Fotografias como Imago Agens

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FOTOGRAFIAS COMO IMAGO AGENS Autora: Bruna Penna Mibielli Resumo Este artigo tenta inferir a potência de imagens fotográficas como imago agens através da análise de uma pesquisa de campo feita durante uma investigação artística. Uma imago agens é uma imagem forte emergindo no presente que é capaz de passear pelo vasto arquivo da memória no passado. A imagem fotográfica é testada dentro deste papel, para verificar se há nela esse poder especial de recombinação de memórias e se ela é capaz de iniciar o potencial de criatividade e inventividade. Analisando o depoimento dos participantes e as fotos por eles escolhidas, questões são levantadas sobre a capacidade que essas imagens têm de acessar a memória de um sujeito – não só a memória vívida, mas também suas lembranças apagadas. Este inventário de textos e imagens traz evidências de que memória mais é uma máquina de invenções do que propriamente de lembranças. Palavras-chave: Fotografia, memória, invenção, imago agens.

O papel da fotografia como um agente que evoca memórias não anula seu papel em favor do esquecimento. Certamente a fotografia acaba por servir a ambos os propósitos. Está claro que possui uma relação direta com a realidade, mas não é completamente fiel à esta, uma vez que tem um olhar limitado que é capaz de ver apenas o que o olho humano quer ver dentro de um determinado formato. Portanto, imagens fotográficas surgem da percepção da realidade mas englobam ainda as possibilidades de desconstrução e suspensão desta última. Esta é a razão pela qual a fotografia é mais uma invenção do que um documento. Está mais relacionada ao imaginário e menos à realidade. É criação e arte, e, por esta razão, não se pode confiar nela como documento que prove a realidade, mas serve como simulacro para criar novas realidades. A relação entre uma pessoa e seu álbum de família, que é uma coleção de imago agens que facilita o acesso à memória, é algo curioso e repleto de brechas mnemônicas. Quando um sujeito olha para uma fotografia, lembranças, conhecimento e emoções são evocados e, enquanto escolhe o que é mais aplicável para o momento, associações tardias são formadas. A pesquisa de campo apresentada neste artigo deixará claro como fotografias de infância podem ser imago agens e que tipo de imagens elas acessam na mente do sujeito. O método é simples: uma pessoa escolhe uma foto de infância e, olhando para essa imagem, escreve todos os pensamentos que passam pela mente, as lembranças que acessa durante o processo de

reminiscência iniciado ao olhar para a foto. O segundo passo requer que essa pessoa, que aparece na foto, busque o fotógrafo, a pessoa que realizou o click, e, sem discutir ou informar esta pessoa sobre nenhuma de suas lembranças, peça ao fotógrafo que olhe a foto e escreva, então, suas lembranças. O resultado é um texto escrito pelo fotografado, um texto do fotógrafo e uma fotografia de infância do fotografado, como se vê abaixo nas sete coleções distintas chamadas de Quintal, com o envolvimento de 14 participantes. Os textos são mantidos em língua original e com linguagem informal conforme foram escritos.

Quintal #1 Participantes: Bruna Penna Mibielli (Fotografado) Teresa Carneiro Penna (Fotógrafo) Imagem analisada pelos participantes:

Relato do fotografado:

 

