thirty international photographers. I was naturally interested in what they had been documenting all those years under Pinochet. So that was where the conversation began. It then evolved into a series of get-togethers, and eventually into looking more closely at their work and talking about doing a project to bring it together.” 34

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45 Esse grupo era composto por: Paz Errázuriz, Alejandro Hoppe, Álvaro Hoppe,

Helen Hughes, Jorge Ianiszewski, Héctor López, Kena Lorenzini, Juan Domingo Marinello, Christian Montecino, Marcelo Montecino, Oscar Navarro, Claudio Pérez, Paulo Slachevsky, Luis Weinstein e Oscar Wittke. Embora todos fizessem parte da AFI, cada um tinha uma relação diferente com a fotografia. Como explica Wittke (VIDEO EXPOSICIÓN…, 2015): Nessa conjuntura de ditadura aconteceu algo de juntar fotojornalistas e fotógrafos artísticos. E isso favoreceu os dois, para alguns deu sentido para as fotos. ‘Bom, agora tenho que me preocupar não só com as minhas emoções, mas também com o país, com a época, como se vive’, e daí saíram outras coisas.35

Assim, eles começaram a se reunir para discutir as imagens que tinham feito durante os anos. Hughes (VIDEO EXPOSICIÓN…, 2015) relembra esse momento: “A ideia era que cada um apresentasse 50 fotos, éramos cerca de 20 pessoas num início, colocávamos as fotos na mesa e íamos eliminando e elegendo, como uma poda”36. C. Pérez (VIDEO EXPOSICIÓN…, 2015) conta sobre a coletividade do processo e como isso o afetou: E o trabalho em equipe foi fantástico porque era divertido de fazer, nos reuníamos na casa da Helen Hughes e, mesmo cansados, ficávamos horas olhando as fotos. Chegava alguém com alguma imagem, ou com as folhas de contato, e começávamos a editar aí. Víamos as fotos através da lupa, todos trazíamos uma, e parecíamos umas crianças com as lupas nas folhas de contato. Era divertido, foi uma escola. Tudo isso foi bom também para aprender falar sobre fotografia, como víamos o país. E o norte para isso foi a denúncia. 37

Tradução livre do original: “Paso algo en esta coyuntura de la dictadura que se juntaron fotógrafos artísticos y periodísticos. Y eso favoreció los dos, a otro les dio sentido a su foto. ‘Bueno, yo estoy tomando una foto pero ahora me tengo que preocupar de emociones no solo mias sino la emoción de um país, la emoción de una época’, y allí salieran otras cosas.” 35

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Tradução livre do original: “La idea era que cada uno presentara unos 50 imágenes. Éramos creo que cerca de 20 personas en ese momento y lo pasamos por la mesa y fuimos como eliminando, dejando, como podando.” Tradução livre do original: “Y el trabajo en equipo fue fantástico porque era entretenido también hacerlo ‘po'. Nos reuníamos en la casa de la Helen Hughes con ella y estar horas delante de… también cansados, pero estar horas delante de fotos. Y uno llegaba con una imagen, con la hoja de contactos y empezar a editar ahí. O ver, entre todos ver, meter el ojo dentro de la lupa. Nos trajo a todos lupas, todos andábamos con lupas parecíamos niños chicos. Y todos con la lupa puesta en la hoja de contacto. Era entretenido, fue una escuela. Todo eso yo pienso también para uno aprender hablar de fotografía. Como uno vía el país, como empezamos a contar este relato, este libro. Pero el norte, la razón de uno, era la denúncia. 37

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46 Meiselas (2013) lembra de tentar resguardar o que estavam fazendo

fechando as cortinas para que vizinhos não especulassem sobre as reuniões. López (2015) também menciona que pelo processo envolver muitas pessoas, em algum momento isso chegou a se tornar uma dificuldade. A fotografia estava em uma mesa, montanhas de fotografias, e a casa que já não cabia mais foto. O piso estava cheio de fotos, outras mesas espalhadas também estavam cheias. Susan trabalhava todo dia e como nós tínhamos outras atividades, alguns iam pela manhã, outros à tarde, noite. Ao que chegava pela manhã ela pedia para ordenar algumas coisas, o que chegava à tarde fazia o mesmo e acabava desordenando tudo o que o outro já tinha feito, então no dia seguinte a edição, como as imagens dialogavam entre si, continuava desorganizada. (VIDEO EXPOSICIÓN…, 2015)38

É possível observar na figura 14 a casa de Helen Hughes com diversas fotografias espalhadas pelo piso. E na figura 13, um grupo analisando negativos. Figura 13 - Fotógrafos olhando os negativos39

Fonte: Video Exposición Chile Desde Adentro (2015)

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Tradução livre do original: “La fotografía estaba en una mesa, las rumas de fotografía, y en esta pieza que ya no había donde poder incorporar nuevas piezas. El piso estava lleno de fotografías, o mesas que había por ahí estaban llenas de fotografías. Entonces Susan trabajaba todo el día y como nosotros teníamos otras actividades algunos iban a las mañanas, otros a la tarde, otros a la noche. Y el que llegaba a la mañana ella le pedía que ordenara de alguna manera certas cosas, el que iba a la tarde le planteaba lo mismo, y ese otro desordenaba todo, y el de la noche desordenaba todo. Después al día seguinte estava todo desordenado, la edición yo digo, como las imágenes se conectaban entre si, como dialogaban.” 39

Ordem (esquerda à direita): Não identificado, Susan Meiselas e Cláudio Pérez.

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Figura 14 - Produção de Chile Desde Adentro 40

Fonte: Alejandro Hoppe ([1988])

Os fotógrafos, a editora Susan Meiselas e o diagramador Sergio Pérez construíram uma narrativa, atém da que as fotos já proporcionavam, através da sequência em que foram dispostas no livro. De acordo com o responsável pelo projeto gráfico, as imagens foram ordenadas deliberadamente para acolher a ideia maior que o livro representava. O livro ia pedindo coisas, por exemplo, aqui nos falta uma imagem de tal característica e então a buscávamos. Se estava o fotógrafo, íamos no quarto escuro da Helen, olhávamos os negativos e fazíamos cópias no laboratório, para ir montando esse livro… Em uma sala grande, imensa, no chão… foi um longo processo, bastante divertido, e o livro mudou bastante, mas sempre esteve claro qual a direção que ele ia. Foi uma época crucial, sobretudo agora que já terminou e podemos perguntar como foi e qual foi o processo. E acho que as fotos são bem eloquentes nesse sentido. (VIDEO EXPOSICIÓN… 2015) 41

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Ordem (esquerda à direita): Helen Hughes, Susan Meiselas, Álvaro Hoppe, Paz Errázuriz e Marcelo Montecino. Tradução livre do original: “El livro ia pediendo cosas, aquí nos falta un imagen de tal característica, se no la teníamos hay que ir a buscarla. Se estaba el fotógrafo, Helen tenía un cuarto oscuro, veíamos los negativos, había que ir a copiar en el laboratorio, para ir armando este libro… en una sala grande, imensa, en el suelo, sí… fue un processo largo, muy entretenido. Cambio harto el libro, pero creo que estaba claro para donde iba. Fue una época crucial, sobretodo ahora que termino, para preguntarse en que estamos, como fue el proceso. Y yo creo que las fotos son bien elocuentes en ese sentido.” 41

