Fotografia_Paisagem in Transversalidades 2013 – Fotografia sem Fronteiras, CEI, Guarda, pp.27-31.

May 28, 2017 | Autor: Jorge Gaspar | Categoria: Fotografía, Paisagem Cultural
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FOTOGRAFIA E PAISAGEM É em nós que as paisagens têm paisagem BS/FP: Livro do Desassossego

Fotografia e paisagem são dois termos que aparecem frequentemente associados. Num artigo de 2001 em que defendíamos a ideia de que o interesse da Geografia pela paisagem se tinha renovado, escrevíamos: ” Mas o regresso à paisagem não é só apanágio da Geografia, manifesta-se em vários outros domínios onde é necessário apreender a luz, as formas, os ambientes, para compreender os lugares e o sentido do espaço e do tempo; daí as novas paisagens da pintura, da literatura, da arquitetura e a continuidade renovada da fotografia.”. Assim se tem verificado. A fotografia de certo modo veio “democratizar” a arte e ao mesmo tempo dar outra amplitude àquele que era um dos grandes desideratos das artes visuais – o permitir a objetivação/concretização/materialização da memória. Se a pintura, a escultura, a tapeçaria tinham permitido sobrelevar determinados factos e personagens memoráveis, a fotografia permitiu o o crescente alargamento dessa memória material para as pessoas, as coisas, as experiências, as vivências, os acontecimentos banais. Assim, com a fotografia, também a imagem da paisagem se banalizou e, sobretudo, deixou de ser necessária ao que continua a ser um domínio maior da fotografia: o retrato – do retrato de pose, intencionalmente encenado, ao retrato de identificação pretensamente objetivo: dos arquivos (civis, militares, judiciais, prisionais), ao passaporte, bilhete de identidade, entre outros.

É interessante que tendo a paisagem sido inventada pela pintura, mormente o retrato, conferindo-lhe um enquadramento, ou servindo como pretexto, foi o retrato fotográfico que desvinculou a paisagem dessa função, autonomizando o tema central.

Desde a Primeira Exposição Universal no Crystal Palace, onde o fotógrafo americano Mathew Brady apresentou, entre outros trabalhos, daguerreótipos

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de paisagens, que a fotografia de paisagem não deixou de se banalizar e em certo sentido, passaram a ser uma das fontes de construção da “paisagem”. Primeiro através da difusão dos álbuns de fotografias e a partir de finais do século, através do postal ilustrado, sem dúvida o principal agente de construção e divulgação de paisagens. É famoso o primeiro postal ilustrado, mostrando a paisagem alpina de Davos, enviado da estação de correios local, em 30 de Dezembro de 1890.

A fotografia é desde cedo associada ao caminho-de-ferro, contribuindo para fomentar o interesse pela viagem e pelas paisagens. As estações dos caminhos-de-ferro, e também as carruagens, vão ser dos mais conspícuos apresentadores de fotografias, sobremaneira as dedicadas a paisagens. É o nascimento do turismo moderno. Por todo o Mundo, as gares mostravam, em fotografia, revelavam através da reprodução de imagens fotográficas, panoramas, paisagens, hotéis e monumentos, lojas e restaurantes, onde se podia chegar no conforto do comboio.

Poucos anos depois, sobretudo após a 1ªGrande Guerra, o automóvel irá, a um tempo, competir e complementar o caminho-de-ferro. O automóvel vai permitir o alargamento de horizontes e aprofundamento da sua pesquisa. Disso nos deu nota Miguel Unamuno, já em 1907, nas suas notas finais sobre as viagens Por Tierras de Portugal y de España: «Outra de las cosas que contribuyen hoy aqui a desarrollar la afición al campo y al goce de las bellezas de la Naturaleza es el automóvil. El deporte automovilista ha llebado a muchos a comocer campiãs y rincones que antes ignoraban, ha hecho que muchos empiecen a descubrir España.» (Unamuno, 1907; 1960, pp. 187-188).