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“Sei que eu estava lá no quintal e que mamãe sempre fazia muitas fotos de mim. Ficava lá com a câmera e pedia poses. Eu estava brincando de bola. Sempre adorei bola e o nosso quintal era ótimo pra brincar. Tinha uma parte de cimento e outra parte onde eu lembro de ter uma ameixeira da qual eu adorava as ameixas. Tinha também um quartinho de bagunça onde eu guardava todos os meus brinquedos e minha mini ferrovia que eu amava. Bom... mas mamãe estava lá e pegou a câmera e pediu pra eu fazer poses na frente da decoração do meu aniversário de palhaço que ela tinha feito para festa no dia anterior. Mamãe sempre caprichava em meus aniversários e fazia tudo com muito carinho. Devia ser por isso que ela queria tirar mais algumas fotos na frente da decoração. Talvez porque também estava de dia e dava pra ver melhor. Sei que de repente eu vi uma cobra do meu lado e acho que não tinha me dado totalmente conta do perigo, mas fiquei totalmente paralisada de pânico. No fundo, acho que fiquei paralisada porque mamãe estava batendo uma foto e eu não podia estragar a foto dela. Então fiquei lá firme até que ela clicou... e depois disso não me lembro de mais nada. Aliás... não tenho bem certeza se me lembro desse caso, mas aconteceu de verdade.”

Relato do Fotógrafo: “A gente estava lá. Você devia ter uns dois ou três anos no máximo. Estávamos brincando de queimadinha, um jogo que cada um por si queima o outro com a bola. O terreiro era até a metade acimentado e a outra metade a florestinha. Florestinha porque tinha uma parreira, uma ameixeira gigante, uma horta, uma amoreira e o gramado que estava selvagem. O que a gente não sabia era que no gramado tinha um buraco gigante que passava por baixo do quintal e ia por debaixo da casa até na rua. Você se lembra que a casa afundou? - Estávamos jogando na parte cimentada do lado da florestinha... Estávamos jogando bola quando de repente apareceu a “Sucuri”. Na verdade essa cobra é uma cobra que a gente chama de Duas Cabeças, ela tem os olhos e a boca na frente, mas no rabo ela tem duas pintas que se parecem com olhos. É uma defesa dela, pois normalmente se ataca o animal na cabeça e como proteção ela tem essa camuflagem. Ela é toda verde e é uma cobra sem veneno. A cabeça é toda redonda como o rabo. As venenosas tem uma cabeça abrindo em triângulo. A câmera fotográfica não estava muito longe. Não me lembro... Devia estar ali na área de serviço. Não podia estar lá dentro. Ah! Espera! Não foi assim não. A gente estava brincando e eu subi pra pegar a máquina pra tirar a foto sua brincando, quando a cobra apareceu. Você teve um aniversário de circo. Amarramos uns lençóis em formato de circo lá debaixo da árvore. Fiz desenhos de palhaço em tamanho  

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grande e espalhei pela casa toda. Esse dia da cobra foram uns dias depois do aniversário. A decoração ainda estava lá. Acho que faltou falar que você estava lá parada no lugar, gritando, ao berros, com o cabelo em pé e uma cara de terror e eu fiz a foto pra depois ir lá te tirar de perto e matar a cobra... Na verdade não me lembro bem o que fiz com a cobra.”

Quintal #2 Participantes: Carolina Perpétuo Corrêa (Fotografado) Ignez Helena Oliva Perpétuo (Fotógrafo) Imagem analisada pelos participantes:

Relato do fotografado: “Embora eu não me lembre exatamente do momento em que esta fotografia foi tirada, ela me remete a vários acontecimentos que ocorreram nos dias imediatamente anteriores ou posteriores. Essas memórias são as mais antigas que eu tenho, pois eu havia feito quatro anos há menos de dois meses. E é claro que ficaram gravadas até hoje (30 anos mais tarde) porque estão relacionadas a um acontecimento fundamental da minha infância: o nascimento do meu irmão.

 

