Fragmentos de vidas profissionais de professores: vivências e reacções às recentes reformas educativas.

June 3, 2017 | Autor: Patrícia Santos | Categoria: Identidade profissional, Reformas educativas
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ÁREA TEMÁTICA: Sociologia da Educação

Fragmentos de vidas profissionais de professores: vivências e reações às recentes reformas educativas

STOLEROFF, Alan Doutor em Sociologia ISCTE-IUL/CIES-IUL [email protected]

SANTOS, Patrícia Mestranda Educação e Sociedade ISCTE-IUL/CIES-IUL [email protected]

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Resumo Apresentamos nesta comunicação resultados parciais obtidos numa investigação qualitativa que, procurando um aprofundamento das trajetórias profissionais dos professores para desvendar as suas identidades profissionais, permitiu entender a relação entre perfis de identidade e respostas às recentes reformas educativas. Interessou-nos, fundamentalmente, analisar as reações em função de variáveis que têm sido consideradas relevantes - anos de serviço, género, área disciplinar -, mas também o nível de envolvimento dos professores em associações e sindicatos de professores. A partir de uma discussão articulada entre a Sociologia das Profissões e a Sociologia da Educação e a utilização da metodologia de Histórias de Vida, analisamos fragmentos de biografias e discursos de um conjunto de professores do 3.º ciclo do ensino básico e do ensino secundário que ilustram características-chave das formas de posicionamento e apropriação simbólica das reformas. Os resultados obtidos permitem constatar que os professores se posicionam baseando-se em esquemas de pensamento e ação reflexivos, na mobilização de valores e poderes e na expressão de emoções. Trazemos para a discussão algumas questões pertinentes e atuais: poder-se-á falar de um posicionamento generalizado dos professores face às reformas? Existirão diferenças consoante grupos específicos? São essas reações estratégias de preservar poderes profissionais, uma identidade profissional reivindicada?

Abstract In this paper we present partial results from qualitative research that joined concerns from the Sociology of Professions and the Sociology of Education and made use of the methodology of Life Histories in order to reveal teachers’ professional identities through their career-life histories. In this paper we concentrate upon the relationship between teachers’ identity profiles and their reactions to recent educational reforms. We are primarily interested in analyzing these reactions in accordance with variables that have been considered relevant in the literature - years of service, gender, subject area – as well as the level of involvement in teachers associations and unions. We illustrate the teachers’ positions towards the reforms and their symbolic appropriation of the changes produced by them. The analysis is based upon fragments of discourse from the biographies of a set of secondary school teachers. The results obtained show that teachers take positions based on diverse patterns of reflexive thought and action, the mobilization of values and powers and expression of emotions. We bring to the discussion various questions regarding the common points and differences in teachers’ positioning in relation to reforms. Are there differences depending on specific groups? Are these reactions linked to strategies to preserve professionals’ powers or the claims of professional identity?

Palavras-chave: reformas educativas; identidade profissional dos professores; reações às reformas Keywords: educational reforms; teachers' professional identity; reactions to the reforms PAP0711

