FOUCAULT E A PARRESÍA DE PLATÃO

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CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO CAMILO Curso de Filosofia

Vitor Leme Piedade

FOUCAULT E A PARRESÍA DE PLATÃO

São Paulo 2011

Vitor Leme Piedade

FOUCAULT E A PARRESÍA DE PLATÃO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Filosofia do Centro Universitário São Camilo, orientado pelo Prof Bruno Loureiro Conte, como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura em Filosofia.

São Paulo 2011

Vitor Leme Piedade

FOUCAULT E A PARRESÍA DE PLATÃO

São Paulo, xx de xxxxxxxx de 2011

___________________________________ Professor Orientador

____________________________________ Professor Examinador

Epígrafe Décima Carta Platão a Aristodoro. Felicidades. Ouço dizer que és, como sempre foste, um dos mais íntimos amigos de Dião, e que revelas disposição promissora para os estudos filosóficos. Sim, firmeza, lisura, fidelidade, eis o que, a meu parecer, define o verdadeiro amante da sabedoria. Os demais conhecimentos e habilidades visam a fins diferentes, creio defini-los à justa com lhes dar o nome de meros adornos. Passa bem e persevera na orientação que te traçaste. Segunda Carta Platão a Dionísio. Felicidades. (…) A meu parecer, o que te cumpre fazer daqui por diante, sempre que te contarem algo a nosso respeito, é interpelar-me por carta, pois só te direi a verdade, sem vacilações nem constrangimento. (310d)

PIEDADE, Vitor Leme. Foucault e a parresía de Platão. 2011. 55f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Filosofia)- Centro Universitário São Camilo, São Paulo, 2011. A investigação dos vínculos entre liberdade e verdade nas práticas de governo segundo o estudo do filósofo francês Michel Foucault da noção de parresía, um estudo efetuado por meio de duas séries de análises de três cartas do filósofo grego Platão. A primeira série é a análise da atividade de conselheiro político de Platão, e seu objetivo é detectar o aparecimento de três condições de realidade que a filosofia tira de sua relação com a política. A segunda série é a análise dos conselhos políticos de Platão, e cujo objetivo é detectar a parresía na raiz do conselho político de Platão. Tal investigação firma o estabelecimento de três pontos principais que se podem depreender da relação entre filosofia e política nas Cartas de Platão e que culminam na afirmação do caráter totalmente prático da filosofia antiga, uma filosofia cuja realidade e tarefa é a definição do modo de ser do homem político. Palavras-chave:

PIEDADE, Vitor Leme. Foucault e a parresía de Platão. 2011. xxf. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Filosofia)- Centro Universitário São Camilo, São Paulo, 2011.

SUMÁRIO Resumo Abstract 1 INTRODUÇÃO AO TCC .......................................................................................... 7 2 INTRODUÇÃO A NOÇÃO DE PARRESÍA .............................................................. 8 2.1 Primeira análise da parresía ................................................................................. 8 3 O FILÓSOFO COMO CONSELHEIRO POLÍTICO: ANÁLISE DAS CARTAS …... 13 3.1 Considerações acerca das Cartas de Platão …................................................. 13 4 ANÁLISE DA CARTA V …...................................................................................... 16 5 ANÁLISE DA CARTA VII ….................................................................................... 19 5.1 Introdução a Carta VII …..................................................................................... 19 5.2 As duas séries de análise …............................................................................... 22 5.3 (Primeira série – Parte um) A atividade de conselheiro de Platão …...................23 5.4 (Primeira série – Parte dois) Questões acerca do real da Filosofia …............... 27 5.5 (Segunda série – Parte um) Os conselhos políticos de Platão …...................... 38 6 (Segunda série – Parte dois) Análise da Carta VIII …........................................... 46 7 O FILÓSOFO COMO CONSELHEIRO POLÍTICO: RESULTADOS DA ANÁLISE .50 8 CONCLUSÃO DO TCC …..................................................................................... 54 REFERÊNCIAS

1 INTRODUÇÃO AO TCC Esse trabalho dedica-se ao estudo de textos do filósofo francês Michel Foucault. Filósofo este que, por sua vez, no ano de 1983, estuda a noção de parresía. E a estuda em textos de filosofia antiga, mais precisamente nas Cartas e em alguns diálogos de Platão. Estuda a parresía de Platão em sua atividade de conselheiro político, a estuda nos próprios conselhos políticos de Platão. Foucault vê na parresía um ponto de intersecção de todas as suas linhas de estudo, um ponto no qual culmina todo o seu trabalho filosófico e, na questão do governo de si e dos outros, vê o seu efetivo e inevitável desdobramento. Fazer a análise da parresía é, para Foucault, fazer uma história que investiga as ligações, os vínculos, estabelecidos entre a liberdade e a verdade; e que é, ao mesmo tempo, uma história das práticas e discursos de governo. Esse trabalho inicia-se com uma breve análise da parresía, que versa acerca do estabelecimento da parresía como objeto de estudo, que procura localizar e introduzir o estudo da figura do filósofo como conselheiro político nas Cartas de Platão. Após essa e a título de introdução, seguem-se algumas considerações acerca das Cartas de Platão, recorreremos não apenas a Foucault, mas também a intérpretes de Platão tais como W. Jaeger, Franco Trabattoni e Carlos Alberto Numes, e cujo objetivo é introduzir as Cartas como objeto de estudo filosófico. O estudo das Cartas inicia-se pela Carta V, que introduz as análises do filósofo como conselheiro político. Antes do estudo da Carta VII são feitas algumas considerações acerca dos acontecimentos históricos que perpassam e que são relatados na Carta VII. Por sua vez, o estudo da Carta VII é divido em duas séries. A primeira série é a análise da atividade de conselheiro político de Platão, e seu objetivo é detectar o aparecimento de três condições de realidade que a filosofia tira de sua relação com a política. A segunda série é a análise dos conselhos políticos de Platão, conselhos tanto da Carta VII quanto da Carta VIII, e cujo objetivo é detectar a parresía na raiz do conselho político de Platão. Por fim, firma-se o estabelecimento de três pontos principais que se podem depreender da análise da relação entre filosofia e política nas Cartas de Platão e que culminam na afirmação do caráter totalmente prático da filosofia antiga, uma filosofia cuja realidade e tarefa é a definição do modo de ser do homem político.

2 INTRODUÇÃO A NOÇÃO DE PARRESÍA 2.1 PRIMEIRA ANÁLISE DA PARRESÍA Foucault dedica seu curso do ano de 1983 ministrado no Collège de France ao estudo da noção da parresía, investigação cuja direção se dá sob o título O governo de si e dos outros. A palavra pode ser escrita tanto parresía como parrhesía e é de difícil tradução, pois a noção a que se refere é, segundo a metáfora de Foucault, uma “noção aranha” (2010b, p.45), seu longo período de ocorrência, a diversidade dos registros, seu uso múltiplo e plural, tornam a parresía uma noção ambígua. Os latinos a traduzem por libertas (2010a, p.327), mas literalmente pode ser traduzida por “falar tudo”, mas também por franco-falar, falar livremente ou, a tradução que Foucault toma por mais precisa ou interessante, parresía como dizer-a-verdade. Não é a primeira vez que se depara com essa noção. Já no curso do ano de 1982, intitulado A hermenêutica do sujeito, ao estudar as práticas de si na Antiguidade, encontra a parresía ligada ao fenômeno da direção de consciência nos séculos I e II d. C (FOUCAULT, 2010b, p.42)1. Dentro das práticas da direção de consciência a parresía podia designar tanto uma virtude (ou qualidade de uma pessoa), como um dever (poder dar prova de), quanto uma técnica (um procedimento), que caracterizavam o diretor de consciência. O diretor de consciência é aquele que, na arte do cuidado de si, faz o papel do outro, outro com o qual se deve travar relações que ajudem na constituição de uma melhor relação consigo. O diretor de consciência é, no interior da cultura de si, a ação do exterior, do outro que está do lado de fora e cujo papel é dizer a verdade. Esse modo de dizer a verdade, esse dizer a verdade que se insere na relação consigo, e que caracteriza a fala do diretor de consciência é a parresía. Em 1983, porém, já não é mais sob esse foco de incidência, como que lateral e de esclarecimento pontual, da direção de consciência que vai-se estudar a parresía, e sim como noção diretora e principal sob a qual vão se concentrar os esforços. Dentro de seu projeto de releitura da Filosofia Antiga, iniciado no segundo volume da História da Sexualidade: o uso dos prazeres, a parresía vai constituir-se como junção de todos os eixos de estudo empreendidos pelo filósofo francês até 1 Ver aulas ministradas por Foucault em 10 de fevereiro de 1982, segunda hora (2010a, p. 215-6), aula 3 de março de 1982, segunda hora (2010a, p. 327-9), aula 10 de março de 1982, primeira hora (2010a, p. 334-340, p. 342-51), e aula 10 de março de 1982, segunda hora (2010a, p. 358-65).

aquele momento2, avançando para além dos estudos dedicados à cultura de si no curso de 1982 A hermenêutica do sujeito, e alcançando resultados ainda mais abrangentes do que ambos os estudos anteriores. Os eixos de estudo a que Foucault se refere ele os chama também de três focos de experiência: o da formação dos saberes e das práticas de veredicção; da normatividade dos comportamentos e das tecnologias do poder; e da constituição dos modos de ser do sujeito a partir das práticas de si (ver nota 3). Tais considerações são o resumo e esquematização de todo o estudo realizado em suas diversas obras, o resultado de todos os deslocamentos teóricos e conceituais que viu-se obrigado a fazer e dos ganhos que, a partir deles, pôde atribuir à sua obra como historiador do pensamento. Desse modo, o estudo de Foucault da parresía pode ser interpretado tanto como o ponto alto de seu pensamento quanto como a grande fundamentação e esclarecimento último de sua filosofia através da releitura da Filosofia Antiga, principalmente da filosofia de Platão. A noção de parresía assume, portanto, o duplo caráter de ser, ao mesmo tempo, uma antiga noção que se estuda a partir dos já citados três focos de experiência, e ser uma noção que implica por si mesma, que tem implícita ou explicitamente, esse aspecto triplo, que requer, para sua efetiva compreensão, que serem levadas em conta essas três características ressaltadas pela filosofia de Foucault. O que acarreta, que uma análise da parresía deve partir da seguinte questão: “como o dizer-a-verdade, a obrigação e a possibilidade de dizer a verdade nos procedimentos de governo podem mostrar de que modo o indivíduo se constitui como sujeito na relação consigo e na relação com os outros” ? (FOUCAULT, 2010b, p.42). A análise da parresía começa a partir do estudo de um texto de Plutarco, o Vidas Paralelas, na parte que versa acerca da Vida de Dion. Nesse texto, segundo Foucault, a noção de parresía aparece mas não é meditada em si mesma, contudo constitui como que uma cena matricial da parresía. A cena em questão é aquela em que Platão, Dion e Dionísio se encontram e discutem na corte de Siracusa, citamos o que Foucault vê como o mais interessante para o seu estudo da parresía: … a cena é de certo modo duplicada. Há dois indivíduos que, sucessivamente, dão prova de parresía. Primeiro, Platão. Platão, dando a sua grande lição clássica e famosa sobre o que é a virtude, sobre o que é a 2 Tais resumos e esquemas são brevemente feitos por Foucault nas aulas 5 de janeiro de 1983, primeira hora (2010b, p.3-7), e aula 12 de janeiro de 1983, primeira hora (2010b, p.41-2), a título de questões e recapitulações de ordem metodológica.

coragem, sobre o que é a justiça, a relação entre a justiça e a felicidade, fala a verdade. Diz a verdade. Ele a diz em sua lição e também nessa réplica viva que dirige a Dionísio quando Dionísio, irritado com suas lições, lhe pergunta o que veio fazer na Sicília: vim procurar um homem de bem (dando portanto a entender que Dionísio não é esse homem de bem). … . E, segundo elemento, segundo momento da cena – ou antes, prolongamento dessa cena -, Dion, discípulo de Platão, aparece depois da partida de Platão e da punição de Platão como aquele que, a despeito dessa punição e desse castigo tão visível e espetacular, continua a dizer a verdade. Ele diz a verdade e está, em relação a Dionísio, numa situação um pouco diferente da de Platão. Ele não é o professor que ensina. Ele é aquele que, ao lado de Dionísio, como seu cortesão, como seu próximo, como seu cunhado, se encarrega de lhe dizer a verdade, de lhe dar a opinião e, eventualmente, replicar quando o tirano diz coisas que são falsas ou despropositadas. (2010b, p.49-59)

Tal estudo tem por objetivo situar essa maneira de dizer a verdade que caracteriza a parresía a partir da comparação com outras práticas discursivas. De início, ver se o que caracteriza a parresía se encontra ou na própria estrutura do discurso ou na finalidade do discurso sobre a estrutura, isto é, no linguajar de Foucault, em algum tipo ou forma de estratégia discursiva (2010b, p.52). Trata-se de verificar se a parresía é um discurso do tipo demonstrativo, do tipo persuasivo ou retórico, pedagógico, ou mesmo, do tipo erístico. O que logo fica patente é que a parresía, apesar de fazer uso ou poder fazer uso de uma ou outra das estratégias discursivas analisadas, não se caracteriza especificamente por nenhuma delas (FOUCAULT, 2010b, p.55). A parresía não é uma forma própria do discurso ou um efeito particular do discurso que incidiria somente sobre o ouvinte, ela se encontra do lado do locutor, ou melhor, “do lado do efeito de retorno que o dizer-a-verdade pode produzir no locutor a partir do efeito que ele produz no interlocutor” (FOUCAULT, 2010b, p.55). Esse efeito de retorno é a abertura de um certo espaço de risco para aquele que diz a verdade. Para esclarecer, e também colocar em maior evidência, essa característica tão peculiar da parresía, faz-se uma comparação dos enunciados parresiáticos com os enunciados de tipo performativo (FOUCAULT, 2010b, p.60-3). Citamos a explicação e o exemplo de Foucault de que são enunciados do tipo performativo: … para haver um enunciado performativo, é preciso que haja certo contexto, mais ou menos estritamente institucionalizado, um indivíduo que tenha o estatuto requerido ou que se encontre num situação bem definida. Dado tudo isso como condição para que um enunciado seja performativo, pois bem, [um indivíduo] formula esse enunciado. E o enunciado é performativo na medida em que a própria enunciação efetua a coisa enunciada. Vocês conhecem o exemplo arquibanal: o presidente da sessão senta e diz: “Está aberta a sessão.” O enunciado “está aberta a sessão”, apesar a sua

aparência, não é uma afirmação. Não é verdadeiro nem falso. O caso simplesmente, o que é essencial, é que a formulação “está aberta a sessão” faz que a sessão esteja, por isso aberta. (FOUCAULT, 2010a, p.59)

Ambos os tipos de enunciado, o enunciado performativo tomando por base esse exemplo e explicação e o enunciado parresiático tomando por base o texto de Plutarco, compartilham algumas características em comum. Contudo, uma comparação mais atenta revela três grandes diferenças que fazem dos enunciados parresiáticos como que o inverso dos enunciados performativos. A primeira diferença é a abertura de um risco indeterminado que o enunciado parresiático proporciona àquele que o enuncia, visto que qualquer que seja o caráter habitual, familiar, quase institucionalizado da situação em que ela se efetua, o que faz a parresía é que a introdução, a irrupção do discurso verdadeiro determina uma situação aberta, ou antes abre uma situação e torna possível vários efeitos que, precisamente não são conhecidos. (FOUCAULT, 2010b, p.60)

Em oposição ao efeito anteriormente codificado que se segue ao enunciado performativo, no qual os elementos dados na situação são tais que, pronunciado o enunciado, pois bem, segue-se um efeito, efeito conhecido de antemão, regulado de antemão, efeito codificado que é precisamente aquilo em que consiste o caráter performativo do enunciado. (FOUCAULT, 2010a, p.60)

A segunda diferença é a característica do enunciado parresiático de ser uma expressão pública de uma convicção pessoal, fundada num pacto que aquele que o enuncia faz tanto com o ato de enunciação quanto com o conteúdo do enunciado;em oposição à indiferença para o enunciado performativo de haver ou não tal ligação. A terceira diferença é que no enunciado parresiático o emprego de uma livre coragem por parte daquele que o enuncia é mais importante que seu o estatuto; enquanto que, num enunciado performativo, “o estatuto e a situação de quem fala determinam o que ele pode e deve dizer” (FOUCAULT, 2010b, p.63). Das comparações da parresía com os enunciados performativos, Foucault vê surgir duas questões principais. Uma questão propriamente filosófica e outra de caráter mais metodológico. A questão filosófica surge das considerações de que só há parresía quando há liberdade. Liberdade tanto da enunciação da verdade, quanto liberdade no pacto que o sujeito faz com o fato de tê-la enunciado e do compromisso que assume acerca de seu conteúdo verdadeiro, de dizer a verdade (FOUCAULT, 2010b, p.63).