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48 Hoppe (2015) compartilha do entendimento que o livro representa a união de

ideias dos fotógrafos em prol de um conceito coletivo. Eu tirava fotos para construir algo que fosse melhor. Porque no fundo não fotografava, no meu caso tenho isso muito claro, um tipo de foto que poderia ir para agências. Eu fotografava porque acreditava que era um grão a mais de areia naquilo que estava ocorrendo. A palavra liberdade estava proibida. O jornal El Mercúrio nunca usou as palavras detidos, desaparecidos, elas não existiam. A palavra liberdade estava escrita nos muros. A palavra justiça também era proibida. […] O livro sempre tentou resgatar as pessoas anônimas, se você perceber, não aparecem políticos, dirigentes, mas sim gente anônima. E eu acredito que isso foi um ponto de vista coletivo. (VIDEO EXPOSICIÓN…, 2015)42 Em relação ao trabalho de Meiselas, os fotógrafos tem opiniões semelhantes ao considerar-la como uma professora. A Susan foi quem começou a selecionar as fotos que laçavam um tema com outro, dobradiças, fotos de contexto. Ao menos para mim, ela ensinou como guardar, nomear as fotos. Éramos todos espontâneos, mas sem nenhuma educação fotográfica. (ERRÁZURIZ, VIDEO EXPOSICIÓN…, 2015)43

Porém, a editora não concorda com essa visão, e acredita ter tido um papel mais próximo ao de uma facilitadora. Além disso, faz uma alusão ao porquê do nome do livro. Chile foi muito isolado, ninguém sabia, ninguém tinha visto muitas imagens do país naquela época. Então eu queria dar o momento aos chilenos, dar a possibilidade que fossem mais conhecidos afora por seus próprios olhos, por sua própria história, isso me pareceu correto. […] ‘Que tipos de fotos vão fazer o público entrar?’ Então foi um processo entre nós para buscar uma sequência de imagens, uma 42

Tradução livre do original: “Yo tomaba fotografías para construir algo que fuera mejor. Porque en el fondo uno no fotografiaba, en mi caso lo tengo muy claro, como se las fotografías podrían ir para las agencias. Yo fotografiaba porque creía que era un grano de arena más a lo que estaba ocurriendo. La palabra libertad estaba proibida. El Mercúrio nunca ocupo la palavra ‘detenidos’, ‘desaparecidos’, no existía. La palabra libertad estaba escrita en la muralla, la palabra justicia también era proibida. […] El libro siempre trató de rescatar la gente anónima, se usted ve no aparecen políticos, no aparecen dirigentes, sino que gente anónima, y eso fue un punto de vista yo creo colectivo.” Tradução livre do original: “La Susan fue la que empezó a elegir este tipo de fotografía que, yo creo, lazaban un tema con otro, eran fotos un poco bisagras, eran fotos de contexto. Nos puedo enseñar, al menos a mí me enseño, como guardar tus fotos, como archivarlas, como nombrar. Éramos todos muy espontáneos, sin ninguna educación fotográfica propriamente.” 43

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49 linguagem visual. Como entrar porta adentro e ir conhecendo pouco a pouco. E eu nunca pensei como se estivesse ensinando algo, eu estava compartilhando e só eles podiam decidir o que era mais importante, quais imagens representavam o momento. (MEISELAS, VIDEO EXPOSICIÓN…, 2015)44

No ano de 1990 o livro é lançado com o título Chile From Within, pela editora W. W. Norton & Company, e apresenta fotos e textos. Mas, é distribuído apenas nos Estados Unidos e em inglês devido ao cenário instável do Chile. Mesmo em 1991, com a democracia restabelecida, as imagens não conseguiram chegar ao país. Os fotógrafos foram impedidos de realizar uma exposição no Museu de Belas Artes, em Santiago. Wittke (2007, p. 3) relembra o caso: “olharam só o conteúdo documental das fotos e isso as tornava muito explosivas”45. Enquanto isso, uma exibição itinerante com 75 fotografias percorreu por quase dois anos livrarias e pequenas galerias nos Estados Unidos. Esse material também chegou a ser exposto no Fotofest de Houston e na Espanha e França. Figura 15 - Capa de Chile From Within

Fonte: Chile From Within (1990)

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Tradução livre do original “Chile español fue muy aislado, nadie sabia, no había muchas imágenes de Chile en este momento. Entonces, yo queria dar el momento a los chilenos, dar la posibilidad que se fueran más conocidos afuera por sus próprios ojos, por su própria história, me pareció correcto. […] ‘Qué tipo de fotos van a dar al público uma manera de entrar?’ Entonces, fue un proceso entre nosotros de buscar una secuencia de imágenes, una lengua visual, como entra en la puerta y seguir conociendo poco a poco. Y yo nunca pensé que estuviera enseñando algo, yo estuve compartiendo. Y solamente entre ellos se pueden decidir cual era lo más importante, qué tipos de imágenes representaban lo momento.” Tradução livre do original: “Miraron sólo el contenido documental de las fotografías y éste era demasiado caliente.” 45

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50 Em 1996, o grupo tentou novamente mostrar as fotografias em seu próprio

país. Desse vez, o Museu de Arte Contemporânea de Santiago não pode dar continuidade ao projeto por problemas administrativos. Em um colóquio realizado no mesmo ano, as imagens enfim conseguiram ser exibidas, ao menos para o pequeno grupo que participou. E, como lembra Meiselas (2013), algumas remessas dos livros foram enviadas, além dos que viajaram de mão em mão. Em 2001, os fotógrafos finalmente conseguiram exibir o material no MAC, mas não obtiveram sucesso de público. Por razão dos 40 anos do golpe, as fotos e textos foram reeditadas em um e-book bilíngue, pela editora MAPP, em 2013. Foram adicionados vídeos, áudios, entrevistas, folhas de contato e documentos históricos. O livro digital facilitou o acesso ao conteúdo sem um limite de fronteiras, mas também não teve expressividade no Chile. Figura 16 - E-book Chile From Within/Chile Desde Adentro

Fonte: Site da Editora MAPP (2013)

Porém, em 2015, mais de duas décadas após o lançamento da primeira edição em inglês, foram impressos 2 mil exemplares no Chile. Com uma divulgação apropriada, os fotógrafos realizaram charlas com o público, distribuíram 500 livros à escolas e montaram uma exposição das. Wittke (2015) acredita que a obra foi finalmente apreciada. “25 anos depois o livro aparece como algo importante em nível

