FOUCAULT E O CUIDADO DE SI

May 30, 2017 | Autor: Ranaja Oliveira | Categoria: Michel Foucault, Verdade, Sujectivity, CUIDADO DE SI
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Graduanda em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão

FOUCAULT E O CUIDADO DE SI
Ranaja Lima Oliveira


RESUMO
O presente artigo objetiva relacionar a noção foucaultiana do cuidado de si, levando em consideração fatores éticos e o próprio constituir-se do sujeito em relação ao mundo. A atividade de conhecer a si e cuidar de si é demonstrada por Michel Foucault como necessária ao desenvolvimento dos indivíduos numa dimensão prática e mesmo em relação ao conhecimento das coisas. O cuidado de si pode ser associado ao aperfeiçoamento e/ou à reparação de uma educação problemática.

Palavras-chave: Michel Foucault, filosofia antiga, sujeito, educação, ética, conhecimento, espiritualidade

ABSTRACT
This article has as objective relating the foucauldian notion of the care about yourself, considering ethical factors and its own building of a subject in the world. The exercise of recognize yourself and care about yourself is demonstrated by Michel Foucault as necessary for the development of individuals in a practical dimension and in a relation to the knowledge. The care about yourself can be associated to the improvement and/or in repair of a problematic education.

Keywords: Michel Foucault, Ancient Philosophy, subject, education, etic, knowledge, spirituality.
INTRODUÇÃO
O famoso "conhece-te a ti mesmo" ecoa desde a antiguidade clássica. Mas do que se trata realmente essa máxima? Michel Foucault (1926-1984), professor e filósofo francês, estudou a filosofia antiga e o período clássico, passando a demonstrar que muito antes desse enfoque dado ao conhecimento de si mesmo, havia um princípio mais difundido ao longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana, denominado "cuidado de si" (epimeléia heautoû). Trazendo a sua leitura de Sócrates, Foucault se utiliza de diálogos como Alcibíades I, Laques e Apologia para estabelecer relação entre o cuidado de si e o conhecimento da alma, bem como o modo de vida.

