Foucault e as artes do viver do anarco-feminismo

July 12, 2017 | Autor: Margareth Rago | Categoria: Michel Foucault, Feminismo, Subjetividade, Anarquismo
Share Embed


Descrição do Produto

Foucault e as artes de viver do anarco-feminismo




Margareth Rago

Depto de História – UNICAMP
[email protected]

A possibilidade de constituir um novo sujeito ético marca fortemente
as preocupações de Michel Foucault, acentuando-se em suas últimas obras,
como observam seus mais destacados comentadores.[1] Para o intelectual
profundamente atento aos problemas de sua época, a crítica do presente se
impõe com radicalidade e dentre os muitos alvos mirados, a desnaturalização
do sujeito ganha um destaque privilegiado, já que considera como ponto
nodal de uma transformação social necessária, a própria constituição de
novas práticas de subjetivação, muito distantes das formas egocêntricas e
narcisistas de relação consigo mesmo, que se afirmam assustadoramente em
nosso mundo. Nessa direção, numa de suas aulas proferidas no Collège de
France, em 1982, Foucault afirma:


"é possível suspeitar que haja uma certa impossibilidade de constituir
hoje uma ética do eu, quando talvez seja esta uma tarefa urgente,
fundamental, politicamente indispensável, se for verdade que, afinal,
não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder político
senão na relação de si para consigo."[2]


Escapar das formas modernas de sujeição e inventar-se a si mesmo a
partir de práticas da liberdade parecem-lhe as principais saídas para a
construção de novas configurações e agenciamentos sociais, na atualidade.
Em sua busca de inspiração, Foucault pesquisa as experiências constitutivas
de nossa tradição histórica, - e não fora dela, vale notar -, destacando de
relance, para além das "artes da existência" do mundo greco-romano, outros
momentos expressivos de problematização dos códigos morais dominantes e de
busca por novos modos de subjetivação. Novamente em suas palavras:
"podemos reler toda uma vertente do pensamento do século XIX como a
difícil tentativa, ou uma série de difíceis tentativas, para
reconstituir uma ética e uma estética do eu. Tomemos, por exemplo,
Stirner, Schopenhauer, Nietzsche, o dandismo, Baudelaire, a anarquia, o
pensamento anarquista, etc, e teremos uma série de tentativas, sem
dúvida inteiramente diversas umas das outras, mas todas elas, creio eu,
mais ou menos polarizadas pela questão: é possível constituir,
reconstituir uma estética e uma ética do eu? A que preço e em que
condições?" [3]


Destaco, no trecho citado, a referência que Foucault faz ao
anarquismo, doutrina e movimento em que se registra historicamente um
enorme investimento na construção de uma nova ética, de novos valores
sociais e de referências culturais capazes de orientar a formação de
pessoas solidárias, livres e justas. O anarquismo se caracteriza por uma
violenta crítica das formas de exercício do poder, sobretudo na
Modernidade, pela denúncia dos micro-poderes, tanto quanto da dominação
estatal e pela proposta da construção de novas relações sociais, pautadas
por valores éticos fundamentais. Da pedagogia libertária ao amor livre, da
autogestão nas fábricas e nos campos à criação de centros culturais,
ateneus e bibliotecas para os trabalhadores, toda uma tradição de lutas e
resistências na história do anarquismo, em inúmeros países do Ocidente
revela que, desde o século 19, os libertários estiveram comprometidos com a
formação de novas individualidades capazes de questionar os códigos
burgueses e de recusar a moral particular, imposta para toda a sociedade
como universalmente válida.
Do mesmo modo, também o feminismo, outro movimento que nasce no
século 19, caracteriza-se por uma intensa preocupação em criar novos
espaços sociais e outras condições subjetivas para as mulheres, na luta
contra os modelos de feminilidade impostos pela dominação classista e
sexista. Desde as primeiras manifestações pelo direito de voto, ou
reivindicando igualdade de salários para as mulheres, as feministas lutaram
para alterar as condições de formação e educação das meninas e moças,
incitando-as a que procurassem construir-se autonomamente, rejeitando as
sujeições cotidianamente impostas pelo sistema patriarcal e experimentadas
na própria carne. Críticas da definição biológica da mulher como
estreitamente vinculada ao útero, da maternidade obrigatória e da
mistificação da esfera privada do lar, elas têm lutado para que outras
formas de invenção de si se tornem possíveis para as próprias mulheres.
Embora as questões feministas não estivessem diretamente presentes no
leque das problematizações de Foucault, o potencial transformador que
trazia o feminismo não passou indiferente a ele.[4] Refletindo sobre a
diferença do aporte cultural das mulheres ao mundo masculino, ele converge
para um tema já enunciado por várias feministas:

"Eu diria também, no que diz respeito ao movimento lésbico, em
minha perspectiva, que o fato de que as mulheres tenham sido por
séculos e séculos isoladas na sociedade, frustradas, desprezadas de
várias maneiras lhes proporcionou uma possibilidade real de constituir
uma sociedade, de criar um tipo de relação social entre elas, fora de
um mundo dominado pelos homens." [5]


Contudo, embora o anarquismo e o feminismo carreguem uma larga
experiência histórica, constituída a partir de críticas contundentes às
formas de organização da vida social, desde o século 19, é Foucault, ao
lado de Deleuze e Guattari, quem traz conceitos adequados e um enorme
refinamento teórico às discussões sobre a produção da subjetividade,
fornecendo tanto às feministas, quanto aos anarquistas, operadores para
pensarem politicamente questões pouco aclaradas ou visíveis. Assim, ao
historicizar as "artes da existência", na Antiguidade Clássica e ao
desdobrar suas reflexões sobre o "cuidado de si" e a constituição do
sujeito ético, dá visibilidade a práticas de subjetivação que estavam
esmaecidas no imaginário social, ou que eram totalmente ignoradas, mesmo
porque até recentemente pensar o "eu" era tido como algo restrito à
Psicologia, ou era considerado negativamente como uma atitude
individualista pouco louvável. Pensar no outro exigia, nessa lógica, um
esquecimento de si, ao contrário do que indica esse filósofo, já que o
cuidado de si para os antigos implica a atenção para com o outro, como ele
deixa claro em inúmeras passagens. É importante, nesse sentido, considerar
suas próprias colocações no sentido de afirmar a dimensão social e inter-
subjetiva do "cuidado de si" dos antigos. Assim, diz Foucault, em O cuidado
de si:

"Tem-se aí um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada
a si mesmo: ela não constitui um exercício da solidão, mas sim uma
verdadeira prática social(...) Encontrava-se também – e em Roma,
particularmente, nos meios aristocráticos - a prática do consultor
privado que servia, numa família ou num grupo, como conselheiro de
existência, como inspirador político, como intermediário eventual numa
negociação (...). O cuidado de si – ou os cuidados que se têm com o
cuidado que os outros devem ter consigo mesmos – aparece então como uma
intensificação das relações sociais. "[6] (grifos meus)


Tendo em vista essas colocações, gostaria de destacar a experiência
histórica do Grupo "Mujeres Libres", formado por militantes anarco-
feministas, bastante ativas durante a Guerra Civil espanhola, entre 1936-
1939, mas ainda muito desconhecido. Valendo-me de determinados conceitos
foucaultianos, considero que a mudança que essas ativistas espanholas
visavam apontava não apenas para a conquista da igualdade em relação aos
homens, mas sobretudo para a criação de novos estilos de vida, fundados em
uma ética libertária.[7] A questão da produção da subjetividade se colocou
enfaticamente para elas, sobretudo nesse contexto revolucionário, em que
as/os anarquistas lutaram tanto para destruir o poder político concentrado
no Estado e fortalecido pela ajuda material de outros países, como também
investiram para transformar radicalmente a vida econômica, as relações
sociais hierárquicas e desiguais e garantir as manifestações culturais
populares. Como dizia uma das fundadoras do grupo, Lucía Sanchez Saornil,
criticando o tradicionalismo moral dos companheiros/as em relação à união
livre:


"Dissemos outro dia que a Revolução deveria começar em nós mesmos, e
se não o fizermos, perderemos a Revolução social, nem mais, nem menos;
nossa mentalidade burguesa não fará mais do que revestir de roupas
novas os velhos conceitos, conservando-os em toda a sua integridade."
[8]


As principais fundadoras do Grupo "Mujeres Libres" – a médica
pediatra Amparo Poch y Gascon, a advogada Mercedes Comaposada e a poetisa
Lucía Sanchez Saornil, que também trabalhara na Companhia Telefônica de
Madri, eram antigas militantes anarquistas, vinculadas à CNT - Confederação
Nacional do Trabalho. Intelectualizadas, publicavam suas reflexões e
críticas nos jornais "Tierra y Libertad", "Solidariedad Obrera" ou em
revistas libertárias, como "Estudios". Profundamente insatisfeitas com o
esquecimento da "questão feminina" inclusive pelos anarquistas, decidiram
criar espaços sociais e culturais exclusivos para as trabalhadoras pobres,
onde poderiam debater suas questões, deixar aflorar os problemas e as
necessidades que as afetavam, mas que, em geral, ficavam encobertos pelas
questões sociais, consideradas prioritárias. Formadas em meios operários
libertários, revoltavam-se com as dificuldades e com a opressão sexual
enfrentadas pelas mulheres pobres, mesmo nos meios libertários, já mais
oxigenados, em que eram mais incentivadas a participar do espaço público.
Desde o último quarto do século 19, os/as anarquistas haviam
conseguido forte penetração social, fundando sindicatos, criando ateneus
libertários, promovendo inúmeras atividades culturais por toda a Espanha.
Mas, apesar de suas críticas contundentes às instituições sociais, como a
Igreja e a família, apesar dos ataques ao casamento monogâmico
indissolúvel, às desigualdades sexuais e à educação coercitiva para as
crianças, na prática, a situação das mulheres continuava muito desigual em
relação à dos homens e poucas melhoras haviam sido realizadas.
Logo que o pequeno grupo se forma, em 1936, encontra-se com outras
companheiras, que também começavam a atuar em Barcelona, na "Agrupación
Cultural Feminina", formada por anarquistas como Pilar Grangel, professora
racionalista e militante da CNT. Rapidamente, novos grupos locais são
criados por toda a Espanha e inúmeras mulheres aderem à organização.
Muitas eram operárias analfabetas; outras autodidatas, como Lola Iturbe,
ou formaram-se nos ateneus libertários. Espanholas, na grande maioria. A
anarquista Etta Federn, por sua vez, vinha da Alemanha e também opta por
unir-se ao grupo.
Mudar as condições de existência das mulheres pobres da Espanha,
capacitando-as para o trabalho e para a vida pública, retirando-as do
confinamento doméstico e do obscurantismo religioso, proporcionando-lhes
meios práticos para a participação na vida social, política e cultural foi
preocupação constante nas propostas e realizações do Grupo. Assim, além do
"Instituto Mujeres Libres" e das centenas de agrupamentos locais espalhados
pelo país, fundaram o "Casal de la Dona Traballadora", no Paseo de Gracia,
em Barcelona, espaço cultural destinado aos cursos, palestras e oficinas
que realizam para cerca de 600 mulheres. No bairro de Sans, nesta cidade,
criaram um "Instituto nocturno", também chamado "Mujeres Libres". Segundo
um anúncio publicado no jornal CNT, de 1937, ficamos sabendo que aí eram
oferecidos cursos de Aritmética, Gramática, História da Literatura,
Geografia, História, Contabilidade, Ciências Naturais, Anatomia, Idiomas,
Desenho, cursos de Agricultura, Puericultura, Enfermagem, formação de
secretárias, mecanografia, taquigrafia, redação e cursos em Propaganda.
Além disso, podiam estudar mecânica na escola de transporte, entre outros
ofícios que não eram tradicionalmente oferecidos às mulheres, mesmo que
estas já ocupassem um largo espaço no mercado de trabalho industrial.
Para o Grupo "Mujeres Libres", as questões sociais se aliaram às lutas
pela autonomia feminina e, nesse sentido, elas procuraram promover novos
modos de constituição de si, subvertendo os códigos burgueses de definição
das mulheres como esposas, mães, figuras exclusivas do lar, ou como seu
avesso. E é sobre esse ponto que gostaria de insistir, já que a
transformação revolucionária, para elas, não exigia uma renúncia de si,
como aparece, em geral, no discurso da militância política, mas um trabalho
sobre si, uma "escultura de si", valendo-me da expressão de Michel
Onfray.[9] Aliás, vale notar que essa elaboração de si não era pensada de
uma maneira apenas negativa, isto é, como forma de reação ao poder, já que
essas lutadoras implementaram muitas iniciativas pioneiras, como a criação
de cursos de capacitação das operárias, nos quais desejavam despertar a
consciência feminina para as idéias libertárias, como afirmavam; cursos de
alfabetização e profissionalizantes, visando criar novas formas de inserção
social para as mulheres pobres; centros de assistência médica e de educação
sexual; creches; liberatórios de la prostitución, isto é, casas destinadas
às que desejassem sair da prostituição e também para que as prostitutas
pudessem ter tratamento médico e orientação para melhorar suas vidas, como
afirmava Pura Perez[10], além de espaços, como os da revista que leva o
nome do Grupo, onde podiam refletir sobre si mesmas e criar toda uma
cultura feminina e feminista, reunindo as militantes e simpatizantes do
anarquismo.