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fotográfico, não só histórico. Então, já não é uma espécie de documento urgente, é uma obra que ficou por aí dando voltas e que agora se pode apreciar” (WITTKE, VIDEO EXPOSICIÓN…, 2015)46. A versão completamente em espanhol da editora LOM foi financiada com ajuda do Fondart, o Fundo de Cultura do governo, e teve a participação de Jorge Gronemeyer na edição das 156 páginas. O co-editor trabalhou com Sergio Pérez para manter o trabalho original em harmonia com novos conteúdos. “A novidade desse livro é que além dos textos de Ariel Dorfman e Marco Antonio de la Parra, que apareceram na versão de 1990, a reedição inclui uma passagem do historiador chileno Gabriel Salazar intitulada ‘As grandes alamedas da memória’.” (GRONEMEYER, 2015)47. Dessa vez, a exibição feita para o relançamento do livro teve grande participação de público. Videos, livros, revistas e outros objetos foram usados para compor a mostra, como vemos nas imagens abaixo. Na figura 17 vemos a seção ‘Uso político da imagem fotográfica em publicações entre 1973 e 1989’, em que é exposta a revista Cauce e os fotolivros Chile Ayer Hoy e Chile o Muerte. Figura 17 - Detalhe da exposição Chile Desde Adentro

Fonte: Divulgação 48 (2015)

Tradução livre do original: “25 años después el libro aparece también como importante en nivel fotográfico, no solo histórico. Entonces, ya no es una espécie de documento urgente, sino una obra que ahora se puede apreciar.” 46

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Tradução livre do original: “La novedad de este libro es que además de los textos de Ariel Dorfman y de Marco Antonio de la Parra, que aparecen en la versión de 1990, la reedición incluye uno titulado ‘Las grandes alamedas de la memoria’ del historiador chileno, Gabriel Salazar.” 48

Disponível em: < http://chiledesdeadentro.cl/exposicion >. Acesso em: 20/11/2016.

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Figura 18 - Exposição Chile Desde Adentro

Fonte: ATON Chile49 (2015) Figura 19 - Público observa a exposição Chile Desde Adentro

Fonte: ATON Chile50 (2015)

Algumas coincidências históricas cercaram a comemoração de 25 anos do fotolivro. A exposição realizada no GAM, em Santiago, de 21 de julho até 13 de setembro de 2015 ocasionou em ter seu lançamento no mesmo dia que o ‘Caso Queimados’ foi reaberto.

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Disponível em: . Acesso em: 20/11/2016. Disponível em: . Acesso em: 20/11/2016. 50

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53 ‘Queimados’ é como ficou conhecido o lamentável episódio em que militares

atearam fogo na estudante Carmen Gloria Quinta e no fotógrafo Rodrigo Rojas de Negri. Eles participavam de uma manifestação em 2 julho de 1986 quando oficiais deterem a estudante. Rojas, que estava fotografando o evento, tentou ajudar e acabou detido também. Os dois foram queimados e largados numa área rural, o fotógrafo morreu em 6 de julho depois de alguns dias internado no hospital, e Quinta sobreviveu para contar a história. Os oficiais envolvidos passaram 29 anos em um pacto de silêncio dizendo que a versão da estudante era mentira, até o dia 21 de julho de 2015, em que um ex-soldado confirmou o ocorrido. É necessário destacar que a exposição, o fotolivro e todos os outros eventos que envolveram Chile Desde Adentro sempre homenagearam a memória de Rojas e Christian Montecino, outro fotógrafo vítima da ditadura. Figura 20 - Evento pelo fim dos pactos de silêncio

Fonte: Luis Sergio, Revista Atlas51 (2015)

Disponível em: . Acesso em: 20/11/2016. 51

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Figura 21 - Protesto contra os pactos de silêncio

Fonte: ATON Chile52 (2015)

Outra curiosidade histórica é o próprio Centro Cultural Gabriela Mistral, no qual foi exibida a mostra. Durante o período de 1973 a 1981 o lugar foi sede do governo militar e teve seu nome trocado para Edifício Diego Portales. Inclusive, uma das fotografias presentes no livro foi tirada de um discurso de Pinochet no local. Na figura abaixo, vemos essa foto enquanto crianças olham a exposição. Figura 22 - Exposição Chile Desde Adentro no GAM

Fonte: Arturo Ledezma53 (2015) 52

Disponível em: . Acesso em: 20/11/2016. Disponível em: < http://www.elciudadano.cl/2015/11/30/236701/chile-desde-adentro-fotografia-paracamaleones/>. Acesso em: 20/11/2016. 53

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4 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA O método de interpretação conhecido como análise iconológica, ou, análise iconográfica e iconológica, tem o objetivo de inventariar o conteúdo de imagens e, posteriormente, interpretar a mensagem contida nelas. Embora os termos sejam antigos, foram nas décadas de 1920 e 1930 que eles voltaram a ser usados na história da arte. ’Iconologia’ foi usado pela primeira vez em 1593, por Cesare Ripa, em uma espécie de enciclopédia de imagens renascentistas, e ‘iconografia’ remete ao século XIX. Burke (2004) aponta a Escola de Warburg como o grupo mais reconhecido de iconografistas. Os estudiosos mantiveram o Instituto em Hamburgo, Alemanha, até a ascensão de Adolf Hitler ao poder, quando os integrantes tiveram de refugiar-se em diferentes países. Esse foi o caso de Erwin Panofsky, que em 1933 imigrou para os Estados Unidos e tornou-se referência com o artigo Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte da renascença. Unfried (2014) sintetiza que o grupo buscava enfatizar o conteúdo intelectual das imagens, não só sua análise formal. A principal ideia defendida por esses estudiosos é que as obras de arte, mais do que a imagem representada na tela (explícito ou visível - iconografia), pode esconder uma série de mensagens de cunho religioso ou moral por meio de simbolismos disfarçados nas cenas do cotidiano (implícito ou invisível - iconologia). (UNFRIED, 2014, p. 2,3)

Panofsky (1979) distinguiu três níveis de interpretação. O primeiro, a descrição pré-iconográfica, identifica ‘formas puras’, ou seja, pessoas, animais, plantas, prédios, etc. O segundo é a análise iconográfica, o ‘significado convencional’ que implica em não apenas descrever, mas conseguir relacionar a imagem com outros assuntos e conceitos. Por exemplo, conseguir reconhecer uma ceia como a Última Ceia. A iconografia é, portanto, a descrição e classificação das imagens, assim como a etnografia das raças humanas. […] Ao fazer este trabalho, a iconografia é de auxílio incalculável para o estabelecimento de datas, origens e, às vezes, autenticidade; e fornece as bases necessárias para quaisquer interpretações ulteriores. Entretanto, ela não tenta elaborar a interpretação sozinha. (PANOFSKY, 1979, p. 53)

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56 O terceiro nível é a interpretação iconológica, voltada à análise do conteúdo,

em que o pesquisador tem de usar seu conhecimento prévio sobre os códigos culturais que cercam a obra para conseguir perceber as sutilezas retratadas. “Assim, concebo a iconologia como uma iconografia que se torna interpretativa […]” (PANOFSKY, 1979, p. 54). Em relação a outros métodos de estudo sobre imagens, Baeza (2007) faz uma importante colocação ao ressaltar a liberdade que deriva deste sistema. Isso não significa que a iconologia é menos exigente. A iconologia se concebe como um método de interpretação proveniente de uma síntese de valores simbólicos e, como assinala Panofsky, com frequência podem ser ignorados pelo próprio criador e que incluso podem diferir daquilo que ele tentava expressar. (BAEZA, 2007, p. 177)54