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I. Reformas educativas, trabalho docente e identidade profissional dos professores Entre 2007 e 2010, um governo do Partido Socialista em Portugal implementou reformas importantes na gestão da escola pública e na carreira do professor com base em princípios meritocráticos e gestionários da não-tão-nova “nova gestão pública” (Stoleroff & Pereira, 2008). A revisão do Estatuto da Carreira Docente (Decreto-Lei n.º 15/2007 de 19 de Janeiroi) e a reforma da gestão e direção escolar (Decreto-Lei n.º 75/2008 de 22 de Abril), apresentando como argumentos centrais a eficiência dos sistemas de ensino e o aumento do profissionalismo dos professores, são exemplos dessas reformas desencadeadas, por um lado, pelo contexto de progressiva austeridade económica e, por outro lado, pela tentativa de integrar na agenda nacional de educação o “hibridismo” das políticas educativas europeias que associam discursos construtivistas a discursos de eficiência (Teodoro & Aníbal, 2008). Importando teorias gestionárias para as orientações do sistema educativo, a atividade reformista foi além da situação laboral dos professores - que sofreu uma relativa precarização, ilustrada, por exemplo, pelo aumento de contratos temporários - e introduziu um modelo inteiramente novo de gestão da escola pública, implicando, assim, mudanças estruturais e organizacionais que modificaram a “paisagem” tradicional do trabalho do professor. Uma das tendências da revisão do Estatuto da Carreira Docente corresponde a um processo de forte flexibilidade do trabalho do professor, associado ao alargamento e diversificação das tarefas a assumir (como por exemplo, a substituição de colegas), conduzindo a uma maior indefinição de funções.ii Este processo é baseado, segundo Carneiro et al. (2001), numa perspectiva instrumental da profissão, em que os problemas sociais e económicos se transformam em problemas educativos – assim, secundarizando as lógicas próprias do desenvolvimento da pedagogia e da organização escolar. Uma vez que os professores são, em geral, considerados os principais responsáveis pelo desempenho dos alunos, da escola e do sistema, introduziu-se ainda um sistema de avaliação de desempenho profissional, com consequências no sistema de promoções e de progressão na carreira. Este processo implicou, em simultâneo com uma forte retórica que valoriza a dimensão coletiva da profissão, a promoção de uma cultura de responsabilização individual do professor, subordinada a ideologias de “eficiência”, “eficácia” e “qualidade” do seu trabalho. Para Afonso (2009, p. 19), este processo “é congruente com o exercício do controlo por parte do Estado”, implicando uma padronização da prática dos professores e, consequentemente, uma redução dos espaços de autonomia profissional - um dos principais recursos de poder profissional. Também a reforma da gestão escolar contribuiu para a diminuição da autonomia destes profissionais introduzindo uma nova forma de gestão escolar que implicou um aumento do controlo burocrático e centralizado da profissão docente (Stoleroff & Pereira, 2009). Esta estratificação formal originada pela criação de uma direção escolar unipessoal, como sugere Freidson (2001), determina o aparecimento de uma elite profissional que dirige e os professores que transformam as diretivas em planos de ação num processo que Rodrigues (2002) designa de “proletarização técnica” - ou seja, a perda do controlo sobre o processo e produto do seu trabalho - e “proletarização ideológica” – ou seja, a expropriação dos valores subjacentes ao trabalho. Este movimento “de fora para dentro” resultou em processos de conflitos e negociação entre o Ministério da Educação e os sindicatos de professores. No discurso sindical estas reformas surgem como transformadoras da função do docente, da sua orientação, dos seus papéis na escola e na sociedade e das regras e valores comungados pela classe profissional (Stoleroff & Pereira, 2009). Emergiu, ainda, uma intensa mobilização do grupo profissional que aponta para o facto de estas reformas desafiarem as suas identidades profissionais (Ferguson, 1994; Day, 2002; Ball, 1993). No entanto e apesar de continuar a haver uma constante enxurrada de mudanças conservadoras e de austeridade que trespassa os sucessivos governos, tem havido uma pacificação relativa do protesto profissional. De facto, os professores adaptaram-se às novas regras que efetivamente orientam a sua atividade profissional quotidiana, mas esta adaptação não é necessariamente um reflexo positivo e pode tomar a forma de resistência, por um lado, rejeição e fuga, por outro. Este panorama justifica a necessidade de procurar contemplar a análise da micro-realidade das perceções, reações e vivências do professor (que integram a sua identidade profissional) em intersecção com a macro5 de 15