A popularização do automóvel que entretanto se verificou a níveis nunca imaginados, não só banalizou o passeio, como a viagem, permitindo multiplicar ao infinito as visões de paisagens, que variam segundo o observador, mas também, e de que forma, segundo a velocidade. Até que o TGV veio trazer novas imagens, como nos apresentou Yoshio Nakamura «Le TGV est un aspirateur du paysage» a-t-on dit quelque part en

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une bien intéressante métaphore. En effet, le paysage, disséminé en corps poudreux comme de la poussière, est aspiré vers l’arrière, comme dans un aspirateur. A la pointe de la civilisation contemporaine, cette métaphore célèbre annonce la mort du paysage traditionel» e mais adiante «L’aspirateur du paysage fait pressentir que le train à grande vitesse est un outre un média générateur d’images.» (Nakamura, Frieling e Hunt, 1993, pp.16-17).

A fotografia permite nos nossos dias múltiplas interações com a paisagem: registo, arquivo e instrumento de planeamento (guia para a intervenção), ela prolonga

ou

recupera

a

contemplação,

permitindo

ou

facilitando

imaginar/construir futuros. A fotografia, ao representar a paisagem enquanto modelo, constitui um campo aberto não só à leitura e interpretação, como à intervenção, à imaginação, à manipulação, à (re)criação…

Se o objetivo da Geografia é contribuir para o conhecimento do Planeta, não nos pode surpreender que o aparecimento da fotografia no século XIX tenha contribuído para novas perspetivas do trabalho dos geógrafos. Assim, ao mesmo tempo que as técnicas fotográficas progrediram e se consolidaram, a Geografia progrediu e afirmou-se como domínio científico. Não admira pois que os primeiros laboratórios de Geografia do início do século XX tenham atribuído um lugar central à fotografia, tanto nos seus equipamentos como nas coleções, a par com mapas e atlas, com os quais aliás a imagem fotográfica foi construindo relações e associações originais e fecundas. Correlativamente, os livros e os artigos das revistas de Geografia passaram a apresentar regularmente ilustrações fotográficas, ao mesmo tempo que a fotografia contribuía para o reforço do paradigma paisagístico da Geografia. A fotografia estava tão fortemente associada ao progresso científico da Geografia que o congresso da UGI que teve lugar em Washington DC, em 1904, aprovou a proposta do geomorfólogo alemão Albrecht Penck para que se promovesse um levantamento fotográfico da superfície da Terra, o que viria a originar o Atlas phographique des formes du relief terrestre, da autoria de Jean Brunhes, Émile Chaix

e

Emmanuelle

De

Martonne,

cujas

primeiras

lâminas

foram

apresentadas por De Martonne no X Congresso Internacional de Geografia, Roma 1913, (Robic,1993). 3

Mais ambicioso seria o banqueiro Albert Khan que em 1909 inicia o projecto de levantamento fotográfico e cinematográfico, Les Archives de la Planète, para cuja direcção científica convida, em 1912, o geógrafo Jean Brunhes, projecto que terminaria por efeito da grande crise financeira de 1929. Entre 1909 e 1931 foram realizados e arquivados 72000 autocromos, 4000 fotografias a preto e branco, e cerca de 100 horas de filme, abrangendo meia centena de países. Este acervo pode ser visitado em Paris, no museu Albert Khan.

PAISAGEM, FOTOGRAFIA E LUZ

Toda a paisagem não está em parte nenhuma. BS/FP: Livro do Desassossego

Acabo de ler que no dia 25 de Abril p.f. o pároco de Fátima irá celebrar uma missa às escuras dedicada aos invisuais; todos poderão assistir, desde que coloquem vendas que serão distribuídas.

Olho agora para estas fascinantes 65 fotografias que já me levaram em múltiplas viagens (à volta do meu quarto…) e procuro imaginá-las às escuras, feitas numa noite de lua nova e com o céu carregado de nuvens baixas, sem luzes.

Está tudo naqueles 65 retângulos negros, só falta a luz, mas são 65 paisagens, para lá da luz. Mas não são paisagens das trevas. E, no entanto, à medida que aprofundo esta procura das paisagens na escuridão (os deuses vivem da luz, até ao exagero de serem só luz - só Espírito Santo), navego sobre as águas de rios e oceanos, de montanhas velhas da Ibéria ou sobre os jovens sertões dos Brasis. Sinto os frios na cara e ouço aves, ventos e pessoas… vozes, cantigas, florestas, vinhedos, ondas, cheiro mais e mais e a cada minuto que passa cresce em mim aquele impulso táctil de que escreveu Y Fu Tuan a propósito do The Leaping Horse de John Constable, e em relação ao qual Robert Hughes foi definitivo: “...this is the landscape of touch.”(Tuan, 1993, 43).