Baseado nos conceitos propostos por Panofsky (1979), o pesquisador brasileiro Kossoy (2014) adaptou o método para a análise de fotografias. O autor tem seus estudos direcionados para duas áreas: a história da fotografia e a história através da fotografia. Embora a interdisciplinaridade de ambas deve ser considerada, e no caso do fotolivro Chile Desde Adentro ela é essencial, o foco aqui é no estudo deste objeto e seu papel com a história da fotografia. Em específico, com o cânone dos fotolivros latino-americanos e o fotojornalismo literário. 4.1 MÉTODO ICONOGRÁFICO/ICONOLÓGICO EM FOTOGRAFIAS Kossoy (2014) tem como alicerce as teorias de Panofsky (1979) e de outros pensadores de diversas áreas, como Gisèle Freund, Magritte, Poe, Buñuel, etc. Inclusive, ele reconhece a semiótica de Pierce como provocadora. Essa formação plural é refletida em sua adaptação do método iconográfico/iconológico. Ou seja, as definições que Panofsky (1979) usou para a arte continuam presentes, mas com um adendo de elementos do universo fotográfico. Primeiramente, é necessário entender os elementos que constituem a imagem fotográfica. Como é possível ver na figura a seguir, Kossoy (2009) Tradução livre do original: “La iconología, pues, se concibe como método de interpretación proveniente de una síntesis de los valores simbólicos y que, como señala Panofsky, con frecuencia pueden ser ignorados por el propio creador y que incluso pueden diferir de lo que éste intentaba expresar.” 54

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desmistifica a ideia da fotografia como ‘espelho’ da realidade, e exemplifica o processo de construção da imagem. Figura 23 - O Proceso de Criação do Fotógrafo

Fonte: Kossoy (2009, p. 32)

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58 Para a análise iconográfica, o autor sugere duas linhas de decodificação.

Primeiro, determinar quais elementos constituem a fotografia, como o assunto, o fotógrafo, a tecnologia, o lugar, a época. Em segundo, identificar quais detalhes icônicos fazem parte do conteúdo. A iconografia é, portanto, referente à primeira realidade, a maneira que Kossoy (2009) chama o imutável assunto registrado na foto. O autor também diferencia o uso de fontes primárias e secundárias para a análise de imagens. No caso de Chile Desde Adentro é importante ressaltar que se trata de uma fonte secundária, pois, conforme Kossoy (2009), apenas a fotografia original consta como fonte primária. Já em uma reprodução (que, por definição, pressupõe-se integral), seja ela fotográfica, impressa etc., realizada em períodos posteriores, serão detectadas, obviamente, outras características que diferem, na sua estrutura, do artefato original da época. (KOSSOY, 2009, p. 40)

Logo, alguns dados iconográficos serão observados a partir do objeto fotolivro. Porém, como a história de produção de Chile Desde Adentro é substancial, é justificável o interesse. Em relação à interpretação iconológica, Kossoy (2009) deixa bem claro a ideia de fotografia como uma representação a partir do real, que possui um determinado recorte influenciado pela visão particular fotógrafo. E em quesitos de recepção, também a considera alusiva à segunda realidade. Uma significação, por meio de nossos filtros culturais, que ocorre ao ver as imagens. Nesta altura não podemos mais estabelecer essa ou aquela ‘regra’ interpretativa posto que, embora o documento siga sendo a nossa referência, nos situamos além dele, nos círculos das ideias, na esfera das mentalidades. (KOSSOY, 2009, p. 59)

O autor aposta na ousadia para a interpretação, um olhar e mente atentos ao que está nas entrelinhas. E pede paciência, pois “a comunicação não-verbal ilude e confunde” (KOSSOY, 2009, p. 128). Ele acredita que é necessário observar o conteúdo impalpável que as fotografias proporcionam. “O significado mais profundo da vida não é o de ordem material. O significado mais profundo da imagem não se encontra necessariamente explícito” (KOSSOY, 2009, p. 130).

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4.2 ANÁLISE DE CHILE DESDE ADENTRO Chile Desde Adentro é construído através de fotos e textos em suas 156 páginas. Como explicado no terceiro capítulo, há um contexto histórico, social e político que está inserida a produção do fotolivro. Assim, esses fatores serão considerados parte da primeira linha de decodificação da análise iconográfica. As 68 fotografias, que abrangem o período de 1973 a 1988, possuem as mesmas dimensões, cada uma ocupa o espaço de uma página e possui uma legenda com ano, autor e uma breve descrição. Não há uma organização precisamente cronológica, as fotos não estão dispostas de acordo com o ano em que foram feitas. Mas, é possível observar conjuntos que funcionam como capítulos e estão separados por uma folha branca. Portanto, serão analisadas fotos que representem esses conjuntos de acordo com o critério da autora deste trabalho de conclusão. Além disso, a capa e uma fotografia posicionada antes do índice serão observadas. 4.2.1 Capa Figura 24 - Capa Chile Desde Adentro

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

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60 Vemos na capa do livro uma foto de Hoppe (1987) envolta em um fundo

negro. Em letras brancas aparece o título, com um destaque itálico para as palavras ‘desde adentro’. Sabe-se através dos relatos dos fotógrafos que um dos ideais do projeto é valorizar a história sendo contada por aqueles que a viveram, e isso é visível nessa decisão editorial. Logo abaixo, há uma menção aos 15 fotógrafos chilenos responsáveis pelas imagens. Embora esteja em um tamanho de fonte menor que o título, essa informação recebe mais destaque que o nome dos outros colaboradores, o que reforça o conceito de ‘dentro pra fora’. Por fim, aparecem os nomes dos editores e dos autores dos textos. A predominância do preto na capa, com apenas o texto em cor branca sinaliza o próprio conteúdo das fotos. Além do fato das imagens terem sido feitas em câmeras analógicas, podemos afirmar que a ausência de cores é uma escolha consciente. Um trecho da introdução de Marco Antonio de la Parra (2015, p. 14) diz: “por 15 anos o governo insistiu que o país estava a plenas cores. Como podemos ver nessas fotos, estávamos sonhando em cinza, a cor da pólvora”55. Na foto de capa, feita por Hoppe (1987), entendemos na prática essa citação. São quatro homens trajados com uniforme militar, coturnos brilhantes e calças com a estampa camuflada, mas não vemos seus rostos. A camuflagem tem o efeito contrário no meio urbano e se destaca entre o piso, de um material que parece concreto, e o portão. Essa mesma foto está na página 89, quase ao final do livro, com uma legenda informando que aquilo é um tribunal militar no centro de Santiago. A dualidade de início e fim não está só na escolha da foto para capa e, depois, como penúltima imagem. Não é possível decidir se esse militares estão abrindo ou fechando o portão. Igualmente, não se podia saber na época se o plebiscito iria acontecer, se a democracia um dia voltaria, se a ditadura estava se fortalecendo (fechando o portão), ou prestes a acabar (abrindo o portão). Por trás desses homens uniformizados e sem rosto vemos a sombra de um quinto personagem. É um retrato perfeito da hierarquia militar imposta no Chile, os soldados ocupam as ruas e o general que toma as decisões está atrás.