realidade destas reformas gestionárias e profissionais. A partir de uma análise exploratória de dados recolhidos no âmbito de um projeto que utiliza a metodologia das História de Vida para analisar as identidades profissionais dos professores no contexto atualiii, apresentamos as estratégias reflexivas (de pensamento e de ação) do professor no interior do questionamento e confronto com sistema de ação decorrente das reformas. Para tornar visível o universo simbólico destacamos a história coletiva dentro da história singular enunciada por 17 professores que lecionam o 3.º ciclo do ensino básico e/ou ensino secundário em escolas da região da Grande Lisboa. É por meio dos seus discursos e verdades, do seu quadro referencial, que reconstruimos a realidade subjetiva deste processo ou, como afirma Lahire (2005: 14), o social individualizado “é estudar a realidade social na sua forma incorporada, interiorizada”. Para analisar as possíveis adaptações e resistências destes profissionais propomos retomar os termos da muito conhecida tese de Albert Hirschman em “Exit, voice and loyalty” (1970). Hirschman concebeu três reações possíveis ao declínio da qualidade das organizações, relacionando lógicas de pensamento e ação individuais, elementos importantes para a presente análise (e por extensão, para a análise de ação coletiva). Para este autor, o sujeito pode demonstrar a sua insatisfação, quiçá deceção, através da “saída”, o que neste caso pode significar fugir - mudar ou deixar a profissão, por exemplo, através da reforma antecipada. Pode também transformar o seu descontentamento numa ação, ou seja, num protesto, fazendo ouvir a sua “voz”, em ações pontuais ou sistemáticas, por via administrativa ou por via política. Por último, evidentemente, a opção “saída” ou mesmo a “voz” não está disponível se os sujeitos estão “presos” de alguma forma à organização, resultando na sua “lealdade” à organização. Como tomam os professores a decisão de sair, protestar ou assumir a ideologia hegemónica? Poder-se-á falar de diversas reações estratégicas no sentido de preservar conceções de profissionalidade em conformidade com as diversas identidades profissionais partilhadas pelos professores? A nossa abordagem implica o entendimento da identidade profissional como processo dinâmico, construído e reconstruído em determinadas épocas histórias e contextos sociais, através de dinâmicas de conflito e negociação (Nóvoa, 2000; Stoleroff, 2011). Aplicando essa premissa, somos orientados pela hipótese de que a forma como os professores percecionaram, reagiram e vivenciam as reformas é mediada por fatores como sexo, fase da carreira profissional e disciplina que lecionam, variáveis influentes no estudo das identidades profissionais dos professores (por exemplo, nos estudos de Araújo, 1995; Beijaard et. al, 2004; Huberman, 1995). Acrescentamos, neste caso, o nível de envolvimento associativo como uma variável relativamente importante, uma vez que partimos da assunção de que a existência ou inexistência do “sistema de alianças” condiciona os modelos particulares de apropriação simbólica das reformas em causa. Poder-se-á falar de um posicionamento generalizado dos professores face às reformas? Existirão diferenças consoante grupos específicos?

II. Metodologia de investigação As Histórias de Vida profissionais foram recolhidas a partir de entrevistas semi-diretivas a uma amostra de 17 professores do 3.º ciclo e do ensino secundário de três escolas localizadas na área da Grande Lisboa (integradas na amostra de 52 entrevistas que compõem o projeto de investigação). As entrevistas decorrerem entre Novembro de 2011 e Março de 2012, tiveram uma duração média de 1h30m e foram gravadas e transcritas integralmente. O guião da entrevista foi estruturado de acordo com os objetivos mais amplos do projeto de investigação e com o conhecimento teórico produzido na área das identidades profissionais. Informamos os professores entrevistados sobre os objetivos da investigação, dando a conhecer a importância da sua colaboração e, ao lidar com recordações, confissões, experiências carregadas de sentimento, asseguramos a confidencialidade dos dados e o anonimato dos professores (identificados com um código), escolas e localidades. Foi, ainda, acordado o envio de uma narrativa biográfica decorrente de dados recolhidos na entrevista. Ressaltamos que a amostra, embora restrita a um conjunto limitado de professores, procurou uma diversificação de perfis de modo a abranger as variáveis consideradas estratégicas para a problemática em causa: género, anos de serviço, áreas disciplinares e níveis de envolvimento associativo. O Quadro 1 apresenta o perfil de cada um dos professores entrevistados. No seu conjunto, apenas quatro eram homens e os anos de serviço variam entre os 1 e 39 anos de serviço. Trata-se de professores de Português, Matemática 6 de 15

e Ciências, uma vez que quisemos analisar áreas disciplinares sujeitas a maior pressão por parte de organismos nacionais e internacionais nos últimos anos, especialmente decorrentes dos estudos PISA lançados pela OCDE; mas também professores de Filosofia, componente geral da formação dos cursos de ensino secundário. A escala de envolvimento associativo varia entre “nenhum envolvimento” e “participação ativa”, sendo que a maioria é sindicalizado ou associado numa associação profissional.