"A cultura pela cultura? A cultura em abstrato? Não. Capacitação
da mulher com um fim imediato, urgente: ajudar de maneira positiva a
ganhar a guerra. Capacitar a mulher para liberá-la da tríplice
escravidão: escravidão da ignorância, escravidão de produtora,
escravidão de mulher. Capacitá-la para uma nova ordem social mais justa
e para uma nova concepção mais humana",
declarava a Federação "Mujeres Libres" na revista do mesmo nome (n.9 –
Semana 21 da Revolução).

Aliás, a revista, da qual apareceram apenas treze números, foi
escrita, feita e subvencionada só por mulheres, pois, segundo elas,
sabemos por experiência que os homens, por muito boa vontade que tenham,
dificilmente atinam com o tom preciso.[11] Abordava temas femininos
variados, como maternidade consciente, prostituição, puericultura e
infância, moda, ginástica e discutia a constituição de uma nova moral
sexual. Revelando uma preocupação estética, para além de ética, a revista
divulgava as realizações do grupo, propagava as idéias libertárias,
chamando as trabalhadoras para a reflexão e a militância anarco-feminista.
Vale notar que as possibilidades de outras formas de produção da
subjetividade abertas por elas não se efetivaram num marco individualista,
como se poderia supor, - e aqui recorro novamente às conceitualizações de
Foucault -, pois, podemos dizer, visavam a uma intensificação da relação de
si para consigo, mas não no sentido corrente de uma valorização da vida
privada em detrimento da esfera pública, nem no de uma acentuação do valor
do indivíduo sobreposto em relação ao grupo.[12] Longe de estimular o
apego à esfera privada como refúgio em relação ao mundo competitivo dos
negócios e da política, como propunha a ideologia da domesticidade, contra
a qual, evidentemente, elas se batiam, essa "cultura de si" do anarco-
feminismo, se assim podemos chamar, passava pelo estabelecimento de novas
relações consigo, mas também com o outro, relações solidárias, de amizade,
de companheirismo político, anti-hierárquicas, num meio bastante sofrido
como o operário. Visava, portanto, fortalecer as redes da militância
política tanto entre elas mesmas, quanto com os companheiros ligados a
outras entidades, sobretudo nesse momento de grande movimentação
revolucionária, em que se punham em prática novas formas de organização
social e de vida.
Essa questão não passou desapercebida para algumas historiadoras, como
Temma Kaplan, que registra a preocupação dessas ativistas com as dimensões
psico-sociais, em geral, ignoradas pelos homens, evidenciadas em
investimentos para ensinar as mulheres a agir politicamente, a assumir
posições de liderança e a desenvolver novas imagens de si como povo
potencialmente autônomo (...).[13](grifos meus) Segundo ela, esses temas
escapavam aos militantes do sexo masculino, que, como outros
revolucionários, acreditavam firmemente que o sucesso da Revolução em
termos econômicos e sociais levaria necessariamente ao fim da opressão
sexual e das desigualdades de gênero. O que significa que muitas mulheres
continuavam a enfrentar imensas dificuldades tanto diante da tirania dos
