FOTOMONTAGEM NA ALEMANHA: DO MOVIMENTO DADA À MANIFESTAÇÃO ANTIFASCISTA

May 23, 2017 | Autor: Cláudia Lima | Categoria: Photography, Photomontage
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FOTOMONTAGEM NA ALEMANHA: DO MOVIMENTO DADA À MANIFESTAÇÃO ANTIFASCISTA

Cláudia Lima *

vimento e da iluminação, conferindo-lhe uma nova plasticidade e expressividade. A realidade passa, então, a ser representada segundo um novo olhar, cheio de ousadia e dinamismo, trazido por autores como Man Ray, Moholy-Nagy ou André Kertész. E é neste despoletar de novas tendências artísticas que se fazem as primeiras experiências de fotomontagem, num período pós guerra (I Guerra Mundial), no auge do movimento Dada de Berlim. O conceito de fotomontagem descrevia, então, uma nova técnica e forma de arte que consistia na introdução de fotografias nas obras de arte. As fotografias e fragmentos fotográficos atuavam como elementos centrais e estruturadores da obra e podiam ser conjugados com recortes de jornais e revistas, com tipografias e desenhos para criar imagens de forte impacto, obtendo, numa mesma composição, várias leituras simultâneas e um efeito de descontinuidade do espaço. A fotomontagem apresentava-se, assim, como uma forma de arte interventiva (mais do que uma técnica), que estabelecia uma rutura com a dialética da arte tradicional, designadamente a arte abstrata, reforçando uma atitude do movimento Dada contra a pintura a óleo tradicional e a obra de arte única dirigida a elites (Ades 2002). Uma vez construída a fotomontagem, esta podia ser fotografada ou impressa, resultando numa imagem plana passível de sucessivas reproduções. Este aspeto refletia uma nova abordagem artística que visava aproveitar e incluir os avanços tecnológicos e processos de mecanização nas obras. Efetivamente, a fotomontagem pressupunha uma arte dirigida

No início do século XX, viveram-se momentos de grande agitação político-social cujo impacto se fez sentir em vários domínios, nomeadamente no domínio da arte. A ciência e a tecnologia sofreram profundas transformações e o conceito de arte foi revolucionado por movimentos artísticos contemporâneos como o Dadaísmo, que surge de forma independente em diferentes cidades, como Zurique, Berlim, Colónia ou Nova Iorque, o Construtivismo, na Rússia, ou o Surrealismo, em França (Foster et al. 2011). Estes movimentos idealizavam uma arte dirigida a um público de massas (e não a elites) e investiam em transformações profundadas numa abordagem estética que “substitui a originalidade pela reprodução técnica, destrói a aura da obra e os modos contemplativos da experiência estética e substitui-os por uma ação comunicativa e aspirações em direção à perceção coletiva simultânea” (Foster et al. 2011, p. 25). O movimento Dada, em Berlim, surge como protesto contra a guerra (Meggs & Purvis 2009) e traz uma nova ideologia artística com a introdução de uma estética e atitude face à arte muitas vezes proclamada como anti-arte. Rejeita a arte tradicional das pinturas a óleo, fechadas em museus e restritas a uma elite, e aposta numa arte alternativa para uma cultura de massas, explorando amplamente as novas tecnologias de então. Esta tendência para romper com os cânones tradicionais, reflete-se também no domínio da fotografia, em que a tradicional imagem documental representativa do espaço real ou informativa é substituída pela experimentação de novos enquadramentos e perspectivas, pela exploração do mo-

* Doutoramento em Media Digitais pela Universidad do Porto (2015); Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Fernando Pessoa (2009); master em Desenho e Produção Multimédia pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona (2005) e licenciou-se em Design de Comunicação, pela ESAD, em Matosinhos (1998); docente do curso de Design de Comunicação da Universidade Lusófona do Porto e investigadora do ID+ – Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura.

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a públicos de massas, sendo que muitas das composições realizadas neste âmbito se tornaram conhecidas através de reproduções em meios de comunicação de massas, tais como revistas e periódicos.