O Cuidado de Si e o Discurso de Sócrates
No curso de 1982, a Hermenêutica do Sujeito, Foucault decorre sobre Sócrates durante as primeiras duas aulas do dia 6 de janeiro. Apresenta algumas passagens do texto de Platão, A Apologia de Sócrates, que seria um dos textos em que a figura do filósofo ateniense está ligada à importância de cuidar de si mesmo, uma vez que ele procurava suscitar nos seus ouvintes essa noção. Cuidar de si seria abrir os olhos, despertar. No seu julgamento, Sócrates recorda aquilo que sempre fez: "Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma" (Platão, 1987, p.47)
Posteriormente, retorna ao tema afirmando que se ele fosse efetivamente condenado, ele mesmo não perderia nada. A cidade, porém, perderia muito, pois não haveria mais ninguém para incitar os habitantes a se ocuparem consigo mesmos e com a prática da virtude. É preciso deixar claro ainda que essa atividade de estimular o cuidado de si é tarefa de Sócrates, "mas lhe foi confiada pelos deuses" (Foucault, 2010, p.8). Também é possível observar que o filósofo não se preocupa com si mesmo, antes busca atividades mais importantes. Não busca pela fama, nem pelos cargos, somente para poder ocupar-se de uma, por assim dizer, educação da alma do outro. No dizer de Foucault (2010, p.9) sobre a última passagem analisada, mas que não foi citada em sua aula:
O cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência.
Essa é uma ideia importante também para os epicuristas, uma vez que em Epicuro encontra-se essa frase: "todo homem, noite e dia, e ao longo de toda a sua vida, deve ocupar-se com a própria alma." (Foucault, 2010, p. 10). Entretanto, nesse momento surge uma pergunta: por que a noção da epimeléia heautoû (cuidado de si) foi deixada de lado ao longo da história da filosofia ocidental? Ao contrário, o "conhece-te a ti mesmo" (gnôthi seautón) é que foi lembrado, estudado. Uma resposta para essa pergunta seria a própria maneira como encaramos, com desconfiança, o princípio do cuidado de si. Vê-se que algumas filosofias encarregaram-se de encontrar fórmulas como "ser amigo de si mesmo" e "cuidar-se", bem como outras nesse sentido. Foucault diz então que tais fórmulas soam para nós como um desafio, uma autoafirmação que rompe de certa forma com a ética. Parece expor também uma situação de solidão, melancolia, onde o indivíduo não consegue sustentar um ideal coletivo, e não lhe restasse nenhuma opção a não ser o isolamento. Essa hipótese proposta sobre a maneira como encaramos o preceito estudado aqui, torna cristalino o motivo pelo qual é difícil encarar esses preceitos positivamente, ainda que no pensamento antigo tivesse sempre um bom sentido.
Regras e instituições restritivas que foram surgindo no Ocidente, não somente o cristianismo, trouxeram a ideia de que o cuidado de si era tão somente egoísmo ou um movimento circular e inútil sobre si mesmo. Existe agora um dever cívico de renunciar a si mesmo em favor de um motivo exterior, à outra pessoa, à uma classe, ou à pátria. Os códigos morais nascidos dessa maneira de ver vieram a repousar no cristianismo e no mundo moderno no sentido do não egoísmo. Seguindo na sua análise histórica, Foucault recobra o momento histórico que ele chama de "momento cartesiano" (como uma tradição inaugurada por Descartes), onde o foco da existência da vida é transferido para o conhecimento. Tal momento
a)valoriza o conhecimento de si, tomando como ponto de partida do itinerário filosófico a evidência, a qual somente pode se dar desde o próprio sujeito que conhece, compreendido como alma, res cogitans; b) desvaloriza o cuidado de si, indicando que não há nem pode haver outro acesso à verdade que o conhecimento emanado da res cogitans. (KOHAN, 2011, p. 53)
A filosofia, a partir daqui, separa-se da espiritualidade e acompanha o conhecimento. Mas onde estaria essa espiritualidade? Ela está mais relacionada à vida, ao esforço do sujeito. De acordo com Foucault (2010, p. 15) pode-se designar a espiritualidade como sendo
o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, que constituem, [...] para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade.
Há três características do cuidado de si visto a partir da espiritualidade, quais sejam:
É uma atitude tomada diante de si, dos outros e do mundo.
"o cuidado é uma forma de atenção, de olhar" (Kohan, 2011, p.54). Significa estar atento aos próprios pensamentos. "Há um parentesco da palavra epimeléia com mélete, que quer dizer, ao mesmo tempo, exercício e meditação." (Foucault, 2010, p. 12)
Diversas ações através das quais o "si" é modificado, transformado.
Essa expressão tem para nós, atualmente, um significado diverso daquele do seu surgimento, aponta Foucault após algumas considerações históricas. Tratando-se de um oráculo, a inscrição dizia respeito principalmente à própria questão que seria proposta. O conselho dado ao indivíduo seria o de que refletisse profundamente a cerca daquilo que seria perguntado, a fim de que não fizesse um questionamento dúbio ou acabasse enganando-se a respeito do que realmente interessava saber. O preceito délfico do "conhece-te a ti mesmo" é onde consiste, por fim, o cuidado de si em toda sua plenitude. Conhecer-se é também reconhecer o divino em si, sendo essa relação com o "eu" interior e com o divino uma condição para o acesso à verdade, de acordo com o platonismo.