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Não sei onde estávamos quando bateram a foto. A janela, os móveis certamente não são conhecidos, ou seja, não são da minha casa ou da casa dos meus avós. Então suponho que ela tenha sido tirada ainda na maternidade. Me recordo claramente que, quando a minha mãe entrou em trabalho de parto, ainda era madrugada. Me tiraram da cama e, meio dormindo, me colocaram no carro, algo confusa e ainda de camisola. Me lembro da camisola como se fosse hoje: era sem mangas, de algodão azul claro, acima dos joelhos. Tinha uma pala de renda nordestina, com bordados, brancos e azuis. E assim, no meio da noite, me deixaram na casa da minha prima Maini. Vejo claramente o carro estacionando na porta do prédio no Bairro Cidade Jardim, com as suas grades alaranjadas. Mais tarde, ouvi dos meus pais que, como o meu nascimento havia sido muito atribulado (nasci prematura), quando chegou a vez do meu irmão, eles foram muito discretos. Foram sozinhos para a maternidade e não contaram pra ninguém. Infelizmente, não me ficou a lembrança da primeira vez em que segurei no colo meu irmãozinho, situação provavelmente retratada na fotografia. O que eu me lembro é da toalha que cobre a minha cabeça na foto, e que existiu ainda por muito tempo. Tenho também lembranças dos dias posteriores, quando o neném foi pra casa e ocupou o quarto que ficava ao lado do meu. Gostei dele de cara - não me recordo claramente de ter raiva ou ciúmes nesses primeiros dias. Depois, é claro, houve circunstancias em que me ressenti desse novo membro da família que vinha mudar meu cotidiano. Havia uma circunstância em que eu tinha verdadeiro ódio: não podíamos mais nos demorar nas pontes e casas suspensas de madeira da Trilha da Aventura, no Parque das Mangabeiras, porque "o bebê não pode pegar sol." Relato do Fotógrafo: “O irmãozinho havia finalmente chegado e confesso que eu estava meio temerosa com a reação da menininha. Não me lembro porque ela estava de toalha. Acho que era hora do banho do Tom e ela havia se fantasiado como sempre fazia. Vivia vestida com alguma coisa. Fazia de princesa com os meus vestidos, lenços, seja o que for. Mas me lembro perfeitamente da cena retratada nesta foto e das circunstâncias em que ela foi feita. Eu estava preocupada com a reação da Carol frente ao pequititinho pois todos diziam que a reação seria de intenso ciúme que se expressaria em alguma sacanagem. O que ela poderia  

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fazer com o Tom? Beliscar? Enfiar os dedinhos em seu nariz ou olhinho? Deixa-lo cair? Assim, coloquei Carol sentadinha na minha cama, bem no meio, protegida com os travesseiros e lhe dei o irmãozinho pra carregar. E ela ficou ali segurando o Tomás bem direitinho e o resultado foi esta cena de encantamento.” Quintal #3 Participantes: Fernando Noronha Martins (Fotografado) Rosângela de Fátima Martins (Fotógrafo) Imagem analisada pelos participantes:

Relato do Fotografado: “Minha memória foi bem seletiva quanto às recordações da infância. Desta me recordo prioritariamente dos momentos bons. Até as punições por peripécias mais abusadas ficam nas dobras do pensamento, e o que chega aos tempos de hoje é prioritariamente o som das risadas. Esta foto em particular me traz à tona as brincadeiras depois da escola. Nem dava tempo de tirar o uniforme escolar dada a emergência da diversão.

 