Condições ou características que definem a parresía como “a livre coragem pela qual você se vincula a si mesmo no ato de dizer a verdade” (FOUCAULT, 2010b, p.64). E que, de um uso restrito da parresía pelo diretor de consciência, passa-se a um sentido mais amplo e geral de parresía como “veridicidade” e do parresiasta como o homem verídico. Questão filosófica, portanto, acerca das ligações, do vínculo estabelecido entre a liberdade e a verdade, que se formula da seguinte maneira: “como [o fato de] se obrigar à verdade (…) é efetivamente o exercício, e o exercício mais elevado, da liberdade?” (FOUCAULT, 2010b, p.64). A questão metodológica surge da distinção de dois modos de análise próprios a cada um dos tipos de enunciados: uma Pragmática do discurso, que é “a análise do que, na situação real de quem fala, afeta e modifica o sentido e o valor do enunciado” (FOUCAULT, 2010b, p.65), que incide, justamente, sobre os enunciados performativos; e uma Dramática do discurso, que é “a análise que mostra como o próprio acontecimento da enunciação pode afetar o ser do enunciador” (FOUCAULT, 2010b, p.66) na qual, a análise da parresía configura-se como a análise da dramática do discurso verdadeiro. A partir deste ponto, abre-se todo um campo de possibilidades para a “análise da dramática e das diferentes formas dramáticas do discurso verdadeiro: o profeta, o adivinho, o filósofo, o cientista.” (FOUCAULT, 2010b, p.66). Foucault se interessa por uma dramática do discurso verdadeiro na ordem da política ou uma dramática política do discurso verdadeiro. Para tanto, planeja elaborar uma história do discurso da governamentabilidade que procuraria identificar as grandes formas da dramática do discurso verdadeiro, na investigação nas figuras como a do conselheiro, do ministro, do crítico e do revolucionário (2010b, p.67). História essa que, no curso de 1983, se concentra na passagem da parresía, em seu momento democrático, como característica do orador público, à parresía do filósofo como conselheiro político ao lado do Príncipe.

3 O FILÓSOFO COMO CONSELHEIRO POLÍTICO: ANÁLISE DAS CARTAS 3.1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS CARTAS DE PLATÃO Essa breve introdução sobre a análise da noção de parresía tinha um objetivo. Que era tornar claro os desenvolvimentos que levaram de um estudo pontual da parresía ligada ainda às práticas de direção de consciência ao esboço de uma história da dramática política do discurso verdadeiro em suas grandes formas e figuras. De modo que se chegasse ao ponto no qual se inicia a análise da figura do filósofo como conselheiro político. Tal análise dá-se a partir do minucioso estudo de Foucault sobre uma série de textos de Platão, mais especificamente, as Cartas V, VII e VIII, nas quais são detalhadas a atividade do conselho filosófico de Platão no campo político e a natureza de seus conselhos políticos. Entretanto, para uma melhor compreensão tanto dois meios utilizados quanto dos fins visados nesse estudo das Cartas faz-se necessária uma outra breve introdução, dessa vez uma introdução acerca do estatuto e significado geral das próprias Cartas de Platão3. Para tanto, nos serviremos dos comentários acerca das Cartas que Foucault faz a título de introdução ao seu estudo, como também das observações feitas por outros grandes comentadores, de maior renome e tempo de estudo da Filosofia Antiga que o próprio Foucault, como W. Jaeger na Paidéia, Franco Trabattoni em Oralidade e Escrita em Platão, e de Carlos Alberto Numes em sua introdução à tradução brasileira das Cartas. Foucault (2010b, 191-2) aponta o caráter controverso das Cartas, com a crítica da maior parte do século XII rejeitando a autenticidade de todas as cartas, pelo fato de sua proveniência ou provável reunião advir da Antiguidade tardia, época em que coletâneas reais misturavam-se ao gênero literário de cartas fictícias. À época do curso, já se teriam aceito que, ao menos as Cartas VI, VII e VII, seriam autênticas, escritas pelo próprio Platão ou oriundas de meios extremamente próximos ao filósofo. Mas, seja como for, Foucault considera o conjunto das cartas 3 As cartas atribuídas pela tradição a Platão são em número de 13. A maioria versa sobre as relações de Platão com o tirano da cidade de Siracusa, Dionísio II, com amigos próximos como Dion e outros freqüentadores do círculo platônico. A carta de maior relevância do grupo é a Carta VII, que pode ser entendida como dirigida aos amigos de Dion ou como pequeno manifesto filosófico-político da Academia ou de Platão à opinião pública da época. Nessa carta Platão rememora, a título de explicação, sua trajetória política em Atenas, seu caminho pela filosofia, e suas três viagens à Siracusa; e dá alguns conselhos aos amigos de Dion.

extremamente interessante por mostrar que “a atividade filosófica podia ser um foco de reflexão e de intervenção políticas” (2010b, p.192). Por mostrar a maneira como Platão ou filósofos da escola platônica “refletiam sobre essa intervenção possível e de que maneira queriam ser reconhecidos como desempenhando no campo da política grega o papel de enunciadores da verdade” (FOUCAULT, 2010b, p.191). Jaeger põe como título do capítulo que dedica ao seu estudo da Carta VII (2010, p.1274-90): “Platão e Dionísio: a tragédia da Paidéia”, no qual a palavra tragédia pode demonstrar bem a impressão que a leitura dessas cartas, por quem tenha procedido anteriormente uma leitura dos grandes diálogos platônicos, pode deixar no espírito de quem as lê. Aponta que ao menos as cartas VII e VIII foram reconhecidas pela crítica filológica como testemunhos autênticos de Platão, após por muito tempo serem consideradas apócrifas, o que constitui, para ele, um importante acréscimo à história da paidéia (JAEGER, 2010, p.1274). Nessa história a Carta VII aparece como um esforço de Platão para arrancar-se do isolamento e da atitude reservada que havia caracterizado sua posição na República. Pois que, uma recusa à missão de educar o jovem soberano, em um momento onde a tyche (a sorte) divina lhe acenava desejo por filosofia e paidéia, equivaleria a renunciar a tornar eficaz na vida sua teoria. Na Carta VII, é o receio de Platão de parecer um homem só de palavras que o move às perigosas viagens a Siracusa (JAEGER, 2010, p.1282-5). O que pode vir a esclarecer o motivo da escrita da Carta VII, que seria o de desligar o fracasso da educação de Dionísio, e de toda empreitada em Siracusa, à educação e doutrinas platônicas. Educação que era mais do que “mero ensino técnico dos assuntos de governo, pois visava a transformação do homem inteiro e da sua vida” (JAEGER, 2010, p.1290). Se tal tragédia ocorreu, a responsabilidade deve-se apenas à pessoa de Dionísio, que jamais se mostrou à altura do que lhe era exigido pela filosofia platônica e nem do governo que herdou de seu pai (JAEGER, 2010, p.1291-4). Trabattoni inicia seu estudo da Carta VII de Platão (2003, p.161-203) pela discussão sobre a autenticidade que uns rejeitavam a todo o grupo e outros que a creditavam a algumas das cartas. Sua posição acerca desse ponto é de considerar totalmente autêntica ao menos a Carta VII, e considera que essa carta ilumina alguns pontos obscuros do pensamento platônico (TRABATTONI, 2003, p.164). Pois que se de acordo com o parecer de uma interpretação que procuraria ver a filosofia platônica sob o caráter puramente doutrinal, a Carta VII traria leituras obscuras e

desconexas que autorizariam o juízo a cerca de sua inautenticidade. Trabattoni atua no sentido contrário dessa interpretação, revisitando alguns grandes tópicos da filosofia de Platão e diagnosticando que, no pensamento de Platão pós República, verifica-se, certamente, a abertura de uma série de dificuldades e concessões na explicitação de quem seria filósofo e em que consistiria seu saber (2003, p.16). A ligação da Carta VII pode então ser feita “de maneira orgânica a algumas exigências da filosofia platônica, presentes em outros textos, e assim remover a aparência de isolamento e desacordo” (TRABATTONI, 2003, p.203). Tal afirmativa conclui a leitura de Trabattoni das passagens 340 -345 c da Carta VII, o chamado excursus filosófico, na qual conclui, entre outras coisas que, para Platão “o ato supremo do conhecer, isto é, que realiza efetivamente o conhecimento (...), tem natureza não proposicional e, portanto, não doutrinária.” (2003, p.199). Por fim, Carlos Alberto Nunes declara que “hoje pode-se afirmar sem receio que já passou em julgado o célebre processo da inautenticidade dessas cartas, tirante as ressalvas indicadas no lugar devido.” (PLATÃO, 2007, p.121). Ainda atesta que, sem dúvida, a Carta VII é a mais importante do grupo, mas que, “essa preferência justificada prejudica a apreciação dos outros documentos da mesma procedência, pelo perigo de serem considerados de importância secundária.” (PLATÃO, 2007, p.122). Culpa que é em parte devida também à má organização e errada disposição das cartas, que prejudica e dificulta a compreensão de quem as lê pelo fato de não respeitar a sucessão dos fatos históricos tal como se deram em sua respectiva ordem histórica (PLATÃO, 2007, p.122). Nesse sentido, Nunes restabelece tanto a cronologia das cartas quanto seus verdadeiros autores e as divide em correspondência ativa e passiva (PLATÃO, 2007, p.126). E conclui com o que acredita ser o verdadeiro esquema das cartas, isto é, a organização cronológica das cartas de acordo com as novas informações e datações (PLATÃO, 2007, p.134), da qual nos serviremos e seguiremos no decorrer desse trabalho.

4 ANÁLISE DA CARTA V Foucault faz iniciar a análise do filósofo como conselheiro político na figura de Platão não pelo estudo da grande e célebre Carta VII, mas da curta e, por muitos atestada como, inautêntica Carta V (2010b, p.192-6). A Carta V de Platão é dirigida a Perdicas, que reinou certo tempo na Macedônia, na qual Platão discorre acerca do envio de seu discípulo Eufraio, para que este então atuasse como conselheiro ao lado de Perdicas. Acerca desse ponto, utilizo-me do esquema de Carlos Alberto Nunes que data a carta V no período de 365-2 a. C, dirigida a Perdigas da Macedônia. Nunes a entende como um indício seguro do prestígio político da Academia e que, devido a esse mesmo prestígio, Platão sente-se também na obrigação de justificar-se “por só saber aconselhar os jovens, sem nunca decidir-se a tomar parte ativa na política de sua terra.” (PLATÃO, 2007, p.130). Nesse sentido, Foucault não credita a autoria da Carta V a Platão, mas não duvida que tenha sido escrita por platônicos, numa época de decadência das cidades e das democracias gregas e da constituição das grandes monarquias helenísticas (2010b, p.192). Não obstante isso, a Carta V foi escrita de modo a circular como um pequeno manifesto, uma espécie de carta pública. E que se mostra interessante por levantar “duas questões que concernem ao papel da filosofia e do filósofo como [conselheiro] político.” (FOUCAULT, 2010b, p.193). A primeira questão é acerca do significado de um aconselhamento político que se dê ou possa se dar a governos cujas constituições sejam diferentes. O sentido da formulação de tal pergunta é que, a essa posição de aconselhar seja qual for o governo em questão, contrapõe-se, como que de maneira implícita na Carta V, um aconselhamento político cuja razão de ser é a de dizer qual a melhor forma de governo, a melhor constituição possível de um governo. Uma resposta a tal questão, ou a tal contraposição, Foucault vê nas passagens 321d-e e 322a da Carta V, das quais reproduzimos aqui o seguinte trecho: De fato, os governos têm cada um sua língua, como se fossem seres vivos (éstin gàr dé tis phonè tôn politeiôn hekástes kathapereí tinon zóon). (…). Todo o Estado que fala sua própria língua perante os deuses e perante os homens e age de acordo com essa língua sempre prospera e se conserva; mas se imita outro, perece. (2010b, p.201, nota nº2).

A interpretação que Foucault faz dessas passagens conta com ainda com a

comparação com uma passagem da República, livro VI, 493a-b, na qual Platão faz a crítica de uma certa maneira de audição do corpo político, a praticada pelos Sofistas cujo objetivo é a manipulação das assembléias. Passagem da qual reproduzimos o seguinte trecho: É como se uma pessoa, que tenha de criar um animal grande e forte, aprendesse a conhecer as suas fúrias e desejos (…), e cada um dos sons que costuma emitir a propósito de cada coisa, e com que vozes dos outros se amansa ou irrita (PLATÃO, 2001, p.281).

O sentido que se encontra a partir da diferença entre as passagens é que no passo citado da República não se trata de ouvir uma voz que seria a da constituição da cidade, que ecoaria a essência de sua constituição, mas sim da audição da voz do plêthos (da massa dos cidadãos reunidos em assembléia) que ecoa a fúria dos apetites da multidão. Audição essa da qual o Sofista, ou o mal governante, é experimentado, experiência que o fez aprender como que o vocabulário desses desejos e a qual chama de sua ciência, ciência com a qual é capaz de guiar a assembléia, simplesmente porque sua voz faz ecoar ainda mais a voz da massa. Não é esse o caso da audição a que se refere a Carta V, que se propõe como uma audição da voz (da phonè) da constituição da cidade (da politéia), e da qual o filósofo, ou o bom governante, deve ser como que o guardião, isto é, fazer com que seja conforme à sua essência, para que assim prospere a cidade. O dizer a verdade do filósofo, portanto, deve ser de maneira que “o que se diga num Estado seja conforme à verdade do Estado.” (FOUCAULT, 2010b, p.195). A segunda questão de interesse é também levantada a título de contraposição à postura adotada por Platão, ou pelos filósofos platônicos, no que concerne à sua atividade de aconselhamento político, mas que, dessa vez, é colocada de maneira explicita na Carta V na passagem 322 a: Ao que parece, Platão presume conhecer o que é vantajoso para a democracia; no entanto, sendo-lhe facultado falar ao povo e dar-lhe conselhos, nunca se levantou para dirigir-lhes uma só palavra.

