Fractura

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Editorial

Maria Rita Pais Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se.1

Fractura é, aqui em José Saramago, um motivo

imaginário de ruptura múltipla: a fractura geográfica como motivação física de corte, mas igualmente fractura com o tempo, com a história, com a política, com a cultura e com a língua. No próprio texto, o autor desprende-se, assim como a jangada, da escrita tradicional, rompendo com a língua ao apresentar quase todo o livro sem pontuação, com a excepção de vírgulas e pontos finais. Os longuíssimos parágrafos de Saramago promovem, na sua “desformatação” premeditada, uma ruptura no pensamento do leitor. O pensamento em continuum vai levando o leitor numa aventura, menos canónica e mais próxima da oralidade. Ao descrever a sua escrita, o autor prefere chamar a pontuação de pausas, marcando a frase com um outro ritmo, dado pela cadência oral. Saramago subverteu a norma, fracturou a normalidade para deixar entrar o pensamento do leitor. A fractura imaginária de Jangada de Pedra reco-

meditado. A noção mais bela por detrás desta acção en-

nhece a inocência nas mão de Joana Carda, criança que,

contra-se exactamente nas diversas possibilidades da sig-

com uma vara num jogo de rua, marca no chão uma fron-

nificação da palavra: na descontinuidade inerente, que

teira real, uma fenda geológica entre dois mundos unidos

pode ter origem casual ou intencional; e no potencial do

por rocha. A Jangada ibérica flutua errante num oceano

que vem a seguir. Tal como uma ferida na pele, no sentido

onde não se revela um objectivo concreto. Ela solta-se sem

médico do termo, o significado encontra-se na ruptura dos

motivação e continua errante, superando a fatalidade do

tecidos moleculares. Numa leitura cirúrgica, a fractura ad-



seu prelúdio.



Mas, o rompimento não está contido apenas na

possibilidade do imprevisto, ele pode ser calculado, pre-

07

1 - Saramago, José (1986) Jangada de Pedra, Editorial Caminho, Alfragide, pp. 7

mite a reconexão, a reestruturação dos tecidos ou a recupe-

todas a directrizes, para que o lixo se possa transformar em

ração. Obviamente, aqui surge outro momento significan-

arte, num processo minuciosamente planeado, como num

te: a possibilidade do pós-fractura, seja esta possibilidade, a

jogo de xadrez. No contraponto destes dois textos reconhe-

continuidade da ruptura ou a sua própria superação.

ce-se a amplitude e potencial emanante contido na palavra

Em Splitting (1974), Gordon Matta-Clark, ao con-

“fractura”. Mas, outras leituras possíveis são apresentadas

trário da Joana Carda, projecta o corte de uma casa ame-

nesta revista, e dão especificidade ao seu significado, nos

ricana de subúrbios. O momento de projectar o corte re-

vários apports e valências que a palavra pode ter no âmbito

conhece a acção da fractura como gesto intencional de

da arquitectura, das artes visuais e do design.

possibilitar uma nova leitura. Matta-Clark estudou arqui-



tectura na Cornell University entre 1962 e 1968 e o seu

porque, se se parte do princípio de que a acção altera o

trabalho remete para a experiência humana do espaço, re-

espaço existente, então será sempre uma fractura inde-

velando as estratificações e complexidades das estruturas

pendentemente se apresenta sinais de continuidade com

existentes, apelando ao nosso sentido táctil e reconhecen-

a envolvente ou de corte espacial e programático. Arquitec-

do, na separação em relação modelos existentes, a possibi-

tura é fractura! Pese embora, que o arquitecto lhe dê uma

lidade do surgimento do novo.

intencionalidade de incorporação na envolvente ou mes-



Em arquitectura, fractura pode ser tudo. Tudo,

Neste primeiro número da revista Baú, apresen-

mo de camuflagem. Pedro Providência, no seu ensaio acer-

tam-se duas visões antagónicas, que descrevem bem as

ca da importância da cor na paisagem histórica, revela a

duas possibilidades de quebra e serzimento da realidade

importância desta camuflagem em ambiente consolidado.