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Lado a lado, eu e meu sobrinho ‒ que tem praticamente a minha idade ̶ inventávamos jogos no quintal. A amoreira era um refúgio, um avião, uma ave interplanetária, uma máquina do tempo. Naquele espaço lúdico, os pés de mandioca eram os alienígenas, o pé de cana era o portal para mundos distantes (como em Stargate), havia também uma grande rocha, um perigoso meteoro que destruiria nossa nave. Quanto ao clique, a autora da foto poderia dizer um pouco mais. Eu, criança, ainda distante dessas tecnologias, não entendia muito bem o que era aquela invenção e que serventia poderia surgir daquele ato. Porém tenho certeza de que se tratava de um ato de sensibilidade. Minha irmã, a fotógrafa, entendeu o quanto era importante para nós aquele momento; digo isso porque, mesmo em uma época em que filmes e revelações não eram baratos, ela decidiu fotografar um momento trivial de brincadeiras de criança. O recorte da imagem da fotografia faz voltar com toda força os registros antigos de uma memória que hoje quase sempre se ocupa das responsabilidades da vida adulta. Ao ver esta foto, também me lembrei de que eu jamais me achei fotogênico, tinha sempre vergonha da minha imagem capturada e sempre achei meu sobrinho muito à vontade diante das lentes. Hoje, à distância, tenho um olhar mais generoso comigo e uma relação de amizade muito boa com as câmeras fotográficas. Prossigo fotografando vivências e registrando memórias.” Relato do Fotógrafo: “Ao clicar uma foto, nossa intenção é eternizar o momento. Meu pensamento naquele instante era eternizar para o futuro a alegria e a inocência de duas crianças ao se sentirem no topo de uma aventura. Naquele instante, a maior delas. A satisfação e a coragem com que elas faziam acrobacias sobre a amoreira foram a inspiração do meu clique. Um desejo enorme de que, num breve futuro, eles viessem a sorrir ao se lembrarem daqueles momentos de intensa felicidade. A liberdade de pensamentos e ações que só se encontra nesta idade é a magia da infância, e são os cliques alheios que nos proporcionam voltar, reviver, meditar e muitas vezes suspirar e dizer: como eu era feliz e não sabia! Hoje eles são dois jovens em caminhos completamente diferentes, a mil quilômetros de distância um do outro literalmente, mas algo em suas gavetas faz lembrar que foram cúmplices  

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nas mais criativas e deliciosas aventuras. Valeu a pena surpreendê-los com aquela velha maquininha fotográfica. Saudades! Quintal #4 Participantes: Leandro Alexandrino Vinhosa (Fotografado) Francisco Luiz Teixeira Vinhosa (Fotógrafo) Imagem analisada pelos participantes:

Relato do fotografado: “Essa foto me remete a lembranças longínquas da minha primeira infância. Deste período, aos meus dois anos de idade, nem sei se poderia falar propriamente em lembranças concretas, mas sei que morava em Petrópolis, mesmo não tendo nascido lá, e que esta estadia também não durou por muito tempo. Mesmo assim, vejo que ainda hoje guardo algumas daquelas sensações que tive ao ter contato com esta cidade serrana, de natureza privilegiada, o vento frio, as flores

 

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coloridas de vermelho e amarelo, as árvores de todos os tipos: mangueiras, palmeiras, coqueiros imperiais e muitas outras, de todos os verdes. O azul do céu, os dias de sol e brisa fresca, os terrenos de terra quase vermelha por onde eu vivia correndo, muitas vezes já atrás da bola... Lembro da chuva forte, o barulho na janela, e o cheiro que ela deixava no dia seguinte pela grama molhada. Lembro que ficava com minha avó e seu marido, enquanto meus pais desciam a serra para trabalhar no Rio de Janeiro. Da minha avó, sim, muitas lembranças daquele tempo, seus olhos azuis, sua pele branca, seus biscoitos de maisena em forma de rosca, que vinha junto com o leite no sofá da sala, eu enroladinho na coberta quente, defronte ao móvel que sustenta a TV ligada, e o sono tranquilo da tarde... Lembro também da vendinha que ficava perto de casa, das compras diárias, assim como dos passeios no centro, dos doces que repartíamos nas doçarias da cidade ao final da tarde, e das idas e vindas na agitada rua Tereza... Do marido da minha avó, quem eu realmente conheci como meu avô, guardo algumas lembranças das saídas de casa para passear, um terreno de terra, campo de pelada, onde eu dava os primeiros chutes na bola... lembro também do seu bandolim e de uma palheta azul... Dos meus pais, neste período guardo mais as lembranças e sensações dos finais de semana, das idas nos gramados do palácio Quitandinha, do pedalinho do parque Cremerie, do palácio Imperial, onde foi tirada essa foto, pelos idos de 1977... No fundo, olhando para trás, apesar de estar de frente para a foto, vejo que chego a guardar boas lembranças dali, do ambiente da casa da minha avó, da cidade de Petrópolis, onde vivemos um curto período juntos, e dos anos que se seguiram, mas nem chego a ter certeza, parece mesmo uma leve impressão que tenho.” Relato do Fotógrafo: “O ano: 1977, o qual, Leandro com dois anos de idade, a mãe dele e eu passamos juntos com seus avós maternos, na cidade imperial de Petrópolis, encravada na região serrana do estado do Rio de Janeiro, rodeada de exuberante natureza revestida de mata atlântica. Tendo pais professores, que trabalhavam no Rio de Janeiro, saiam muito cedo e só retornavam tarde da noite. Leandro ficava com a avó, que fazia todas as suas vontades, era o xodozinho dela, estava sempre lambuzado de picolé, ou mascando chicletes escondido dos pais. Nos finais de semana, feriados e dias santos, era uma festa. Nestes dias, quase sempre, pela manhã, Leandro passeava com a mãe e comigo pelas ruas e praças da cidade com seus museus e monumentos históricos: aqui o palácio Rio Negro, até hoje palácio de veraneio do presidente da república; ali o palácio de Cristal, de inspiração londrina, que abrigava a estufa da herdeira do trono, princesa Isabel; lá, a catedral São Pedro de Alcântara, obra em estilo neogótico francês, onde se encontram os  

