Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947): entre a forma e o conteúdo

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Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947): entre a forma e o conteúdo ANA CRISTINA MARTINS

“O estudo científico, metódico, sob tôdas as modalidades da flora, da fauna, da geologia, da antropologia, da etnografia, etc., tem tanta importância como a ocupação militar e administrativa.” (Mendes Correia, 1939: 19. Nossos itálicos)

Desligada, na sua maioria, dos assuntos ultramarinos, a ciência produzida em Portugal no século XIX agia, parcialmente, em conformidade com interesses pessoais de investigadores que a compunham, adaptando-a e reorientando-a consoante prioridades traçadas por entidades tutelares. Ansiando por contribuir para o desenvolvimento do seu país, de modo a aproximá-lo de outros territórios europeus, uma fracção da intelectualidade regressada de longos exílios liberais nas culturalmente estimulantes capitais francesa e londrina buscava integrar-se em redes de conhecimento essenciais à concretização de alguns dos seus projectos nucleares. Por isso, sorviam periódicos e monografias aportados diariamente a Lisboa, epistolando-se com especialistas de diferentes áreas do saber. Regressando ao país onde nasceram, transportaram registos insubstituíveis de um património a perecer na atribulação vindoura. Ademais, transferiram saberes, sentires e fazeres vertidos em colecções privadas, espaços museológicos, conferências e publicações, para gáudio esteta e literário. Chegados com inúmeros e diversificados conhecimentos e planos individuais, depararam-se com uma falha gritante de vontade política, central e regional para modernizar, com visionamento, Portugal. Daí, também, que transpusessem fronteiras, visitando exposições e participando em reuniões científicas nas quais se apresentavam novidades, se discutiam teorias e se impunham paradigmas. De entre as primeiras, sobrelevava a fotografia. Resultando de um longo percurso feito de diversos e sucessivas descobertas técnicas, a fotografia emergia de uma ocidentalidade rendida à imagem, num contexto ainda fortemente dominado pela estética romântica gerada na força ontogénica do indivíduo suscitada no Sturm und Drang da finissecular 117

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Alemanha 1. Sobrepujado o seu culto pela subjectividade libertadora do pensamento e da acção, o positivismo alimentava a relevância da fotografia, pela aparente objectividade duradoura que conferia às realidades observadas, longe da pessoalidade transposta para a superfície de uma tábua, tela ou papel, e que os pintores realistas procuravam apropriar. A difusão, mas não ainda a vulgarização, da fotografia como meio privilegiado de fixação de imagens permitiu transferir o estúdio para a própria natureza, numa prática absorvida e maturada pelos impressionistas. Enquanto isso, o apreço pelo exotismo justificava o lançar de olhares sobre outras geografias e culturas, levando as artes plásticas, musicais e de palco a consumir estéticas desvendadas em certames internacionais. De qualquer dos modos, o registo imagético atravessara centúrias, sobretudo desde o Renascimento, quando o protagonismo ávido da burguesia mercantil e banqueira encomendara panegíricos literários, musicais e pictóricos às suas agendas pessoais, num exercício pleno da estética ao serviço de planos que lhe eram alheios, mas graças aos quais sobrevivia e engrandecia com frequência. Recurso que não mais foi olvidado, antes consolidado e apropriado pelas principais casas reais europeias, culminando na estratégia de afirmação política do futuro Carlos III (1716-1788) de Espanha, no mosaico familiar italiano e no xadrez ocidental, através, também, da reprodução de artefactos retirados do subsolo herculiano e pompeiano, numa antecâmara do procedimento napoleónico relativamente aos signos imperiais da romanidade antiga. De permeio, encontravam-se os amantes do Grand Tour. A imagem transformou-se, por conseguinte, num instrumento imprescindível no alvor da modernidade e crucial na construção da contemporaneidade. A fotografia carreava, ademais, uma valência inestimável: a manipulação individual do tema, do cenário, do momento e do(s) protagonista(s). Com o desenrolar das décadas, divulgou-se a sua utilização, cabendo aos proprietários do equipamento decidir o tempo e o lugar dos registos, num momento em que a anamnese centralizava seres e fazeres unipessoais e grupais, face à celeridade dos acontecimentos que tudo parecia tragar. Mormente, usos, costumes e tradições, razão primeira da urgência do arrolamento etnográfico, enquanto o resgate patrimonial impunha, conquanto oficiosamente, a necessidade de fixar tudo quanto rememorasse páginas de antanho, fossem elas individuais ou colectivas.

Portugal entre agendas imperiais O torvelinho político no qual entrou a Europa pós-napoleónica incitou à fruição dos meios disponíveis para defensar agendas nacionais, transnacionais e imperiais, numa era talhada fortemente pelo poder do verbo e da imagem intermediado pelo periodismo e monografias, acessíveis em bibliotecas públicas. Como se a palavra e a iconografia fossem, por si e em si, sinónimos de domínio territorial e cultural, alicerçando narrativas ideológicas. Como se, em uníssono, preenchessem lacunas de ocupação electiva dos territórios, tal como 118

  Vide D. B. Brown, Romanticism (London: Phaidon, 2001). 1

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

  Vide Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Lisboa: SGL, varia). 2

reconhecido, mais tarde, pelo Estado Novo (1933-1974), na sequência da posição assumida no início dos anos 20, desdobrando-se em edições e outras acções promovidas pela Agência Geral das Colónias (1924). Não surpreende, pois, que um dos projectos que mais colheu na utilização da fotografia fosse o colonial, por dele penderem devires nacionais sustidos em economias dependentes do aumento de recursos naturais e de mercados para escoamento dos produtos industriais. De contrário, a Europa, forjada em gabinetes ministeriais aprisionados a cobiças empresariais, colapsaria. Portugal não foi alheio a este processo. Ao contrário, esteve no seu cerne. Desde logo, pela ambição lançada pelas principais potências coloniais coetâneas sobre Angola e Moçambique, quando o desfecho do conflito franco-prussiano (1870-1871) estagnou a expansão territorial no quadro europeu, transferindo-a para o continente africano. Alegando ausência de domínio efectivo português destes territórios, o reclame europeu despertou Lisboa para a urgência do assunto. Antecipando-se ou, antes, preenchendo o vazio estratégico observado neste âmbito, um grupo de intelectuais e políticos clarividentes fundou a Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL) (1875), colocando-a ao serviço da agenda colonial, numa mimetização do realizado por agremiações congéneres descerradas nas principais capitais europeias. Iniciativa meritória, sobretudo quando o país procurava reerguer-se de longas décadas conturbadas. Internamente, o assunto tornara-se missão nacional, desamarrando-a de cobiças espraiadas sobre territórios que administrava no além-mar. Disto nos falam diatribes geradas na SGL, principalmente pelas mãos de Luciano Cordeiro (1844-1900) e de João de Andrade Corvo (1824-1890) 2. Reconhecida a relevância desta iniciativa no crescente e intricado processo diplomático, criou-se a Comissão Central Permanente de Geografia (1876), tutelada pelo Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, cumprindo-lhe promover o conhecimento dos solos, flora, fauna e comunidades humanas das possessões ultramarinas. Por isso, também, foram organizadas expedições, logo em 1877, de Alexandre de Serpa Pinto (1846-1900), Hermenegildo Capelo (1841-1917) e Roberto Ivens (1850-1898), a Angola. Entretanto, instituía-se a Comissão Central de Geografia (1880), num ano de acentuada exaltação nacionalista vertida nas comemorações camonianas patrocinadas pela SGL, enquanto a CCG lograva (re)definir fronteiras para intensificar a presença portuguesa em África (Martins, 2010b). Mas a Comissão debilitava perante os diminutos meios da SGL, enquanto se exigia um saber científico mais sólido e holístico para impor a agenda colonial portuguesa no xadrez internacional. Daí que se estreitasse a união entre geografia (física e política) e outros saberes sobre os trópicos administrados por Lisboa, para acercar decisões políticas e conveniências científicas. A ciência era a solução. Esta Comissão deu, então, lugar à de Cartografia (1883), destinada a efectuar o Atlas Geral das Colónias baseado nas informações recolhidas por missões no terreno, principiando por Angola. Retomou-se, assim, o projecto África Meridional Portuguesa, mais conhecido por Mapa Cor-de-Rosa, em De Angola à Contra Costa 3. Interligou-se, doravante, ciência 119