Alcibíades, a educação e a arte de governar
Após as definições anteriores, Foucault aponta para duas possibilidades de interpretação do cuidado de si, dadas no Alcibíades I e no Laques de Platão. Alcibíades é um rapaz jovem e considera-se o mais bonito entre todos. Deseja ingressar na política e seguir os passos do seu tutor, o velho Péricles. Sócrates demonstra que suas intenções serão completamente frustradas, apontando o que se deve fazer para governar e onde o rapaz se mostra equivocado. Sócrates diz que, para governar, ele precisa comparar-se aos seus rivais, tanto os que estão em Atenas quanto os de fora.
A educação de Alcibíades foi colocada nas mãos de um escravo, enquanto os reis persas educam os filhos com mestres que ensinam as virtudes. Também há o fato de que as riquezas de Alcibíades são menores, além disso, ele não possui nenhuma arte para compensar todo o resto. Para finalizar, o jovem também demonstra não saber argumentar, uma vez que não consegue definir o que significa governar bem, passando a admitir que até aquele momento teria vivido de maneira a esquecer completamente de si. Sócrates acaba por lhe dar esperanças, afirmando que ainda havia tempo para cuidar de si mesmo e, caso ele já tivesse cinquenta anos, aí sim teria grandes dificuldades. E de que forma então se pode governar? Sócrates responde desta vez para Cármides, jovem mais velho que Alcibíades e que já está mais ativo na vida pública: "aplica teu espírito sobre ti, toma consciência das qualidades que possuis, e poderás assim participar da vida política." (Foucault, 2010,p.32). O conselho que vai para Alcibíades, é o de que, antes de qualquer coisa, analise um pouco a si e observe os rivais a fim de descobrir a sua inferioridade.
Voltando a questão para a própria educação deficiente que Alcibíades teve, não só a dele, mas toda educação ateniense, percebe-se a falha em dois aspectos: primeiro, o propriamente pedagógico (uma vez que o mestre de Alcibíades foi um escravo ignorante); e, segundo, algo que é criticado sutilmente no diálogo, a saber, a crítica que Sócrates faz ao amor. Ora, é preciso que alguém nos incite continuamente ao exercício do cuidar de si, e não só os mestres se ocupam disso, mas também os amantes. Alcibíades por sua vez, sendo belo e assediado, somente esteve com homens que lhe queriam extrair prazer – sem a preocupação de incitá-lo a cuidar-se. O cuidado de si aparece no Alcibíades como a necessidade dos jovens numa relação entre eles e seus professores ou amantes. Existe um "caráter paradoxal dessa relação do sujeito consigo mesmo: de certo modo, ao tornar-se objeto do próprio cuidado, a alma torna-se exterior a si mesma, ela cuida e é cuidada ao mesmo tempo." (Kohan, 2011, p. 58-59). Cabe lembrar que existe uma idade adequada para ser iniciado nesse tipo de cuidado, assim como há uma fase onde essa iniciação não é propícia (quando Sócrates se refere aos cinquenta anos).
Já no Fédon encontra-se este trecho: "se a alma é imortal, então ela precisa que com ela nos ocupemos, ela precisa de zelo, de cuidado, etc." (Foucault, 2010, p. 50). As personagens no diálogo Alcibíades I (na busca de uma resposta para o que seria governar e o que significa um estado harmônico de concórdia na cidade) têm como procedimento se interrogar sobre o que é a alma e buscar nessa alma individual um modelo para cidade.

O modo de vida

Tanto o Alcibíades I quanto o Laques tem como pano de fundo uma situação onde os interlocutores veem a urgência com que é preciso remediar uma educação negligenciada, e ocupar-se dos jovens de maneira a levá-los ao entendimento de que devem cuidar de si. Porém, esse "si mesmo" muda de perspectiva nos dois diálogos. Em Alcibíades I, seria a alma e, no Laques é o modo de viver. Assim, é desenvolvido um discurso onde a preocupação é deslocada para a maneira com a qual se desdobra a existência.
No Laques são apresentados Lísimaco e Melésias, que receberam uma educação problemática e não querem que seus filhos também passem por isso. Consultam Laques e Nícias, a fim de saber o que se deve ensinar aos jovens, ao passo que Sócrates intervém quando percebe a falta de uma resposta satisfatória no diálogo. Sócrates define a questão que eles devem responder: "o que temos a considerar é se alguém entre nós é perito no tratamento da alma e se está capacitado a tratá-la acertadamente, e qual de nós contou com bons mestres em relação a isso." (Laques, 2010, 185e). Ele apresenta ainda dois critérios para verificar a qualidade de um mestre. Primeiro, seria pelos próprios mestres com quem o aspirante a professor estudou, e, segundo, seria pelos resultados que pôde obter, ou seja, as almas boas que conseguiu formar. O próprio Sócrates se considera inapto para ser um mestre como o pedem Lísimaco e Melésias, uma vez que não havia tido nenhum professor. Sócrates acaba por ressignificar a concepção de professor: ao invés de ser apenas uma figura que domina uma arte qualquer, ou seja, uma técnica (tékne), ele deverá "guiar a todos os outros pelo caminho do lógos para que cuidem de si mesmos, e, eventualmente, dos outros." (Kohan, 2011, p.64).
Ainda com relação ao ensino, não se pode esquecer a ignorância, uma vez que "viver filosofando significa, para Sócrates, dar certo lugar de destaque à ignorância, no pensamento e na vida, ter uma relação de potência, afirmativa, gerativa, com a ignorância." (Kohan, 2011, p.69).