Segunda questão essa que pode ser formulada também da seguinte maneira: “Porque não dar conselhos à própria Atenas?” ou “Se são silenciosos em Atenas, porque se dirigem a um rei?” (FOUCAULT, 2010b, p.195). O que havia em Atenas ou o que motivava os filósofos a não aconselhar os atenienses? Segue-se a passagem 322 a-b da Carta V: A resposta para isso, tenho-a pronta: Platão nasceu em sua pátria muito

tarde e encontrou o povo já bastante velho e mal habituado por seus antepassados a fazer muitas coisas em contrário à sua maneira de pensar. Sem dúvida, nada lhe fora mais grato do que aconselhar o povo, como de filho para pai, se não pensasse que com isso se exporia inutilmente, sem probabilidade de beneficiar a ninguém. (PLATÃO, 2007, p.158).

Os maus e inveterados hábitos dos atenienses constituem, portanto, motivos mais do que suficientes para colocar a cidade de Atenas longe de toda a ajuda e aconselhamento possíveis. Atenas aparece, nessa breve descrição, como uma democracia em tão mau estado que não se pode mais zelar para que a voz da verdadeira democracia, de uma democracia que seja conforme à sua essência, seja ouvida. É o exemplo da má parresía numa cidade democrática, na qual mesmo o risco que se abre com e para o exercício da parresía aparece como uma tentativa inútil e por demais perigosa. Inútil por não haver quem estivesse disposto a acatar os conselhos, e perigosa por haver muitos para os quais tais conselhos soariam como ofensas, acarretando prejuízos para os dois lados. Da análise da Carta V pode-se concluir que, se Platão envia seu discípulo Eufraio ao rei Perdicas com a tarefa de o aconselhar, é porque credita aos dois lados a presença dos elementos necessários ao bom aconselhamento. De Perdicas espera-se uma atitude oposta à dos atenienses, uma atitude que seja a da boa recepção e prática dos conselhos. E de Eufraio, a quem se creditam tanto o conhecimento da verdadeira prática de audição do corpo político - que é a audição da voz da constituição própria a cada cidade, a que deve fazer uso o verdadeiro conselheiro - quanto a verdadeira parresía, que se propõe não a adular a multidão e nem a lisonjear os soberanos, mas a dizer a verdade.

5 ANÁLISE DA CARTA VII 5.1 INTRODUÇÃO A CARTA VII Acerca da Carta VII já foram traçadas algumas considerações, mas, antes que se inicie o estudo, um breve resumo dos acontecimentos relatados nessa carta. De acordo com Nunes, a Carta VII data do ano de 353 a.C., teria sido escrita por Platão e dirigia-se aos amigos e parentes de Dion, por ocasião da e depois da morte de Dion. Ou, como diz Foucault, pode também ser originária de círculos platônicos e destinada à opinião pública em geral e, do mesmo modo que a Carta V, pode ser interpretada como um pequeno manifesto destinado a esclarecer e justificar certas atitudes e posições tomadas por Platão e pela Academia. A Carta VII é constituída na sua maior parte por uma série de relatos sobre acontecimentos vivenciados ou observados por Platão, isto é, não discorrem, em sua maioria, acerca de acontecimentos contemporâneos à escrita da carta. Contudo, o que não se pode perder de vista, é que todos esses relatos são feitos por Platão com dois objetivos. O primeiro é o da explicação do porquê os acontecimentos se terem dado daquela maneira e da impossibilidade que tivesse sido de outro modo. O segundo objetivo tem a ver com a própria natureza do aconselhamento: com a escrita da carta, Platão faz sugestões aos amigos e parentes de Dion, para que estes não só aprendam com o ocorrido como entendam o conteúdo e a maneira de aconselhar praticada por Platão. Mas não são todos relatos sobre as mesmas experiências, uns são relatos de Platão acerca de sua experiência política em Atenas, parte que vai de 324a à 326b, e outros são relatos das três viagens empreendidas por Platão à cidade de Siracusa. Nunes data a primeira viagem de Platão a Siracusa ao ano de 386 a.C. (PLATÃO, 2007, p.130). Ela teria se dado por motivo de visita ao tirano da cidade, Dionísio I, e que, por causa do mesmo, terminou com Platão a bordo de um barco de Esparta e vendido como escravo em Egina. Platão teria desagrado a Dionísio I ao aconselhar que à tirania siracusana se substituísse uma realeza, e que ao modo de vida reprovável da corte se substituísse um modo de vida austero. Por essa época Platão teria quarenta anos, e Dion, notável figura da corte de quem se tornou amigo, vinte anos. A segunda viagem a Siracusa, ainda de acordo com Nunes, dá-se no ano de 366 a.C.. Depois da morte de Dionísio I, e devido à ação de partidários da tirania,

quem assume é o filho Dionísio II. Contudo, este assume o cargo sem ter sido educado para tanto. Platão empreende a viagem por pedidos tanto de seu amigo Dion, para que atuasse na educação do jovem tirano, quanto por convites de Dionísio, que ansiava conhecer o grande filósofo ateniense. Após o entusiamo inicial da corte e do tirano com a visita do filósofo surgem desentendimentos entre Dionísio e Dion, terminando este último como exilado político da Sicília. A partir de então a situação de Platão na corte de Siracusa torna-se crítica. Por um lado, temos um Platão consternado com a atitude do tirano para com o seu amigo Dion; por outro lado, há uma multidão de boatos que corriam por toda Grécia a respeito das relações de Platão e Dionísio que ora os tomava por inimigos ora por amigos. Com as promessas de Dionísio de dar fim àquela situação, Platão deixa mais uma vez a cidade de Siracusa. Platão contava já sessenta anos, Dion quarenta e Dionísio II apenas vinte e cinco anos. A terceira e última viagem data do ano de 360 a.C., e é de se perguntar quais motivos teria ainda Platão para visitar Siracusa após o fracasso das outras viagens. De início podem-se contar a vaidade e a ignorância de Dionísio. Vaidade que o levava a não querer passar por ignorante junto a outros governantes e a outros filósofos, provavelmente pitagóricos, que freqüentavam sua corte, ignorância que continuava mesmo após seu contato com Platão. Conta-se dos inúmeros rumores acerca dessa paixão filosófica que teria se instaurado na corte siracusana e que irradiava da vontade do Tirano. Platão, por fim, cede aos insistentes convites de Dionísio para que retornasse à cidade, nem tanto por causa deste, mas principalmente para que, satisfazendo assim à vontade do Tirano, pudesse ganhar uma solução para a situação de Dion, amigo que estava, juntamente com outros, como que a impulsionar o filósofo a essa nova viagem. Infelizmente, os resultados da terceira viagem de Platão não foram melhores que os obtidos nas viagens anteriores. O filósofo logo constatou que o desejo pedagógico de Dionísio não passava de uma fachada e uma desculpa para exibí-lo ao seu lado e que as promessas do mesmo de dar fim à complicada situação de Dion se tratavam apenas de distrações para ações ainda mais degradantes que se fariam ao amigo. Platão é feito prisioneiro, proibido de se retirar da ilha sem a permissão de Dionísio e, expulso do âmbito da corte, é instalado junto a mercenários que ansiavam sua morte. É com dificuldade que, depois de um ano, Platão escapa de Siracusa com a ajuda de Arquitas de Tarento, que lhe envia um barco.

De volta à Atenas, Platão comunica a Dion o ocorrido. A reação de Dion é a declaração de guerra à Dionísio, na qual Platão se recusa tomar parte, passando, partir de então, a observar os tristes acontecimentos que se deram. Dionísio é derrubado do trono por Dion e seus partidários, mas os mesmos traem e matam a Dion. É, portanto, durante todo esse período que se trocam as cartas, mas é após e acerca de tais fatos que discorrem as Cartas VII, VIII e VI.

5.2 AS DUAS SÉRIES DE ANÁLISE Como já foi dito, pode-se considerar a Carta VII como tendo dois objetivos, o primeiro seria a explicação oferecida por Platão acerca de seu envolvimento com a tirania siracusana e o segundo a tematização do aconselhamento que se dá pela própria carta. É a partir desses dois objetivos que Foucault divide sua análise da Carta VII de Platão em duas séries distintas (2010b, p.235-6), que se concentram cada uma em um objetivo, e que terminam unidas em consideração geral. A

primeira

série

(FOUCAULT,

2010b,

p.196-233)

constitui-se

de

considerações acerca da atividade de conselheiro exercida por Platão, assim como das circunstâncias, das condições e das razões desse aconselhamento. Essa primeira série de análises tem por cerne o questionamento de quais são as condições em que se estabelece essa relação entre a filosofia e a política. E cujo o objetivo é detectar o aparecimento de três condições de realidade que a filosofia tira de sua relação com a política, às quais a filosofia deve se submeter e ser aprovada. A primeira é o círculo da escuta; a segunda é o círculo do trabalho sobre si; e a terceira é o círculo do exercício do conhecimento. A segunda série (FOUCAULT, 2010b, p.236-55) é o estudo dos próprios conselhos políticos de Platão - são considerações acerca do conteúdo desses conselhos, a quem efetivamente se dirigem esse conselhos, qual sua efetividade. Essa segunda série de análises tem por cerne o estudo de três passagens, começando por duas passagens da Carta VII, e que se estende a uma passagem da Carta VIII. O objetivo é detectar a parresía na raiz do conselho político de Platão, com o qual coloca-se o filósofo como sendo o verdadeiro parresiasta através de uma prática como a do aconselhamento sob o paradigma do médico da cidade e da alma. Após as duas séries de análises firma-se o estabelecimento de três pontos principais que a relação entre filosofia e política nas cartas de Platão oferece. O primeiro é o da exterioridade e da correlação necessárias entre filosofia e política. O segundo é o surgimento de uma nova conjuntura histórica na figura de uma nova unidade política. E o terceiro é o ponto no qual a política serve de prova para a filosofia. Os três pontos culminam no estudo de uma passagem da República de Platão que, para Foucault, afirma o caráter totalmente prático da filosofia antiga, uma filosofia cuja realidade e tarefa é a definição do modo de ser do homem político (FOUCAULT, 2010b, p. 259-69).

5.3 (PRIMEIRA SÉRIE – PARTE UM) A ATIVIDADE DE CONSELHEIRO DE PLATÃO No trecho 324 c a 326 b, Platão faz o relato de suas experiências políticas em Atenas. Mais precisamente, de experiências negativas de duas formas governo. A primeira experiência negativa foi a da oligarquia (324 c - 325 a), que ficou conhecida como regime dos Trinta, a que, num primeiro momento muito interessou ao jovem Platão, devido à sua

proximidade com vários dos que instauraram o

regime e à possibilidade que isso abriria para a sua efetiva participação na vida política de Atenas. Contudo, logo Platão se decepciona com a oligarquia ateniense devido, principalmente, à violência que esta desencadeia. Violência arbitrária na forma de detenções e execuções, nas quais, conta Platão, seu “velho amigo” Sócrates recusou-se a tomar parte, não acatando uma ordem que lhe fora dada e preferindo esse perigo a se tornar cúmplice de atos criminosos. A segunda experiência negativa foi a da democracia (325 a – 326 b), que é instaurada em Atenas depois de derrubado o regime dos Trinta. Num primeiro momento o jovem Platão também vê-se atraído, com um pouco menos entusiasmo, pela democracia e pelas oportunidades de efetiva participação política que oferecia. Mas, devido mais uma vez à figura de Sócrates, Platão se decepciona com o regime democrático ateniense. Nesse caso, foi o julgamento e a condenação à morte daquele que Platão considerava como o cidadão mais justo da cidade que o levaram definitivamente à abandonar suas perspectivas de participação política. Na Carta VII, contudo, Platão ainda aponta outros dois motivos que o levaram àquela posição para com Atenas, mais precisamente a ausência de dois elementos que impossibilitavam qualquer realização de uma ação política de sua parte. O primeiro elemento era a falta de amigos (os phíloi), de colaboradores fiéis, que se unissem, que se vinculassem entre si em um grupo de oposição (325 d). O segundo elemento era a falta de ocasiões (kaíroi), de circunstâncias favoráveis, momentos oportunos para uma tal ação (326 a). A conclusão de Platão na Carta VII (326 b) é como que um eco, uma citação indireta, do trecho 473 d, livro V, da República. O trecho da Carta VII: Não cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem seriamente a filosofar, por algum favor divino, os dirigentes da cidade. (PLATÃO, 2007, p.163).

O trecho da República: Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, (…), não haverá tréguas dos males, (…), para as cidades, nem sequer ,(...), para o género humano (...). (PLATÃO, 2001, p.251).

A interpretação de Foucault acerca de tais trechos é de que o dizer-a-verdade filosófico, a parresía do filósofo, não vêm para substituir ou sobrepor-se ao discurso da política, antes vem unir-se a ele, tornar-se também dizer-a-verdade no campo da política (2010b, p.199). E isso porque a política, as formas de governos em questão, não são mais capazes de assegurar, por si só e funcionando dentro de si, o justo jogo da parresía. É essa ineficiência política que assegura, na concepção de Platão, “o direito absoluto da filosofia sobre o discurso político”. Nos trechos de 326 c à 329 b Platão discorre acerca de sua primeira viagem à Siracusa e dos convites e motivos que o levaram à sua segunda viagem. São da ordem de quatro as motivações que Platão sustenta para justificar ter efetuado uma segunda viagem à Siracusa mesmo após o fracasso da primeira. As duas primeiras referem-se à mudança da conjuntura política de Siracusa: morto o velho tirano Dionísio I, quem assume é seu jovem filho Dionísio II, que, em forte contraste com a atitude tomada por ser pai, mostra-se disposto a escutar a filosofia. Primeiro e segundo motivos, juventude e disposição à escuta por parte do novo tirano. O terceiro motivo foi a amizade de Platão para com Dion, Dion que não só convida o filósofo a tomar parte na educação do soberano como também lhe aponta que não haveria situação melhor para que os projetos do mestre se realizassem. Tem-se, aí, a ocasião favorável, o kairós, que havia faltado nas experiências anteriores, e que, por sorte divina, proporcionaria a união do poder e da filosofia. O quarto motivo, apontado por Platão é o de que, perdendo essa oportunidade, daria a parecer que seria um homem simplesmente do lógos, da palavra vazia, incapaz de agir, de pôr mãos ao érgon (à ação). Para esclarecer esse ponto que será de muito interesse para Foucault, citaremos esses trechos e alguns outros nos quais Platão adota essa postura: Carta VII 327 e: Que ocasião melhor (tínas gàr kairoús) esperávamos?, dizia ele (FOUCAULT, 2010b, p.202, Nota nº12).