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e administração colonial. Assim se manteria o império e a soberania nacional. Assim se preparava, em concomitância, a Conferência de Berlim (1884-1885), num momento em que urgia robustecer o princípio dos “direitos históricos” da sua soberania no continente africano, contestados (1884) no novo princípio diplomático, o Scramble for Africa (1880-1900). Apesar dos esforços reunidos, este projecto acalentado por Andrade Corvo não colheu o suficiente para impedir o desvigoramento paulatino do país, mesmo que se definissem “esferas de influência”, sob os auspícios da SGL e houvesse esforço, nesse sentido, do novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Henrique de Barros Gomes (18431898). Foram, então, lançadas novas expedições a Angola e a Moçambique 4. Neste entretanto, o país vivenciava turbulências sucessivas, agitando-se internamente perante o alicerçar de idealismos contra monárquicos e sonhadores de um Portugal escorado noutros ideais. Pelo meio, insistia-se na premência de inovar procedimentos relativos ao além-mar, de modo a evitar o seu tragamento pela combatividade comercial e industrial oitocentista, ocupando-o com efectividade. Como concretizá-lo? De modo holístico, aglutinando valências científicas, tecnológicas e administrativas, a fim de conter a implacável competitividade ocidental 5. Entende-se, pois, que as atenções redobrassem sobre Angola, pelo potencial económico evidenciado, não bastando a boa vontade e dedicação dos governadores provinciais. Não era, contudo, a primeira vez que as suas terras e gentes eram abordadas semelhantemente. A par de campanhas militares, organizara-se reconhecimentos políticos e expedições científicas, com realce para a fitográfica de observação dos seus valimentos agrícolas (1853 e 1861). Era, na verdade, uma preocupação interna doutrinada no Conselho Ultramarino refeito pela Regeneração (1851-1868). Foram, então, definidas ligações prioritárias entre metrópole e colónias apoiadas no comércio e fomento industrial para neutralizar outras influências colonizadoras a braços com o aumento demográfico europeu resultante das novas condições económico-financeiras proporcionadas pelos avanços científico-tecnológicos. Foram, não obstante, tentativas inconsequentes, pois transcorrido meio século, afirmar-se-ia que “em Angola como nas outras colónias, a investigação scientifica portuguesa não se afirmou como devia” 6. Enquanto isto, ocorreu o Ultimatum (1890), impulsor da chama patriótica ancorada no antibritanismo e antimonarquismo, e nutrida pela Geração de 90, traduzida em verbos e imagens adensadores do anunciado decadentismo intestino. As possessões africanas foram secundarizadas, embora multiplicassem os debates em torno da sua imprescindibilidade na construção do devir nacional, não obstante o expansionismo acentuado de análogas potências no diapasão subsaariano. Mesmo assim, Portugal enlaçava política, ciência e técnica, defrontando Inglaterra e demais impérios, conquanto de forma apoucada, lesando, por inerência, as suas intenções. Enquanto isto, tornava-se deveras terminante cartografar para ocupar e ocupar para explorar, congregando escrutínio científico e administração política. Assim se perpetuaria o ideário imperial, sobrevivendo o próprio país, totalizado pela agenda republicana, contraditando, embora, a sua natureza filo120

  Vide H. Capelo e R. Ivens, De Angola à contra costa: descripção de uma viagem atravez do continente africano (Lisba: Imprensa Nacional, 1886). 4   Vide Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Lisboa: SGL, varia). 5   A. C. Martins, «(Re)Conhecer para ocupar. Ocupar para (re)conhecer. A colonização científica do além-mar» in A. C. Martins e T. Albino, org., Viagens e missões científicas aos Trópicos. 1883-2010 (Lisboa: IICT, 2010b), pp. 26-33. 6   L. W. Carrisso, O problema colonial perante a Nação (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928). Nosso itálico. 3

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

sófica. Ratificado pelo sidonismo, a reforma do Ministério das Colónias (1919) inscreveu-o na Direcção dos Serviços Diplomáticos, Geográficos e de Marinha. Alteração esclarecedora do seu novo rumo recentrado na demarcação fronteiriça. Pouco depois, a reestruturação da administração central ultramarina (1920) transferiu-o para a repartição dos Estudos Geográficos da Direcção Técnica do Fomento tutelada pela Direcção-Geral dos Serviços Centrais da Secretaria do gabinete colonial. O interesse político da investigação científica era, por conseguinte, admitido num ambiente internacional de profunda adversidade para com a República portuguesa. Gradativamente, assumia-se a investigação científica nas colónias como inextricável do desenvolvimento e asserção do país, sobretudo, quando o contexto internacional não permitia desatenções para com as colónias. A cupidez das economias do pós-guerra e o crash norte-americano demandavam novos mercados, matérias-primas e mão-de-obra. África solucionaria, reacendendo censuras e voracidades imperiais lançadas sobre as colónias africanas portuguesas. Já não bastava ocupar. Havia que promover o crescimento económico, financeiro e cultural dos territórios colonizados, mormente, ao pretender-se manter o império. Tal como na centúria precedente, a ciência, a técnica e a cultura tornavam-se meios privilegiados para esgrimir competências, numa época em que a primazia da descoberta e respectiva aplicação ditavam o sucesso ou o insucesso de aspirações traduzidas em impérios a estender para lá das águas mediterrâneas. A sua “ocupação científica” foi, no entanto, concretizada pelo Estado Novo, através da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais (1936), destinada a coordenar a investigação no além-mar e a orientar o estudo das colecções reunidas pelas missões no terreno. Consolidava-se, assim, a ideia de Império enquanto nação pluricontinental vertida no Acto Colonial (AC) (1930), e em numerosos instrumentos propagandísticos.

A fotografia na construção dos impérios De entre os múltiplos recursos utilizados pelas principais potências ocidentais de oitocentos na manutenção dos seus territórios ultramarinos, sobressai a fotografia. Fixando gente, lugares, seres, estares e fazeres, a fotografia permitia transferir lugares e tempos imaginados a partir de realidades existentes, projectando geografias físicas e humanas reorganizadas e domesticadas por apriorismos e vários agendamentos, em contextos culturais que lhe eram estranhos e dificilmente apreendidos. Gradualmente, incorporou-se a fotografia como instrumento poderoso de planos coloniais e imperiais, justificando pretensões, ilustrando conceitos, validando procedimentos, veiculando desideratos, instruindo, imageticamente, os futuros administradores coloniais e incutindo a ideia espacial de império, tanto transmediterrâneo, como mediterrâneo. Ajustável a qualquer ramo do saber científico e técnico, a fotografia aplicar-se-ia com maior intensidade e periodicidade ao campo antropológico, etnológico e 121

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etnográfico. Por isso, também, possibilitou olhares mutáveis sobre os mesmos tipos de objectos documentáveis, consoante as agendas prevalecentes, individuais ou colectivas. Intermediando existências e não-existências, imobilidades e mobilidades, materialidades e imaterialidades, a fotografia fixava práticas científicas europeias aplicadas à identificação e classificação de “tipos raciais”, associando-os a determinados territórios e culturas materiais sequentes de entendimentos sagrados. Tudo na esteira de arquétipos e estereótipos, entre outros, do anatomista e antropólogo francês Pierre P. Broca (1824-1880) e do diplomata e escritor, igualmente francês Joseph A. de Gobineau (1816-1882), sustidos em escritos linguísticos do alemão Franz Bopp (1791-1867) e continuados nas posições racistas e anti-semitas do britânico Houston Chamberlain (1855-1927), num processo culminado no linguista alemão Gustaf Kossinna (1858-1931). Tudo, ou quase tudo, de igual modo relembrando práticas pictóricas paisagísticas da Holanda seiscentista, mas também das costumbristas andaluzas e de quase todos os movimentos artísticos da segunda metade de oitocentos que transpuseram para a tela a ilusão do registo momentâneo despido de artifícios, quais imagens turnerianas. Aplicada, desde o início, ao registo patrimonial, assentando tudo quanto importasse a exaltações identitárias, a fotografia permitiu contrariar o fluir inexorável do tempo timbrado, em crescendo, pela locomotiva, enquanto facho da contemporaneidade. O pincel e o carvão foram, então, acompanhados, quando não substituídos, pela fotografia para agarrar momentos a perderem-se na intemperança dos anos, facilitando a sua reprodução e divulgação junto de um público mais vasto e menos letrado. A começar pela Europa. Desde logo, para perpetuar imageticamente usos, costumes e tradições perigados pelo abandono do campo por quem engrossava as fileiras industriais, funcionando como bidimensionalidades coleccionáveis. Depois, para introduzir os letrados na nova realidade proletária, mundana e mendiga, comparáveis, amiúde, aos denominados “primitivos actuais”, numa realidade assaz distante das centralidades sociais finisseculares. Aos poucos, a imagem comutou e complementou a palavra, compondo uma cultura visual plena de signos contextualmente significantes, acompanhando mundos em mutação e desaparecimento, independentemente do seu grau e natureza, transpondo, para salões ilustrados, geografias culturalizadas, intocáveis ou obstáveis. Como se a imagem fosse a realidade, como se a imagem fosse o conteúdo da realidade, como se a imagem fosse mais real do que a (pretendida) realidade existente. Em suma, quando compulsada, a fotografia permite(ia) entender a evolução do modo de registo, senão das mesmas realidades, pelo menos de realidades similares, de acordo com os contextos variáveis no tempo e no espaço. Mais do que isso, a fotografia, tal como a pintura, o desenho, a aguarela e a gravura antes dela, reitera(va) como o conhecimento sobre as coisas e os seres dependeu, em muito, da sua difusão, autonomamente do respectivo tipo de suporte e veículo de transmissão. Enquanto isso, o objecto fixado transmudava-se em objecto de estudo e deleite estético. 122