Professor

Género

Anos de serviço

Área disciplinar

Sindicalismo/Associativismo

MCC

Feminino

0-3

Ciências

Sindicalizado/Associado

FCD

Masculino

0-3

Ciências

Nenhum envolvimento

FFB

Feminino

0-3

Filosofia

Sindicalizado/Associado

ÂMB

Feminino

0-3

Matemática

Nenhum envolvimento

APC3

Feminino

0-3

Português

Nenhum envolvimento

MCB

Masculino

7-25

Ciências

Sindicalizado/Associado

IFC

Feminino

7-25

Filosofia

Sindicalizado/Associado

VMC

Feminino

7-25

Matemática

Sindicalizado/Associado

LMD

Masculino

7-25

Matemática

Sindicalizado/Associado

CPB

Feminino

7-25

Português

Sindicalizado/Associado

CPD

Feminino

7-25

Português

Sindicalizado/Associado

HFB

Feminino

26-35

Filosofia

Participação ativa

LFD

Feminino

26-35

Filosofia

Participação ativa

APC26

Feminino

26-35

Português

Sindicalizado/Associado

CCC

Feminino

36-44

Ciências

Participação ativa

CFC

Masculino

36-44

Filosofia

Nenhum envolvimento

APC36

Feminino

36-44

Português

Nenhum envolvimento

Quadro 1 - Perfil dos entrevistados Seguindo os objetivos definidos anteriormente e utilizando o software “MaxQda”, realizou-se uma análise temática das entrevistas, cruzando narrativas singulares, a partir de categorias de análise que estavam pensadas a priori, de acordo com a revisão bibliográfica, e de categorias que emergiram ou se afinaram no decorrer do procedimento exploratório. Este processo conduziu à definição de três temas centrais, seguindo o princípio da exclusão mútua e da homogeneidade intra-categoria: “significados genéricos das reformas”, onde englobamos as interpretações sobre as finalidades da revisão do Estatuto da Carreira Docente e o novo modelo de gestão escolar; “reações às reformas”, onde se abordam as formas de envolvimento comportamental e emocional; e “vivências nas reformas”, onde se integraram as subcategorias referentes aos impactos das reformas nas vivências quotidianas dos professores. Seguidamente, cada tema será desenvolvido separadamente, recorrendo a citações do discurso dos professores entrevistados que ilustram as diferentes formas de pensar e viver as reformas e enunciando os resultados mais significativos.

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III. Significados genéricos das reformas Ao contar a sua história, o professor faz uma reconstituição ativa dos “pedaços” mais relevantes da sua vida profissional. Há, por exemplo, uma notável ausência nos discursos dos entrevistados que nunca abordam os sentidos das reformas mas apenas o que acham da avaliação do desempenho. Nesse sentido, o silêncio da maioria dos professores relativamente ao que consideram ter sido as lógicas e objectivos das reformas gestionárias e profissionais indica-nos um nível geral de perceção das “causas comuns” relativamente baixo nesta amostra, o que, enquanto fim último da ação coletiva, pode dificultar uma sinergia de esforços. É o caso de AMB, uma professora de Matemática com menos de três anos de serviço, sem qualquer vinculo associativo e que ainda está em dúvida se é esta a profissão que quer seguir. “E só me vou preocupando em saber quando sou um bocadinho mais afetada, quando é qualquer coisa que está relacionada com a minha situação” (AMB). No extremo oposto encontramos as professoras com uma participação ativa no associativismo docente, decorrente dos seus papéis de delegadas sindicais ou membro diretivo de uma associação profissional. Podemos afirmar que o envolvimento associativo é uma variável que condiciona a sua apropriação simbólica das reformas e que as “vozes” deste conjunto de professoras resultam de diálogos e de construções coletivas baseadas na veiculação de modelos de profissionalismo, crenças e valores associados à profissão. Na sua visão assertiva sobre as reformas, em especial sobre o Estatuto da Carreira Docente, indicam uma identidade de resistência e apresentam como argumentos razões economicistas e necessidade de votos. Consideram, ainda, que este documento legislador apresenta uma visão de profissionalismo que tende a caracterizar o professor de uma forma instrumental, desprestigiando a sua imagem e o seu papel social, tal como o altruísmo ou humanismo que consideram característicos do seu trabalho. É o caso de LFD e HFB, ambas professoras de Filosofia com 26-35 anos de serviço, que consideram que o seu poder está a ser instrumentalizado. “Na Grécia os pedagogos, os professores eram escravos e eu acho que os professores estão a se sentir outra vez escravos na sociedade. No fundo são os instrumentos do poder. (…). Uma pessoa que não merece respeito e, portanto, é uma máquina, tem de ser uma máquina” (LFD). “Cada vez menos professora e cada vez mais funcionária é aquilo que nos vão exigindo. Desvirtua um bocadinho o propósito inicial da profissão, eu acho” (HFB). Existe ainda um conjunto de professores que, aceitando ou concordando com as reformas, são críticos relativamente à forma como o processo foi implementado nas escolas – demasiadas mudanças em pouco tempo - uma perceção entendida à luz dos contextos em que trabalham e das suas próprias visões do que significa ser profissional. É o caso de MCB, um professor de Ciências com 12 anos de serviço. “Deveria ser imposto de uma forma que… que não afrontasse tanto os professores e que não alterasse tão significativamente, de um momento para o outro, a forma de estar e de trabalhar de algumas pessoas que trabalham da mesma forma há 30 anos e foi muito difícil de um momento para o outro alterar. Portanto, acho que devia ser mais moderado, implementado mais… mais lentamente, haver não aquele espírito de confronto, mas sim de negociação” (MCB). No caso dos professores sem vínculos associativos, aparece por vezes uma referência crítica ao papel dos sindicatos no processo, enfatizando o distanciamento destes atores coletivos relativamente aos interesses dos professores. É o caso de CFC, um professor de Filosofia com mais de 36 anos de serviço. “Os sindicatos durante umas negociações que tiveram, ainda no tempo da Maria de Lurdes Rodrigues, em que ela tinha acabado com os destacamentos, queria fazer regressar às escolas todos os professores que fizessem parte dos quadros da escola, houve isto, professores que estavam no Ministério e nos diversos departamentos e também nos sindicatos, porque há uma faixa de professores que estão destacados nas associações e sindicatos a trabalhar a tempo inteiro, com o vencimento da escola e o ponto quente das negociações foi os professores serem libertados para os sindicatos. Não foram os interesses dos professores” (CFC).