Carta VII 328 b-c:

Enquanto eu refletia e me perguntava com hesitação se era necessário ou não me pôr a caminho e ceder às solicitações, o que entretanto em fez perder a balança foi o pensamento de que, se era de fato possível empreender a realização (apotelêin egkheirésoi) dos meus planos legislativos e políticos, chegara o momento de tentar: era só persuadir suficientemente um só homem, e a parada estava ganha. Nessa disposição de espírito, eu me aventurei a partir. Por certo, eu não era movido pelos motivos que alguns imaginavam, mas me envergonhava por passar perante mim mesmo como um verbo vazio (mè dóxaimí pote emautô pantápasi lógos mónon atekhnôs eînai) que nunca quer pôr mãos à obra (érgou dè oudenòs án pote hekôn anthápsasthai) (FOUCAULT, 2010b, p.202, Nota nº14).

E ainda Platão fazendo falar a Dion, com Dion reprovando às recusas de Platão a empreender a viagem em 329 a: (...) acreditas mesmo que, de futuro, poderás eximir-te da pecha de cobarde? (PLATÃO, 2007, p.166).

Por fim, Platão em 329 b: Com essa viagem desobrigava-me diante de Zeus hospitaleiro e eximia de toda a culpa o filósofo que em mim se teria manchado se, por timidez ou comodidade, eu me tivesse desmoralizado. (PLATÃO, 2007, p.166).

Segundo Foucault pode-se reconhecer nesse ponto uma clássica oposição do vocabulário grego entre lógos e érgon, que pode ser traduzida por em palavra e em realidade, em discurso e em ato (2010b, p.200). O filósofo em sua relação com a política não pode ser simplesmente discurso - o que vai mostrar que não é uma palavra vazia “é sua participação direta, pela parresía, da constituição, da manutenção e do exercício de uma arte de governar” (FOUCAULT, 2010b, p.200). Segue-se ainda uma comparação com a intervenção do filósofo na cena política tal como pode ser encontrada no diálogo Primeiro Alcebíades ou Alcebíades Primeiro, ou simplesmente Alcebíades, de Platão. Cena que pode ser considerada como tratando do problema da parresía numa situação democrática. Mas, apesar da semelhança, há uma série de diferenças entre o Alcebíades e a Carta VII quando a questão é a parresía. A primeira é a diferença da motivação da intervenção. No Alcebíades, Sócrates conta, além da ocasião, ou aproveita-se da ocasião, por amor a Alcebíades. Motivos de eros e de orientação divina. Citamos o trecho inicial do diálogo 103 a: Ó filho de Clínias, deves estar admirado de que, tendo sido eu o primeiro a te amar, seja o único que não te abandonasse, quando todos se afastaram, apesar de não te ter dirigido a palavra durante tantos anos em que a turba te importunava com suas atenções. Não foi por razão humana desse meu

proceder, mas impedimento divino, de cuja natureza oportunamente te falarei. E hoje, que tal impedimento cessou, aproximo-me de ti com a esperança de que, daqui por diante, não mais se manifeste. (PLATÃO, 2007, p.233).

Já na Carta VII o motivo da intervenção de Platão é, além da ocasião, a obrigação interna do filósofo para com ele mesmo. Não é como um desejo plantado na sua alma pois, como se viu, Platão foi muito relutante e só partiu após muitas considerações. Considerações que o levaram à conclusão de que era sua tarefa como filósofo, tarefa da própria filosofia em zelar para não ser simplesmente lógos.

5.4 (PRIMEIRA SÉRIE – PARTE DOIS) QUESTÕES ACERCA DO REAL DA FILOSOFIA A inquietação de Platão em não ser nada mais que discurso leva Foucault a colocar um problema, ou, pode-se dizer, que ele vê que nesse momento Platão é levado a formular a questão do real da filosofia (2010b, p.207). Questão que não deve ser confundida e não é da mesma natureza que o questionar “o que é, para a filosofia, o real?” ou “a quais referências se reporta a filosofia?” ou “com o que podemos avaliar se a filosofia diz a verdade ou não?”. Trata-se, isto sim, de perguntar-se “como, de que modo, em que modo se inscreve no real o dizer-a-verdade filosófico, essa forma particular de veredicção que é a filosofia?” (FOUCAULT, 2010b, p.208). Em Platão o real da filosofia está além do próprio discurso do filósofo, encontra-se na sua coragem de se dirigir a quem exerce o poder. Assim também, a prova de sua filosofia não se dá pela eficácia política ou em dizer a verdade sobre a política, mas na diferença que a própria filosofia introduz no interior do campo político. É da relação entre filosofia e política, em seus pontos de exclusão e de intersecção, que a filosofia encontra sua realidade. E, é prosseguindo com a análise da atividade de conselheiro político exercida por Platão, que Foucault vê como que surgirem três círculos, ou três condições de realidade da filosofia que vão dar uma resposta e uma prova à filosofia de Platão. A primeira condição, ou o primeiro círculo Foucault retira-a da análise das passagens 330 a à 331 d, das quais reproduzimos o seguinte trecho: Carta VII 333 a-b à respeito de Dionísio II: (...) porém queria que eu me considerasse mais seu amigo do que de Dião, pondo nisso o maior empenho. Porém o meio mais certo de alcançar esse desiderato – admitindo-se tal possibilidade – seria aproximar-se de mim como ouvinte de minhas dissertações filosóficas. Ora, nesse ponto, justamente, ele vacilava, por temer, segundo as insinuações de meus caluniadores, que com isso viesse a ficar tolhido em sua liberdade, e tomassem corpo os projetos de Dião. (PLATÃO, 2007, p.167-8).

A primeira condição, portanto, é a da escuta. Concerne a quem a filosofia se dirige. A filosofia deve se dirigir àqueles que a querem escutar, deve ir de encontro a uma vontade que seja a de seguir os conselhos que serão dados. Se se dirigir aos que não a querem escutar, àqueles que não irão seguir seus conselhos, se se dirigir a todos indistintamente, a filosofia não poderá ser real, realidade que concerne,

primeiramente, ao seu ouvinte (FOUCAULT, 2010b, p.210). Para Foucault é como que o paradigma da medicina adotado por Platão que está a ditar as condições de realidade. Ele cita o trecho da Carta VII 330 d-e: Quem tivesse de aconselhar algum doente submetido a dieta prejudicial à saúde, não precisaria, antes de mais nada, mudar o seu regime? E no caso de ser obedecido, continuar a aconselhá-lo? Mas, ante a obstinação formal do doente, terei na conta de homem direito e verdadeiro médico quem se negasse a dar-lhe novas consultas, e ao contrário disso, cobarde e ignorante da arte quem cedesse nalgum ponto de suas convicções. O mesmo se verifica com as cidades, quer sejam dirigidas por um homem apenas, quer por muitos. (PLATÃO, 2007, p.168).

E também Carta VII 331 c-d: É assim que o varão prudente precisará comportar-se em relação à pátria. Se achar que está sendo mal governada, pode falar, porém só na hipótese de não fazê-lo inutilmente e de não arriscar a vida, e sem recorrer à violência para mudar a constituição local, se só puder conseguir outra melhor com proscrições e derramamento de sangue. Mantenha-se quieto e limite-se a formular votos de felicidade para si e para a comunidade. (PLATÃO, 2007, p.168).

Essa referência à medicina também é feita por Platão nas passagens do livro IV na República em 425 a-426 b. Citamos 425 e-426 a da República: - Queres dizer que tais pessoas viverão como aqueles doentes que, por falta de temperança, não querem sair de uma dieta que faz mal. - Exactamente. - Ora pois essas pessoas passam sem dúvida uma vida encantadora. Tratam-se, sem conseguir nenhum resultado, a não ser tomar os seus padecimentos mais variados e maiores, e sempre com a esperança de que, se alguém lhes aconselhar um remédio, ficarão sãos graças a ele. (PLATÃO, 2001, p.172).

De acordo com Foucault a medicina, tal entendida por Platão e pelos antigos gregos, é uma arte com três características. A primeira é a de conhecimento de uma determinada conjuntura, pois trata-se de reconhecer a doença, de fazer um diagnóstico. A segunda é uma arte de ocasião, de prever a evolução da doença. E a terceira é ser uma arte da conjectura, de escolher a terapêutica, prescrever um novo regime de vida. (FOUCAULT, 2010b, p.211). E Platão, nas Leis, livro IV, 720 a-e, opera ainda uma distinção entre uma medicina de caráter livre e uma medicina para escravos. A medicina para escravos é também praticada por escravos, sua característica é somente dizer o que se deve fazer, se contentar em receitar. Já a medicina livre é praticada por homens livres e se destina a homens também livres. O que a caracteriza é que médico e doente conversam um com o outro, é uma arte do diálogo e da persuasão. E que procura

levar em conta e abarcar toda a vida do doente, com fins a um estabelecimento de um novo regime de vida, seu objetivo é ainda a cura da doença, mas seu tratamento se dá por meio da vida do doente. Três pontos, portanto, acerca da medicina tal como entendida por Platão: medicina em sua parte teórica; medicina livre do diálogo e da persuasão; e medicina livre na prescrição de um regime de vida. Não é, portanto, nem o modelo do legislador e nem o do exercício próprio ao governante, que o filósofo toma para si (FOUCAULT, 2010b, p.212). É a atividade médica livre o grande modelo para a atividade de aconselhamento político adotada por Platão. É seguindo ponto por ponto de suas características que o filósofo, em primeiro lugar, só intervirá quando as coisas estiverem indo mal, quando se apresentar como que uma doença no corpo social, e seu papel será o de diagnosticar e de restabelecer a ordem. O segundo ponto é que terá de agir por persuasão, persuadir ao mesmo tempo em que receita, e persuadir tanto governantes quanto governados. E o terceiro ponto é que terá de repensar o regime da cidade, repensar a maneira como é cidade. Tal consideração da Carta VII se aproxima bastante do que também foi dito na na República, pois politéia pode ser lida tanto como marco institucional da cidade, o conjunto de suas leis, quanto como a convicção de governantes e governados de que é preciso obedecer essas leis, a maneira como são obedecidas na cidade. Isto é, “não vale a pena cuidar da cidade se não for possível modificar a politéia e a maneira como ela é polituómene.” (FOUCAULT, 2010b, p.213-4). O conselheiro político cujo modelo é o médico livre é, portanto, alguém que se dirige também às pessoas livres, à “vontade” política dessas pessoas. Pois é a “vontade” política que anima e faz viver a politéia. E só poderá se dirigir a essa “vontade” se ela for boa, se quiser escutar. Sua função não é a de impor leis, como quem simplesmente receita o remédio, mas dirigir essa “vontade” política a um novo regime de vida político. Nesse sentido, o que o filósofo faz jamais poderá ser somente um protesto, uma contestação e seu discurso nunca poderá ser violento ou coadunar-se com o da violência. “Se o filósofo não é ouvido, e é a tal ponto não ouvido que é ameaçado de morte, ou então se o filósofo é violento, e violento a tal ponto que seu discurso leva a morte aos outros, num caso como no outro a filosofia não pode encontrar sua realidade (…). (FOUCAULT, 2010b, p.215). Nesse ponto o aconselhamento político, tal como praticado pelo filósofo, opõe-se sobretudo à atividade retórica. Pois o que caracteriza a retórica é,

justamente, ser eficaz independentemente da “vontade” dos ouvintes, de ser capaz de conduzir essa “vontade” tanto para o bem quanto para o mal. No fim, se levarmos à fundo a distinção entre a voz da politéia e a voz do plêthos operada na Carta V, vemos que o que o retórico de fato ouve e dirige são os apetites da massa e não a “vontade” política como tal, que ecoa da essência de cada politéia. A segunda condição, ou o segundo círculo, Foucault retira-a da análise das passagens 340 b à 341 a. Passagens que não estão diretamente ligadas cronologicamente às anteriormente analisadas, mas nais quais pode-se reconhecer como que uma resposta à condição anterior ou ao problema colocado pela primeira condição que seria o de: “como reconhecer os que podem e os que querem escutar?” (FOUCAULT, 2010b, p.216). Citamos Carta VII 340 b-d: Ao chegar, meu primeiro cuidado foi certificar-me se Dionísio era mesmo unha e carne com a filosofia, ou se não passava de boato sem fundamento o que se falava em Atenas. Para semelhante prova há um processo não de todo carecente de nobreza e muito adequado para os tiranos, principalmente para os que se entopem de expressões filosóficas mal compreendidas, como era o caso de Dionísio, o que percebi tão logo desembarquei. Para gente desse estofo, é preciso mostrar toda a extensão dos estudos filosóficos, sua natureza, as dificuldades muito próprias e quanto esforço exigem de nós. Depois de ouvir toda a exposição, se se tratar, realmente, de um amante da sabedoria e se for dotado de natureza divina, além de revelar vocação para tais estudos, ficará maravilhado com o caminho apontado e no mesmo instante se decidirá a enveredar por ele e a não viver de outra maneira. Ao depois, avançando resolutamente e arrastando consigo seu próprio guia, não se deterá antes de atingir a meta que se impôs ou de adquirir a capacidade necessária para conduzir-se sem o auxílio de ninguém. É nesse estado de espírito que tal homem vive; e até mesmo nas ocupações mais triviais, a todo instante e em quaisquer circunstâncias não se desapega da filosofia, daquele gênero de vida que o deixara com o espírito sóbrio e capaz de aprender, boa memória e raciocínio lesto. O regime contrário lhe é simplesmente intolerável. (…) (PLATÃO, 2007, p.179-80).

Citamos também Carta VII 341 a: Essa é a mais certa e segura prova para as pessoas dadas aos prazeres e incapazes de qualquer esforço. Evidentemente, de nada poderão culpar o guia; queixem-se de si próprios, uma vez que se revelaram incapazes de levar avante os estudos preliminares. (PLATÃO, 2007, p.181).

Procedendo-se à uma comparação com o Alcebíades, vê-se que não é uma intuição, não é uma percepção que faz adivinhar como que através da beleza de um rapaz qual seria a qualidade de sua alma. Mas, trata-se de um método, de mostrar ao tirano o que é a filosofia. (FOUCAULT, 2010b, p.217). É preciso mostrar aos tiranos o que é tò prâgma. Palavra que no texto grego

aparece duas vezes e com dois significados. Primeiro é prâgma como a coisa a que se refere, no caso, mostrar o que é a filosofia. Segundo, é preciso mostrar aos tiranos pân tò prâgma, a filosofia em seu conjunto, tudo de que se trata em filosofia, a filosofia em sua realidade. Mostrar “hoîón te kaì di' hóson pragmáton kaì hóson pónon ékhei”. Esse segundo prâgma, a filosofia em sua realidade, são os prágmata. E os

prágmata são os negócios, as atividades, as dificuldades, as práticas, os

exercícios, aquilo de que nos ocupamos, aquilo a que podemos nos dedicar. E, nesse sentido, opõe-se ao que os gregos entendiam por skholé, ao lazer. Mas, também pode-se dizer que a skholé filosófica, o lazer filosófico, seja justamente os prágmata da filosofia. (FOUCAULT, 2010b, p.217-8). O real da filosofia é entendido então como as suas práticas. Como um modo de viver, como um caminho a percorrer, como o resultado de uma escolha que é preciso não abandonar, para a qual é preciso sim apressar-se e apressar seu guia ou ser capaz de seguir sozinho, e isso com esforço, com muito trabalho. Com a filosofia mostrando-se compatível com as atividades cotidianas, devido ao fato de que até nelas pode-se servir-se da filosofia; e com a prática da filosofia traduzindose em três capacidades, atitudes ou aptidões. Pois que o filósofo é aquele que é eumathés, é aquele que aprende com facilidade, que é também mnémon, de boa memória, e logízesthai dunatòs, capaz de raciocinar, utilizar-se e bem aplicar o raciocínio (FOUCAULT, 2010b, p.219). Novamente uma comparação com o Alcebíades pode ajudar a esclarecer, através da percepção de mais uma diferença, acerca dessa segunda condição de realidade da filosofia. Citamos 133 b-c do Alcebíades: Sócrates - E com relação à alma, meu caro Alcebíades, se ela quiser conhecer-se a si mesma, não precisará também olhar para a alma e, nesta, a porção em que reside a virtude específica, a inteligência, ou para o que lhe for semelhante? (PLATÃO, 2007, p.283).