Tradução livre do original: “Por quince años el gobierno insistió en que el país vivía a todo color. Como podemos ver en estas fotos, estábamos soñando en gris, el color de la pólvora.” 55

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4.2.2 Moneda aberta ao público Antes mesmo do índice do livro, ou do nome de cada um dos fotógrafos, há a foto de Montecino (1973) ao lado da proclamação nº7, realizada no 11 de setembro de 1973. Figura 25 - Marcelo Montecino (1973)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

Em primeiro plano temos um casal abraçado, a jovem segura um jornal em suas mãos e olha para a lente, como quem se recusa a aceitar o que está à sua frente. O jovem parece consolá-la. Atrás deles, uma multidão. Alguns caminham, outros estão parados, alguns andam com jornais em mãos, outros conversam. Há um homem ao canto direito que segura as mãos atrás do corpo, em uma pose que remete à alguém que está observando há um tempo considerável. E ao fundo, ocupando metade desse cenário, está o Palácio da Moneda com as vigas expostas. Se vêem marcas de tiros nas paredes e enormes buracos, provavelmente resultado do bombardeio aéreo. É possível identificar pelos capacetes alguns soldados às sombras do palácio.

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62 A linguagem corporal e o olhar da jovem mostram a incredulidade de que

essa é a nova realidade do país. O grande número de pessoas rodeando os escombros da Moneda mostra que ela não estava sozinha. Aquele era um símbolo de rompimento com a democracia, gigante em suas proporções físicas e históricas. Porém, o que torna a fotografia potente não é a construção destruída, mas como as pessoas reagem com ela. É a escolha de mostrar o ambiente alguns dias depois após o ataque, como a comunidade foi atingida e reage perante o ‘mártir de pedra’. Figura 26 - Páginas 4 e 5 de Chile Desde Adentro Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 4 e 5)

À direita da fotografia, na outra página, está transcrita a proclamação nº7 e suas três advertências. O recado é direto, se houver resistência às ordens da Junta Militar se atuará com a mesma energia e ‘decisão’ com que se atacou a Moneda. Após essas páginas, temos as informações pré-textuais: uma mensagem em memória de Christian Montecino (1946-1973) e Rodrigo Rojas (1967-1986), o texto de Parra (2015) e, por fim, as fotografias. Começaremos então a análise do primeiro conjunto: o toque de recolher, o costume imposto aos chilenos de renunciar o local público. 4.2.3 Toque de recolher As fotos desse primeiro agrupamento mostram ambientes internos e externos, o segundo mais vazio do que o primeiro. Uma sala com uma TV que sintoniza o general; um bar com um casal que dança abraçado; uma rua quase deserta à noite, com as luzes acessas dentro de uma das casas, mostrando a presença de um homem.

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Figura 27 - Pinochet por Héctor López (1986)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

Dentro da casa simples, rachaduras nas paredes e um quadro torto com a foto de uma criança que, provavelmente, é familiar daquele que habita o lugar. A televisão está ligada e como parte da programação, Pinochet. Ao lado, a estátua de um santo e pequenos objetos de decoração. É interessante destacar que, com exceção de outra fotografia em que o ditador aparece de costas, essa é a única foto em que ele aparece no livro. Se pensarmos nas representações de generais e governantes feitas ao longos dos séculos, como fala Burke (2004), as imagens tradicionais são de planos que enaltecem a figura da autoridade. Aqui, Pinochet foi subvertido a ficar do tamanho de um objeto inanimado e o vemos na imagem da televisão. Curiosamente, a maioria dos chilenos só foi apresentada a ele assim, através da tv. E quando se vê o externo, ou a rua está vazia, como na foto de Hughes (1981), ou só vemos vultos, como na de Wittke (1982). Na figura 28, a imagem é dominada pela sombra das cadeiras e objetos de um engraxate. Embora seja possível perceber que duas pessoas caminham pela rua, é um mundo de fantasmas.

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Figura 28 - Óscar Wittke (1982)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015) Figura 29 - Toque de recolher por Helen Hughes (1981)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

Na imagem acima, a bruma tem a mesma função fantasmagórica que a sombra teve para figura 28. Hughes (2015, p. 125), escreveu a seguinte nota sobre essa foto:

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65 O toque de recolher se converteu em uma parte da vida chilena, sendo extendido por um largo tempo e variando de dia da semana a fim de semana, de estação em estação, tanto que ninguém parece lembrar exatamente quando foram outorgados de novo os direitos a transitar livremente pelas ruas a qualquer hora do dia e da noite.56

As consequências para aqueles que desobedecem, como anunciava a proclamação da Junta, são severas. Vemos o desespero de um homem sendo preso no 1º de maio, na imagem de Hughes (1979). A noite encoberta o rosto dos policiais e só é possível observar a feição assustada por causa da luz do camburão, no qual ele está sendo empurrado. “Esse 1º de maio terminou com 365 detidos. Deles, 280 foram acusados pelo ministro do interior, sob a Lei de Segurança do Estado e outros 18 foram levados perante os tribunais militares. O homem dessa foto foi um deles” (HUGHES, 2013, p. 109)57, comenta a fotógrafa. Figura 30 - Helen Hughes (1979)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

A fotografia de López (1986) explicita a violência de uma outra maneira. Através de uma longa exposição, vemos a periferia de Santiago como se fosse

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Tradução livre do original: “El toque de queda se convirtió en una parte de la vida chilena, siendo extendido por un largo tiempo y variando de día de semana a fin de semana, de estación en estación, tanto que nadie parece recordar exactamente cuándo fueron otorgados de nuevo Tradução livre do original: “Ese Primero de Mayo terminó con 365 detenidos. De ellos, 280 fueron acusados por el ministro de interior bajo la Ley de Seguridad del Estado y otros 18 fueron llevados ante los tribunales militares.” 57

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habitada por seres invisíveis. É possível identificar a comunidade por seus postes e aparente fiação elétrica, o chão batido e as casas simples. O fotógrafo revela que tinha uma obsessão por retratar uma noite de protestos em uma población58: “[…] os enfrentamentos não duravam horas, só alguns minutos e o resto era a tensa espera desse momento.” (LÓPEZ, 2013, p. 110)59. Figura 31 - Héctor López (1986)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

4.2.4 Vida e morte O segundo conjunto de fotografias apresenta contrastes: vida e morte, a vida que segue após o golpe e a morte que espreita. Observamos nas fotos de Wittke (1983) e Errázuriz (1981) os vivos interagindo, através do enquadramento, com os mortos.

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Como são chamadas as favelas no Chile.

Tradução livre do original: “[…] los enfrentamientos no duraban horas sino solo minutos y el resto era la tensa espera de ese momento.” 59

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Figura 32 - Óscar Wittke (1983)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

Na figura 32, vemos um jovem correndo ao lado de um cemitério, possível de identificar pelas lápides com as figuras de santos e anjos, e um cachorro indo atrás. “Eu tirei diversas fotos até sentir que o cemitério e a possibilidade da morte estava latente.” (WITTKE, 2013, p. 16)60. Na figura seguinte, dois senhores conversam em cima de um jazigo, enquanto um deles equilibra o pé em uma cruz que demarca outra tumba. Há um contexto histórico que provavelmente justifica a peculiar ação. Conforme a legenda, aquela foi uma das romarias à tumba da Pablo Neruda e os senhores, provavelmente, buscavam uma vista melhor do local. De qualquer modo, como explicado antes, a seleção desta foto nessa parte em particular do livro tem um discurso aparte do histórico cronológico.