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

As missões antropológicas na estratégia de ocupação científica do além-mar

  A. C. Martins, «Colher plantas. Semear ideias. Luís W. Carrisso (1886-1937) e a ocupação científica das colónias portuguesas (1934)», in C. Fiolhais, C. Simões e D. Martins, orgs., Atas do Congresso Luso-Brasileiro de História das Ciências (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011), pp. 372-389. 7

O interesse nacional por registos imagéticos dos territórios subsarianos administrados por Portugal revelou-se posterior ao de outros recessos europeus, onde a agenda colonial engrandecia face às medrantes exigências contemporâneas ilustradas nas exposições universais compostas de imagens discursivas a descodificar visualmente. Pelo menos, até à inauguração da SGL. A partir de então, a curiosidade pelo tema foi aumentando paulatinamente, mercê de uma ampla campanha de esclarecimento realizada junto de um público mais extenso e atento, sempre reduzido quando cotejado à elevada percentagem de analfabetismo e iliteracia alastrante no país. Mas a exposição, pela SGL, de elementos reunidos em missões a territórios ultramarinos portugueses não fidelizou públicos nem persuadiu autoridades políticas nacionais, agitando-se apenas quando o orgulho nacional era abalado por presunções estrangeiras. Nada, porém, coeso e, sobretudo, sistemático e duradouro. O interesse pelo assunto continuava a circunscrever-se, quase em exclusivo, a intelectuais mais esclarecidos e a investigadores que, na Universidade de Coimbra, orientavam recolhas de materiais no além-mar, estudando-os nos seus gabinetes, publicando os resultados obtidos e correspondendo-se, assídua e proficuamente, com referências nas áreas cultivadas a título individual, enquanto interiorizavam a relevância estratégica para o país, mormente colonial, das suas próprias investigações 7. Solo, flora e fauna nucleavam esta estratégia. Mas sem conhecer as comunidades humanas locais, de pouco serviriam. Reproduzindo experiências cumuladas por outros agendamentos imperiais, nomeadamente britânico, as autoridades nacionais principiaram a apreender a necessidade de conhecê-las para melhor administrar os territórios. O interesse por comunidades humanas subsarianas perdia-se no tempo, realçando, contudo, em pleno racionalismo setecentista e nas sociedades de geografia emergidas ao longo do século XIX, já sob o signo das (re)construções imperiais. A sua maior visibilidade ocorreu, no entanto, em reuniões científico-tecnológicas, a exemplo das Universais de Paris. Nomeadamente, na de 1867, quando da proclamação definitiva da existência da pré-historicidade, explanada no início da respectiva Galérie du Travail e no recém-inaugurado Musée des Antiquitées. Mas, sobretudo, no decurso da segunda sessão do Congrès International d’Anthropologie et d’Archéologie Préhistoriques (CIAAP), ao evidenciar a importância dos registos etnográficos dos “primitivos atuais” para entender a funcionalidade de artefactos encontrados no registo arqueológico de sítios europeus. Com efeito, desde finais oitocentistas que o entendimento dos primórdios humanos era procurado em povos ultramarinos, mormente a sul do Sara, por uma etnografia comparada de perfil naturalista. Recusando-lhes, deste modo, a criatividade e o caminho individuado, o comparativismo etnográfico registou todo um repositório informativo que permitisse compreender, anacronicamente, parcelas de algum quotidiano pré-histórico. 123

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Pela primeira vez de modo assertivo, encarava-se a mundividência destes povos como equiparável à da pré-historicidade europeia. Assim se afirmava a presumida superioridade ocidental e obrigação cristã de os (re)conduzir aos trilhos “civilizacionais”. Também assim se justificavam projectos coloniais. Lisboa acolheu o nono encontro do CIAAP, inaugurado, com toda a solenidade régia, na Academia Real das Ciências de Lisboa. Na sua sequência, a universidade enquadrou os estudos antropológicos e pré-históricos (1885), anos antes da inauguração do Museu Etnográfico Português (1893), cujo mentor e primeiro director, o filólogo, etnógrafo, arqueólogo e professor universitário José Leite de Vasconcelos (1858-1941) 8, pretendeu recorrer a paralelismos etnográficos para compreender a utilização e o significado artefactual, conectando pré-história, antropologia e etnografia, num cruzamento entre história natural e história cultural. Entretanto, o republicanismo favorecia o aprofundamento dos estudos etnográficos. Sobretudo para fixar usos, costumes e tradições do Portugal continental europeu, enquanto serviam, nalguns casos, de entendimento de processos antigos: “As proprias classes populares das nações civilizadas nos ministram documentos que fazem compreender a vida primitiva. No Museu Etnologico estou coligindo alguns d’esses documentos” 9. O aceleramento estonteante da ciência e da técnica traduzia-se em inovações que perigavam a perenidade de alguns aspectos identitários. Urgia, por isso, registá-los sistematicamente, reavivando-os e acentuando-os para responder a um desiderando central da agenda republicana. Referimo-nos à recuperação de artes e ofícios para o desenvolvimento económico de localidades e regiões, numa rememoração do movimento oitocentista que os impulsionou. Por isso, se multiplicaram iniciativas nesse sentido, dando-se à estampa títulos monográficos de referência ainda nos nossos dias, na esteira dos trabalhos pioneiros da finissecularidade nacional. Redobravam-se, em concomitância, colecções e exposições temáticas para sensibilizar auditórios para o assunto, ao mesmo tempo que avultavam dizeres sobre a carência de demonstrar ao Mundo quanto Portugal concorria para o desenvolvimento das etnias que administrava no além-mar, em especial quando “[…] nos termos actuais daquilo a que poderemos chamar «a moral internacional» só teem direito a terem colónias as nações que provem, pela sua actividade colonial, ser capazes de as valorizarem e utilizarem para o bem comum da Humanidade.” 10. Fora das nossas fronteiras, este interesse extravasou a ocidentalidade, mesmo quando alguns dos seus redutos mais recônditos, inóspitos, inacessíveis e desconhecidos motivavam verdadeiras expedições. Foi, então, redireccionado para outras paragens, designadamente oceânicas e africanas. As motivações e os propósitos divergiam de autor para autor, de escola para escola, de país para país. Unia-os, todavia, a ânsia pela diferença, a curiosidade perante a diversidade humana do ser, estar e fazer, e o reconhecimento da relatividade de procedimentos a contextualizar no espaço e no tempo. Interesse acrescido por ideários de vários quadrantes. Em Portugal, sobretudo já durante o Estado Novo, a escola alemã ganhou maior força, pelo rigor metodológico e nomes que realçavam. A começar pelo 124

  L. C. Coito, J. L. Cardoso e A. C. Martins, José Leite de Vasconcelos (1858-1941). Fotobiografia (Lisboa: MNA/Verbo, 2008). 9   J. L. de Vasconcelos, História do Museu Etnológico Português (1893-1914) (Lisboa: Imprensa Nacional, 1915), pp. 6.4-65. 10   L. W. Carrisso, Função colonial das missões religiosas, Sep. Estudos (1934), p. 9. Nosso itálico. 8