do mundo das máquinas e da indústria no mundo da arte” (Ades 2002, p. 13). Por um lado, tanto as revistas como os jornais eram fruto de processos mecânicos; por outro lado, os próprios temas eram representativos da indústria e das suas máquinas. Em Schnitt mit dem Küchenmesser Dada durch die letzte Weimarer Bierbauch Kultur Deutschlands (Cortado com uma faca de cozinha através da barriga-de-cerveja da República de Weimar) [link], realizado em 1919, Höch dispõe, de um modo quase grotesco, fragmentos de fotografias e textos onde, para além das alusões ao mundo das máquinas e ao progresso tecnológico, se evidencia a admiração pelo comunismo russo. Nesta fotomontagem, cabeças, corpos, rodas dentadas e outros componentes de máquinas misturam-se e sobrepõem-se numa imagem densa da qual fazem parte figuras chave da República de Weimar, entre elas figuras políticas, como o Presidente Social Democrata Friedrich Ebert, e figuras do mundo cultural, como Albert Einstein, Käthe Kollowiz ou Niddy Impekoven (Foster et al. 2011). Os elementos representados são distribuídos pela composição de forma aleatória e conjugados com fragmentos de textos, muitos deles invocando as sílabas “da-da”, numa alusão ao próprio movimento artístico4. Sob a inscrição “Die Große dada” (o grande dada), podemos visualizar a imagem de Lenin ao lado de Johannes Baader5. E mais abaixo, surge o retrato de Hausmann montado num corpo de uma espécie de robot mecânico. Para Hausmann, companheiro de Höch, a pintura que se praticava durante o período da Grande Guerra fracassava devido “à sua não objetividade e à sua ausência de convicções” (Ades 2002, p. 24). Defendia, por isso, que a pintura e os demais domínios artísticos precisavam de uma mudança radical para se enquadrarem e refletirem melhor as vivências e o espírito da sua época. Segundo o autor (citado em Frizot 1991), o conceito de fotomontagem refletia, inicialmente, “o nosso ódio pelos artistas”, posicionando-se os autores deste tipo de composições como engenheiros e construtores dos seus trabalhos artísticos. Por um lado, a fotomontagem representava uma rutura com a arte, afastava-se do abstracionismo das correntes artísticas, apresentando composições mais próximas da

Fotomontagem como meio potenciador da mensagem 1. Valorização da mensagem na fotomontagem Dada A fotomontagem, enquanto prática artística, surgiu no início do séc. XX, no seio do movimento Dada de Berlim. Existe alguma controvérsia quanto à autoria do primeiro trabalho de fotomontagem, uma vez que tanto George Grosz (juntamente com John Heartfield) como Hannah Höch e Raoul Hausmann se autoproclamaram como os inventores desta prática (Ades 2002). A aplicação de fotografias em obras de arte plástica já havia sido feita por artistas do século XIX e início do século XX, e já existia o que então se denominava como “construção” ou “composição fotomecânica”. Desde os primórdios da fotografia, vários fotógrafos fizeram experiências no âmbito da manipulação fotográfica1 . Na última década do século XIX, a fotomontagem era praticada no design de anúncios publicitários para recontextualizar objetos e criar realidades ilusórias através da exploração de escalas, de distorções da imagem, de colagens e sobreposições. Nos primeiros anos de 1900, foram criados, na Alemanha, vários postais populares partindo da técnica da fotomontagem2. E vários artistas de movimentos como o cubismo ou futurismo utilizaram elementos fotográficos nas suas composições3. Não obstante estas práticas de incorporação e montagem de fragmentos fotográficos, a fotomontagem constituía até então uma técnica complementar para obter um determinado efeito e não era entendida enquanto forma de arte. Pelas mãos dos dadaístas berlinenses, esta prática assumiu um carácter artístico, tornou-se ela mesmo numa forma de arte baseada na composição e montagem de fragmentos fotográficos, constituindo estes os elementos centrais das obras artísticas. Inicialmente, a fotomontagem tinha como temática dominante o progresso tecnológico. Segundo Hannah Höch, o “único propósito era integrar os objectos

1 Em 1856 Gustave Le Gray combina dois negativos, um com uma imagem do mar e outro com uma imagem do céu, para obter a composição fotográfica A onda, e, em 1857, Oscar Gustave Rejlander justapõe 30 negativos para obter a composição Os caminhos da Vida (Frizot 1991; Sougez 2001). Em 1857, George Washington Wilson constrói uma montagem fotográfica que reúne retratos de cento e um cidadãos de Aberdeen. A composição The Signing of the Deed of Demission, realizada por David Octavius Hill e Robert Adamson em 1866, tornou-se também numa referência no âmbito da montagem fotográfica. Trata-se de uma pintura realizada a partir de uma montagem de 447 retratos dos participantes na Primeira Assembleia da Free Church of Scotland, dispostos lado a lado (Frizot 1991). 2 Um exemplo, de 1914, é o postal popular onde um marinheiro e a sua noiva surgem iluminados no centro de um céu negro como se se elevassem de um navio de guerra. São, também, vários os exemplos de postais com representantes aliados contra a Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, como é o caso do postal Ein sauberes Kleeblatt, de 1914, onde os retratos do Czar Nikolaus II, de Georg V e de Poincaré se sobrepõem, cada um deles, a uma folha de um trevo de três folhas desenhado. Hausmann e Höch assumiram mesmo serem influenciados pelos postais populares de soldados da Frente Alemã (Foster et al. 2011) 3 Por exemplo, Carrà ou Malévich. 4 Segundo Huelsenbeck, a designação Dada terá surgido ao inserir “uma faca as páginas de um dicionário” (Foster et al. 2011, p. 176) 5 Artista do movimento Dada.