pais, maridos e irmãos, quanto pela proliferação da prole, ou ainda, pelas
situações de abandono, já que eram pobres e sem dote.
O nome escolhido pelo Grupo para se identificar e ser identificado é
surpreendente e revelador: Mujeres Libres demarca com ousadia um espaço
próprio, já que assumido no contexto de uma Espanha católica, machista e
ultraconservadora, em que a liberdade feminina era associada à degeneração
moral pelo discurso religioso e científico. Como observava Emma Goldman, em
um artigo enviado para a revista Mujeres Libres, em que fazia um balanço
sobre a "Situação social da mulher", embora em alguns países as mulheres
tivessem tido grandes conquistas,

"Na Espanha, por ex., considera-se a mulher muito inferior ao
homem, como um simples objeto de prazer e produtora de crianças. Não me
surpreenderia se somente os burgueses pensassem assim, mas é incrível
constatar a presença deste conceito antediluviano entre os operários e
até mesmo entre nossos próprios camaradas. (...) A maioria dos homens
espanhóis parece não compreender o sentido da verdadeira emancipação,
ou prefere que sua mulher continue a ignorá-lo. O fato é que muitos
homens continuam convencidos de que a mulher prefere continuar vivendo
em posição de inferioridade.(...) O certo é que não pode existir uma
verdadeira emancipação enquanto subsistir o predomínio de um indivíduo
sobre outro ou de uma classe sobre outra. E muito menor realidade terá
a emancipação da raça humana enquanto um sexo domine o outro." [14]


Assim, segundo essas militantes, o objetivo proposto era bem
explicitado:


"Pretendíamos dar ao substantivo "mulheres" todo um conteúdo que
reiteradamente se havia negado, e ao associá-lo ao adjetivo "livres",
além de nos definirmos como totalmente independentes de toda seita ou
grupo político, buscávamos a reivindicação de um conceito – mulher
livre – que até o momento havia sido preenchido com interpretações
equívocas, que rebaixavam a condição da mulher ao mesmo tempo que
prostituíam o conceito de liberdade, como se ambos os termos fossem
incompatíveis."
O feminismo que defendiam, contudo, difere muito do feminismo liberal
vigente no período. Na tentativa de diferenciarem-se das liberais, que
lutavam pelo direito do voto, pelo acesso à esfera pública, deixando
inquestionados os códigos da feminilidade hegemônicos, as "Mujeres Libres"
chegaram, às vezes, a declararem-se não-feministas, ambigüidade que se
expressa nos próprios artigos publicados em sua revista. Assim, se de um
lado, a própria revista afirmava desejar reforçar a ação social da mulher,
dando-lhe uma nova visão das coisas, evitando que sua sensibilidade e seu
cérebro se contaminem com os erros masculinos. E entendemos por erros
masculinos todos os conceitos atuais de relação e convivência (...). (no.1,
maio de 1936); de outro, criticava o feminismo que, segundo elas, havia
levado as mulheres à guerra, feminismo que buscava sua expressão fora do
feminino, tratando de assimilar virtudes e valores estranhos (...)".
Propunham, portanto, um outro feminismo, como diziam claramente:

"é outro feminismo, mais substantivo, de dentro para fora, expressão de
um modo, de uma natureza, de um complexo diverso frente ao complexo, à
expressão e à natureza masculinos. Está claro que elas defendiam uma
afirmação das mulheres e, por isso mesmo, recusavam a publicação de
quaisquer artigos escritos por homens, na revista, reservando e
preservando o espaço feminino que construíam e queriam fazer expandir.
Como observam: (a revista) quer (...) fazer ouvir uma voz sincera,
firme e desinteressada: da mulher, porém uma voz própria, a sua, a que
nasce de sua natureza íntima (...)"
Ao mesmo tempo, se de um lado, o discurso do grupo aparece muitas
vezes como essencialista, ao invocar uma natureza feminina diferenciada da
masculina e, por isso mesmo, capaz de trazer novas formas para modelar a
vida social e cultural, de outro, destaca-se por sua crítica ao modelo
dominante de feminilidade, como aparece em vários números dessa publicação.
Assim, enquanto defendiam a igualdade de direitos entre mulheres e homens,
também questionavam a maternidade como função essencial da mulher:
"que a mulher cuja vocação não for doméstica e sua ampla
realização, a maternidade, tenha as mesmas facilidades que o homem para
buscar e obter outras oportunidades que lhe permitam conseguir sua
liberação econômica." (n.5)
Aliás, num artigo de Lucía Sanchez Saornil, que não quis ser mãe e em
que critica certas organizações feministas, a maternidade aparece
identificada negativamente pela metáfora animal. Diz ela:


"(...) recolhendo ao sentido tradicional da feminilidade, (aquelas
organizações) pretendiam que a emancipação feminina só estava no
fortalecimento daquele sentido tradicionalista que centrava toda a vida
e todo o direito da mulher em torno da maternidade, elevando esta
função animal até sublimações incompreensíveis. Nenhuma nos satisfez.
"[15]


Portanto, muito distante dos ideais de feminilidade e masculinidade
que vigoravam na Espanha dos anos trinta, o Grupo "Mujeres Libres" defendia
o fim das hierarquias sexuais e sociais, o amor livre, a maternidade
consciente, o direito ao aborto, além dos direitos de acesso à cultura, ao
trabalho e à educação para as mulheres. Se não se podem generalizar essas
concepções para todas aquelas que se envolveram com o Grupo, ao examinar a
biografia das três fundadoras, observa-se que apenas Mercedes teve um
companheiro fixo, o escultor Balthazar Lobo. Lucía viveu com sua amiga
América Barroso a vida toda, enquanto Amparo, que defendia claramente o
amor livre, não se fixou com nenhum homem. Nenhuma teve filhos.
Destaco os artigos que discutem a formação de "uma nova personalidade
feminina", a exemplo de "Em vez de críticas, soluções", em que Pilar
Grangel afirma:


"(...)Para educar-se a mulher, é preciso primeiro criar sua
personalidade, fazer-se Mulher em toda a extensão desta palavra. E´
preciso que chegues a ser o que és: Mulher." [16]