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

  Vide J.-P. Legendre, L. Olivier e B. Schnitzler (orgs.), L’archéologie nazie en Europe de l’Ouest. Actes de la table ronde internationale «Blut und Boden» (Paris: CNRS, 2007). 12   A. C. Martins, «A arqueologia alemã em Portugal e em Espanha na primeira metade de novecentos: uma ciência, um paradigma, duas realidades (um primeiro esboço)», in F. Clara & C. Ninhos Eds., A angústia da influência. Política, cultura e ciência nas relações da Alemanha com a Europa do Sul, 1933-1945 (Frankfurt am Main: Peter Lang, 2014), pp. 243-259. 11

do sociólogo e africanista vienense Richard Thurnwald (1869-1954), um dos etnólogos mais produtivos do seu tempo, de linha comparativista e funcionalista (de base parcial malinowskiana), apesar do terreno conquistado pelo etnocentrismo, diversidade e relativismo cultural trabalhados pelo antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942). Além disso, R. Thurnwald co-editava, com o médico e biólogo alemão Alfred Ploetz (1860-1940), o Archiv für Rassen und Gesellschaftsbiologie (‘Revista de Biologia Racial e Social’), após fundar (1905), com o mesmo A. Ploetz e o psiquiatra e geneticista suíço Ernst Rüdin (1874-1952), a Gesellschaft für Rassenhygiene (‘Sociedade para Higiene Racial’), a primeira sociedade eugenista do mundo. Mercê dos seus conhecimentos africanos, colaborava com o regime nazi, nomeadamente através do Das Ahnenerbe, ideado por Heinrich Luitpold Himmler (1900-1945) para encontrar, ratificar e celebrar as raízes arianas como antepassadas dos germanos, para validar expansionismos e purificações raciais 11. Tendência contrariada por etnógrafos, etnólogos e arqueólogos, unidos em demanda do fundo mais remoto de comunidades locais, regionais e nacionais. Neste entrementes, o linguista, antropólogo e etnólogo austríaco Wilhelm Schmidt (1868-1954) instituiu a revista Anthropos (1906) e o Instituto Anthropos (1931), transferido para a Suíça quando da ocupação da Áustria pelos alemães (1938). W. Schmidt cooperava, ainda, com outras referências das humanidades, a exemplo do geógrafo e etnógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904), e do etnólogo conterrâneo Robert Fritz Graebner (1877-1934), mentor do difusionismo alemão, adversando a convicção de Grafton Elliot Smith (1871-1937) quanto a um único foco difusionista (= hiperdifusionismo) 12. Nada comparável em Portugal. Houve, é certo, quem, no século anterior, se interessasse pela observação directa de comunidades locais dos territórios ultramarinos, sobretudo Angola e Moçambique. Pouco passavam, porém, de actuações (algo) aventureiras, singulares e esporádicas, delas resultando relatórios, memórias e colecções etnográficas pouco ou nada estudadas à época. Alheamento institucional e, acima de tudo, governamental, em quase tudo semelhante ao observado na arqueologia nacional, pela sua dispensabilidade na afirmação identitária e geográfica, e, consequentemente, nas agendas políticas, desde a monarquia constitucional ao Estado Novo. Razão suficiente para que não se investisse em bolseiros portugueses nestas áreas em universidades estrangeiras, contrariamente ao que sucedia, por exemplo, em Espanha. Não obstante, a tenacidade, a influência, os planos e ambições pessoais de algumas personalidades conseguiram inserir a antropologia física no plano colonial, mesmo que desprendida do fulgor que certamente pretenderiam imprimir-lhe, equiparando-a a demais geradas noutras comunidades científicas mundiais. Objectivo parcialmente alcançado ao demonstrar o seu papel na edificação da ideia de unidade materializada num império esteado na (suposta) multissecular vocação universalista cristã. Pois como enunciaria, em 1946, António A. E. de Mendes Correia (1888-1960), médico, antropólogo, arqueólogo, professor na Universidade do Porto (UP), responsável pela Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia (1918), Director da Escola Supe125

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rior Colonial (1927), e Presidente da SGL e da JMGIC, “a integridade política e moral do Império, a unidade da Nação, corresponde a diferenças de costumes, de organizações sociais, de tendências psicológicas, de virtualidades realizadoras, com que há a entrar em conta na administração, fomento e economia dos nosso territórios” 13. Além disto, a refundada Academia Portuguesa da História (1936) predispunha-se a reconstruir o passado para confirmar o direito intransferível de Portugal aos territórios ultramarinos sob sua jurisdição. Por isso se traçou uma série de eventos comemorativos destinados a centralizar a política colonial na agenda esboçada pelo Estado Novo, como a I Exposição Colonial Portuguesa (Porto, 1934), inspirada em idênticos certames europeus e em cujo âmbito decorrera o 1.º Congresso Nacional de Antropologia Colonial (com a pré-história e arqueologia a ocuparem a 3.ª secção), para auxílio da política colonial, e da Exposição do Mundo Português (1940), reproduzindo aldeias tropicais animadas por indígenas reproduzindo funções quotidianas. Também, assim, se procurava (re)eedificar um museu vivo da ancestralidade europeia a partir, neste caso, de culturas nativas do Continente “negro”. Entende-se, assim, que, apesar de lateral ao programa colonial português, a antropologia centralizasse, de algum modo, o labor da JMGIC, certamente por força do interesse pessoal de Mendes Correia nesta matéria e da influência que detinha nos círculos correspondentes. Com efeito, uma das primeiras missões organizadas neste âmbito foi a Antropológica de Moçambique (MAM) (1936-1956), destinada a (re)conhecer grupos étnicos e a registar, com o apoio da administração colonial no terreno, os dados antropobiológicos recolhidos nos itinerários definidos previamente. Entretanto, fixava usos, costumes e tradições, e procurava artefactos arqueológicos identificadores das respectivas origens geográficas e comunhões culturais, para aferir rotas de deslocamento e entrecruzamentos étnicos a partir de dados antropométricos coligidos. Moçambique tornava-se, com efeito, no primeiro território a merecer uma missão desta natureza no quadro da JMGIC, em coordenação com demais lançadas a esta prioridade da política colonial portuguesa. Por sugestão e orientação de Mendes Correia, o Ministro das Colónias, Francisco José Vieira Machado (1898-1972), entregou a sua direcção a Joaquim Santos Júnior (1901-1990) (SJ), sob patrocínio do Instituto para a Alta Cultura (1936-1952), da Junta Nacional da Educação. Tinha então 35 anos e conseguira, certamente, fazer ouvir o seu repto (1934) para que as missões científicas incluíssem um pré-historiador, mercê do prestígio científico que já granjeava, associando-se a outras vozes nacionais que viam no estudo antropológico das comunidades autóctones uma prioridade da administração colonial. Enquanto isto, buscava-se aproximar a investigação arqueológica portuguesa à produzida nas, então, Rodésia do Sul e União da África do Sul. Em particular, no que respeitava o estudo da idade da pedra, pois, “À extraordinária riqueza da União da África do Sul e da Rodésia em documentos paleo-antropológicos e em estações da idade da pedra, corresponde a uma singular pobreza dos mesmos documentos e estações no que diz respeito à nossa 126

  A. A. E. Mendes Correia, Raças do Império (Editora: Portucalense Editora, 1943), p. 5. Nosso itálico. 13

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

Colónia de Moçambique” 14. Assunto por demais pertinente, desde que o Paleolítico ingressara na agenda arqueológica subsariana, quando, em antevésperas da I Guerra Mundial (GM) e no amanhecer dos anos 20, se encontraram vestígios osteológicos humanos deste período 15. Facto suficiente para que centros universitários, museus e sítios arqueológicos, como os correspondentes a povoados fortificados da Idade do Ferro (= zimbabwe), fossem visitados, demoradamente, por quem chefiava os estudos antropológicos em Moçambique 16.

A Missão Antropológica e Etnográfica da Guiné (1946-1947) e a sua imagética

  J. E. Santos Júnior, «Contribuição para o estudo da Idade da Pedra em Moçambique. A estação lítica de Marissa (Tete), Moçambique», Moçambique: documentário trimestral. N.º 12 (1937), p. 95. 15   B. G. Trigger Historia del pensamiento arqueológico (Barcelona: Editorial Crítica, 1992), pp. 132-133. 16   J. E. Santos Júnior, «Contribuição para o estudo da Idade da Pedra em Moçambique. A estação lítica de Marissa (Tete), Moçambique», Moçambique: documentário trimestral. N.º 12 (1937), p. 104. 17   J. E. Santos Júnior, Carta da pré-história de Moçambique. Sep. do tomo V – 4.ª secção, Ciências Naturais, do Congresso da Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências (1950), p. 651. 18   Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, N.º 5 (1946), p. 268. 19   A. A. E. Mendes Correia, Uma jornada científica na Guiné portuguesa (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1947, p. 193. 14

O trabalho realizado, as informações recolhidas e a experiência cumulada no terreno obrigaram a repensar a estratégia gizada de início para as missões antropológicas. Sobretudo, pela noção de ausência de cruzamento de saberes essencial ao escrutínio e entendimento mais próximo das realidades observadas. Tornava-se, por conseguinte, fundamental estreitar a colaboração entre arqueólogos e geólogos. Desde logo, para estudar convenientemente a pré-história moçambicana 17. Aproximação a estender a outros especialistas, como filólogos, para multidisciplinar o trabalho de campo revigorado por maior quantidade de recursos materiais e definição de prazos razoáveis à sua concretização plena. Tornava-se, no entanto, imprescindível persuadir os poderes políticos de que a rentabilização económica dos territórios ultramarinos seria mais eficaz, célere e duradoura com um conhecimento profundo e totalizante das populações autóctones, mormente no que se referia “aos valores indígenas, das suas artes primitivas, das suas línguas, costumes e tradições, de tudo que possa registrar uma existência, uma personalidade que o tempo fatalmente destruirá” 18. Foi neste contexto, fundamentado pela remodelação recente da JMGIC, à luz do Plano de Ocupação Científica do Ultramar Português (1941) contemplado na acção desenhada para o quinquénio seguinte (1942-1947), que Mendes Correia, então já como presidente da Junta, entendeu importante criar nova missão antropológica a outro território ultramarino. Havia, no entanto, que harmonizá-la com a nova orientação conferida aos estudos científicos em todo o espaço português, centralizando a produção do saber sobre as colónias na melhoria das condições de vida das comunidades locais, rentabilização dos recursos naturais e entendimento (pretendidamente) desinteressado sobre a Natureza, explorando com eficácia as colónias através de missões e cooperação internacional de excelência. Não, sem esquecer que as investigações, a conduzir no terreno, de pura etnologia e de inquéritos, deviam contribuir para a nossa ação colonial 19. Mas porquê a Guiné, quando os territórios de maior potencial económico eram o angolano e o moçambicano, admitindo, embora, quão fundamental seria ao cumprimento da nova agenda colonial, sobrepujando a sua marginalidade e ultraperiferismo? Era, sem dúvida, necessário à agenda científica 127