No Alcebíades o exercício do poder político é submetido à exigência de cuidar de si mesmo, cuidado de si que implicava o conhecer a si mesmo. E o conhecer a si mesmo implicava por sua vez a conversão do olhar da alma para a própria alma, era na contemplação da alma ou de seu elemento divino que se percebiam os fundamentos da justiça em sua essência e os princípios de um governo justo. (FOUCAULT, 2010b, p.219-20). É na forma de uma conversão do olhar que, no Alcebíades, o percurso

filosófico apresenta-se. Deve-se voltar o olhar para si mesmo, e o problema era saber quando o sujeito atingia o momento em que era capaz de contemplar a realidade e como ele podia descer de volta e aplicar o que ele tinha visto à vida cotidiana. Já na Carta VII é outra a conversão filosófica, é uma conversão da opção, é uma decisão. Conversão definida por uma escolha, por um percurso e por uma aplicação. Que não tende a contemplação, mas a uma atividade, que se dá sob a direção de um guia, no decorrer de um percurso longo e penoso, durante as atividades cotidianas e contando sempre com o bom aprendizado, memória e raciocínio da parte do discípulo. (FOUCAULT, 2010b, p.220). A realidade da filosofia encontrada na sua prática. E prática não como prática do lógos somente, mas prática como “exercícios”. Exercícios que terão por objeto o próprio sujeito, sua relação consigo, que levam em conta o trabalho sobre si. Nesse sentido, interessa mais à filosofia a definição do ser do sujeito que a prática discursiva, ou melhor, se há prática discursiva deve ser a que versa acerca da constituição do sujeito por si mesmo. A segunda condição de realidade da filosofia é, portanto, o trabalho sobre si (FOUCAULT, 2010b, p.221). A terceira condição de realidade, ou o terceiro círculo, Foucault retira-a do conjunto de textos que se referem à maneira como Dionísio não foi capaz de responder positivamente à prova a que foi submetido, isto é, das passagens que discorrem acerca do fracasso de Dionísio, que vão de 341 b à 345 c da Carta VII. Citamos Carta VII 341 b: Quanto ficou dito acima foi conversado com Dionísio, apesar de eu não lhe haver exposto toda a matéria nem ele ter exigido isso de mim. Dava-se ares de saber muitas coisas e de dominá-las, principalmente as mais importantes, por tê-las apanhado de ouvida com outras pessoas. Posteriormente, soube que chegara a escrever um tratado acerca das questões aprendidas comigo, que ele apresentava como trabalho original, não simples reprodução de conversa com estranhos. (PLATÃO, 2007, p.181).

Foucault divide essa análise em duas vertentes. Uma vertente negativa que discorre acerca do como e do por que fracassou Dionísio, a que se deve esse fracasso, qual foi o defeito que Dionísio em sua relação filosófica teria apresentado. E uma vertente positiva, um resultado positivo dessa crítica, que é o estabelecimento de uma certa teoria do conhecimento (FOUCAULT, 2010b, p.223). Começando pela vertente negativa. O primeiro sinal de fracasso que Platão afirma ter reconhecido em Dionísio é que este, após ouvir as primeiras lições,

julgou-se a par de tudo, conhecedor e praticante legítimo da filosofia. O que, além de demonstrar, de início, sua incapacidade para a filosofia levou-o a cometer um outro erro. O segundo sinal de fracasso de Dionísio, sua segunda falta para com a filosofia, foi ter escrito um livro. Ter escrito um tratado de filosofia passando-se não só por autor de textos que eram apenas transcrições das lições de Platão como, e isso para Platão foi o maior erro, a pior falta de Dionísio foi escrever um livro de filosofia, ter julgado que verdadeira filosofia podia ser transposta para um livro, ter julgado que fazer filosofia, que a prática da filosofia, escrever livros. O trecho 342 c da Carta VII assume então importância capital: De fato, não há como pô-los [os problemas filosóficos] em fórmulas (mathémata) (FOUCAULT, 2010b, p.233, nota nº4).

Segundo Foucault mathémata pode e deve ser entendido nesse momento em seus dois significados. O primeiro que é mathémata significando o próprio conhecimento. E o segundo que é mathémata significando as fórmulas em que são expressas o conhecimento. Nesse caso, mathémata é ao mesmo tempo o conteúdo e a maneira do conhecimento. E que implica a máthesis, o aprendizado que se dá através de fórmulas dadas pelo mestre, de fórmulas que devem ser decoradas e que assim se tornam conhecimento para o discípulo (FOUCAULT, 2010b, p.225). Como exemplo privilegiado de mathémata pode-se citar, certamente, as matemáticas. E o que, de acordo com Platão, não pode ser confundido com a filosofia e que de modo algum é o caminho da filosofia é esse tipo de conhecimento das fórmulas, que se adquire por meio das fórmulas. Constatação que leva á pergunta de qual seria o modo com que se adquire a filosofia. Ao que Platão responde tanto em Carta VII 342 c, que a filosofia se adquire por “synousía perì tò prâgma” (FOUCAULT, 2010b, p.225); quanto em 341 c-d “Quando se frequentou muito tempo esses problemas (ek pollês synousías), se conviveu com eles (syzên), é que a verdade brota de repente na alma, assim como a luz brota na centelha.” (FOUCAULT, 2010b, p.233, nota nº6). Foucault aponta várias traduções possíveis para synousía. synousía é sercom, reunião, conjunção e, no vocabulário grego ordinário tem inclusive o sentido de conjunção sexual. O que aponta também para a palavra syzên, que é viver com, coabitar com. Todas expressões que Platão se utiliza para referir-se justamente ao modo de aprender a filosofia, a como é a relação que se deve travar com a filosofia. É sendo com a filosofia, reunindo-se à ela, vivendo juntamente com ela,

coabitando com a filosofia que se pratica verdadeiramente a verdadeira filosofia. E é à força, é ao custo e ao tempo, dessa relação e prática que vai, ou que será possível, ver como que se acender na alma, uma centelha, uma faísca de sabedoria. É a situação metafórica de que tem de se estar ao pé da filosofia como se está ao pé do fogo, até que a alma se acenda, até que a alma produza luz. E, a partir do momento em que se acenda, a filosofia poderá ou terá que ser alimentada pela própria alma, e é assim que a filosofia vai viver, vai tomar vida, tornar-se viva. Clara oposição, portanto, às mathémata, pois que não há fórmula, e sim coexistência; não há aprendizado da fórmula, e sim acendimento brusco da e na própria alma; não há depósito de algum conhecimento na alma, e sim uma alimentação perpétua da filosofia pela alma (FOUCAULT, 2010b, p.226). A vertente negativa é tanto a identificação que Dionísio faz da filosofia com as fórmulas e, portanto, com a escrita do livro; quanto o fato de que esse escrito destina-se para qualquer um. Escrever é dizer algo para qualquer um que tiver acesso ao livro, coisa que para Platão, é ou inútil ou perigosa. Pois, os que sabem que a filosofia é prática não são aqueles que vão se beneficiar de algo como um livro de filosofia, um livro de filosofia para esses é inútil, pois esses servem-se deles, no máximo, como indicações ou rememorações pontuais. E os que se beneficiam com a escrita e a leitura de livros de filosofia, aqueles para os quais esses livros são úteis, são aqueles que imaginam conhecer de filosofia, e que com a leitura e escrita dos livros tornam-se apenas mais arrogantes e vaidosos de sua própria “sabedoria”. A vertente negativa culmina, portanto, com a falsa prática da filosofia, com a prática da escrita (FOUCAULT, 2010b, p.227). A vertente positiva acerca da terceira condição de realidade da filosofia é apontada por Foucault nas passagens 342 a à 345 c, conhecidas como o excursus ou a digressão filosófica da Carta VII, passagens introduzidas por Platão com o claro intuito de explicar, justificar e aprofundar e dar ainda mais as razões para as asserções que acabou de fazer. Citamos o trecho 342 a-b da Carta VII: Aliás, a esse respeito precisarei ser mais explícito; com isso, talvez algumas questões se tornem compreensíveis. Há uma razão de peso, que não pode ser afastada por quem se dispuser a escrever seja lá o que for acerca de semelhantes questões, de que já tratei bastantes vezes, mas sobre o que me parece de necessidade insistir. Para cada ser há três elementos que nos permitem conhecê-lo; o quarto é o próprio conhecimento, vindo a ser o quinto a coisa conhecida e que verdadeiramente existe. O primeiro é o nome; o segundo, a definição; o

terceiro a imagem; e o quarto o conhecimento. (PLATÃO, 2007, p.182).

Citamos também o trecho 343 b-c da Carta VII: Ademais, poder-se-ia provar de mil maneiras diferentes a obscuridade desses quatro elementos; porém a mais convincente demonstração é a que mencionamos há pouco: como há dois princípios, a essência e a qualidade, o que a alma procura conhecer não é qualidade, mas a essência. Ora, justamente o que cada um dos quatro elementos apresenta à alma, nos raciocínios e nos fatos, é o que ela não procura (…). (PLATÃO, 2007, p.183).

Citamos ainda o trecho 343 d-344 a da Carta VII: Mas, de tanto manejar todos, subindo e descendo de um a outro, chega-se penosamente a criar a ciência, quando o objeto e o espírito são ambos de boa qualidade. Se as disposições naturais, ao contrário, não são boas – e, na maioria dos casos, é esse de fato o estado de alma em relação ao conhecimento ou ao que se chama de costumes -, se tudo isso fosse estragado, a essa gente o próprio Linceu não daria a visão. Numa palavra, quem não tiver nenhuma afinidade com o objeto (tòn mè suggenê toû prágmatos), não obterá a visão nem graças à sua facilidade de espírito, nem graças à sua memória. (FOUCAULT, 2010b, p.234, nota nº16).

E citamos, por fim, 344 b-c da Carta VII: Só quando se esfregou penosamente (mógis dè tribómena), uns nos outros, nomes, definições, percepções da vista e impressões dos sentidos, quando se discutiu em discussões benevolentes em que a inveja não dita nem questões nem as respostas, só então é que sobre o objeto estudado vem brilhar a luz da sabedoria e da inteligência (exélampse phrónesis perì kaì noûs) com toda a intensidade que as forças humanas podem suportar. (FOUCAULT, 2010b, p.234, nota nº17).

A vertente positiva nos diz acerca do verdadeiro conhecimento, o quinto modo de conhecimento, aquele que dá a conhecer o verdadeiro ser da coisa. Conhecimento que não pode ser obtido da mesma maneira que os outros conhecimentos, para o qual há uma maneira própria de aquisição. Essa maneira é pela subida e descida ao longo dos outros quatro elementos do conhecimento, prática que vai, pouco a pouco possibilitar a apreensão da coisa, apreensão que, por sua vez, se dá de maneira imediata, tal como a apreensão visível de algo iluminado por uma luz que se acende. Contudo, para que dê certo, faz-se necessário também uma alma de boa qualidade. Uma alma que tenha afinidade (sugnés) com a coisa a ser conhecida. A alma que tenha uma relação com a própria coisa tò prâgma. E que, sem a qual, não bastam facilidade de aprendizado e de raciocínio e nem boa memória para que se conheça verdadeiramente. Essa prática da alma é designada por Platão de tribé, de fricção. Essa fricção

ecoa tanto a passagem do fogo que deve se acender na alma, quanto refere-se, e isso num sentido mais geral, à tribé, entendida como tudo o que é exercício, tudo o que é treinamento (FOUCAULT, 2010b, p.229). É pelo exercício da alma, é pela prática contínua e perpétua de todos os outros modos de conhecimento que poderá se adquirir o verdadeiro conhecimento. A terceira condição de realidade da filosofia é o resultado da vertente negativa e da vertente positiva da análise de Foucault do fracasso de Dionísio. A negativa exclui a filosofia de tudo o que é mathémata, tudo o que é fórmula escrita ou falada, e a positiva identifica a filosofia à prática e ao exercício de conhecimento. É na prática da alma que a filosofia vai encontrar outra de suas condições de realidade. Após o que Platão acrescenta em Carta VII 344 c-d: Eis a razão de todo homem de senso abster-se de escrever sobre esses temas sérios e de expô-los à inveja e à incompreensão do público. Daí podermos tirar a seguinte conclusão: quando vemos alguma composição escrita, ou seja de um legislador, a respeito de leis, ou de um outro indivíduo sobre assunto diferente, é certeza não ter o autor levado muito a sério o seu trabalho, ainda mesmo que se trate de um sujeito muito grave, por haver ficado retido o pensamento na porção mais nobre de sua alma. Mas, se, de fato, o confiou à escrita, como coisa da mais alta importância, então é que os humanos, não os eternos do Olimpo, fizeram que ele o juízo perdesse. (PLATÃO, 2007, p.185).

A prática da escrita constitui, portanto, o ponto no qual pode-se distinguir-se o filósofo, ou a prática filosófica, da figura do legislador, da prática legislativa. É por saber que da filosofia não se pode tratar por escrito que o filósofo não vai identificar o seu trabalho com o trabalho do legislador e nem se reconhecer como um. Tal afirmação de Platão certamente pode ser interpretada como dirigindo-se em sentido contrário ao de outros diálogos como a República e as Leis, os quais são consagrados, sobretudo, a escrever sobre as leis do ponto de vista do legislador. Ao que Foucault propõe uma interpretação, ou levanta a título de hipótese (2010b, p.230) de que talvez os esquemas legislativos e constitucionais propostos por Platão deveriam ser tomados com tantas precauções quanto um mito, não serem interpretados com toda a seriedade ou como se tais textos estivessem impregnados da mais alta seriedade. Isto é, assim como o como o mito não deve ser levado ao pé da letra, o mesmo deve ser feito a respeito da atividade de legislador de Platão. A filosofia passaria, sim, pelo jogo mítico e pelo jogo legislativo (nomotético), mas para dizer outra coisa (FOUCAULT, 2010b, p.231). O real da filosofia na política seria outra coisa que a proposição de leis.