Tradução livre do original: “I took various photos until I felt that the cemetery and the possibility of death was latent.” 60

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Figura 33 - Paz Errázuriz (1981)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

Mas, se a morte é o destino certo, a vida tem de seguir, mesmo em tempos de ditadura. A juventude e a velhice são colocadas lado a lado nas imagens de um clube da terceira idade com suas 12 rainhas e rei, e um casal de recém-casados. Figura 34 - Páginas 28 e 29 com fotos de Paz Errázuriz (1988) e Luis Weinstein (1984)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 28 e 29)

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Figura 35 - Luis Weinstein (1984)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

É curioso reparar que as coroas e os vestidos das senhoras são mais suntuosos do que da própria noiva. “Esse é o casamento de uns amigos em Pirque, eu ia dar de presente pra eles o álbum” (WEINSTEIN, 2013, p. 115)61. Figura 36 - Paz Errázuriz (1988)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

As últimas três fotos desse conjunto parecem completar o ciclo: a luta pelo direito de viver, de comer, de ter onde morar. O protagonismo é da luta daqueles que sofrem as dificuldades, o elo é formado na comunidade. Na figura 37 vemos duas pessoas segurando quatro vasilhames enquanto uma terceira distribui a comida. O chão batido, característico da periferia, revela a sujeira do local. Há uma grande Tradução livre do original: “Ese es el matrimonio de unos amigos, en Pirque. Yo les iba a regalar el álbum.” 61

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panela cozinhando ingredientes que parecem incrementar uma sopa. Essas mãos que multiplicam para ajudar são das próprias mulheres da comunidade, segundo Hughes (1977). Em meio aos anos 70, as mães que não podiam pagar o alimento para seus filhos em casa organizaram coletivamente programas de almoços entre os vizinhos, conhecido como refeitórios infantis. […] Essas organizações de autoajuda se formaram para combater a fome, o problema mais urgente dos pobres, e apoiaram o crescimento de vários grupos no interior destas comunidades. (HUGHES, 1977, p. 126) 62 Figura 37 - Helen Hughes (1977)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

A ocupação de terreno, com suas pequenas, porém muitas barracas, está à frente de duas pessoas sentadas em pedras. E no canto direito, a peculiar sombra da fotógrafa. O tempo nublado, com vento, destaca um elemento quase surrealista em meio ao acampamento, a bandeira chilena. Não uma, mas várias ao topo de quase todas as barracas, como se falasse ‘isso também é Chile’. Um singelo protesto, já que nessa época era proibido usar a bandeira sem autorização.

Tradução livre do original: “A mediados de los años setenta, las madres que no podían costear el alimento para sus hijos en casa organizaron colectivamente programas de almuerzos en el vecindario, conocidos como comedores infantiles. […] Estas organizaciones de autoayuda se formaron para combatir el hambre, el problema más urgente de los pobres, y apoyaron el crecimiento de varios grupos al interior de estas comunidades.” 62

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Figura 38 - Helen Hughes (1983)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

Na foto abaixo, vemos um grupo no entorno de um orador. Mas não é qualquer grupo, são mapuches, indígenas da região da Araucania, um povo historicamente desprezado pelos governos chilenos desde a época em que os espanhóis chegaram. Nessa fotografia de Hughes (1979) eles aparecem compenetrados em discutir ideias, diferente das diversas imagens que a ditadura divulgava do grupo apenas durante confrontos com os latifundiários e a polícia. O espetacular dessa foto é o retrato de indígenas sem a indiferença do olhar, como já discutido na página 17 desta monografia. Em relação ao evento histórico mostrado, sabe-se que essa reunião entre líderes de diferentes reservas é decorrente de uma lei decretada por Pinochet em 22 de março de 1979. Essa decisão facilitava a tomada de terras por huincas63.

Huinca é uma palava do idioma Mapudungun, a língua dos mapuches. Significa estrangeiro, não pertencente à região, e é uma maneira de designar o homem branco. Informação do site , acessado em 18 de novembro de 2016. 63

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Figura 39 - Ocupação de terreno e reunião Mapuche

Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 34 e 35) Figura 40 - Mapuches por Helen Hughes (1979)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

4.2.5 O pêndulo O terceiro conjunto apresenta algumas tramas e seus desfechos. E nesses desenlaces, um tema comum aos apoiadores e opositores da ditadura: o refúgio, o consolo, aqueles que buscam e onde encontram, e se é que encontram. E ao meio disso, como um pêndulo, a Igreja. A fé, um purgatório em que todos vão em busca de consolo. Na figura 41 vemos um grupo de homens em frente à uma igreja

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fechada para reformas. Uma imagem extremamente representativa das dúbias decisões feitas pela instituição. Figura 41 - A Igreja por Óscar Wittke (1986)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

Nesse conjunto, as páginas se complementam como se uma fotografia fizesse parte do recorte da outra imagem. Na figura 42 os guardas parecem observar o senhor que carrega um botijão de gás no meio da rua. Enquanto isso, uma senhora atrás deles espia a cena protegida por uma cabine. Figura 42 - Juan Domingo Marinello (1973)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 38 e 39)

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74 Na figura 43 vemos as contradições da Igreja Católica Apostólica Romana

com a ditadura. Como se uma foto recusasse admitir a outra, de um lado vemos um dos generais mais sanguinários desviando o olhar e, do outro, uma vítima de tortura mostrando suas feridas. Figura 43 - O general e o torturado, por Marcelo Montecino

Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 40 e 41)

Na primeira página, temos o retrato do General Sinclair durante a missa com uma expressão cabisbaixa. Pode-se deduzir que o evento era de grande importância por sua farda mostrar todos os adornos e prêmios. Sua figura é enquadrada por outras pessoas, mas apenas ele olha para o chão. Na outra foto, um homem mostra marcas de violência em suas costas. À sua esquerda, na parede, está o retrato do cardeal Raúl Silva Henríquez. O local é a Vicaría de la Solidariedad, que prestava assistência à dissidentes do regime e demais perseguidos. Essa casa paroquial foi justamente fundada pelo cardeal, um notório defensor dos direitos humanos. Porém, na figura 44 o argumento é outro. De um lado, um padre da ordem castrense conspira com Hugo Rosende, então Ministro da Justiça. Essa congregação da igreja católica apoiou o regime militar em sua totalidade. Na foto de Montecino (1988) vemos o pároco, de branco, conversando com o ministro, de preto. Pela expressão facial dos dois é possível perceber que falam em tom baixo, talvez um cochicho. A linguagem corporal do ministro, com as costas curvadas e vestindo

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um traje todo preto, também poderia remeter à personagens clássicos do terror, como o Nosferatu do filme de Eine Symphonie des Grauens (1922). Figura 44 - Marcelo Montecino (1988) e Jorge Ianiszewski (1985)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 42 e 43)