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arte figurativa, mas numa abordagem fragmentada onde prevalecia a rutura e descontinuidade dos elementos visuais. Por outro lado, a técnica em si apresentava-se como uma forma de construção, de fabricação de um contexto imagético, através da transformação e recontextualização de materiais existentes. Deste modo, esta prática artística apresentava-se como um método revolucionário, no que respeitava à sua tecnicidade, à sua plasticidade e resultado visual, frequentemente de aspeto caótico e anárquico. Dada Messe (Feira Dada), realizada em Berlim pelo movimento Dada berlinense, em Junho de 1920, consistiu na primeira mostra de obras deste movimento ao público. O grupo de artistas participante pretendia reconfigurar, também, o conceito e a estrutura de exposições, sendo o próprio nome Messe (Feira) um índice desta intenção, assim como a designação dada aos trabalhos expostos – Erzeugnisse (produtos). Nesta exposição, ou feira, que tinha como lema “A arte está morta! Viva a arte da máquina de Tatlin!” (Ades 2002, p. 27), foram apresentadas várias fotomontagens, entre as quais a supracitada Schnitt mit dem Küchenmesser Dada durch die letzte Weimarer Bierbauch Kultur Deutschlands, de Hannah Höch, Dada Siegt (Dada Vence) [link] e Tatlin lebt zu Hause (Tatlin em sua casa) [link] de Raoul Hausmann. Nestas fotomontagens estava implícita uma forte alusão ao novo mundo tecnológico, transparecendo mesmo uma admiração pela “arte de produção russa” (Ades 2002, p. 27). Em Tatlin lebt zu Hause (Tatlin em sua casa) [link], Hausmann coloca como figura central a imagem de um homem que, segundo ele, fazia lembrar Tatlin, e representa uma série de máquinas a saírem da sua cabeça. O autor pretendia com esta montagem transmitir a ideia de um homem que não tinha nada na sua cabeça, a não ser máquinas e peças alusivas à mecânica auto-

móvel, entre as quais motores, travões, volantes, como se este homem estivesse a imaginar uma grande máquina6. Segundo Frizot (1991), as primeiras experiências no âmbito da fotomontagem terão sido realizadas por George Grosz e John Heartfield, em 1916. Das primeiras composições de Heartfield destacam-se as fotomontagens realizadas para a Neue Jugend, uma publicação da editora Malik-Verlag7 com obras artísticas e literárias antifascistas, obras dadaístas e periódicos satíricos. Neste contexto, sua primeira fotomontagem terá sido criada em 1919 para a capa do único número da revista satírico-político Jedermann sein eigner Fussball (figura 1) da publicação Neue Jugend (Ades 2002). Esta fotomontagem era composta por retratos de líderes políticos e reconhecidos militares da República de Weimar, colocados sobre um leque de senhora, como se estivessem num escaparate de vendas. Transparecia a ideia de uma galeria de figuras ilustres numa composição paródica onde a imagem se apresentava sob o título “Quem é o mais bonito?”. Autores como Hausmann e Höch, Grosz e Heartfield eram inspirados pelas “fotografias populares de índole cómica” (Ades 2002, p. 24), vendo nestas imagens um forte potencial para transmitir significados e mensagens de forma subversiva. Estes autores fizeram inúmeras experimentações artísticas, no âmbito do movimento Dada, tecnicamente ricas na utilização de materiais, podendo incluir apenas a fotografia ou combinar elementos tão diversos como o desenho ou textos e figuras recortadas de jornais ou revistas e outros elementos fragmentados colados diretamente sobre a superfície de trabalhos que refletiam a cultura e sociedade da época e transmitiam, muitas vezes, um descontentamento e uma crítica face às políticas em vigor e interesses económicos subjacentes. Assim, mais do que a composição em si, prevalecia o teor da mensagem, po-