1.  Classificação / Missão

da JMGIC, ou seja, do Estado Novo. Entender a decisão então tomada exige um olhar mais circunstanciado para o contexto da época e, em concreto, para o muito que fervilhava nas colónias europeias que rodeavam a Guiné. Além disso, assumira-se como campo de ensaio de programas interdisciplinares a transpor para territórios entendidos de maior utilidade nacional, como Angola e Moçambique, por conterem “mais amplas perspectivas de desenvolvimento demográfico e económico.” 20. Na verdade, o interesse pela Guiné aumentava na metrópole, desde, pelo menos, o 15.º CIAAP (1930). Reunido em Coimbra e no Porto, testemunhou duas comunicações sobre estudos preliminares de antropologia guineense. Da responsabilidade, por exemplo, de Mendes Correia, as apresentações partiam de materiais depositados nos Institutos de Anatomia e de Antropologia da UP, procurando reactivar a versão ruskiniana do homem ético versus homem estético. Outros eventos se sucederam, com presença da Guiné, a exemplo das exposições Industrial de Lisboa (1932), da I Colonial Portuguesa (Porto, 1934), a de 1939, organizada no âmbito da Semana das Colónias, e a do Mundo Português (Lisboa, 1940) 21. Entretanto, gizavam-se-lhe as Missões Geo-Hidrográfica (1944), Zoológica (1944) e Antropológica e Etnológica da Guiné (1946). Atenção reduplicada com a Semana do Império acolhida em Bissau (1943), o 5.º Centenário do Descobrimento da Guiné (Lisboa, 1946), o Desfile dos Municípios (1947), antecedendo a 2.ª Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais (CIAO) (Bissau, 8 e 14 de Fevereiro), o 1.º Congresso Pan-Africano de Pré-História (Nairobi), a Conferência Internacional dos Naturalistas, Geólogos e Etnólogos da África Ocidental e o Congresso para o Avanço das Ciências, todos em 1947, anos antes da Conferência de Investigação Científica Africana (1949) e da reunião do Conselho Científico para a África ao Sul do Sahara (1956). Tentava-se, deste modo, suprir o desinteresse generalizado pela metrópole por este território, possivelmente “por não ser suscetível de uma intensa colonização europeia e de ter estado o seu principal comércio nas mãos de estrangeiros.” 22 . Discursando na sessão inaugural do congresso evocativo do 5.º Centenário da Descoberta da Guiné, o, então, Ministro das Colónias, Marcello Caetano (1906-1980), ia mais longe nas reflexões sobre a valorização económica da colónia, que visitara em 1935 23, e cuja relevância geoestratégica reconhecera, enfatizando a premência de conhecê-la cientificamente, para que possamos caminhar de olhos abertos, sem enganos, direitos aos nossos objectivos morais e económicos e com a maior probabilidade de eficiência do esforço colonizador. // A relativa pequenez do território e a sua proximidade da metrópole permitem-nos – ou melhor dizendo: obrigam-nos – a trabalhá-lo bem, utilizando quanto possível os recursos da ciência e da técnica. Mostraremos ser capazes de o fazer. // Assim a Guiné se transformará efectivamente numa província ultramarina de Portugal, em prolongamento da terra pátria e integrada na sua vida económica, social e espiritual24. 128

  Boletim da Agência Geral das Colónias (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1945), p. 51. 21   Vide artigo de Mário Machaqueiro neste livro. 22   Boletim da Agência Geral das Colónias (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1945), p. 24. 23   A. E. Duarte Rodrigues, «Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo», Cultura. Revista de História e e Teoria das Ideias, [on-line], Vol. 25 (Lisboa, Centro de História da Cultura da FCSH-UNL, 2008), pp. 31-55. 24   Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1946), p. 31. 20

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

  A. E. Duarte Rodrigues, op. cit., p. 32.   Não obstante ter cumprido à equipa de Mendes Correia a execução deste projecto, o professor, antropólogo e político António de Almeida (1900-1984) interessara-se pela Guiné, se não anteriormente, pelo menos em concomitância. Facto tanto mais curioso quando, graduado pelas Escolas de Medicina Tropical e Superior Colonial, na última das quais passou a leccionar Etnologia e Etnografia Colonial (1935), obtivera bolsa da Junta de Educação Nacional e apoio da SGL para estudar, em Angola, a origem das designações actuais de diferentes lugares, objectos e conceitos (1934), num plano de trabalhos que pretendia estender à Guiné, ainda em plena II Guerra Mundial (1939-1945), com o apoio do futuro Governador e seu antigo aluno, M. M. Sarmento Rodrigues. 27   Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1946), p. 19. Nas conclusões votadas pelo Congresso, mencionava-se, quanto aos indígenas, ainda remanesceram “aspetos fundamentais a cuidar, todos aqueles que dizem respeito à vida indígena considerada em si mesma, pelo que é indispensável a criação de um serviço próprio, com a organização prevista por esse cuidado, uma Repartição dos Negócios Indígenas” [Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1946), p. 122]. 28   Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, n.º 6 (1947), pp. 555-556. 25 26

Atenta ao que sucedia em seu redor, a administração deste território interiorizara a necessidade de mimetizar exemplos coetâneos de agendas coloniais francesa e inglesa, sob pena de se desperdiçar no abismo do tempo e deixar-se tragar por expedientes mais céleres e eficazes na afirmação em solo tão distante da metrópole lisboeta. Além disso, importava ter presente quanto a Guiné poderia destacar-se nas redes de circulação no segundo pós-guerra mundial, numa região de crescente influência norte-americana 25. Escorados no AC, na Constituição Política e na Carta Orgânica do Império Colonial Português (estas duas de 1933), fundaram o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (1946-1973), órgão oficial do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (CEGP) (1945), enquanto meios privilegiados de divulgação de conhecimentos científicos e culturais sobre o território e as suas gentes, arrolando quanto encerrasse merecimento etnológico antes que a contemporaneidade alterasse ou provocasse o desaparecimento das suas particularidades. Decisão à qual não terá estranhado a tomada de posse, em 1945, do novo governador, Manuel Maria Sarmento Rodrigues (1899-1979), e na esteira das comemorações do 5.º Centenário da Descoberta da Guiné, decorridas entre Julho de 1945 e Outubro de 1947 26. Tudo sem esquecer as pertinentes conclusões do congresso de 1946 ocorrido na SGL, onde Mendes Correia clamara que “Portugal, elevando agora a Guiné, mostra ao mundo a sua capacidade e festeja no seu lar o nascimento dum primeiro filho.” 27. Sucedia isto num momento em que a relativa pacificação social do país possibilitava robustecer a administração colonial e priorizar a Província da Guiné. Iniciativas assumidas quando o Mundo principiava a refazer-se dolorosa, mas esperançadamente, dos escombros materiais e psicológicos provocados pela II GM. Actuando “(…) como um laço de união com a Metrópole e as outras colónias, por um lado, e com as colónias estrangeiras vizinhas, pelo outro.” 28, estes dois organismos concorreram para o germinar de uma nova intelectualidade, por mão de entidades prestigiadas localmente, como Avelino Teixeira da Mota (1920-1982), responsável principal pelo início da investigação etnográfica na Guiné que divulgava em encontros da especialidade. Quando da chegada de Mendes Correia e de Amílcar de Magalhães Mateus (1911-?), a Guiné dispunha, por conseguinte, de um dispositivo estruturado de investigação e divulgação científica sobre o território e suas gentes, mantendo contactos privilegiados com organismos internacionais de referência nas matérias abordadas no seu âmago, com realce natural para a costa ocidental africana, enquanto aspirava constituir o “Museu da Guiné Portuguesa”. Transmudando-se, aos poucos, de território fornecedor de matérias-primas em modelo de abordagem científica transferível para distintos recantos colonizados, a Guiné reforçava a premência de estreitar ligações com outras comunidades científicas, nomeadamente com o Institut Français de l’Afrique Noire (IFAN) (1939-1965) visitado por Mendes Correia e Amílcar Mateus nesta ocasião. Uma insistência reiterada por Mendes Correia, numa averiguação indirecta da validade de trabalhos realizados pela intelectualidade local, mesmo 129