Retomem-se as três condições de realidade da filosofia: com a primeira encontra-se na filosofia que se dirige àqueles que a querem escutar, na figura do conselheiro político como médico da cidade, que deve persuadir e receitar um novo regime de vida, sem, contudo, ser violento ou ser recebido violentamente. A segunda encontra-se na prática da filosofia, como exercícios cujo objeto é o sujeito, que visam o modo de ser, a constituição do próprio sujeito através e por meio de diversas práticas, no trabalho sobre si. E a terceira encontra-se num conhecimento verdadeiro que se adquire pela prática dos outros conhecimentos, conhecimento que brota ou se acende de um exercício contínuo da alma. Pode-se, portanto, afirmar que a seriedade da filosofia é lembrar, sem cessar, aos homens (aos que querem ouvir), que o real da filosofia está em suas práticas, práticas que são ao mesmo tempo exercícios de si sobre si e exercícios de conhecimento (FOUCAULT, 2010b, p.232). A análise de Foucault da atividade de conselheiro político de Platão não revela – como quiseram ver alguns - nem o advento de um logocentrismo na filosofia ocidental e nem de uma forma totalitária de pensamento político, mas o surgimento de uma filosofia cuja tarefa e a realidade se encontram na articulação do problema do governo de si e dos outros. Uma filosofia cujos efeitos numa história do dizer-averdade no campo político fazem ver a existência de uma dupla obrigação: da necessidade para o governo da filosofia, ou da necessidade do governante de filosofar; e da tarefa da filosofia ou de quem filosofa de confrontar-se com a realidade. Para Foucault é esse duplo vínculo que redefine a filosofia como prâgma (2010b, p.232-3). Filosofia como prâgma, é um caminho a percorrer, é uma escolha a se fazer, e uma aplicação. É filosofia como “longo trabalho que comporta: uma relação com um guia; um exercício permanente de conhecimento; uma forma de conduta de vida, até na vida comum” (FOUCAULT, 2010b, p.233). Redefinição que leva ao descarte de duas figuras complementares: “a do filósofo que volta seus olhos para uma realidade diferente e se vê desconectado desse mundo; a do filósofo que se apresenta trazendo já escrita a tábua da lei.” (FOUCAULT, 2010b, p.233).

5.5 (SEGUNDA SÉRIE – PARTE UM) OS CONSELHOS POLÍTICOS DE PLATÃO A segunda série de análise da Carta VII dá-se não mais acerca da atividade do conselho filosófico, mas acerca dos próprios conselhos, do conteúdo desses conselhos. E seu objetivo é detectar a parresía como que na raiz dos próprios conselhos políticos de Platão. Essa análise se estende também à Carta VIII. A Carta VII contém três séries de conselhos dados e relatados por Platão: o primeiro conselho foi ao seu amigo Dion; o segundo a Dionísio II; e o terceiro aos amigos e parentes de Dion. A estes últimos também se dirigem os conselhos da Carta VIII, sendo dados também aos seus opositores em Siracusa. Foucault não faz o estudo das passagens em que Platão relata seu aconselhamento a Dion, mas acreditamos ser válido citar como que o retorno desse primeiro aconselhamento, que revela-se nas palavras de Platão fazendo falar a Dion o que esse esperava de mais uma viagem de Platão à Siracusa. Carta VII 329 d-e: É como que proscrito, Platão, que te procuro não porque me faltassem hoplitas e cavaleiros para defender-me de meus adversários; faltavam-me, sim, aqueles discursos persuasivos com que conseguirias, tenho certeza, orientar os jovens para a justiça e a virtude, e uni-los para sempre com os laços inquebrantáveis da amizade e da camaradagem. (PLATÃO, 2007, p.166).

Nessa curta passagem salta aos olhos tanto o caráter médico que Platão faz Dion identificar na sua atividade de conselheiro, como os objetivos que Dion reconhecia nessa atividade. Os conselhos não visavam e nem versavam acerca de leis ou atividades próprias de governo ou do governante. Mas, acerca da orientação e educação dos jovens, de suas constituições como sujeitos, de seus modos de ser. Foucault aponta como que uma enigmática insipidez dos conselhos políticos de Platão: “De fato, os conselhos de política (...) quando examinados, não parecem ser muito mais que uma série de opiniões de ordem mais filosófica do que política, mais moral do que realmente política (…).” (2010b, p.236). Conselhos que se comparados a outros conselhos políticos, como os de Péricles, se comparados ao tipo de raciocínio e à riquezas das reflexões de Péricles, nada revelam “que à primeira vista possa ser tido, para a dizer a verdade, como muito interessante.” (FOUCAULT, 2010b, p.236-7). Mas, essa debilidade ou fraqueza podem ser interpretadas de outro modo, a partir do momento em que o conselho do filósofo

deixa de ser entendido como uma prescrição para a ação política e julgado dentro dos parâmetros da ação política; a partir do momento em que se passa a considerar que filósofo queira dizer outra coisa, seus conselhos passam a ter um outro aspecto e se dão sob outros critérios (FOUCAULT, 2010b, p.238). Os primeiros conselhos a serem estudados são, como foi dito, os conselhos dados por Platão a Dionísio, que ocupam toda a passagem 331 d à 333 a da Carta VII. Citamos o trecho 331 d-332a: São dessa natureza os conselhos que me ocorreria dar-vos, tal como fiz no começo com Dionísio, de acordo com Dião, para que organizasse sua vida de todos os dias, aumentasse cada vez mais o domínio sobre si próprio e adquirisse novos correligionários e amigos de confiança, para não acontecer com ele o que se deu com seu pai, o qual, havendo conquistado muitas cidades da Sicília devastadas pelos bárbaros, foi incapaz, depois, de libertálas e de conferir a qualquer delas instituições duráveis, que ele poria sob a direção de amigos certos, quer escolhesse estrangeiros, não importando a procedência, quer mesmo seus irmãos, educados por ele mesmo, por serem mais moços, e que de simples particulares ele fizera dirigentes, e de pobres, imensamente ricos. (PLATÃO, 2007, p.170).

Essa passagem se situa imediatamente depois das considerações nas quais Platão explica o que é o papel de conselheiro, em que explica que um conselheiro na ordem política deve ser como um médico. E a medicina em seus aspectos: o de conhecimento, observação e diagnóstico dos males; o de persuasão do doente, da ação como médico livre; e o de mudar a maneira de viver do doente, de estabelecer um novo regime de vida, de prescrever uma nova dieta para o doente. São essas três funções médicas que são postas em jogo nos conselhos dados por Platão. É como médico tanto da cidade quanto da alma que Platão atua. De início, o estudo dos conselhos de Platão como médico da cidade de Siracusa. O primeiro a ser feito é diagnosticar o mal de que padece a cidade de Siracusa. A cidade de Siracusa ainda não está em crise aberta, não há crise, mas há doença. De acordo com Platão o primeiro sintoma é que Dionísio I, o velho, ao constituir o império siracusano, não foi capaz de estabelecer, nas cidades soerguidas, regimes confiáveis (politéias pistas), nem quando o confiou a outras mãos, como a de estrangeiros ou a de seus irmãos. O primeiro sintoma é, portanto, a ausência de uma relação de fidelidade e confiança entre as cidades e as metrópoles. (FOUCAULT, 2010b, p.240). O segundo sintoma foi também a incapacidade

de

Dionísio

I

de

estabelecer

uma

koinonía

arkhôn,

um

compartilhamento, uma comunidade dos poderes, não conseguir fazer participar do poder os que eram seus subordinados, nem pela persuasão, nem pelo ensino, nem

pelos benefícios e nem pelos parentescos (FOUCAULT, 2010b, p.241). O diagnóstico de Platão é que o poder em Siracusa se conserva com dificuldade. Uma dificuldade que se deve tanto ao desejo de Dionísio I de fazer da Sicília uma única cidade, mía pólis, uma cidade só; quanto à sua incapacidade de fazer amigos, de contar com pessoas de confiança (phíloi e pistói) (FOUCAULT, 2010b, p.241). Duas faltas de Dionísio I, portanto: a primeira é querer aplicar a constituição e a organização de algo como uma cidade grega, uma pólis, a algo grande e complexo como um conjunto de cidades, a um império; a segunda falta foi não estabelecer relações de amizade e confiança que possibilitariam a cada cidade conservar sua independência. O mal de que sofre a cidade de Siracusa é que todo o império siracusano foi constituído como uma união forçada de cidades e numa unidade política ineficaz dessas mesmas cidades (FOUCAULT, 2010b, p.241-2). Diagnosticado o mal da cidade, parte-se para o segundo nível dos conselhos dados por Platão a Dionísio II, o nível da segunda função do conselheiro médico, que é a persuasão do doente, que é convencer o próprio Dionísio. Foucault lembra que, de acordo com os clássicos princípios da retórica e do discurso grego, o uso de exemplos num texto ou discurso faz-se com o claro intuito de atuar na persuasão do leitor ou ouvinte - a função de um exemplo é persuadir. E exemplificar para convencer é justamente o que faz Platão ao servir-se de dois exemplos que versam acerca de situações semelhantes à da cidade de Siracusa. Um primeiro exemplo é o do império Persa e o segundo é o de Atenas. Citamos Carta VII 332 a-e: (…) no que se mostrou sete vezes inferior a Dario, o qual confiou em pessoas que nem eram seus irmãos nem tinham sido educadas por ele, mas apenas o haviam ajudado a vencer o eunuco, e dividiu o reino em outras tantas regiões, cada uma das quais era maior que a Sicília, tendo encontrado em todos eles colaboradores de confiança que nunca lhe criaram dificuldades nem se desavieram entre si. Com isso deu o exemplo de como deve ser o bom legislador e o bom rei, pois graças às leis por ele promulgadas manteve coeso até hoje o império persa. Vejamos também o exemplo dos atenienses: não colonizaram as inúmeras cidades invadidas pelos bárbaros, senão que as receberam já formadas; apesar disso, conservaram-nas por mais de setenta anos, porque em todas elas souberam fazer amigos. (PLATÃO, 2007, p.170).

O primeiro exemplo é o da Pérsia, que se no século V a.C. passava por ser um exemplo ruim, exemplo de regime autocrático e violento, no século IV torna-se um bom exemplo. Foucault indica ainda o livro III das Leis de Platão, no qual faz-se referência à maneira como Ciro governa e a como essa maneira dá espaço à

parresía, e também o texto do Alcebíades de Platão no qual se elogia a maneira como os príncipes persas são criados (2010b, p.242). Um exemplo positivo, portanto, de um sistema imperial que funciona, um sistema de federações e de alianças, que possibilitou a Ciro estabelecer um império com a ajuda de seus aliados, aliados que continuaram seus amigos até o fim. (FOUCAULT, 2010b, p.243). O segundo exemplo é o de Atenas. O que certamente pode levar à questões acerca do porquê de Platão servir-se do exemplo de dois regimes políticos diferentes. Mas, como indica Foucault, o problema aqui “não é tanto escolher entre democracia e autocracia. O problema é saber como se pode fazer funcionar convenientemente uma e outra.” (2010b, p.243). Os atenienses são um bom exemplo porque não fundam outras cidades fora do território ateniense. Eles tomam cidades já povoadas e que foram conquistadas; e deixam o poder na mão dos que o exerciam antes da dominação bárbara. Em todas as cidades eles possuíam partidários, ándras phílous, homens amigos (FOUCAULT, 2010b, p.244). É através desses dois exemplos que Platão, após feito o diagnóstico dos males de que sofria a cidade de Siracusa, procura persuadir à Dionísio II, exemplos que, apesar das diferenças entre si, tem em comum o fato versarem ambos sobre situações imperiais bem sucedidas. Após o diagnóstico e a tentativa de persuasão segue-se o terceiro nível dos conselhos dados por Platão a Dionísio, que corresponde à terceira das funções médicas que é a da prescrição de um regime. A prescrição desse regime se dará tanto acerca da cidade quanto acerca da própria pessoa de Dionísio. Citamos Carta VII 332 e-333 a: Ingressando no caminho por nós indicado e tornando-se reflexivo e prudente, reconstruiria as cidades arruinadas da Sicília, por meio de leis e constituições que estreitassem suas relações recíprocas e as aproximassem dele próprio, no interesse comum de resistirem aos bárbaros; e com isso, não duplicaria, simplesmente, o domínio paterno, senão o aumentaria muitas vezes. (PLATÃO, 2007, p.171).

As prescrições de Platão à cidade de Siracusa são de três ordens distintas. A primeira é que é preciso dar a cada cidade uma politéia, dar constituições e instituições às cidades, dar leis (nómoi) a cada uma delas (FOUCAULT, 2010b, p.244). A segunda é que é preciso ligar as cidades entre si e ligá-las à Siracusa, à metrópole. Seria algo da ordem de um segundo nível de regulações por meio das leis e das instituições (FOUCAULT, 2010b, p.244). E a terceira é de que é preciso

uni-las a uma causa comum, no caso da Sicília, uni-las à luta contra um inimigo comum a todas aquelas cidades, isto é, contra os cartagineses (FOUCAULT, 2010b, p.244). Prescrições essas que, se seguidas por Dionísio II, afirma Platão, só poderiam trazer resultados positivos, com o estabelecimento de um império forte e unido que, eventualmente, poderia expandir-se. A segunda série de prescrições versam acerca de um regime a ser adotado pelo próprio tirano, visam à pessoa de Dionísio II, e encontram-se tanto nas passagens 331 d-e quanto em 332 e da Carta VII, ambas já citadas. A primeira prescrição é a de que Dionísio precisa fazer um trabalho sobre si mesmo. Foucault aponta o uso da expressão apergázein que pode significar elaborar, aperfeiçoar, trabalhar sobre si mesmo para se tornar émphron e sóphron, ponderado e sábio (2010b, p.244-5). É preciso que Dionísio esteja em concordância, em sinfonia, que seja sýmphonos consigo mesmo. Se, é como diz a Carta V, que cada cidade possui uma voz, é preciso que essa voz seja sýmphonos com sua essência, é preciso à cidade fazer uma symphonía. É preciso também, e como garantia que, de acordo com a Carta VII, o governante seja sumphonoûs consigo mesmo (FOUCAULT, 2010b, p.245). Platão exorta Dionísio a viver a vida de maneira que se torne a cada dia, que seja cada vez mais senhor de si mesmo (egkratés autòs hautoû). Foucault diz que a tradução de egkratés por senhor de si faz-se em relação principalmente aos domínios sobre os desejos e apetites, significando, por fim, temperança em relação à comida, ao vinho e aos prazeres sexuais. Mas, que uma vez que se formulou como egkratés autòs hautoû verifica-se como que um fortalecimento da expressão, na qual ela toma um sentido mais geral, compreendendo um domínio para além dos desejos. Seu significado passa a ser uma relação de poder do indivíduo sobre si mesmo, como que um redobramento do exercício de poder cujo objeto é o próprio sujeito4. E é essa relação de poder que vai como que selar o bom governo sobre Siracusa, de acordo com as prescrições de Platão (FOUCAULT, 2010b, p.245-6). O segundo conjunto dos conselhos de Platão estudados por Foucault são os conselhos dados aos amigos e parentes de Dion, conselhos não mais rememorados a título de justificação e exortação, mas conselhos dados no tempo contemporâneo à escrita da carta, e que encontram-se nas passagens 334 c à 337 e da Carta VII. 4 Foucault discorre precisa e longamente acerca desse ponto durante todo o curso “A hermenêutica do Sujeito”, para uma análise introdutória ver Aula de 6 de janeiro de 1982 – Segunda Hora (2010a, p.25-37) e Aula de 13 de janeiro de 1982 – Primeira e Segunda Hora (2010a, p.41-72).