Já no artigo inaugural da Revista, Emma Goldmann afirmava que a mulher
percebeu que tem todo o direito à personalidade e que suas necessidades e
aspirações são de importância vital como as do rapaz. Nessa direção, eram
constantes as críticas à mulher do passado, passiva, "apenas fêmea". No
artigo "A dupla luta da mulher" (Mujeres Libres, Ano VIII da Revolução),
assinado por Ilse, evidenciavam-se os dois alvos que a mulher deveria
mirar: a luta contra o mundo exterior, mas também pela liberdade interior,
como a que o homem desfruta na atualidade, luta na qual "a mulher está
sozinha" e em que deve enfrentar o inimigo em seu próprio campo, a começar
pela família, pais, maridos, etc...[17]
Os discursos e as práticas do Grupo soam, hoje, de uma impressionante
atualidade e parecem bem mais próximos das questões formuladas pelo
feminismo contemporâneo do que as de suas precursoras institucionalmente
reconhecidas, as antigas feministas liberais. Num debate relativamente
recente em que questiona as políticas afirmativas da identidade, por
exemplo, Elizabeth Grosz sustenta que o feminismo precisa reconceitualizar
o que o entende por subjetividade, discordando que se trata de libertar as
mulheres, pois reconhecer identidades seria defender uma política servil.
Segundo ela:


"O feminismo(...)é a luta para tornar mais móveis, fluidos e
transformáveis, os meios pelos quais o sujeito feminino é produzido e
representado. É a luta para se produzir um futuro, no qual as forças se
alinham de maneiras fundamentalmente diferentes do passado e do
presente. Essa luta não é uma luta de sujeitos para serem reconhecidos
e valorizados, para serem ou serem vistos, para serem o que eles são,
mas uma luta para mobilizar e transformar a posição das mulheres, o
alinhamento das forças que constituem aquela 'identidade' e 'posição',
aquela estratificação que se estabiliza como um lugar e uma
identidade."[18]


Rosi Braidotti, por seu lado, afirma que "figurações de
subjetividade nômade, complexas e mutantes estão aqui para ficar, e
propõe abandonar o lar, porque o lar é frequentemente local de sexismo
e racismo – um local que nós precisamos retrabalhar política,
construtiva e coletivamente. "[19]


Certamente, as discussões atuais sobre o caráter aprisionador do
conceito de identidade não eram formuladas por essas ativistas com a
complexidade e o grau de profundidade de hoje. Contudo, a preocupação em
libertar as mulheres das formas constrangedoras de ser mulher impostas
socialmente fica bastante clara em seus discursos e alertas. Assim, nos
anos trinta, Amparo Poch y Gascon afirmava poeticamente sua posição, em seu
"Elogio del amor libre", profundamente consciente dos efeitos nocivos e
paralisantes da vida doméstica, tanto quanto do modelo romântico de
feminilidade, para ambos os gêneros. Opto por manter o trecho no original,
para não perder a qualidade literária do texto dessa combativa militante:


" I. Yo no tengo Casa. Tengo, sí, un techo amable para resguardar-
te de la lluvia y un lecho para que descanses y me hables de amor. Pero
no tengo Casa. No quiero! No quiero la insaciable ventosa que ahila el
Pensamiento, absorbe la Voluntad, mata el Ensueño, rompe la dulce línea
de la Paz y el Amor. Yo no tengo Casa. Quiero amar en el anchuroso "más
allá" que no cierra ningún muro ni limita ningún egoísmo. (...)
Yo no tengo Casa, que tira de ti como una incomprensiva e
implacable garra; ni el Derecho que te limita y te niega. Pero tengo,
Amado, un carro de flores y horizonte, donde el Sol se pone por rueda
cuando tú me miras.." [20]


A vitória dos franquistas, em 1939, levou para o exílio milhares de
espanhóis, entre mulheres e homens, como muitas das participantes do Grupo
"Mujeres Libres", destruindo brutalmente experiências libertárias, que
levariam muitos anos para serem retomadas, ou apenas conhecidas e
lembradas. Afinal, somente no final dos anos sessenta, o feminismo ressurge
com vigor, levantando como bandeira não apenas a luta contra as
desigualdades de gênero, mas questionando a própria imposição da identidade
biologizada "mulher" às mulheres. A partir desse mesmo momento, passam a
ser recuperadas experiências autogestionárias históricas, apagadas da
memória social; já as antigas "Mujeres Libres", na década de setenta,
iniciam toda uma movimentação no sentido de se rearticularem e de
reatualizarem suas vivências passadas. Somente então, suas lutas
incansáveis pela construção de novos horizontes e de outros espaços –
interiores e exteriores - para as mulheres ganham visibilidade, contudo, já
podendo ser apreciadas a partir de novos conceitos capazes de lhes conferir
a dignidade que merecem. Foucault se torna, nesse sentido, imprescindível
para libertar a experiência histórica também de "Mujeres Libres".



