Todavia, a foto de Ianiszewski (1985) canta a plenos pulmões. É visto um grupo de braços dados, com a expressão de tristeza enquanto parece entoar algum tipo de canção. A cena, como a legenda explica, é o enterro de José Manuel Parada. Ele era chefe da Vicaría de la Solidariedad e foi sequestrado em março 1985 enquanto deixava seu filho na escola. Também foi levado Manuel Guerrero, um professor do colégio que estava conversando com Parada no momento. Dias depois seus corpos e de Santiago Nattino Allende foram encontrados. O ‘Caso Degolados’, como ficou conhecido, gerou revolta nacional e transformou o funeral em um protesto contra o regime. 4.2.6 Protestos e repressão Os dois seguintes conjuntos apresentam a resposta da população ao cerceamento de direitos: o protesto. Às vezes esse ato é realizado através de manifestações, de confrontos com os militares, com tomas de terrenos… mas, há também o singelo protesto do olhar. Se no início do livro o silêncio do toque de recolher predominava, agora as imagens são interligadas pelos gestos que desafiam as autoridades. Há uma narrativa de enfrentamento e resistência nos olhares e

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linguagem corporal dos retratados, como vemos nas figura 45 e 46. Na primeira, a legenda informa que o registro é de uma ocupação de terreno, na segunda, uma vigília dos familiares de vítimas. Figura 45 - Claudio Pérez (1984)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015) Figura 46 - Óscar Navarro (1987)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

Na figura 45 vemos um grupo em primeiro plano, provavelmente de pessoas que realizaram a ocupação, e atrás fumaça. Porém, o destaque são os dois jovens que encaram a câmera, um com desconfiança e outro com firmeza. Na figura 46 é o

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grupo de mulheres carregando fotos e flores em suas mãos, e olhando fixamente os guardas que passam por elas, que dominam a cena. As sobrancelhas arqueadas e o fato que uma segura o braço da outra, como em uma corrente, complementam a força desses gestos. Também vemos a repressão militar que tenta suprimir qualquer tipo de aglomeração contrária ao regime. Nas figuras abaixo observamos um grupo de manifestantes recebendo jatos de água dos carabineros, um homem tentando se defender de um policial e o funeral de Rodrigo Rojas de Negri interrompido pela polícia. Figura 47 - Alejandro Hoppe (1988)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015) Figura 48 - Fotos de Claudio Pérez (1984) e Alejandro Hoppe (1986)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 56 e 57)

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78 Em específico, na figura 48 vemos homens tentando sinalizar aos carabineros

que parem e mostrando as mãos vazias. Enquanto isso, os policiais empunham o porrete como se nem questionassem se o uso da violência era necessário ou não. É instigante notar o jogo de perspectivas que a edição proporciona. A figura 49 é um bom exemplo disso, as duas fotos mostram o confronto da polícia com moradores da comunidade La Victoria. Porém, além das fotografias serem de autores diferentes, elas também são de anos distintos. Ainda assim, a leitura que se pode fazer é que estamos vendo o mesmo evento. Em uma imagem, a visão da polícia e, da outra, a dos moradores. Essa sagacidade também é vista na figura 50. Da mesma forma, as imagens são de anos e fotógrafos diferentes, mas atingem um novo patamar quando vistas lado a lado. O senhor que grita em meio a uma nuvem de gás parece quebrar o vidro que enquadra um guarda. Figura 49 - Alejandro Hoppe (1985) e Héctor López (1986)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 64 e 65) Figura 50 - Álvaro Hoppe (1983) e Claudio Pérez (1986)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 68 e 69)

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4.2.7 Chile la alegría ya viene O penúltimo capítulo apresenta a atmosfera do plebiscito de 1988, mais do que fotos da campanha pela volta à democracia, estas imagens mostram um país dividido, um ditador decadente e, por fim, a vitória do ‘NO’. De uma certa maneira, elas aludem aos jingles da campanha televisiva que ajudou a derrubar Pinochet. Na foto de Lorenzini (1983), já citada nas páginas 53 e 62 desta monografia, vemos um Pinochet de costas para a câmera. O ângulo escolhido para retratar-lo mostra as tendências ideológicas da fotógrafa, e poderia ser descrito com a canção de Isabel Parra (1988): Me hace mal verlo todos los días. Me molesta su sonrisa fría. Me incomoda su literatura. Me deprime su mini cultura. No prospera su teje y maneje. No convence su cara de jefe. No produce versos emotivos. No provoca tenaces gemidos. No me gusta no. No lo quiero no, no. 64 Figura 51 - Kena Lorenzini (1983)

Fonte: Chile Desde Adentro

Os trechos dos jingles usados nesta divisão de sub-capítulo não estão traduzidos porque perderiam a rima e o significado que possuem no idioma espanhol. 64

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80 A divergência de opiniões sobre as campanhas do ‘SÍ’ e do ‘NO’, que

aparecem nas figuras 52 e 53, apontam a desigualdade entre classes sociais. O livro não se limita a mostrar apenas o ‘NO’, mas sutilmente faz uma crítica a essa diferença social ao comparar-los. Figura 52 - Plebiscito de 1988 por Héctor López e Alejandro Hoppe

Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 80 e 81)

Acima, vemos um jovem dentro de um carro fazendo o sinal de positivo com a mão e uma bandeira do ‘SÍ’. Na foto ao lado, um grupo de jovens marcha com as letras do ‘NO’, enquanto um deles mostra o dedo do meio, que é considerado um sinal obsceno. Figura 53 - Álvaro Hoppe (1987) e Óscar Wittke (1982)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015, p. 76 e 77)

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81 Na imagem 53, a disparidade é vista através de crianças. À esquerda, vemos

uma menina loira assistindo o concurso de Miss Chile no Teatro Municipal de Santiago. Além das informações que constam na legenda informando o local, sabese que as cadeiras ‘baixas’ do Teatro são as mais caras, e também por a garota ter trejeitos físicos europeus. No Chile, a classe média alta é em sua maioria de descendentes do velho continente65. Ainda na figura 43, a outra foto retrata alguns meninos brincando com um pião. Pelos detalhes das portas atrás deles e do chão batido podemos concluir que se trata da periferia. Figura 54 - Grafite por Óscar Wittke (1988)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

A fotografia acima remete a uma interessante peculiaridade dos fotolivros latino-americanos. Como exposto na página 26 deste trabalho, a cultura literária do continente também faz parte das fotografias através do interesse em retratar grafites. Aqui, há a presença de uma senhora sentada em uma escadaria, mas o ponto de destaque é, sem dúvidas, a palavra ‘NO’. A comemoração da vitória encerra o capítulo, como se observa na figura 55. Uma multidão de jovens corre pela ruas com os braço abertos em direção a outras pessoas, as que se encontram ao meio disso já se abraçam, mostrando o que provavelmente aconteceu na sequência da cena. Uma foto que capta o momento de O seguinte estudo aponta as etnias que constituem majoritariamente as classes altas e baixas no Chile: , acessado em 20 de novembro de 2016. 65

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euforia da divulgação de que 56% dos chilenos optaram pelo ‘NO’. A música ‘Chile la alegría ya viene’ ajuda a sintetizar a análise dessa imagem. Chile la alegría ya viene. Chile la alegría ya viene. Chile la alegría ya viene. Porque diga lo que diga, yo soy libre de pensar. Porque siento que es la hora de ganar la libertad. Hasta cuando ya de abusos, es el tiempo de cambiar. Porque basta de miseria, voy a decir que NO. Porque nace el arco iris después de la tempestad. Porque quiero que florezcan mis maneras de pensar. Porque sin la dictadura la alegría va a llegar. Porque pienso en el futuro, voy a decir que NO. (BRAVO e AGUIRRE, 1988) Figura 55 - Vitória do ‘NO’ por Claudio Pérez (1988)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015)

4.2.8 Incertezas As três últimas fotos não são tão otimistas em relação ao futuro do país. Uma dessas imagens serve como capa do livro, e foi a primeira a ser analisada neste capítulo. A dúvida de se os portões realmente estão se abrindo persiste nas seguintes fotografias. Embora a figura 56 tenha um tom de celebração, com um descamisado correndo com a bandeira chilena em frente ao já restaurado Palácio da Moneda, ela representa o êxtase que precede a pergunta que a figura 57 faz. Algo como: ‘Ganhamos! E agora, o que fazemos?’.