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túmulos do imperador d. Pedro II e de sua esposa, imperatriz d. Teresa Cristina; da princesa Isabel e de seu esposo, conde d'Eu. Na praça Rui Barbosa, Leandro passeava nas carrocinhas puxadas por bodes. A sua preferida era a do bode Cheroso, de Zoin, menino muito humilde, olhos tortos, com seus 12 anos, que se desentendia com Cheroso o percurso todo, aos gritos. Mas, o nosso passeio preferido era no Museu Imperial, um dos mais importantes monumentos arquitetônicos do país, com sua extensa área verde e seu rico acervo histórico: d. Pedro II, imperador aos cinco anos de idade, herdeiro de uma fazenda ali existente, levou adiante a idéia do pai, d. Pedro I, e construiu um palacete neoclássico entre 1845 e 1862, que foi a residência de verão da família imperial até o final do reinado de d. Pedro II, 1889, quando foi fechado pelo golpe militar republicano. Em 1943, o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), o reabriu como museu. Além dos turistas tradicionais, seu pátio, seus jardins, estavam sempre repletos de mães e pais que ali levavam seus petizes para brincar, se divertir. A fotografia era coisa rara, câmera digital era inimaginável. Um belo sábado pela manhã, lá estava Leandro sentado na escada de pedra do palácio, com uma expressão de tanta meiguice, inocência angelical, ao mesmo tempo numa posição reflexiva, olhar meio perdido, (o que estaria pensando?), então registrei a cena: camera Minolta SRT303, filme preto e branco. Naquela época tão carente de fotografia, o sonho da avó de Leandro era ter um poster do neto, que custava caro, muitas vezes trabalhos de qualidades duvidosas. Em fevereiro de 1987, ela nos deixou, sem ter visto o neto no poster que tanto almejara. No final da década de 1990, uma jovem artista da Escola de Belas Artes da UFMG, transformou a foto num belíssimo poster a bico de lápis, no qual foi colocada uma linda moldura, que desde então nunca saiu do quarto de Leandro. Era uma homenagem tardia, póstuma, à querida avó dele, que nunca imaginou que o poster do neto sempre estivera ali junto dela na foto das escadas de pedra do Museu Imperial de Petrópolis.” Quintal #5 Participantes: Patrícia Eugenia Sasdelli Mendes (Fotografado) Lucy Vieira (Fotógrafo)

Imagem analisada pelos participantes:

 