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O novo modelo de gestão é referido, na maioria das vezes, no discurso dos professores com menos de três anos de serviço. Em especial a direção unipessoal é uma medida que interfere diretamente nas colocações destes professores com vínculo de contratados. A visão do papel e responsabilidade desta figura de autoridade na escola varia relativamente ao grau de autonomia associado, mas nunca pondo em questão o atropelo à colegialidade da classe profissional, como se nota na afirmação de FCD, um professor “novato” de Ciências. “O papel do diretor eu acho importante, mas acho importante quando o diretor desenvolve função de diretor, quando o diretor desenvolve função de superior, quando aplica a lei, neste caso, escolar… como exemplo para todos os outros” (FCD). O tema da colegialidade é um assunto de pouca relevância nos discursos da maioria dos professores, estando mais saliente nos professores com mais de 26 anos de serviço, como é o caso de APC36, uma professora de Português que pertenceu ao anterior órgão de gestão da escola. “O conselho geral é formado por vinte e um elementos, oito dos quais professores e depois temos pais, temos alunos, temos funcionários não docentes, temos a autarquia e temos as forças vivas da região. Portanto, são vinte e um votos, mas que representam a… Portanto, isso não significa que ao eleger um diretor, se esteja a eleger o diretor que a escola queria, não é?” (APC36). Mas se existem discrepâncias em termos de discurso neste caso, a verdade é que as entrevistas evidenciam uma identidade comum a todos os entrevistados, independentemente das diversas perceções das reformas, no que diz respeito à evidência de uma orientação ideológica e altruísta da profissão que procura mais do que a consecução da função última da profissão (ensinar e transmitir conhecimentos), indo ao encontro da representação funcionalista do profissionalismo. Isto é exemplificado por CCC, uma professora veterana de Ciências, que sempre teve uma grande paixão por ensinar e que assume os valores sociais da educação. “Uma grande paixão de ensinar. Uma grande paixão de estar com os miúdos. Ajudar a resolver os problemas, a ultrapassar as dificuldades, a dar resposta a todos os problemas que eles tinham na vida escolar. (…). Andar bem calçados e vestidos, são esses os valores da sociedade. E é contra esses valores instituídos que eu educo os meus alunos (…). São pequenas batalhas do dia-a-dia que cruzam a visão social com a visão política e económica que nós temos do país, que é indissociável da nossa prática pedagógica e da nossa preparação dos jovens para o futuro” (CCC). É também o caso de MCC que confessa que o estágio acabou por ser um fator de reforço da sua motivação para ensinar - sugerindo uma ideologia de “vocação” divulgada no período de formação dos professores - e indica uma missão pedagógica mais alargada. A persistência das ideias relativas à “vocação” necessária para se ser professor ou à valorização da dimensão social da profissão tem, assim, um impacto mais ou menos intenso sobre as expetativas deste conjunto de professores que se sobrepõem ou são relativizadas no pensar destas reformas (no sentido de uma “proletarização ideológica”). “Achei que devia ir pelo ensino, porque, na altura, queria Serviço Social e Serviço Social havia apenas nas universidades privadas, não havia no ensino público e depois a minha segunda opção era a Geografia (…). Aqueles três anos em que eu não me identifiquei com o curso pus muito em questão se a minha opção tinha sido correta e o estágio foi o concretizar e foi o também perceber que sim, que era por aí, foi sentirme realizada (…). Ser professor é ensinar, é transmitir conhecimentos, mas é também… ajudar no processo de crescimento dos alunos que temos à frente. Não só transmitir os conhecimentos, mas também mostrar-lhes as atitudes que devem ter, a questão da responsabilidade, a questão de aprenderem a crescer, o que é que é certo” (MCC). No mesmo sentido, a crescente degradação do seu prestígio social e o descrédito da profissão pela opinião pública provoca no conjunto de professores da amostra uma evidente necessidade de mostrar o quanto é complexa e importante a sua função. A maioria dos profissionais procuram legitimar a sua autoridade e o seu saber “inalcançável” aos restantes elementos da comunidade educativa fazendo um discurso de evidente comparação com profissões de grande prestígio em Portugal. É o caso de APC3, professora “novata” de Português. 9 de 15