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83 A retomada da democracia, aqui representada na bandeira empunhada frente

ao grupo de ‘sombras’, gera novas inquietações. A comemoração da ‘Demogracias’66 cede espaço para uma geração que olha em frente, mas não sabe o que realmente vai acontecer. Hoje, podemos dizer que o clima de desconfiança da imagem era extremamente realista, pois os 15 anos de ditadura ainda deixa resquícios na sociedade chilena. Figura 56 - Claudio Pérez (1988)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015) Figura 57 - Héctor López (1985)

Fonte: Chile Desde Adentro (2015) 66

Trocadilho em espanhol que mescla a palavra democracia com ‘damos graças’.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em relação ao que se entende por fotografia humanista/fotojornalismo literário, e se o fotolivro analisado pode ser identificado como tal, consideramos as sete principais características que a pesquisa bibliográfica delimitou: assunto, cobertura de variadas perspectivas, aprofundamento na história, difusão com meios que não sejam a imprensa tradicional, entendimento da fotografia como função social, edição consciente e uso da linguagem fotográfica para a construção narrativa. A partir disso, identificamos esses aspectos através da análise iconográficaiconológica e concluímos que o fotolivro Chile Desde Adentro pode ser interpretado como fotojornalismo literário. Primeiro, porque entre tantas fotos tiradas durante os anos do Condor, Chile Desde Adentro permanece relevante pois aborda problemas humanos atemporais. Este livro possui uma voz autoral ímpar na maneira como aborda um período histórico recente que ainda influencia as relações de poder na América Latina. Chile Desde Adentro tem como temática os anos do regime militar de Augusto Pinochet pela perspectiva da sociedade chilena. Através de uma abordagem que provoca uma reação solidária no público por meio de imagens francas e intimistas vemos uma comunidade compartilhando comida entre seus moradores, por exemplo. Há o registro de momentos históricos, como a celebração do fim do regime militar, mas estes também são vistos por uma visão ‘de dentro para fora’, como o título do livro insinua. O fato dos fotógrafos serem nativos do Chile proporciona uma imersão rica em sutilezas, já que retratam sua própria realidade. O fotolivro percorre casamentos, embates com a polícia, encontros da terceira idade, marcas de tiros, funerais, entre outras situações. Acontecimentos que provavelmente não seriam notados por um fotógrafo estrangeiro como parte das mazelas causadas pelo regime militar. Além de serem fotos feitas por chilenos, outra explicação para o aprofundamento na história é a desvinculação com a grande mídia, na qual essas fotografias provavelmente não seriam exibidas. Por exemplo: a imagem de jovens de classe alta assistindo o Miss Chile no Teatro Municipal vinculada com a de crianças brincando na periferia. Portanto, essa característica é identificada em razão do meio

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de difusão ser o fotolivro. Esse formato permite que os critérios de edição sejam mais livres, algo que um jornal diário jamais poderia oferecer. É notável o posicionamento ideológico dos autores, ainda assim o livro é democrático em dar o mesmo espaço físico para todas as fotos. Diferente dos fotolivros de propaganda governamental como os citados na monografia, Chile Desde Adentro contrapõem imagens de diferentes realidades. Definitivamente há uma preocupação social em apresentar as disparidades de classe que se agravaram durante a ditadura. A edição consciente, que enfatiza a organização das imagens como uma forma de interpretação, é o que explica a longevidade deste trabalho. Sabe-se através dos relatos de envolvidos no projeto que essa foi uma inquietação presente desde as primeiras reuniões do projeto. Existe uma escolha de criar algo além do caráter documental nato dessas fotografias. Se não fosse o caso, a ordem cronológica seria mantida e fotos que aparentemente não chocam seriam excluídas. Além disso, essa edição ajudou no uso da linguagem fotográfica para uma construção narrativa. O próprio formato de fotolivro, e não de uma simples compilação de fotos, ajudou a criar essa narrativa fotográfica comparável ao que um escritor faria. Há uma independência estética na escolha do preto e branco como condutor em todas as imagens. E, além dos ângulos de cada foto, existe a criação de uma composição com a escolha da ordem das fotografias nas páginas. Um interessante exemplo, que foi observado na página 77 deste trabalho, é a cena em que um homem aparece gritando em meio da fumaça ao lado de uma janela quebrada por um tiro, e que mostra um policial através do buraco da bala. São duas fotografias distintas, porém podem ser vistas como complementares por causa da edição. Dessa maneira, é confirmada a hipótese inicial de que as características humanistas do conteúdo analisado são potencializadas por estarem num fotolivro. Chile Desde Adentro é um excelente fotolivro porque funciona como ‘um mundo próprio’. Embora tenham sido realizadas exposições e um e-book com as mesmas fotografias, ele funciona como algo autônomo. Em razão do profundo envolvimento dos fotógrafos, editores e do diagramador, o projeto tornou-se uma referência por conseguir reunir em imagens o que os autores pensavam da época. E talvez por isso ele continue relevante, mesmo 30 anos entre o início da captação das

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imagens até seu lançamento no Chile. Portanto, consideramos Chile Desde Adentro parte do cânone dos fotolivros latino-americanos. Em relação ao que se entende por cânone dos fotolivros latino-americanos levamos em consideração a compilação de temas comuns que Horácio Fernández (2011) realizou. Embora não tenha sido um um objetivo específico deste trabalho, podemos entender que ele confirma a interpretação de identidade latino-americana, especificamente em fotolivros, com base em assuntos constantemente abordados no continente. O que reforça a ideia de que a identidade latino-americana não é baseada em gêneros fotográficos. Assim, por Chile Desde Adentro relatar em imagens a história do povo chileno durante uma das mais sangrentas ditaduras, podemos classificá-lo como um fotolivro de memória. Por esses motivos, FOTOGRAFIA HUMANISTA EM TEMPOS DE DITADURA: ANÁLISE ICONOLÓGICA DO FOTOLIVRO CHILE DESDE ADENTRO é relevante para discutir o ofício fotográfico e seu papel como agente social. Este trabalho de conclusão também serve para instigar futuras pesquisas sobre como os diferentes meios de difusão afetam a narrativa do conteúdo e discussões sobre a identidade fotográfica latino-americana.

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