-----------------------
[1] Veja-se, por exemplo, Gros, Frédéric – Michel Foucault. Paris: Presses
Universitaires de France, 1996, cap. III.

[2] Foucault, Michel - A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins
Fontes, 2004, p.306

[3] Idem, p.306
[4] Num instigante artigo em que pergunta pelo lugar que as mulheres ocupam
na obra de Foucault, Michelle Perrot mostra como, entrando pela família,
como mães e esposas (na História da Loucura e em Pierre Rivière,...), elas
passam a adquirir corpo e maior consistência a partir das discussões sobre
a sexualidade. Pelo dispositivo do poder, o corpo feminino se torna uma
questão do poder, ponto de apoio da biopolítica, como aparece no vol.I da
História da Sexualidade. Perrot, Michelle –"Michel Foucault et l´histoire
des femmes". In: Les Femmes ou Les Silences de l´Histoire. Paris:
Flammarion, 1998, p. 413-424.

[5] "M. Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política da identidade",
Verve, Revista do NU-SOL, PUC-SP, n.5, 2004, p.269.
[6] Foucault, M. - O Cuidado de Si. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 57; ver
ainda o artigo de Frédéric Gros, publicado nessa coletânea.
[7] Para um aprofundamento do tema, ver Passetti, Edson - Ética dos Amigos,
S. Paulo: Editora Imaginário, 2003

[8] Saornil, Lucía Sanchez - Horas de Revolución, Barcelona: Sindicato
Único del Ramo de Alimentación de Barcelona, p.26

[9] Michel Onfray – A escultura de si. Rio de Janeiro: Rocco, 1996 conferir
[10] Depoimento de Pura Perez, em 1993, in Mujeres Libres: luchadoras
libertarias, p.65.
[11] Carta de Mujeres Libres a Hernandez Domenech, 27 de maio de1936, apud
Nash, 1981, 86.
[12] Veja-se Foucault, M –O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1985,
cap.II.
[13] Kaplan, Temma – "Other scenarios: Women and Spanish Anarchism". IN:
Bridenthal, Renate; Koonz, Claudia - Becoming Visible. Women in European
History. Atlanta: Houghton Miffling Company, 1977, p. 418
[14] Goldman, Emma - "Mujeres Libres", Semana 21 de la Revolución; também
in Nash, Mary - "Mujeres Libres". España 1936-1939. Barcelona: Tusquets
Editor, 1977, p.128.

[15] Saornil, Lucía Sanchez - CNT, 1937, In Mujeres Libres: luchadoras
libertarias. Madrid: Fundación Anselmo Lorenzo, 1999, p.41
[16] Nash, op. cit., 1977, p.139
[17] IN Nash, op.cit., 1977, p.131

[18] Grosz, Elizabeth – "Futuro feminista ou o futuro do pensamento",
Labrys, estudos feministas, nos.1-2, jul-dez.2002.
[19] Bradotti, Rosi – "Diferença, Diversidade e Subjetividade Nômade",
Labrys, estudos feministas, nos.1-2, jul-dez.2002, p.14.

[20] Poch y Gascón, Amparo - Mujeres Libres, no.3, julio 1936, também
reproducido em Rodrigo, Antonina(org.) -Amparo Poch y Gascon. Textos de una
médica libertaria. Barcelona: Ediciones Alcaraván, 2002, p.95/101.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.