dendo a imagem criada resultar numa cacofonia de elementos visuais. Obras como Dada-merika ou Leben und Treiben in Universal-City 12 Uhr 5 mittags (Vida e actividade na Cidade Universal às 12.05 do meio-dia), realizadas por Grosz e Heartfield no contexto do movimento Dada, transmitiam uma sociedade caótica através de uma composição onde os elementos gráficos pareciam gritar pela atenção do observador e rivalizar entre si. Em Dada-merika (figura 2) são conjugados fragmentos fotográficos e texto proveniente de recortes de jornais. Em Leben und Treiben in Universal-City 12 Uhr 5 mittags (figura 3) o aspeto caótico torna-se mais evidente pela sobreposição de inúmeras imagens e textos recolhidos de jornais e revistas da época que resultam numa imagem global fragmentada e saturada de informação numa alusão a aspetos quotidianos da sociedade. Nesta fotomontagem, fragmentos fotográficos de figuras e textos sobrepõem-se em múltiplas camadas, conferindo à imagem um aspeto desordenado e frenético, onde os diferentes elementos parecem rivalizar entre si pela atenção do observador. Os textos, de poucas palavras (ou uma só palavra). Oriundos de diversas fontes, apresentam-se com diferentes tipografias, em várias escalas e pesos de letra e com orientações distintas, contribuindo para uma espécie de amálgama de informação presente nesta obra. A utilização de autorretratos e retratos de figuras conhecidas do movimento Dada ou de figuras políticas era frequente nas fotomontagens dadaístas, como acontecia na fotomontagem da capa do periódico Jedermann sein eigner Fussball (figura 1). E a sobreposição da figura humana com elementos alusivos à produção mecânica era também recorrente, caso de Schnitt mit dem Küchenmesser Dada durch die letzte Weimarer Bierbauch Kultur Deutschlands [link]. Em ABCD (1923-24), Hausmann cria

6 Sobre esta fotomontagem, em 1967 Hausmann afirmava: “One day, I thumbed through an American magazine absolutely absent-mindedly. All of a sudden, the face of an unknown man struck me, and I do not know why I automatically made the association between him and the Russian Tatlin.” In http://www.galleryintell.com/artex/tatlin-home-raoul-hausmann/. 7 Editora fundada por Wieland Herzfeld, irmão de John Heartfield, durante a I Guerra Mundial. Publicava obras do movimento Dada,

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Figura 2. Dada-merika, George Grosz e John Heartfield, 1919.

Figura 1. Fotomontagem para capa de Jedermann sein eigner Fussball, John Heartfield, 1919.

Fonte: The John Heartfield Exhibition (HeartfieldExhibition.com). ©2017, John J. Heartfiel, BildKunst e George Grosz, Bild-Kunst, 2017.

Fonte: The John Heartfield Exhibition (Heart fieldExhibition.com). ©2017, John J. Heartfield, Bild-Kunst, SPA.

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um autorretrato através da sobreposição de um conjunto de elementos gráficos relacionados com períodos importantes da sua vida e alusivos às suas próprias vivências e convicções. No centro desta composição, encontra-se uma fotografia do autor à qual se sobrepõe, na zona da boca, o título de um poema fonético da sua autoria – ABCD – como se o estivesse a declamar. Esta figura central é conjugada com outros materiais, entre os quais, bilhetes para o Kaiserjubilee, na zona do chapéu; o bilhete Merz para uma performance do próprio autor, que é aqui colocado como elemento comemorativo da sua amizade com Kurt Schwitters8 ; um pequeno fragmento do mapa de Harar, no canto superior direito, onde Rimbaud, poeta admirado por dadaístas e surrealistas, viveu; e dinheiro e palavras que se entrelaçam nos fragmentos dispostos na composição. Como resultado, o autor obtém uma imagem contrastante onde se evidencia a riqueza dos fragmentos tipográficos [link]. Ainda que os textos incluídos nestas obras fossem oriundos de fontes pre-existentes, as suas propriedades visuais eram exploradas nestas obras, designadamente através da conjugação de diferentes tipografias, escalas de texto e pesos de letra. As obras supra citadas de Heartfield, de Hausmann e de Höch são um claro exemplo disso. A utilização de textos provenientes de diversas fontes e exploração da riqueza tipográfica destes textos era, aliás, uma prática recorrente nas composições do movimento Dada que entendia “as letras como formas visuais concretas, mais do que como meros símbolos fonéticos” (Meggs & Purvis 2009, p. 262). Por vezes, os fragmentos de textos aplicados nas fotomontagens adquiriam um grau de importância tão grande quanto os fragmentos fotográficos utilizados, não só pela sua imagem gráfica, mas também pelo próprio conteúdo. Sendo muitos dos artistas de esquerda, este movimento revelou-se como um “projeto avant-garde explicitamente politizado” (Foster et al. 2011, p. 174), centrando-se em temas como