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Respiro mais e mais fundo, na busca do fundo daquelas paisagens e sinto a angústia da busca ansiosa de Kazimir Malevich, 18 meses de escuridão iluminada até chegar ao quadrado negro (черный квадрат Tchorniquadrat).

Volto a respirar bem fundo, e percebo que as funções vitais adquirem a sua plenitude quando se processam ao ar livre, “em plena paisagem”. Comer na paisagem é um acto que marca a estética dos séculos XIX e XX – Le déjeuner sur l´herbe! A vitória da liberdade, “que c’est bon de se desembêter!”, na expressão queiroziana, e a recuperação do gosto simples, da vida saudável, é o contraponto aos miasmas pútridos da cidade. Daí também o fascínio de pintores e de fotógrafos pela comida na paisagem que nos actos prosaicos e populares dos habitantes de Lisboa de 1900 era prática frequente - comer fora de portas porque as portas davam acesso aos ares puros, à natureza, ao que hoje diríamos paisagem, no sentido de campo.

É assim que inspirados, por exemplo, no picnic de burguesas do Cesário Verde, podemos encenar sobre a toalha, as paisagens de diferentes latitudes. Entre nós os mais comuns podem resumir-se na memória literária de Orlando Ribeiro: as paisagens mediterrâneas e as paisagens atlânticas, que poderão ser mescladas com uma paisagem ibérica, onde as cecinas e os quesos assumem o essencial da paisagem da meseta, podendo mesmo convocar as dimensões gustativas do Quijote e esconjurar a hambre do Lazarillo. Com luz, espanto, serenidade e grandeza.

Dia a dia recebemos testemunhos, também através das leituras fotográficas, das contradições resultantes dos movimentos que se operam nas infinitas dimensões do Planeta, que por um lado se encolhe e achata e, por outro, nos mostra o crescendo explosivo das rugosidades da paisagem.

E aquelas ovelhas, exibindo a pele da sua pele, paisagens mutantes, paisagens do corpo, que virão a transmutar-se em pele de outros corpos. 5

Lembro-me de David Mourão Ferreira “Quem foi que à tua pele conferiu esse papel de mais que tua pele ser pele da minha pele”.

De facto, não podemos deixar de ter presente, entre outros, dois factos que colocam limites à capacidade da fotografia captar as paisagens. Por um lado, a paisagem é a síntese de um lugar, de um território, de uma região, mas é uma síntese modelizada (simplificada). Vidal de La Blache escreveu que a construção mental da paisagem é o resultado da memória, é aquilo que fica...; por outro lado, como se sublinhou nos trabalhos conducentes ao PNPOT (Programa Nacional de Políticas de Ordenamento do Território): “É ainda necessário ter presente que a paisagem, enquanto valor cultural e societal, constitui uma realidade dinâmica. Por essa razão, a paisagem não é passível de tipificações datadas nem de processos de cristalização: os usos alteram-se, assim como as relações dos habitantes e dos visitantes com os territórios. É fundamental saber incorporar subtilmente as mudanças, mantendo ou reforçando os valores de identidade, de memória e de uso”.

Estas 65 imagens mostram-nos outras paisagens para lá da fotografia, para lá da luz.

Paisagem

Desejei-te pinheiro à beira-mar para fixar o teu perfil exacto.

Desejei-te encerrada num retrato para poder-te contemplar.

Desejei que tu fosses sombra e folhas no limite sereno dessa praia.

E desejei: «Que nada me distraia dos horizontes que tu olhas!» 6

Mas frágil e humano grão de areia não me detive à tua sombra esguia.

(Insatisfeito, um corpo rodopia na solidão que te rodeia.)

David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"

Referências: Gaspar, J. (2001) “O Retorno da Paisagem à Geografia - apontamentos místicos” in Finisterra, XXXVI, 72, pp.83-99.

Nakamura, Y., Frieling, D., Hunt, J. D. (1993) Trois Regards sur le Paysage Français, Seyssel, Champ Vallon

Robic, Marie Claire "La Géographie dans le mouvement scientifique" in Jean Brunhes - autour du monde: regards d´un géographie/regards de la Géographie, Paris, Musée Albert Khan, 1993. Tuan, Y-F (1993) Passing, Strange and Wonderful – aestetics, nature and culture, Washington, D.C., Islands Press

Unamuno, M. (1907) Por Tierras de Portugal y de España, 5ª. ed., Espasa-Calpe, 1960.

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