Considerações Finais
A análise de Michel Foucault é notavelmente apaixonada. Durante o curso de suas aulas no Collège de France em 1982, transcritas na Hermenêutica do Sujeito, Foucault pretendeu transmitir o cuidado de si presente na vida e nos ensinamentos de Sócrates, a partir dos textos de Platão. Evidentemente, o ato de filosofar prescinde um exame profundo de si, dos outros e das coisas – e Sócrates vive imerso nesse ato não por vontade própria, mas obedecendo a um chamado dos deuses. Foucault busca, principalmente, estudar as "relações do sujeito e verdade", se utilizando do imperativo do cuidado de si, já anteriormente conceituado. A primeira grande obra a tratar desse imperativo seria propriamente o texto Alcibíades. Não apenas alguns textos de Platão são analisados, como igualmente o curso é marcado por ricas referências a momentos históricos da filosofia antiga, trazendo grandes nomes como o de Epicuro e Sêneca.
Analisando tudo isso, nota-se que é preciso pensar em nossa educação nos dias atuais e tentar estabelecer uma relação útil desses estudos foucaultianos com a realidade dos sujeitos. A todo o momento, tanto o aluno como o professor estão num processo de transformação, construção, enfim, um "vir-a-ser". Ambos procuram, ainda que inconscientemente, lançar-se ao contato com o mundo. Precisamos, urgentemente, dar espaço ao exercício da liberdade e do diálogo nas escolas, sem desconsiderar cada indivíduo em sua particularidade. É preciso olhar para si sem esquecer-se de olhar para o outro, em vistas a cuidar de uma comunidade escolar como é devido, dentro das circunstâncias. É claro que não podemos modificar todo um sistema "de repente", mas ainda assim a todo instante é preciso repensar a escola, repensar as aulas, as falhas que detectamos em nós mesmos ao lidar com a prática. A educação tem por obrigação movimentar o sujeito, fazê-lo entender-se melhor consigo para entender-se com o outro, pois só assim se constrói respeito e, como resultado, a aprendizagem flui. Certamente, a contribuição de Foucault representa um olhar contemporâneo que expressa uma necessidade nossa, com uma educação que caminha a passos lentos e precisa de inúmeras reformas, não só no plano material, como no plano das relações humanas.


REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). Tradução: Márcio Alves da Fonseca, Salma Tannus Muchail. 3ª ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
KOHAN, Walter Omar. Sócrates & a Educação: o enigma da filosofia. Tradução: Ingrid Müller Xavier – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. (Coleção Pensadores & Educação)
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. 3. Ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção Pensadores & Educação).
PLATÃO. Defesa de Sócrates/Platão. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates; Apologia de Sócrates/Xenofonte. As nuvens/Aristófanes. Traduções: Jaime Bruna, Libero Rangel de Andrade, Gilda Maria Reale Strazynski. — 4. ed. — São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores)
PLATÃO. Diálogos VI: Crátilo, Cármides, Laques, Ion, Menexeno. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2010.






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