a crítica aos conceitos burgueses das Belas Artes e a propaganda política, através de composições, colagens e fotomontagens, ou seja, “de técnicas de montagem destinadas a minar o emergente poder de massas culturais da indústria de publicação de Weimar” (Foster et al. 2011, p. 174). 2. Um caso particular: John Heartfield e o poder subversivo da fotomontagem Não se pode afirmar com certeza quem terão sido os pioneiros da fotomontagem alemã no seio do movimento Dada, mas o papel de Heartfield, neste domínio, adquiriu uma importância inquestionável, não só pela plasticidade das suas composições, como também, e principalmente, pela carga política implícita nos seus trabalhos. Depois de várias obras produzidas no contexto do movimento Dada, onde já subjaziam frequentemente as suas tendências políticas, Heartfield produziu inúmeras fotomontagens de teor antifascista, não só para a imprensa comunista alemã, mas também para capas de livros da editora Malik-Verlag. Publicou trabalhos em periódicos e revistas como Der Knuppel (1923-1927), no seminário satírico-político do KPD (Partido Comunista Alemão) Die Rote Fahhne e na AIZ - Arbeiter-Illustrierte Zeitung (Revista Ilustrada dos Trabalhadores), posteriormente designada como Die Volks Illustrierte. Heartfield partilhava dos ideais socialistas e anti-militaristas, tendo-se tornado membro co-fundador do Partido Comunista Alemão KPD em 1918 (Berger 1972a; King & Volland 2015). Desde cedo, grande parte da sua obra foi dedicada a denunciar o fascismo e os interesses económicos subjacentes através de fotomontagens satíricas, as quais eram complementadas com textos e legendas que perspetivavam reforçar o conteúdo das mensagens transmitidas nas composições e elucidar o público de massas. Com a ascensão do fascismo na Alemanha, em 1933, Heartfield refugia-se em Praga onde dá continuidade ao seu trabalho de fotomontagem, cada

8 Artista do movimento Dada.

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vez mais com um carácter revolucionário, assumindo uma postura crítica severa face às políticas alemãs e a Hitler. Nas suas primeiras fotomontagens, Heartfield fazia composições que resultavam frequentemente em imagens fragmentadas, de aspeto caótico e explosivo, refletindo as tendências do movimento Dada, como acontecia em Leben und Treiben in Universal-City 12 Uhr 5 mittags (figura 3). Há medida que os seus trabalhos começam a assumir uma vertente da fotomontagem mais comunicativa e propagandística, orientada para audiências de massas da classe operária, as suas fotomontagens deixam de constituir composições fragmentadas, apresentando-se antes como narrativas visuais bem estruturada cujos textos se encontram estrategicamente colocados, funcionando como legendas complementares da imagem e destinados a reforçar uma mensagem clara do seu posicionamento político de esquerda. Segundo Foster et al. (2011), esta nova abordagem de Heartfield à fotomontagem representa mesmo uma crítica às primeiras fotomontagens berlinenses por terem adquirido um estatuto de obras de arte tradicional, em oposição ao conceito de uma fotomontagem que visava dirigir-se ao proletariado, constituindo, assim, “uma ferramenta de cultura de massas” (p. 177). A composição Das Gesicht Des Faschismus (A Face do Fascismo) (figura 4) é um exemplo claro de uma abordagem à fotomontagem distinta das abordagens de Höch ou Hausmann. Nesta composição, criada para a capa do periódico Italien in Ketten, publicado pelo Partido Comunista em 1928, as imagens são sobrepostas numa estrutura que se apresenta ainda fragmentada, mas a sua legibilidade e integridade não são comprometidas, servindo de base para a compreensão de uma mensagem clara. Heartfield apresenta, na zona central e em grande plano, uma imagem do rosto Mussolini à qual sobrepõe a imagem de um crânio, satirizando a frase de Mussolini, transcrita na parte inferior da composição, a saber: “Vou alterar o

Figura 3. Leben und Treiben in Universal-City 12 Uhr 5 mittags (Vida e actividade na Cidade Universal às 12.05 do meio-dia), George Grosz e John Heartfield, 1919. Fonte: The John Heartfield Exhibition (HeartfieldExhibition.com). ©2017, John J. Heartfiel, Bild-Kunst e George Grosz, Bild-Kunst, 2017.