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que esta desferisse duras críticas ao seu método de trabalho anacrónico, a sopesar no silêncio que lhes impôs nos seus escritos. Com efeito, a maior comunhão com as linhas e métodos de investigação do IFAN elucidará os libelos lançados. Comungando das posições do naturalista francês Théodore Monod (1902-2000), do sociólogo e antropólogo, também francês, especializado na África subsariana, Georges Balandier (1920-), e do historiador, especialista em pré e proto-história do continente “negro”, Raymond Mauny (1912-1994), A. Teixeira da Mota tendia a afastar-se da antropologia física e somática privilegiada pelo académico portuense. Ao mesmo tempo, pugnava pela instituição de organismos provinciais de investigação científica: “Logo de início o “Centro de Estudos” procurou reagir contra a tendência, que se nos figurava demasiado centralizadora e antiquada, da investigação científica ultramarina em Portugal, a qual se manifestava, sobretudo, através de missões temporárias aos territórios” 29. Sem dúvida, as missões do CEGP intensificavam-se com investigadores circunvizinhos à Guiné, perante a ligação residual a metropolitanos. Cepticismo repetido localmente, mesmo quando o temário tropical começava a singrar nos corredores políticos e na academia portuguesa: as nossas relações culturais têm-se intensificado sobretudo com os territórios vizinhos, no meio dos quais já hoje não somos mancha escura como outrora... É claro que apesar de nunca termos merecido a devida consideração dos organismos metropolitanos encarregados deste domínio das ciências coloniais – pois até hoje ainda não foi enviada nenhuma das colaborações prometidas – nem por isso deixaremos de tentar estabelecer contactos como eles, sempre agradáveis e sem dúvida úteis em ensinamentos 30.

Precariedade reconhecida pelo próprio Mendes Correia que procurou combatê-la com o seu prestígio académico e ascendente político. Na verdade, redizia, com frequência, a indispensabilidade de estreitar a cooperação internacional (tanto na metrópole quanto no ultramar) no domínio científico. “Até porque as diferentes sabedorias, mesmo as aplicados e utilitárias, “[…] n’arrêtent pas leurs problèmes dans les frontières politiques […]” 31, tornando-se a ciência, “[…] universellement, la base du gouvernement, du développement et de l’avenir du monde et, spécialement, des colonies.” 32. Além disso, l’opportunité et la localisation de cette Conférence constituent des motifs de congratulation pour tout le monde. D’abord, nous nous trouvons ensemble, amicalement, consacrant nos attentions à des sujets scientifiques d’intérêt général, dans un moment où dans d’autres assemblées internationales on constate le choc de passions déplorables et dangereuses, ou, ou moins, la confusion et le trouble qui règnent dans la plupart des esprits de l’époque actuelle 33.

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  Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, n.º 32 (1953), pp. 643-644. 30   Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, n.º 10 (1948), pp. 526. 31   A. A. E. Mendes Correia, «La recherche scientifique dans l’outremer portugais», Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais (2.ª Conferência, Bissau, 1947), V. 1 (Lisboa: Ministério das Colónias / Junta de Investigações Coloniais, 1950), p. XLIII. 32   Idem. 33   Ibidem, p. XXXI. 29

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

  A. Teixeira da Mota, «Etnografia. Centro de Estudos da Guiné Portuguesa», Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, V. I, n.º 2 (1946), pp. 382. 35   Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1946, p. 117. 36   A. A. E. Mendes Correia, op. cit., p. XLIII. 37   A. A. E. Mendes Correia, Uma jornada científica na Guiné portuguesa (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1947), p. 38. 38   A. de M. Mateus, Curriculum vitae de Amílcar de Magalhães Mateus (Porto: Imprensa Portuguesa, 1959), p. 7. 39   A. A. E. Mendes Correia, op. cit., p. 39. 34

De facto, Mendes Correia não deixava de retirar ilações dos trabalhos efectuados na Guiné, atendendo algumas das sugestões avançadas no terreno. Entre elas, a intensificação de conexões com o IFAN, cujo director, Th. Monod, esteve na metrópole portuguesa na Primavera de 1946, conferenciando e contactando organismos científicos e coloniais 34. Terá sido, ademais, uma estratégia delineada por Mendes Correia para persuadir, finalmente, os poderes coloniais continentais da centralidade do conhecimento científico das etnias administradas nos territórios subsaarianos, reforçando, assim, muitos dos seus artigos, já de referência. A começar pela obra Raças do Império (1943), o suporte epistemológico, por excelência, do programa científico, ao mesmo tempo que ideológico, que pretendia executar e que passaria, também, pela realização do CIAO 35, num momento em que as intelligentsias locais (re)construíam identidades políticas nacionais. Tratava-se de um fórum já de referência, não apenas para cientistas, como para políticos atentos à aplicação do conhecimento científico no exercício colonial. Mais do que isso, esta importante reunião possibilitou robustecer a própria visão estratégica e filosofia de actuação do CEGP, pois como afirmou Mendes Correia, “É Bissau que, depois de Dakar, é escolhida para ali se realizar tão importante reunião. Isto denota o prestígio que Portugal, a Guiné e os seus cientistas têm já na cultura internacional.” 36. Folheando Uma jornada científica na Guiné Portuguesa (1947), empreendida (1946-1945) à África Ocidental Francesa e à Guiné Portuguesa, por determinação da JMGIC, inteiramo-nos do propósito nuclear da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (MAEG) (1946-1947): estudar, pormenorizadamente, em cerca de três meses, as etnias locais. A coordenação cabia ao adjunto e companheiro de Mendes Correia, o zoólogo da UP Amílcar Mateus37. Assegurando trabalhos no Instituto de Zoologia (1914) e a direção da Associação da Filosofia Natural (Porto, 1932), Amílcar Mateus fora contratado (1942) para docente do 3.º grupo (= Zoologia) da 3.ª secção da Faculdade de Ciências. Suspendera, entretanto, as aulas, designadamente de antropologia, para se deslocar à Guiné em missão oficial 38, depois de estudar os negros da Guiné seleccionados e transplantados para as Exposições Colonial Portuguesa e do Mundo Português, numa altura em que a Europa principiava a ensanguentar-se e anos volvidos sobre a experiência colhida na Exposição Industrial de Lisboa (1932), com mandingas guineenses dispostos em aldeia típica erguida no Parque Eduardo VII 39. Percorrendo quase todo o território em duas campanhas, de Abril a Agosto de 1946, e de Dezembro de 1946 a Maio de 1947, a MAEG deveria reunir informação fiável e suficiente que fortificasse a administração colonial na Guiné. Foi, assim, cumprida no rescaldo de um cenário internacional ainda ensombrado pelas Guerra Civil de Espanha (1936-1939) e II Guerra Mundial, e pautado por reequilíbrios geopolíticos que demandavam uma contenção financeira pouco consentânea às exigências de um projecto científico e político desta natureza e amplitude. Orientada, desde Lisboa, por Mendes Correia, a MAEG foi dirigida, no terreno, por Amílcar Mateus, acompanhado de 131