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Relato do fotografado: “Essa foto me remete a infância com boas lembranças e me faz pensar em uma qualidade da minha Mãe – transformar situações difíceis em diversão! Fiz várias poses para retratar minhas cataporas . Nessa época morava em Belo Horizonte em um Bairro chamado São Lucas. Tinha por volta de uns 4 anos e me recordo principalmente das manhãs, quando descia para pegar sol nas ruas ao redor de meu prédio. Já tinha uma rotina – catar mamonas e correr atrás de cabritinhos que transitavam por lá. Era uma diversão diária e me deliciava assustando os bichinhos. Quando peguei catapora me lembro de ter ganhado uma camisola que achei o máximo, a qual está retratada. A bagunça começou com meu irmão vindo dormir comigo para também pegar catapora. Aproveitava da doença para aprontar e Mamãe não ficar tão brava. Fazíamos a maior farra! Saímos bastante da rotina pois não ia à escola e a hora do banho era outra festa – chamava de banho vermelhinho – sentava em uma bacia grande com permanganato e ficava um bom tempo curtindo. Ganhei o apelido de Maria Catapora e adorava fazer poses para as sessões de foto. O retratos que selecionei mostram dois desses momentos.

 

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Não me lembro das coceiras. Desse episódio só tenho boas recordações!” Relato do fotógrafo: “Me recordo que não entendia o fascínio da Patrícia com o tal do banho vermelhinho. Lembrome das coceiras dela e que ficava a impedindo de coçar para evitar cicatrizes. Com isso passava boa parte do dia passando uma fraldinha molhada na Maria Catapora para aliviar. Ela ria e gostava porque sentia cócegas. Apesar de estar doente ela adorava ter catapora – ficava toda metida e pedia a todo momento para que eu tirasse fotos.” Quintal #6 Participantes: Werner Anselm Buhre (Fotografado) Gabriele Buhre (Fotógrafo) Imagem analisada pelos participantes:

Relato do fotografado:

 

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“1958. Easter. Five years old. The location is the garden of the house of my grandfather. It is in Wiesbaden in Germany in the year 1958. I was five years old. It is Easter and I’m in the garden searching for hidden Easter eggs my mother had been putting under leaves and behind bushes. For me it was very exciting and satisfying to find them, so I scurried through the garden. As the eggs weren’t modern chocolate products, but real chicken eggs, I wasn’t eager to eat them at once. I really somehow still believed that the Easter bunny had hidden the eggs in the big garden, solely for being a quite busy and nice little rabbit. And, if this wasn’t true – I thought: who cares?? My mother took this photo and asked me to pose for it for a moment. What you cannot see: She was already dressed in her sport clothes, ready to leave for a Hockey Tournament. In my left hand I carry a basket I didn’t like, because it was way too female for me! You know, only women carry these baskets to bring bottles, bread and salad from the market… But as all this happened in our private space, in our garden, I didn’t argue about this faux pas. I also didn’t like the trousers I wore. Way too misshapen and bulky. But I liked the pullover, it was fancy. What you cannot see: My father. He was persona non grata in this house. But this is another story. Also missing are my grandmother “Omi” Lieselotte and my uncle Peter. They were busy somewhere. My grandfather stands on the terrace, his hands in the trouser pockets, dressed with a suit coat. He rarely spoke to me, and, if at all, it was merely about the “important” affairs of good behavior or formal acquirements. My uncle Heinz-Helmut, the brother of my mother, also dressed in suit coat, walks up the stairs to him. Uncle Helmut occasionally played with me, he was a friend of children. On the right side of the picture stands “Aunt” Gretel, the housemaid. She wasn’t a true aunt, I just was taught to call her aunt. She was our housemaid for decades, she came somewhere from Pommern of northeast Germany. She was not married and had no friends, neither male nor female. Aunt Gretel was very nice to me, and I liked to stay with her in the big kitchen some time. Like me, she was the only person that was almost all day in the house except when she had her day off. She spent most of her life serving our family. Every week a dustcart came by to  