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rosto da Itália nos próximos 15 anos de tal forma que ninguém a reconhecerá”. O rosto de Mussolini encontra-se ladeado por quatro imagens ilustrativas, segundo Heartfield, do significado e das repercussões da declaração deste ditador. Do lado esquerdo do rosto, na parte superior, a imagem de um capitalista burguês funde-se com a imagem de um grupo de fascistas armados que aparece na parte inferior; do lado direito, surge, na parte superior, a imagem do Papa e outras figuras dignitárias da igreja católica e, na parte inferior, a imagem de vítimas da violência tombadas no chão. Ainda que os elementos de Das Gesicht Des Faschismus surjam de forma fragmentada, criando ruturas e descontinuidades na imagem, eles coexistem dando forma a uma narrativa visual clara e com uma intencionalidade política evidente. Esta composição afasta-se, deste modo, da abordagem do movimento Dada berlinense cujas fotomontagens eram pautadas pela irracionalidade e aleatoriedade e, segundo Heartfield, desprovidas de orientação política (Foster et al. 2011). Há medida que Heartfield foi acentuando o teor crítico das composições face ao regime fascista, as composições criadas nas suas fotomontagens tornaram-se mais claras e percetíveis, uma mensagem mais evidente para uma maior acessibilidade ao público de massas. De facto, as fotomontagens realizadas neste âmbito, sobretudo as que se destinavam a periódicos como Der Knuppel, Die Rote Fahhne ou AIZ, constituíam peças de propaganda política, pelo que o autor investia, não só na sua acessibilidade, mas também no seu potencial persuasivo. Estas composições ocupavam toda a página da publicação e eram compostas por elementos provenientes de livros, revistas, agências fotográficas, jornais ou mesmo fotografias da sua autoria. O resultado visual era frequentemente grotesco e chocante, destinado a expôr “a estrutura de classes das relações sociais”, a denunciar os interesses económicos da política capitalista alemã e a expôr “a ameaça do fascis-

mo” (Ades 2002, p.45). Numa forte crítica à economia capitalista vivida na Alemanha, que em 1932 contava com 6 milhões de desempregados, Heartfield criou Spitzenprodukte des Kapitalismus (Os produtos mais seletos do capitalismo), uma fotomontagem que expunha a divisão de classes sociais pela sobreposição de duas figuras representativas dos extremos de estratos sociais (link). Num primeiro plano, um homem desempregado e de aspeto miserável apresenta uma tabuleta pendurada ao pescoço com a frase “Aceita-se qualquer trabalho”, como se o próprio estivesse à venda. Este homem encontra-se a pisar um longo véu de uma noiva posicionada num segundo plano, de pé sobre uma espécie de palco elevado. Esta composição colocava em confronto uma realidade alemã pautada pela diferenciação de classes sociais e pelo crescente desemprego, personificando estas duas figuras as diferenças sociais resultantes do capitalismo e das políticas alemãs. Na legenda original podia ler-se “Traje de noiva de 10.000 dólares, 20 milhões de desempregados” (cit. In Ades 2002, p. 45). Durante a década de 30, Heartfield recorreu frequentemente à sátira e ironia nas suas fotomontagens para evidenciar os antagonismos e paradoxos entre o discurso nazi e a realidade da sociedade alemã. As fotomontagens adquiriram uma linguagem gráfica mais clara e simplificada perspetivando a legibilidade e acessibilidade da mensagem implícita e explícita. O processo de trabalho do autor passava pela composição/sobreposição de fotografias, ou fragmentos fotográficos, sendo o resultado fotografado e retocado para uma imagem mais limpa e objetiva face à intenção propagandística do autor (Hollins 2010). A utilização de elementos reais, como fotografias e textos e discursos recolhidos dos jornais e revistas da época, permitia-lhe também conferir um certo sentido de realidade à fotomontagem, tornando-as frequentemente mais chocantes, como acontece em

Spitzenprodukte des Kapitalismus. Segundo Berger (1972a), “a vantagem peculiar da fotomontagem reside no facto de que tudo o que foi recortado mantém a sua aparência fotográfica familiar. Ainda estamos a olhar primeiro para as coisas e só depois para os símbolos” (p. 185). A fotografia é um registo daquilo que foi visto e, por isso, não é ilusória, mas um retrato do real, um registo daquilo que aconteceu (Barthes 2015; Berger 1972b)9 . O facto de estas imagens serem recontextualizadas em novos cenários inesperados, quebrando a continuidade dos originais fotográficos, evidencia a mensagem destas composições e potencia a sua carga simbólica, perpetuando uma nova leitura dos acontecimentos reais. A obra Ein Pangermane (Um Pangermanista), de 1933, constitui uma fotomontagem simples composta por duas imagens. A primeira imagem é uma fotografia de Julius Streicher, líder pangermanista e diretor do jornal antissemita Strümer (O atacante). A segunda imagem é uma fotografia de um homem ensanguentado caído no chão10. Tratava-se de uma fotografia proveniente da polícia de Stuttgart, publicada originalmente na Photo-eye sob a legenda “vítima em tempos de paz” (citado em Ades 2002, p. 45). As duas imagens encontram-se sobrepostas, resultando na figura do líder nazi a calcar a vítima ensanguentada numa postura que reflete simultaneamente autoridade e indiferença. O olhar de Streicher surge inexpressivo como que indiferente ao cenário trágico a seus pés. No seu casaco, vestígios de sangue denunciam a evidência do envolvimento de Streicher na tragédia retratada. Heartfield criou uma versão de Ein Pangermane para a revista AIZ, tendo o autor acrescentado a figura de um paramilitar do movimento fascista italiano (organizado por Mussolini), com o título Gleiche brüder gleiche mörder, um provérbio alemão semelhante a “tal pai, tal filho” [link). A fotomontagem Adolf der Übermensch: Schluckt Gold und redet Blech (Adolf o super homem: engole