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sua mulher, Emília de Magalhães Mateus, também ela licenciada em Ciências Naturais pela UP 40, assim como dos ajudantes Marques de Almeida Júnior e o “(…) artífice da secção de Zoologia-Antropologia da Faculdade de Ciências do Porto (…), com prática de antropometria adquirida no Instituto de Antropologia daquela Faculdade.” 41, Manuel Pimenta, exigido por impossibilidade de cumprir o plano apenas com os elementos previstos para a 2.ª campanha. De fora ficava o lugar de etnólogo previsto de início, como indicia a titulação da missão. Embora desconheçamos, por enquanto, as razões da sua ausência, as exigências orçamentais não lhe terão sido estranhas na totalidade, não impedindo, contudo, a recolha de inúmeros dados essenciais à caracterização das etnias contactadas e observadas. Concretizando uma longa e aturada série de recolhas de elementos antropobiológicos para caracterizar, morfológica, biológica, alimentar, sanitária, demográfica e psicologicamente, as populações estudadas, com recurso a equipamento antropométrico transportado de Lisboa e de outro obtido mercê da inestimável colaboração da administração colonial local, a MAEG não foi indiferente a aspectos diferentes observados nos percursos predefinidos. Isso mesmo sucedera com a MAM. Por isso, encontramos inúmeros objectos representativos da diversidade étnico-cultural guineense entre o material coligido pela MAEG, associados a rituais de passagem, à relação do ser humano com o sagrado (incluindo instrumentos musicais), assim como elementos de adorno e peças ilustrativas dos olhares locais sobre a ocidentalidade europeia. Sendo também “Etnológica”, a missão predispunha-se a aproveitar “(…) todo o tempo em que não fazemos observações antropométricas, quando isso é possível, para colheitas etnográficas.” 42. O plano original, traçado por Mendes Correia, previa uma primeira campanha para estudo exaustivo dos Bijagós, seguida de outra destinada ao continente, altura em que a Missão atravessaria o Boé, onde realizaria investigações de Pré-História, considerando a geografia e a geologia da região, assim como os achados entretanto efectuados em Fefiné. Requisito tanto mais pertinente, quando, aparte programas pessoais de Mendes Correia neste sentido, a reestruturação da MAEG de 1947 previa investigações antropológicas, etnológicas e pré-históricas como sua primeira prerrogativa 43. Estender-se-ia, depois, até à fronteira, onde, munida das necessárias autorizações, contactaria, na Guiné Francesa, a Missão Antropológica do futuro chefe de Missão da Direcção-Geral de Saúde Pública da África Ocidental Francesa (Dakar, 1949), o médico e coronel Léon Pales (1905-1988), para comutar “(…) impressões sobre o estudo das populações comuns aos territórios francês e português.” 44. Realizada, como desejável, na estação do ano que lhe fosse mais favorável, num período consecutivo não superior a 240 dias, a Missão suspendeu os trabalhos em Dezembro para participar na CIAO, apresentando os primeiros resultados dos dados colhidos na primeira campanha 45.

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  Circunstância reiterada noutras situações conhecidas da literatura internacional quando, em determinados espaços e tempos, os elementos femininos logravam prosseguir carreiras científicas enquanto mulheres de investigadores, sendo este cenário assaz comum nos primeiros tempos da JMGIC/JMGIU. Vide, a este propósito, A. C. Martins, «Mulheres cientistas e os Trópicos: uma visão preliminar», in V. Rodrigues; A. C. Martins; M. C. Duarte; M. O. Carvalho e L. F. Antunes, orgs., Ciência nos Trópicos: olhares sobre o passado, perspectivas de futuro (Lisboa: IICT, 2013); A. C. Martins, «Mulheres cientistas nas primeiras missões botânicas», in F. Rollo e M. de F. Nunes, orgs., Espaços e actores da ciência em Portugal (séculos XVIII-XX) (Lisboa: FCSHUNL/Universidade de Évora, no prelo). 41   Arch.-IICT. MAEG. Campanha de 1945. 19 de Novembro de 1946. Inédito. 42   Arch.-IICT. MAEG. Campanha de 1945. 17 de Maio de 1946. Inédito. 43   Arch.-IICT. MAEG. Campanha de 1945. 17 de Maio de 1946. Inédito. Assim nos deparamos com artefactos recolhidos em contexto de escavação arqueológica, cujas condições e ilações serão dissecadas noutra ocasião após entrecruza os seus conteúdos com os insertos noutras fontes primárias e secundárias, mormente das produzidas durante as duas campanhas e na sua sequência, já num momento opuscular, configurando um todo inextricável. 44   Arch.-IICT. MAEG. Campanha de 1945. 30 de Setembro de 1947. Inédito. 45   Arch.-IICT. MAEG. Campanha de 1945. 30 de Setembro de 1947. Inédito. Fotografias digitalizadas por Ana Godinho, colaboradora do IICT, a quem agradecemos. 40

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

Figura 1.  Trabalhos da MAEG. MAEG. Acampamento em Canhabaque, arquipélago dos Bijagós. 1946. Fotografia. IICT/AHU_ID25823.

Fotografias da Missão e a Missão em fotografia Da multitude de elementos reunidos durante as duas campanhas da Missão, consta uma colecção fotográfica única. Não por ser a única coeva ilustrativa de modos de ser, estar e fazer de diferentes grupos étnicos guineenses. Localmente, eles foram fixados em imagem por intelectuais, estetas, curiosos ou simples diletantes. A sua unicidade tem a ver com o facto de documentar vertentes do quotidiano da missão, das paisagens, de usos, costumes e tradições das diferentes etnias estudadas e, por fim, mas não menos importante, de procedimentos científicos, em concreto, de registos antropométricos (Figura 1). Mais do que isso, dá-nos uma visão do que importava à equipa registar, fosse para ilustração de artigos a publicar em revistas de referência, fosse para relembrar pormenores quando da interpretação de dados, ou, ainda, para cristalizar memórias de um tempo não recuperável na íntegra. Em complemento, informa-nos das técnicas utilizadas para suprir falhas de memória, ao mesmo tempo que nos dizem, conquanto indirectamente, do equipamento fotográfico adquirido para esse efeito. Comecemos pelo equipamento. Como verificado para outras missões e campanhas, a JMGIC não terá olhado a despesas para responder às exigên133

1.  Classificação / Missão

cias qualitativas do trabalho a desenvolver no terreno, obtendo os modelos de câmara fotográfica mais apreciados à época por quem se envolvia directamente em equipas de investigação congéneres, geralmente Rolleiflex e Hasselblad, como as que têm sido identificadas para missões congéneres portuguesas. Desconhecemos, até ao momento, o tipo de máquina(s) utlizada(s), embora as imagens sejam de grande qualidade, com boa reprodução de detalhe e densidades, comum no médio formato (6 x 6cm) 46. Constatação a corroborar, uma vez mais, a importância conferida à ocupação científica do Ultramar, assim como ao registo de procedimentos, espaços e gentes, numa estratégia que previa a transferência do conhecimento acumulado ao longo de meses para a metrópole, onde se debruçariam sobre a informação colhida para dela concluir quanto importasse à melhoria da administração colonial. Além do mais, o tempo permanecido no território a explorar permitia, a par de uma expressão sensitiva acrescida, olhar demoradamente para os contextos percorridos, igualando os dias transcorridos ao ritmo próprio da natureza, sem as celeridades já constantes das malhas urbanas cadenciadas pelo impiedoso girar do relógio mecânico, regrando os mais ínfimos movimentos e quereres. Também por isso, ou essencialmente por isso, a fotografia é mais do que um objecto bidimensional. Mesmo enquanto peça, a fotografia congrega uma série de factores que nunca lhe poderão ser totalmente externos. Desde logo, o material de suporte. Desde logo, o equipamento utilizado. Desde logo, o método seleccionado para revelar. Enquanto produto do desenvolvimento científico-tecnológico, a fotografia exibida perante nós revela bastante acerca dos respectivos contextos históricos, também eles económicos, sociais e culturais. Mais do que isso, desvenda-nos a relevância da fotografia para a entidade que a encomendou, produziu, guardou e disseminou. Rasga-nos, ademais, visões sobre a actualização dos modelos e métodos existentes, assim como o grau de mestria dos seus mediadores. Neste sentido, podemos, sem hesitação, sublinhar a grande qualidade do equipamento adquirido, especificamente ou não, para a MAEG, nisso comungando com o muito já verificado para outras missões organizadas no âmbito da JMGIC, à semelhança, aliás, do verificado em organismos congéneres coetâneos. Mas se a materialidade da fotografia é passível de análises verdadeiramente polissémicas, a sua imaterialidade transporta-nos para um palimpsesto de emoções quantas vezes imaginadas fora das figurações fixadas na sua superfície e reveladas em gamas coloridas ou acinzentadas. Principiemos, contudo, pela pluralidade de conteúdos, contrariando a aparente e relativa homogeneidade de formas, como observado em colecções fotográficas obtidas no decurso de missões de teor comparável. Priorizando as actividades científicas que o conduzira até termos tão longínquos, o olhar por detrás da câmara não se lhe cingia. Longe de permanecer indiferente à diversidade vivencial que atravessava, sensibilizava-se perante um solo, uma flora, uma fauna, um gesto, uma paisagem e um território apartados de uma Europa que há muito se esquecera de (con)viver a naturalidade, onde o tempo discorria – sensitivamente –, fora do tempo. 134

  Avaliação transmitida por Catarina Mateus, bolseira do IICT na área da conservação e restauro de fotografia, a quem agradecemos. 46