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pick up our rubbish, and she always gave the garbage collection man a bottle of beer. When she got older and it was on her to retire, she married that man and we never heard anything of her again. After decades of living close to us and serving us she was gone for good from one day to the next. Fantastic!! What does this mean to us? We hadn’t been nice or interesting enough for her to stay any longer in touch with us. We only had a work relationship. No grounded friendship had arisen in all that time… But funny enough: For me, in this photograph Gretel is the most important person. Without this photograph I wouldn’t remember all these things and details, but in looking at this souvenir shot all the details return to my mind…” Relato do fotógrafo: “The Photo shows Werner while looking for Easter eggs in the garden of his grandparents in Wiesbaden. He was not amused of the interruption caused by taking the photos, as one can see from his face. In the background on the terrace is the grandfather standing, and an uncle walks up the stairs. On the right side in the back is the factotum Gretel with arms crossed. The mama was already in her Hockey dress. Soon afterwards she went on to the Hockey tournament in the Nerotal (Black valley), where Werner was playing at the brook during the Ladies match and promptly fell into it. This cemented his nickname "The Hockey shock"! More I don’t remember in regard to searching for Easter eggs right now, except for the fact that in these times he had been a model for children’s fashion.”

Quintal#7 Participantes: Thiago Flaviano Theóphilo (Fotografado) Solange Antonina de Oliveira Theóphilo (Fotógrafo) Imagem analisada pelos participantes:  

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Relato do fotografado: “Quando sinto um cheiro de químico, daqueles branqueadores de estúdio, fixadores ou aqueles utilizados na revelação analógica, automaticamente lembro da minha infância. Mas não é uma lembrança de um momento específico do passado, é a sensação de leveza da infância, vem um prazer inenarrável. E, quando olho para uma sombrinha, logo vejo uma boa fonte de luz, isso mesmo, uma luz. Essa luz que minha mãe criava na sala de casa e que esta bem representada nesta foto da minha infância. Eram os testes de luz que ela fazia comigo e com meus irmãos afim de dominá-la e reproduzí-la nos colégios belorizontinos. Lembro também de ser seu assistente mirim, carregando equipamentos fotográficos que nem podia imaginar que num futuro próximo seriam minha ferramentas de trabalho e estilo de vida. E quando vejo essa minha cara de bagunça... penso, logo caio em gargalhadas. Desde quando nasci faço parte do mundo da fotografia, o mundo o qual tive a honra de ter experimentando

 

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desde quando sai da barriga da minha mãe e dessa época sobram lembranças, bons sentimentos e fotos.” Relato do fotógrafo: “Parece que foi ontem... Ouvir o choro me chamando de madrugada, com o tempo, ouvir os passinhos correndo por toda a casa. Me lembro perfeitamente de cada gesto, cada olhar. Me lembro também das poses que Thiago fazia para o teste de luz das fotografias. E assim, como num piscar de olhos, ele me surpreende ao me fazer ver a pessoa maravilhosa na qual se tornou. Se Deus me permitisse faria tudo novamente. Tenho orgulho de ser sua Mãe!”

Na pesquisa de campo é possível analisar o que são as coisas, detalhes e fatos que as pessoas realmente se lembram quando olham para a foto e, ainda mais importante para essa pesquisa, é extrapolar as meras análises das lembranças ou memórias reais e examinar os momentos de incerteza ou dúvida nos textos, que escapam durante a escrita das lembranças, os momentos em que a memória falha. Interessante ainda é perceber que nem todos os textos abordam o momento mostrado pela imagem, porque as pessoas misturam todo tipo de informação que estava na memória, por exemplo, fatos ocorridos antes ou depois do momento da foto ou coisas que outros disseram sobre aquele momento ou algo sobre o lugar – outro incidente que ocorreu no mesmo lugar – ou podem até falar sobre objetos que estejam na cena ou das relações das pessoas que estejam na cena, etc. As possibilidades são infinitas, uma vez que se pode misturar lembranças reais ou inventadas para criar a imagem-lembrança ideal relacionada à foto. Memórias reais e inventadas ocupam o mesmo espaço e vivem juntas, muitas vezes sem distinção, porque o que importa é dar novos significados ao presente e transformá-lo num passado, que é conectado com lembranças que já existiam previamente. A relação que um sujeito tem com a fotografia de sua infância inicia um ciclo mnemônico: a memória é acessada através da machina memorialis (máquina da memória), que é posta em movimento por qualquer interesse capaz de carregar uma imagem forte para o presente, então do presente vem uma nova experiência para alcançar velhas lembranças. Esse processo ocorre porque as pessoas precisam de seus passados para que sejam capazes de ver o que está às suas frentes.  