9 Sobre a fotografia, Barthes acrescenta: “A fotografia reproduz até ao infinito aquilo que só aconteceu uma vez: ela repete mecanicamente aquilo que nunca mais poderá repetir-se existencialmente” (Barthes 2015, p. 13). 10 Fotografia da autoria de Franz Roch.

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Figura 4. Das Gesicht Des Faschismus (A Face do Fascismo), John Heartfield, 1928. Fonte: The John Heartfield Exhibition (Heart fieldExhibition.com). ©2017, John J. Heartfield, Bild-Kunst, SPA.

Figura 5. Adolf der Übermensch: Schluckt Gold und redet Blech (Adolf o super homem: engole ouro e cospe lixo), JohnHeartfield, 1932. Fonte: The John Heartfield Exhibition (HeartfieldExhibition.com). ©2017, John J. Heartfield, Bild-Kunst, SPA.

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Figura 6. Hurra, die Butter ist alle! (Hurra, acabou a manteiga!), John Heartfield, 1932. Fonte: The John Heartfield Exhibition (Heart fieldExhibition.com). ©2017, John J. Heartfield, Bild-Kunst, SPA.

ouro e cospe lixo) constitui um trabalho surpreendente do autor que representa uma crítica evidente aos discursos nazis (figura 5). A figura de Hitler surge a discursar e sobre o tronco visualizamos uma espécie de radiografia do seu esqueleto cujo esófago é preenchido por moedas que deslizam pelo seu corpo em direcção ao estômago. Heartfield pretendia evidenciar a relação entre o teor dos discursos nazis e os interesses económicos do capitalismo alemão, numa época em que a crise económica na Alemanha se acentuava. O coração de Hitler é substituído por uma suástica e no lugar do fígado encontra-se uma cruz de ferro. Esta fotomontagem foi, originalmente, capa da revista AIZ e, em agosto de 1932, foi disseminada sob a forma de cartaz pelas ruas de Berlim numa tentativa de alertar a sociedade para os perigos da ascensão do partido nazi ao poder. Outras fotomontagens foram desenvolvidas com o intuito de alertar a sociedade para os reais interesses do partido nazi, entre as quais Millionen stehen hinter mir! (Há milhões atrás de mim), realizada em 1932 (figura 5). Nesta composição, Hitler surge como um fantoche ou marioneta nas mãos do capitalismo alemão. Heartfield pretende denunciar as ligações políticas e económicas entre os grandes industriais e o partido nazi e o fascismo alemão. Para o efeito, transforma a saudação nazi num gesto ambíguo ao colocar a figura de Hitler de mão levantada, mas tombada a receber dinheiro de um homem sem rosto que se encontra imediatamente atrás de si: Hitler era financiado pelos industriais alemães e o seu gesto na fotomontagem revelava a sua aceitação. A figura do líder político surge numa escala muito reduzida comparada com o homem que lhe oferece dinheiro, simbolizando a ideia de “um homem pequeno manipulado por interesses económicos” (Hollin 2010, p. 61). Esta fotomontagem foi também capa da revista AIZ, encimada pelo título Der Sinn Des Hitlergrusses (O significado da saudação Hitler) que, deste modo, reforçava a associação