Citamos 334 c: Repito pela terceira vez o mesmo conselho e a mesma advertência, por me terdes consultado em terceiro lugar. (PLATÃO, 2007, p.173).

E citamos 334 d: Ouvi-me, então, por amor de Zeus, a quem ofereço a terceira libação, e depois voltai as vistas para Dionísio e Dião. (PLATÃO, 2007, p.173).

Foucault faz notar duas coisas nessas passagens. A primeira é o seu caráter ritualístico, o ritual da libação faz-se em ocasião de banquetes e o de número terceiro é o mais solene. Essa libação se dirige à Zeus, mais exatamente à Zeus “salvador”. Esses conselhos, portanto, repetidos assim como numa terceira libação, são destinados a salvar Siracusa (FOUCAULT, 2010b, p.246). A segunda é que os conselhos são dados pela terceira vez, isto é, os conselhos dados na presente situação serão os mesmos que os dados anteriormente tanto a Dion quanto a Dionísio. Contudo, se são os mesmos conselhos (symboulèn), não é a mesma a ênfase. Esses conselhos são dados num momento em que há como que uma ameaça de guerra civil na cidade de Siracusa. É o problema da politéia da própria cidade que é o mais importante a se tratar. É a questão do que fazer para salvar a cidade. Os conselhos versam, portanto, bem mais acerca de medidas de tipo institucional e constitucional do que os conselhos dados a Dionísio, que se resumiam a apontar a necessidade de dar constituições às cidades (FOUCAULT, 2010b, p.246-7). A doença, diagnosticada por Platão, irrompera em crise. As medidas a serem tomadas, os conselhos de Platão para salvar Siracusa, podem ser contadas em número de quatro (FOUCAULT, 2010b, p.247). A primeira é que os siracusanos se dirijam a sábios. Esses sábios podem ser reconhecidos por, ou para serem considerados sábios devem ter mulher e filhos, devem ser descendentes de uma boa linhagem, e possuírem fortuna o suficientemente. E esses sábios devem ser ao número de cinqüenta para cada dez mil habitantes. A segunda coisa a se fazer é pedir a esses sábios que proponham leis à cidades. É preciso atraí-los, suplicar-lhes e até constrangê-los a que se dediquem a essa atividade. A terceira medida a se tomar é que, quando os grupos que se confrontam tiverem se reconciliado, é preciso não haver diferença entre vencedores e vencidos, não haver diferença perante a lei, é preciso estabelecer uma lei comum (nómos koinòs) para ambos. E a quarta coisa é que é preciso que os vencedores, que os

que exercerão maior influência, mostrem que são ainda mais submissos às leis que os vencidos. Esses conselhos encontram-se nas passagens 337 b-d da Carta VII. Alguns pontos ressaltados por Foucault. O primeiro é que Platão, claramente, não se apresenta como um legislador, não diz quais são as leis, mas, sim, aponta quais são aqueles que lhe parecem mais adequados para fazer as leis, os sábios da cidade, e deixa, portanto, a cargo deles, escolher quais as melhores leis para Siracusa (FOUCAULT, 2010b, p.247). O segundo ponto é que surge o problema da formação moral dos indivíduos, isto é, o problema de como fazer para que os vencedores se tornem mais submissos às leis do que os vencidos. Essa formação moral dos vencedores vai exigir duas coisas: uma formação teórica e uma formação prática (FOUCAULT, 2010b, p.247). De início, qual o tipo de teoria necessária nesse caso? Apesar da extrema desconfiança de Platão com o saber teórico normalmente dado ao homem que vai exercer o poder político, Foucault aponta o caráter extremamente simples dos ensinamentos dos teóricos dados por Platão; seus conselhos versam basicamente acerca de que é sempre melhor ser justo, ainda que infortunado, do que ser injusto, ainda que afortunado (2010b, p.248). São citadas, a título de exemplo, as vidas de Dion e de Dionísio. Com Dion como o justo e infortunado, porque morto; e Dionísio como injusto e afortunado, porque permanecera vivo. São feitas ainda algumas considerações acerca da distinção entre alma e corpo e a diferença entre alma imortal e corpo mortal e, por fim, discorre-se acerca do juízo da alma depois da morte em função do que fez durante a vida. Tudo isso em Carta VII 334 d-335 c. Tal formação teórica Platão não apresenta como seus ensinamentos, isto é, como doutrina filosófica que lhe seria própria ou da qual seria autor, mas, como pensa, tais conselhos são velhas e santas tradições. Foucault cita Carta VII 335 a: “É preciso acreditar verdadeiramente nessas velhas e santas tradições que nos revelam a imortalidade.” Cita ainda o mesmo trecho do texto em grego “toîs palaioîs te kaí hieroîs lógois” e que traduz por “esses discursos que são ao mesmo tempo antigos e sagrados” (2010b, p.248). A autoridade e as razões pelas quais os vencedores vão se submeter às leis emanam não de alguma doutrina filosófica transmitida por Platão, mas, sim das crenças religiosas e das tradições sagradas. São esses discursos muito antigos e conhecidos pelos cidadãos da cidade que devem constituir o fundo teórico a que se refere o homem político (FOUCAULT, 2010b, p.249).

Quanto à formação prática necessária à cidade de Siracusa, nesse ponto Platão é extremamente sucinto, apenas indicando nas passagens de 336 c-d que os siracusanos vivam à maneira dórica, tal como fizeram os antepassados, isto é, também no modo de viver deve-se aplicar-se à concretização e à continuação do que os antigos já diziam e faziam. Mas, mesmo se tais passagens não são ricas em elaboração filosófica ou política, mostram a importância da formação moral para o bom governo da cidade. Ao que Foucault aponta as passagens 337 a-b nas quais Platão versa acerca dos dois recursos pelos quais é possível o bom governo (2010b, p.249). O primeiro recurso é o temor (phóbos), isto é, que os vencedores, futuros governantes, façam reinar sobre os vencidos, sobre os que serão governados, o temor, e isso, a partir da exibição de sua força (bía), de sua superioridade em termos de força. O segundo recurso é o pudor ou o respeito (aidós), que não é tanto externo, isto é, que não é somente respeito dos governados pelos seus governantes, mas interno, ou seja, o respeito dos governantes para com suas obrigações e para com as leis. É esse respeito que os fará capazes de se submeter às leis como um escravo. Nesse ponto Foucault (2010b, p.249) destaca o uso, por Platão, do termo douleúein. O que caracteriza esse respeito, portanto, é o querer dos governantes em constituir-se como que em um escravo da lei, e é desse respeito dos governantes que partirá, como efeito secundário, o respeito dos governados para com eles e para com a lei. É nesse ponto que Foucault conclui sua análise da Carta VII, mas a análise dos conselhos de Platão se estende a uma análise da Carta VIII. É após esse estudo da Carta VIII, com a conclusão da análise dos conselhos de Platão, Foucault reúne os resultados das duas análises e conclui seu estudo da figura do filósofo como conselheiro na história da dramática política da parresía.

6 (SEGUNDA SÉRIE – PARTE DOIS) ANÁLISE DA CARTA VIII Foucault conclui a análise do filósofo como conselheiro político na figura de Platão e termina a análise dos conselhos políticos de Platão pelo estudo da Carta VIII. Nunes data a Carta VIII como sendo do mesmo ano da Carta VII, o de 353 a. C e como tendo os mesmo destinatários (PLATÃO, 2007, p.134). Mais curta e menos cheias de reflexões filosóficas, ela responde a uma situação dramática que se desenvolvia em Siracusa nos meses que se seguiram à Carta VII: a guerra civil que antes era somente uma ameaça passa à realidade e os dois lados, o de Dionísio e o de Dion, estão se defrontando (FOUCAULT, 2010b, p.238). A Carta VIII aparece como interessante para Foucault por duas razões. A primeira é que a gravidade da situação em Siracusa vai obrigar a Platão a discorrer diretamente acerca da própria organização da cidade. E a segunda é que esses conselhos são como que “introduzidos e esteados por uma reflexão geral sobre a parresía (…).” (FOUCAULT, 2010b, p.250). De início, quais os conselhos que Platão vai dar aos siracusanos, uma vez que estes se encontram em tão grave situação? As passagens vão de 354 c à 357 d. Tendo em vista que a guerra civil fez ruir a anterior organização da cidade, faz-se necessária uma nova organização, e, é isto e por causa disso, que Platão vai dedicar diretamente seus conselhos à constituição da cidade (FOUCAULT, 2010b, p.250). É preciso que a politéia, que a organização da cidade, respeite uma hierarquia. E, se Siracusa quiser seguir a hierarquia que Platão propõe, é preciso também, um sistema organizacional que dela se aproxime ao máximo, dentro do possível da situação de Siracusa. Esse sistema organizacional é monárquico à maneira de Esparta, isto é, uma monarquia na qual os reis não tem poder efetivo, exercendo apenas funções religiosas. Nesse sistema devem ser três os reis, com o número três referindo-se aos descendentes de Dionísio I, o velho, ao descendente de Dionísio II, o moço, e ao descendente de Dion. Platão propõe também um corpo de guardiões das leis, em número de trinta e cinco, e cuja função é a produção e manutenção das leis, e ainda juízes que aplicarão penas de morte e de exílio. Contudo, o que mais interessa a Foucault na Carta VIII é que tais conselhos de Platão são todos introduzidos e como que perpassados por trechos que indicam tanto a função de parresiasta quanto a função da parresía. Evidencia-se que a

ordem do conselho político é ao mesmo tempo a manifestação e o exercício da parresía (FOUCAULT, 2010b, p.251). Vale relembrar os elementos da parresía que surgiram quando da comparação dos enunciados parresiáticos com os enunciados performativos. São eles: a abertura de um risco indeterminado que o enunciado parresiático proporciona àquele que o enuncia; a expressão pública de uma convicção pessoal, fundada num pacto que aquele que o enuncia faz tanto com o ato de enunciação quanto com o conteúdo do enunciado; e o emprego de uma livre coragem por parte daquele que o enuncia. Tais elementos podem ser verificados na fala de Platão. Primeiro, a insistência do caráter pessoal das enunciações (FOUCAULT, 2010b, p.251-2). Platão está a todo momento a afirmar que, o que diz, o diz em seu nome pessoal. Que é sua opinião, que é o que ele pensa, o que ele acredita, que é o que ele mesmo diz. Na Carta VIII não é nem a voz da cidade, como na Carta V, nem a voz das Leis, como no diálogo Críton, que se ouvem aqui. Foucault (2010b, p.252) cita Carta VIII 354 c: “Eis portanto o que meu discurso presente recomenda a todos.”, e cita ainda outras duas passagens da Carta VIII (que não pude localizar) nas quais traduz as falas de Platão “dé moi phaínetai” por “o que me parece”, e “Procurarei, de minha parte, convencer vocês, digo a vocês qual é emè symboulé (meu conselho)”. De acordo com Foucault, esse caráter pessoal de enunciação permanece mesmo quando do momento em que Platão faz falar a Dion, e isso por quatro motivos. O primeiro é o fato de que o se presencia é o clássico processo retórico da eloqüência grega de fazer um morto intervir para validar o que se está dizendo. Segundo é que o que Dion diz é o que o próprio Platão também pensa e diria, a opinião de ambos é comum (é um koinòs lógos de Platão e Dion, isso em Carta VIII 354 c). Terceiro, deve-se levar em conta que Dion foi formado por Platão, o que ressalta ainda mais a autoridade do que se diz. E o quarto motivo é o fato de que Dion é aquele que pagou com a vida o dizer-a-verdade que o opôs a Dionísio e que tentou fazer valer em Siracusa. Dion é o parresiasta que arriscou e pagou com a vida seu dizer-a-verdade (FOUCAULT, 2010b, p.252). Motivos que não só fazem manter a parresía de Platão, como a aprofundam com a intervenção da fala de Dion. Segundo, a parresía de Platão se caracteriza por uma tensão entre o conselho particular e os princípios gerais (FOUCAULT, 2010b, p.252-3). Isto é, há sempre nos conselhos o caráter conjuntural - Platão não cessa de lembrar que os

conselhos são dados tendo em vista aquela situação específica de que tratam, no caso a guerra civil de Siracusa. Foucault cita o emprego, por Platão, da expressão “por ora” (tà nûn, isso em Carta VIII 354 a). E, vale lembrar ainda, das referências de Platão ao caráter sempre igual de seus conselhos seja a Dion, a Dionísio ou à amigos e parentes destes. Princípios gerais que utiliza em seus conselhos particulares. Terceiro, a parresía de Platão se caracteriza também por se dirigir a todo mundo e a cada um ao mesmo tempo (FOUCAULT, 2010b, p.253). O discurso de Platão se dirige a ambas as partes do conflito siracusano. Foucault cita Carta VIII 357 b: “eis o que eu aconselho a todos (pâsin symboléuo) a decidir e empreender em comum (koinê); chamo todo o mundo (parakalô pántas) a empreender essas ações.”. Mas, ao mesmo tempo, esse discurso se dirige a cada uma das partes, a cada um dos ouvintes. Citamos Carta VIII 354 a: “Falo, por assim dizer, como um árbitro (légo gàr dè diaitetoû) que se dirige às duas partes, a que exerceu a tirana e a que a sofreu, e a cada uma delas como se fosse a única dou meu conselho.” (FOUCAULT, 2010b, p.257, nota nº36). O discurso de Platão não é um discurso geral que procura se impor à cidade, que procura impor algo à cidade, é um discurso de persuasão. E “se dirige a cada um para obter de cada um certo comportamento, certa conduta, certa maneira de fazer.” (FOUCAULT, 2010b, p.253). A quarta característica da parresía de Platão é que ele fala a título de diaitetés (FOUCAULT, 2010b, p.253-4). O termo diaitetés é um termo jurídico que indica uma função extrajudicial, e que era normalmente permitida e definida pelas instituições e constituições de Atenas. O diaitetés era o árbitro, a quem se podia recorrer para resolver um conflito, em vez de ir-se a um tribunal. Segundo Foucault, a etimologia de diaitetés indica também “aquele que dá a dieta”, “aquele que dita o regime”. Os dois sentidos de diaitetés são também os dois sentidos de díaita do grego clássico, e que remetem à mesma raiz de zên (viver). Pois que, “dieta é o conjunto de regras pelas quais se pode arbitrar a oposição entre as diferentes qualidades, (…), entre os diferentes humores que constituem o corpo” (FOUCAULT, 2010b, p.254). Platão como diaitetés é, ao mesmo tempo, o árbitro entre as diferentes partes litigantes da cidade e aquele que dita o novo regime da cidade. A quinta característica da parresía de Platão é que ela tem de enfrentar a realidade (FOUCAULT, 2010b, p.254-5). São várias as vezes nas quais Platão não só aceita, como reivindica o desafio de defrontamento com a realidade. Foucault cita

Carta VIII 355 c-d: “É verdade que eu vos aconselho e, se experimentardes minhas afirmações presentes sobre as leis, sentireis seu efeito (érgo gnósesthe), porque a experiência é em tudo a melhor pedra de toque (básanos)” (2010b, p.257, nota nº38) e traduz érgo gnósesthe por “vocês vão saber na realidade” (2010b, p.254). Foucault cita ainda Carta VIII 357 c-d: Oferecei pois aos deuses vossas homenagens com vossas preces, assim como a todos os que convém juntar aos deuses em vossas louvações; convidai [na realidade, o verbo utilizado é peíthomai, persuadir; M.F.], exortai amigos e inimigos amistosamente e sem cansar, até o dia em que todas as nossas palavras [palavras que acabam de ser ditas, os conselhos que Platão acaba de dar; M.F.] tal como um sonho divino que vos visita na vigília, se tornarão graças a vós uma notável e feliz realização. (2010b, p.254).