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

Deslumbrado com um compasso perdido na voragem dos séculos, este mesmo olhar registava com receio de perder o instante mágico, porquanto único, de uma realidade que não integrava e dificilmente integraria, porque estranha ao seu contexto existencial. O mesmo contexto que o levava a (re)direccionar-se com firmeza para singularidades que mapeava e fincava – quase –, etnograficamente, através da lente, representando territórios e paisagens a partir de (pre)conceitos socioculturais e geográficos apreendidos para cá das geografias africanas, numa espécie de mimeses inscrita em forma de imagem. Introduzindo conhecimento ou uma hipótese de conhecimento, a fotografia não emudece face ao olhar que a produziu, por ser contemporâneo e composto de múltiplas camadas complexas, sobrepostas pela multiplicidade de experiências individuais e contextos vividos. A fotografia, como qualquer outro tipo de registo, é, por conseguinte, completamente indivisível do ambiente que a produz. Em suma, a presumível separação entre o observado e o observador é inexistente. Mais do que isso, a fotografia resulta de um ideário substanciado na própria narrativa transposta para e pela fotografia. Neste sentido, os enquadramentos privilegiados e as posições figuradas inter-dependem das estéticas coetâneas que, neste difícil período de pós-guerra, se (re)centravam nas artes visuais e performativas libertadoras de cenários destrutivos, vozeando auspícios futuros. Contrariamente a álbuns fotográficos e bilhetes-postais descritivos para comercialização junto de metropolitanos envoltos na imagética imperial e sequiosos de exotismo, as fotografias da MAEG não apresentam a urbanidade procurada por uma burguesia protegida pelas margens atlânticas. As fotografias da MAEG expõem-nos comunidades locais nos seus espaços ancestrais, executando tarefas compassadas pela sabedoria secular cumulada e difundida geracionalmente através da memória da palavra falada. Por isso, mais do que realçar o indivíduo na sua singularidade, os registos produzidos revelam o grupo, enaltecendo-o para uma posteridade de recepção e consumo residuais, porquanto científica (Figura 2). A excepção iria para quotidianos originais e, acima de tudo, para a figura do chefe e respectiva família, considerando a sua relevância social, dele dependendo, em grande medida, o sucesso das missões no terreno (Figura 3). Destinavam-se, por isso, a uma circulação assaz restrita, publicitando-se apenas uma sua parcela para ilustração do verbo selado em relatórios publicados após retrabalhar os dados compilados no terreno. Facto que as revaloriza, por se encontrarem despojadas de um estrato imposto por exigente publicitação pública de outra natureza e dimensão. Analisando, mesmo que brevemente, as fotografias realizadas no quadro da MAEG e chegadas até nós, rapidamente nos apercebemos de que a maioria expressiva se reporta à sua vertente estritamente científica. Avultam, por isso, os denominados clichés, fotografias coladas em fichas próprias da missão, ilustrando indivíduos, masculinos e femininos, em duas poses invariáveis (frontal e de perfil), em complemento das observações efectuadas localmente. Ajudando a uma melhor caracterização das etnias, já em contexto metropolitano, estas fichas continham o número do rolo e da imagem, por se tratar de 135

1.  Classificação / Missão

Figura 2.  Grupo musical de Éguba e Carêto (Caravela), com participação da adjunta da MAEG. MAEG. Arquipélago dos Bijagós, Guiné-Bissau. 1946. Fotografia. IICT/AHU_ID25793.

Figura 3.  Ministros do Reino de Orango. MAEG. Arquipélago dos Bijagós, Guiné-Bissau. 1946. Fotografia. IICT/AHU_ID25771.

prova de contacto a acompanhar as duas, três cópias feitas, por regra, das fotografias realizadas. Para obter estas imagens, necessariamente estáticas e comparáveis a tantas alcançadas noutros contextos culturais, incluindo europeus, e relembrando as de transgressores quando do seu aprisionamento, improvisavam-se fundos neutros obtidos com panos ou, mais frequentemente, esteiras, frente aos quais se posicionavam representantes de etnias locais, normalmente em posição anatómica, erecta, e de rosto quase inexpressivo (Figura 4). Pelo menos, segundo 136

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

Figura 4.  Dançarino “Cadene”. MAEG. Ilha Formosa, arquipélago dos Bijagós, Guiné-Bissau. 1946. Fotografia.IICT/AHU_ID25798.

Figura 5.  Pilando o chabéu. MAEG. Arquipélago dos Bijagós, Guiné-Bissau. 1946. Fotografia. IICT/AHU_ID25828.

Figura 6.  Bailarinos. MAEG. Ilha Formosa, arquipélago dos Bijagós, Guiné-Bissau. 1946. Fotografia. IICT/AHU_25814

parâmetros ocidentais e tradicionais premissas académicas sistematizadoras e categorizadoras de foro antropométrico, recordando o apreço oitocentista pela anatomia comparada, examinada pelas sociedades etnológicas assomadas ainda na primeira metade da centúria, quase em simultâneo ao aparecimento da tecnologia fotográfica distinguida pela autoridade científica que a imagem imprimiria aos estudos. Daí, também, que o fascínio pela diferença justificasse um registo contínuo das realidades encontradas, mesmo quando inúteis para a administração local. A incapacidade, impreparação ou, simplesmente, desconhecimento da variabilidade cultural das etnias locais determinava, por vezes, uma fixação imagética, superficial, pouco correspondente ao conteúdo factual, mesclando diferentes níveis informativos decorrentes da intersecção artificial, no mesmo plano, de individualidades e acções que dificilmente se encontrariam no mesmo espaço e no mesmo tempo. Neste sentido, a fotografia assume, (quase) perigosamente, uma dimensão cenográfica passível de interpretações erróneas com consequências, por vezes, problemáticas. Entretanto, os géneros permaneciam inconfundíveis, adstritos aos seus universos próprios, numa consolidação dos papéis que lhes eram atribuídos milenarmente, ocupando-se – mas não em exclusivo (Figura 5) –, as mulheres do mundo ocidentalmente entendido como doméstico, e os homens dos exercícios mais físicos e da relação com o sagrado (Figura 6), apesar da matrilinearidade bijagó, diferenciando formas e conteúdos, e pormenorizando fisionomias, indumentárias e ornamentações. Não sendo antropólogos culturais e etnólogos, os membros da MAEG que, embora não contratados especificamente para esse efeito, envergavam a câmara fotográfica, cristalizavam momentos que entenderiam singulares, para a cultura e a imagética europeias. Munidos desse poderoso intermediador de conhecimentos, transportador de saberes e fazedor de narrativas, disposto a 137

1.  Classificação / Missão

Figura 7.  Árvore. MAEG. Arquipélago dos Bijagós, Guiné-Bissau. 1946. IICT/AHU_ID25771.

Figura 8.  Canoa em Orango. MAEG. Arquipélago dos Bijagós, Guiné-Bissau. 1946. IICT/AHU_ID25803.

tiracolo ou com o estojo repousando sobre a mesa de trabalho, arquivavam memórias feitas de (i)materialidades irrecuperáveis na plenitude, porquanto irrepetíveis. Seleccionadas por educações, academismos e sensibilidades pessoais, as imagens registadas deste modo atravessavam territórios, paisagens inesperadas e vivências endógenas para lá dos seus recessos para, descontextualizadas, incorporarem outros enquadramentos, dessa feita, científicos (Figura 7). Mesmo que a maioria das fotografias executadas não se diferenciem pela estética, elas desvendam sentires aditados, procurando testemunhar, o mais realisticamente possível, o objecto fixado (Figura 8). Limitações reconhecidas, no conjunto, pelo responsável da MAEG no terreno, Amílcar Mateus, sobretudo tratando-se de uma Missão que, além de Antropológica, era Etnológica, embora nunca contemplasse um especialista na matéria, pese embora as recomendações amiudadas nesse sentido: “Seria da máxima conveniência que a esta Missão fossem dadas possibilidades, para recrutamento de um etnógrafo e um musicólogo (…)” 47. Ausência assaz indicativa do entendimento político sobre a importância de estudos congéneres. A colecção fotográfica da MAEG testemunha bem como, por entre cumprimentos decididos antecipadamente, a lente eternizou distintos passos, deslumbres e ambiências. Dela, todavia, pouco remanesceu para lá das malhas académicas, remetendo-se à escuridão da sua arrumação e ao esquecimento dos seus fazedores e sucessores científicos, até ser recuperada, identificada e reacondicionada para estudos ulteriores. 138

  Arch.-IICT. MAEG. Campanha de 1945. 17 de Maio de 1946. Inédito. 47

Fotografias da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (1946-1947)

  Arch.-IICT. MAEG. Campanha de 1945. 17 de Maio de 1946. Inédito. 48

Seria, no entanto, para desejar que esta iconografia fosse associada a outros materiais recolhidos no mesmo âmbito, designadamente aos 190 m de filme cinematográfico de costumes, ainda não localizados, procurando, ainda, compreender as razões da irrealização das duas campanhas subsequentes, previstas para o triénio de 1947-1949, não obstante a inscrição, no n.º 59 da I Série do Diário do Governo, de 23 de Março de 1949, do Orçamento de receita e despesa para 1949 da missão antropológica e etnológica da Guiné. Foram, no entanto, concretizados trabalhos de gabinete, na UP, a partir dos materiais recolhidos nesse decurso, deles resultando publicações circuladas pela comunidade científica mais atenta aos assuntos subjacentes 48, a analisar oportunamente.

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