feita entre os ideais nazis e os interesses económicos do fascismo [link]. Em baixo, entre as figuras representadas, surge o título da fotomontagem – Milhões atrás de mim! – numa espécie de trocadilho entre os milhões de alemães que seguem Hitler e os milhões de dólares que se acumulam nos seus bolsos. E na base da composição, o slogan Kleiner mann bittet um große Gaben – Pequeno homem pede grandes dádivas. Os textos desta fotomontagem surgem de forma sequencial, intercalados pela imagem. A tipografia utilizada, simples e sem serifas, reflete as influências alemãs da Bauhaus e o espírito do funcionalismo. Todos os textos que Heartfield acrescentava às suas fotomontagens eram carregados de sentido e ironias e não raras vezes inspirados no próprio discurso nazi. Em Hurra, die Butter ist alle! (Hurra, acabou a manteiga!), fotomontagem publicada na revista AIZ em Dezembro de 1935, o autor satiriza um discurso de Goering que defendia que “o ferro fortalece sempre um país; a manteiga e a banha de porco só fazem engordar as pessoas” (cit. in Ades 2002, p. 57), denunciando, assim, as prioridades do governo alemão (figura 6). Nesta fotomontagem, Heartfield cria uma composição de uma família alemã sentada à mesa a comer objetos de ferro, como armas, balas ou a estrutura de uma bicicleta. Num plano da frente visualizamos um bebé deitado num berço a comer também um pedaço de ferro com o símbolo nazi da suástica. A seu lado, um cão mordisca igualmente um pedaço de ferro. A lealdade desta família ao partido nazi encontra-se impressa em diversos outros pormenores. Num plano de fundo, podemos visualizar a parede da sala forrada com um padrão composto de suásticas e, na zona central da fotomontagem, a figura de Hitler emoldurada num quadro. Mais à esquerda, uma segunda moldura contém um lema extraído de uma canção popular escrita em 1870 durante a guerra Franco-Prussiana que dita “Querida

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pátria, podes estar em paz”11. E sobre o sofá, do lado direito, uma almofada com o retrato de Paul von Hindenburg, responsável pela nomeação de Hitler como Chanceler da Alemanha. O texto surge na parte inferior da fotomontagem: o título “Hurra, die Butter ist alle” a grande escala, precedido pela citação do discurso de Goering para reforçar a relação entre a composição feita e este discurso. O trabalho desenvolvido por Heartfield foi, sem dúvida, notável e, provavelmente, o mais marcante no âmbito da fotomontagem de crítica política. Segundo Berger (1972a), as suas fotomontagens realizadas durante as décadas de 20 e 30 constituem “um meio subtil mas vivido de educação política, e mais precisamente de educação Marxista” (p. 185). Partindo de elementos de cenas reais fotografadas, Heartfield cria novas narrativas, originais, surpreendentes e inesperadas (como em Ein Pangermane), e constrói uma mensagem política clara e objetiva quanto ao seu posicionamento face ao regime vigente na Alemanha, através de um registo gráfico onde predominava a ironia e a sátira, ousadia e a provocação. Em 1938, tendo conhecimento de que o seu nome constava de uma lista de inimigos do partido nazi, Heartfield deixa Praga rumo a Londres, regressando à Alemanha (mais propriamente à República Democrática da Alemanha) apenas em 1950. O autor nunca deixou de produzir fotomontagens propagandísticas de teor político-social. Para além dos trabalhos realizados como crítica ao fascismo, Heartfield participou

também “na luta do governo republicano espanhol contra os rebeldes dirigidos por Franco” (Ades 2002, p.57), sendo uma das fotomontagens mais conhecidas a Die Freiheit kämpft in ihren reihen (A liberdade luta em suas fileiras), publicado em 1936 na revista Volks Illustrierte. Criou fotomontagens como meio de protesto contra a guerra do Vietnam e fotomontagens para apelar à paz mundial (Meggs & Purvis 2009).

AGRADECIMENTOS Expressa-se aqui um agradecimento às entidades que nos facultaram permissão para publicação de imagens, a saber: Bild-Kunst; SPA e The John Heart field Exhibition (Heart fieldExhibition.com).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Ades, Dawn (2002). Fotomontage. Barcelona: Editorial Gustavo Gili. Barthes, Roland (2015). A câmara clara. Lisboa: Edições 70. Berger, John (1972a). The Political Uses of Photo-Montage. In Selected Essays and Articles: The Look of Things. pp. 183-189. England: Penguin Books. Berger, John (1972b). Understanding a Photograph. In Selected Essays and Articles: The Look of Things. pp. 178-182. England: Penguin Books. Foster, Hal; Krauss, Rosalind; Bois, Yve-Alain; Buchloh, Benjamin H. D.; & Joselit, David (2011). Art Since 1900: Modernism, Antimodernism, Postmodernism. London: Thames & Hudson. Frizot, Michel (1991). Photomontage: Experimental Photography Between the Wars. London: Thames and Hudson. Hollins, Richard (2010). Design Gráfico: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes. King, David; & Volland, Ernst (2015). John Heartfield Laughter Is a Devastating Weapon. London: Tate Publishing. Meggs, Philip B. & Purvis, Alston W. (2009). Historia del diseño gráfico. Mexico: Editorial RM. Sougez, Marie-Loup (2001). Historia de la fotografia, 8ªed. Madrid: Ediciones Cátedra..

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