anterior. Por um lado, Álvaro Domingues reconhece o caos

Manuel Teixeira reconhece a fractura na evolução urbana

da fractura em percursos não lineares, alimentados de cor-

e morfológica dos aglomerados como base de construção

tes e traumas mais ou menos violentos, que permitem no-

de nova cidade. Na dinâmica gerada entre o homem e o es-

vos começos:

paço, António Carvalho revela os momentos fracturantes



que interferem nos estados meditativos: pequenas altera-

Anima-me, porém, a biodiversidade deste jardim, o

cheiro fresco dos eucaliptos, os ninhos dos pássaros nos bura-

ções de grande impacte na consciência zen.

cos dos bidés e das retretes, os galhos e as folhas secas sobre as



faianças, a toupeira a minar por baixo do lavatório,… sei lá, o

nhece a fractura numa proposta tipográfica nova, que, no

brilho da chuva nos vidrados e as pegas a beber nos mictórios…

entanto, reconhece o fundamento da escrita no próprio



Há fracturas que vêm por bem. *(p.85)

desenho caligráfico. A leitura facilitada prevalece em rela-



Numa perspectiva de recuperação natural, Álvaro

ção às linhas simplificadas da letra, que surgem pela me-

reconhece a beleza do novo, nascido do caos, ao invés da

canização e digitalização do texto. A aproximação da sua

ideia de cicatriz inestética ou de um novo tecido indese-

proposta às bases caligráficas e tipográficas assegura, não a

jado. Numa lógica oposta, Luís Santiago Baptista, pegando

letra imagem (simplificada pela linguagem moderna), mas

no mesmo objecto, o mictório, dá o exemplo do urinol de

a letra facilitadora (completada com acrescentos de ascen-

Marcel Duchamp e desmonta a estratégia escondida por

dência originária).

detrás da sua La Fontaine, que aparentemente, por uma pe-



quena alteração de posicionamento no espaço e pela assi-

sensível da relação com um livro objecto. O objecto aqui,

natura, transforma o sítio do despejo, no lugar da água, fon-

não é o livro de edição comercial, é uma proposta de explo-

te de vida. A afirmação de Duchamp (ou Richard Mutt) dá

ração dos sentidos, com matéria. Ricardo Castro, revisita a

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Na aparente continuidade, Dino dos Santos reco-

O trabalho de Isabel Baraona sublinha o potencial

crueldade do Conde de Lautréamont nos Cantos de Maldo-

da ruptura desta escola, possibilita agora o seu crescimento

ror, e ilustra, de forma pouco iconoclasta, a dureza das suas

sobre algo. Aproveita a sua própria descontinuação, para

descrições, sem discorrer na imoralidade pura.

construir um novo modelo que, muito embora ainda não



esteja acabado, revela seguramente o seu reconhecimen-

Pelo meio de especificidades mais teóricas, vários

alunos da ARCA apresentam os seus trabalhos em cresci-

to.

mento. Cada trabalho propõe uma pausa, para pensar na prática dos nossos alunos. Porque, é nesta prática, que o pensamento se quer reconhecer.

Fractura é um momento único, um momento que

se reconhece pela quebra com os cânones e tendências estabelecidas. Num mundo onde tudo é genérico, nada é fracturante. O mais fracturante, que se poderá fazer, será possivelmente, o aprofundar do pensamento sobre o objecto e não propriamente agir pela acção em si.

Ao invés de construir, sugerimos neste momento,

destruir! Poderíamos abrir uma empresa de demolições, mas para já, podemos reflectir e subverter o mundo como uma forma de colocar em evidência a própria fractura como justificativa de uma nova realidade. O primeiro número da revista Baú propõe uma revisitação à condição de fractura, como ideia de quebra. A reflexão acerca da própria condição, reconhece uma auto-avaliação da instituição e do ensino das artes, num cenário pós-Bolonha. A decorri-

Imagens: Gordon Matta Clark, Splitting Englewood, New Jersey, 1974

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