O sonho divino é aquele que diz tanto o que vai acontecer quanto o que se deve fazer para as pessoas que dormem, enquanto dormem. Já o filósofo, em sua função de parresiasta, e seu discurso, sua parresía, vieram visitar aos siracusanos como um sonho divino, mas que, visitam homens que estão despertos, os visitam enquanto estão despertos. Uma vez que esse sonho divino deve sua verdade a uma condição, “quando vocês houverem elaborado em realidade (exergásesthe), quando vocês houverem trabalhado até que essas coisas sejam efetivamente consumadas e encontrem nesse momento, (…), sua boa sorte, que elas sejam eutykhê.” (FOUCAULT, 2010b, p.255). Exigência, portanto, de que se ponham em prática os conselhos, de que sejam efetivamente praticados e provados pela realidade. É por esses cinco elementos - o caráter pessoal das enunciações; a tensão entre o conselho particular e os princípios gerais, o fato de se dirigir a todo mundo e a cada um ao mesmo tempo; falar a título de diaitetés; e enfrentar a realidade – que se pode reconhecer e reivindicar a parresía como sendo a raiz da atividade de conselheiro político de Platão (FOUCAULT, 2010b, p.255). Citamos a conclusão dessa parte da análise por Foucault: “É do real político que o discurso filosófico tirará a garantia de que não é simplesmente logos, de que não é simplesmente uma palavra dada em sonho, mas que efetivamente toca o érgon, aquilo que constitui o real.” (2010b, p.255).

7 O FILÓSOFO COMO CONSELHEIRO POLÍTICO: RESULTADOS DAS ANÁLISES DAS CARTAS A análise da Carta V obtém respostas a duas questões acerca do filósofo como conselheiro político. A primeira questão é acerca do significado de um aconselhamento político que se dê ou possa se dar a governos cujas constituições sejam diferentes, a qual se responde com a proposta de uma audição da voz da constituição da cidade, e da qual o filósofo, ou o bom governante, deve ser como que o guardião, isto é, fazer com que seja conforme a sua essência, para que assim prospere a cidade. A segunda é a questão do porquê os atenienses não serem aconselhados enquanto um rei o era, a qual se responde com o apontamento dos maus e inveterados hábitos dos atenienses e com a crença de que o rei Perdicas teria uma atitude oposta à dos atenienses, uma atitude que seria a da boa recepção e prática dos conselhos. Como resultados da primeira série de análise das Cartas de Platão, que é a análise da atividade de conselheiro político de Platão na Carta VII, podem-se contar dois. Primeiro, o aparecimento de três condições de realidade que a filosofia tira de sua relação com a política, às quais a filosofia deve se submeter e por elas ser aprovada. A primeira é o círculo da escuta; a segunda é o círculo do trabalho sobre si; e a terceira é o círculo do exercício do conhecimento. Segundo resultado, o surgimento de uma filosofia cuja tarefa e realidade se encontram na articulação do problema do governo de si e dos outros. Define-se a filosofia como prâgma, como um caminho a percorrer, uma escolha a se fazer, e uma aplicação. Como resultados da segunda série de análises, que é a análise dos próprios conselhos políticos de Platão na Carta VII e Carta VIII, podem-se contar também dois. Primeiro, que um conselheiro na ordem política deve ser como um médico, isto é, fazer uso da medicina em seus três aspectos: o de conhecimento, observação e diagnóstico dos males; o de persuasão do doente, da ação como médico livre; e o de mudar a maneira de viver do doente, de estabelecer um novo regime de vida. E, que é tanto como médico da cidade quanto como da alma que Platão atua. Segundo, a parresía como sendo a raiz da atividade de conselheiro político de Platão por meio de seus cinco elementos: o caráter pessoal das enunciações; a tensão entre o conselho particular e os princípios gerais, o fato de se dirigir a todo mundo e a cada um ao mesmo tempo; falar a título de diaitetés; e enfrentar a

realidade. Foucault sintetiza o resultado de todas essas análises no estabelecimento de três pontos fundamentais: Primeiro, um traço fundamental nas relações entre filosofia e política, fundamental e constante. Segundo, uma conjuntura histórica particular, mas que tem um alcance histórico bastante longo para envolver a Antiguidade. Enfim, terceiro, e é sobretudo sobre isso que eu gostaria de insistir, esses conselhos mostram bem, creio eu, o ponto em que precisamente a filosofia e a política, o filosofar e a atividade vêm se encontrar, o ponto em que, precisamente, a política pode servir de prova de realidade para a filosofia. (2010b, p.259).

Primeiro, o traço apontado como fundamental e recorrente nas relações entre filosofia e política é de sua necessária relação mas impossível coincidência, isto é, de sua necessária exterioridade e, ao mesmo tempo, de sua correlação. Como foi apontado, os conselhos de Platão, tanto do ponto de vista político quanto do “filosófico”, podem ser considerados fracos ou banais. Mas, para Foucault, isso só corrobora que “as relações entre filosofia e política não devem ser buscadas na eventual capacidade da filosofia de a filosofia dizer a verdade sobre as melhores maneiras de exercer o poder.” (2010b, p.259). Deve-se deixar à própria política a tarefa de saber e definir quais são as melhores maneiras de exercer o poder. A filosofia tem de dizer a verdade “não sobre o poder, mas em relação ao poder, numa espécie de cara a cara ou interseção com ele. A filosofia não tem de dizer ao poder o que fazer, mas tem de existir como dizer-a-verdade numa certa relação com a ação política. Nada mais, nada menos.” (FOUCAULT, 2010b, p.260). Citamos ainda: O dizer-a-verdade filosófico não é racionalidade política, mas é essencial para uma racionalidade política manter certa relação, a ser determinada, com o dizer-a-verdade filosófico, assim como é importante para um dizer-averdade filosófico fazer prova de sua realidade em relação à prática política. (FOUCAULT, 2010b, p.262).

O segundo ponto fundamental apontado por Foucault, é a nova conjuntura histórica que obriga a pensar, para além da cidade, uma nova unidade política. Vêse, e sobretudo na primeira série de conselhos que Platão dá a Dionísio, que o lugar reservado à organização, à constituição, às leis e aos tribunais é bastante reduzido e restrito. O que parece mais importante são os problemas que concernem às alianças e desavenças, às relações entre cidades inimigas e amigas, etc. (FOUCAULT, 2010b, p.263).

São problemas de império e de monarquia. Problemas que dizem respeito à Sicília, a um mundo ainda bem próximo do mundo helênico clássico, da organização em torno de pequenas cidades. Mas, que “vão se tornar problemas políticos reais do mundo helenístico e a fortiori do mundo romano” (FOUCAULT, 2010b, p.263). É o surgimento de um novo problema político, problema do tipo de unidade política a organizar a partir do momento em que a fórmula da cidade grega não corresponde mais ao exercício do poder em espaços, populações e unidades que a superam. Problema de se pensar uma nova unidade política para além da cidade. É com essa realidade recente e nascente que o discurso filosófico de Platão vai se relacionar, uma relação que visa mais o funcional do que ideal (FOUCAULT, 2010b, p.263-4). O terceiro, é o ponto no qual, fazendo intervir esses dois pontos, a política pode servir de prova de realidade para a filosofia. Como diz Foucault: De fato, se (…), o discurso filosófico e a prática política devem estar em certa relação, mas que não seja uma relação de coincidência, qual é para Platão essa relação e onde ela vai se estabelecer? Ou então: a prova pela qual a filosofia deve (…), se assegurar do seu real de maneira que não seja simplesmente logos, onde ela deve ser feita? O cara a cara da filosofia e da política, que implica ao mesmo tempo sua relação necessária e sua não coincidência, onde se inscreve? Pois bem, acho que temos a solução para esse problema. (…) Para Platão o lugar dessa relação não coincidente (…), é a alma do Príncipe. (2010b, p.265).

Se é na alma do Príncipe que se dá a relação entre filosofia e política em Platão é preciso saber de que maneira essa relação se estabelece. E isso porque pode-se argumentar que, uma vez que a relação entre filosofia e política se estabeleça na alma do Príncipe, filosofia e política coincidam plenamente nesse ponto. Isto é, dizer que o Príncipe deve ser filósofo talvez queira dizer que “o Príncipe não deve tomar decisão política, só deve agir como ator político a partir de um saber e de conhecimentos filosóficos que lhe dirão o que fazer” (FOUCAULT, 2010b, p.266). Acerca desse ponto, Foucault cita mais uma vez tanto os trechos da Carta VII quanto os da “República” de Platão. Citamos Carta VII 326 b tal como traduzido por Foucault: Os males não cessarão para os humanos enquanto a raça dos puros e autênticos filósofos [o texto grego diz muito exatamente: antes que a raça (tò génos) dos que filosofam correta e verdadeiramente; logo podemos traduzir por “puros e verdadeiros filósofos”, mas prefiro que fiquemos o mais próximo possível da formulação: que a raça dos que filosofam correta e verdadeiramente; M.F.] não chegar ao poder ou enquanto a raça dos chefes dos que exercem o poder não se puser a filosofar verdadeiramente. (2010b, p.266).

E citamos 473 c, do livro V da “República” de Platão, tal como o traduz Foucault: (…) não haverá trégua para os males do Estado nem das cidades (o mesmo tema portanto: os males não cessarão para os humanos; aí: os males não cessarão para os Estados) “enquanto os filósofos não se tornarem reis em seus Estados” ou ainda “enquanto reis e soberanos” (é a tradução de Budé; dynástai na verdade é: os que exercem o poder) “não se tornarem filósofos verdadeiros e sérios” (aqui também o texto [grego] diz: não se ponham a filosofar de maneira autêntica e hikanôs, competente) e enquanto “não se virem reunidas no mesmo tema a dýnamís politikè [o poder político; M.F.] kaì philosophía (e a filosofia”. (2010b, p.267).

Não há coincidência de discursos, conhecimentos e racionalidades filosóficas e políticas. Trata-se da coincidência entre os que praticam a filosofia e os que exercem o poder. O que é exigido é que o sujeito do poder seja também o sujeito de uma atividade filosófica. O que está em questão, “é a filosofia na medida em que é philosopheîn” (FOUCAULT, 2010b, p.267). É a prática da filosofia, a atividade filosófica, o filosofar. É a filosofia como uma maneira para o indivíduo de se constituir como sujeito num certo modo de ser. (…). É uma questão de modo de ser do sujeito filosofante e do modo de ser do sujeito praticante da política. (…) Em suma, isso equivale a dizer que é preciso que a alma do Príncipe possa se governar verdadeiramente segundo a filosofia verdadeira, para poder governar os outros de acordo com uma política justa. (FOUCAULT, 2010b, p.268).

É a filosofia entendida como prática, ou melhor, é a filosofia em suas práticas ou a prática da filosofia, a filosofia como prâgma, que encontra sua tarefa e prova de realidade na definição do modo de ser do governante, mas sem perder sua especificidade, sem confundir-se com o exercício do poder enquanto tal. A razão do aconselhamento político de Platão, sua parresía e sua função de parresiasta visam, sobretudo, a alma daqueles a quem aconselha. Se é a maneira de ser daqueles que o escutam que importa definir é também, portanto, no praticante de filosofia que Platão encontra o verdadeiro filósofo.

8 CONCLUSÃO DO TCC A investigação dos vínculos entre liberdade e verdade nas práticas de governo segundo o estudo do filósofo francês Michel Foucault da noção de parresía, conduziu a três pontos principais. Pode-se afirmar que a parresía, o dizer-a-verdade de Platão: É, primeiramente, uma enunciação de caráter pessoal em cujo conteúdo apresenta-se uma tensão entre as particularidades das situações e os princípios gerais e que se dirige a todo mundo e a cada um ao mesmo tempo com o intuito de, pela persuasão, mudar o regime de vida daquele a quem aconselha, isto é, é uma prescrição que visa a saúde do corpo e da alma de pessoas e de cidades. Segundo, precisa de uma relação com a política, uma relação que vai servir prova de sua realidade e que vai lhe ditar condições para que não seja apenas um discurso vão, isto é, é a obrigação de ser escutada, de corresponder à uma expectativa, de vir em resposta à uma “vontade”, juntamente com a exigência de que se realize um trabalho sobre si, de que se pratiquem exercícios cujo objeto é o próprio sujeito e cujo objetivo é uma determinada relação de poder para consigo, que somados à pratica do conhecimento, um conhecimento que é resultado de uma prática incansável da alma dos outros conhecimentos, que vão constituir a realidade da verdadeira filosofia, que vão fazer o discurso filosófico tocar o real. Terceiro, estabelece uma relação de exterioridade crítica com a política cujo ponto de intersecção localiza-se na alma do Príncipe, isto é, a parresía dirigindo-se ao ponto de onde irradia o poder, defrontado-se com a política sem contudo versar sobre política, sem compartilhar de seu pensamento ou racionalidade, é a filosofia cuja tarefa é a definição do modo de ser do homem político. Pois, que se há justiça na alma Príncipe, se há o exercício de um poder sobre si mesmo que assegure a justiça na alma do Príncipe, certamente haverá justiça nas cidades, haverá o correto exercício de poder sobre as forças e as partes da própria cidade. Concluindo, segundo Foucault o discurso de Platão, é um discurso para o qual importa que haja uma distribuição eficaz entre o governo de si e o governo dos outros, e que, como parresía não cessa de lembrar frente aos que exercem o poder que é dessa eficaz distribuição que emanam tanto justiça como felicidade.

REFERÊNCIAS FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). Trad. Mário Alves da Fonseca, Salma annus Muchail. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010a. ________________. O governo de si e dos outros: curso dado no Collège de France (1982-1983). Trad. Eduardo Brandão. 1.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010b. JAEGER, Werner W.. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 5.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. PLATÃO. Fedro, Cartas, O Primeiro Alcebíades. Trad. e intr. Carlos Alberto Nunes. 2.ed.rev. Belém: EDUFPA, 2007. _______. A República. Trad. intr. e notas Maria Helena da Rocha Pereira. 9.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. TRABATTONI, Franco. Oralidade e escrita em Platão. Trad. Roberto Bolzani Filho, Fernando Eduardo de Barros Rey Puente. 1.ed. São Paulo: Discurso Editoral; Ilhéus; Editus, 2003.

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