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Como fica claro em muitos exemplos, nem toda fotografia permite acesso fácil à memória. Algumas lembranças estão guardadas e outras, esquecidas. Quando um sujeito olha para uma fotografia que o mostra muito mais jovem, este, por vezes, não se lembra de muitos detalhes. Alguns momentos são mais especiais e mais vívidos na memória de alguns, mas a maioria dos momentos da infância, em geral, já se apagou parcial ou completamente. Esquecer parte do passado traz à tona um sentimento de perda de importantes referências e de informação que deveria ser parte da construção de cada um de nós como indivíduos. É por isso que a memória é infalível como máquina de invenção. Além disso, em alguns casos, é interessante perceber que algumas pessoas não se lembram de nada sobre a foto em questão, mas, mesmo assim, pode-se notar que nenhum dos participantes queria admitir: “Eu não me lembro de nada!” ou “Esqueci de tudo!”. Isso permite inferir o valor de uma fotografia como uma imago agens, uma imagem que pode ligar a machina memorialis. Eventualmente, se a imagem-lembrança buscada não pode ser encontrada, a fotografia, tal qual uma janela aberta para a mente, permite a aparição da invenção com lembrança, que é criada a partir da coleção de outras imagens menos próximas da imago agens. Por semelhança e aproximação, outras lembranças são combinadas, mais distantes da primeira imagem em questão, mas ainda servindo para saciar a necessidade de lembrar forçada pela fotografia. No entanto, é importante concluir que fotografias não são, por si só, lembranças, uma vez que apenas pessoas podem ter memória e se lembrar de algo. Fotografias são certamente imagens capazes de provocar a memória; além disso, a memória por si só não é nem confiável, nem previsível, pois depende da experiência de vida de cada pessoa. Então, a memória não pode apontar para verdade alguma, visto que sua própria verdade está mudando constantemente com a formação de novas coleções de imagens-lembranças a todo segundo. Consequente, fotografias também não são capazes de apontar para verdades na realidade, pois está implícita na sua utilidade a interpretação de uma pessoa, que irá imediatamente consultar a memória para essa tarefa. A beleza e a essência da fotografia e, ainda, o elemento que realmente determina fotografia como arte e nada mais estão no fato de esta ser uma imago agens. Pinturas, esculturas, afrescos, arquiteturas e fotografias são imagens capazes de pôr em movimento a máquina que funciona na mente de todos. A arte oferece, portanto, a oportunidade de acessar a memória, apresentando  

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ao sujeito imagens poderosas cheias de força para provocar e evocar. Isto é típico da arte e de outras imagens selecionadas que um sujeito escolhe, mesmo sem saber, como elementos especiais capazes de tocar a alma. “Dizemos que os olhos são a Janela da Alma, o que sugere, de certa forma, que os olhos são passivos ou que as coisas apenas entram. Mas a alma e a imaginação também saem. Quero dizer, o que vemos é constantemente modificado por nosso conhecimento, nossos anseios, nossos desejos, nossas emoções, pela cultura, pelas teorias científicas mais recentes” (Depoimento de Oliver Sacks no documentário Janela da Alma).

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