“Os médicos salvam vidas e tratam das pessoas, nós educamos. Portanto, eu acho que é uma profissão importante. (…). Às vezes, penso nisso e sinto, é muita responsabilidade, muita responsabilidade (…). E depois é assim, somos uma profissão que está a sujeita a isso mesmo, porque toda a gente passou pela escola, então as pessoas como passaram pela escola acham que têm o direito, acham que sabem o outro lado, acham que sabem o que é… Então, somos sujeitos à crítica, porque como alguém já passou pela escola, têm filhos que estão na escola acham que sabem alguma coisa e então estamos sempre sujeitos” (APC3).

IV. Reações às reformas A reação às reformas é heterogénea. A maioria dos professores participou na grande manifestação de 8 de Março de 2008, referida pelos próprios como a manifestação dos “120 mil professores”, mas a posterior variedade de caminhos impõe-se. Após um primeiro e intenso momento de “voz”, na tentativa de conter as mudanças que iriam interferir no seu quotidiano profissional e no sentido de afirmar e reivindicar a riqueza da sua competência, as reações do conjunto de professores da amostra são o produto da interação entre aquilo que é importante para os professores, os seus ideais e/ou necessidades, e as forças externas do sistema. Encontramos um conjunto de professores que reativaram os princípios mobilizadores da profissão e o envolvimento em ações coletivas após essa primeira intervenção. Mais uma vez são, sobretudo, as professoras experientes com forte ligação ao associativismo docente e que pretendem expressar plenamente as suas expectativas profissionais e pessoais. Para estas professoras as reformas suscitaram uma mescla de emoções intensas: da revolta à tristeza, do desencanto à preocupação, passando pela frustração. Estes sentimentos de mal-estar podem ser originados pela distância entre o que o novo mandato oficial exige e aquilo que eram as expectativas enraizadas no decurso da sua socialização passada, desde a formação inicial às experiências profissionais. Conscientes das implicações das reformas e crentes na sua função, a sua “voz” é utilizada de forma sistemática no sentido de afirmar e reivindicar a riqueza da sua competência, de resistir à subordinação burocrática e de tentar transformar a situação através da mobilização dos seus pares. É o caso de LFD que participou em todas as manifestações, voltou a sindicalizar-se e passou a assumir o papel de representante sindical na sua escola. “Cheguei a um ponto que eu disse “bem com a minha carolice toda, com os meus sonhos e sensibilidade não faço nada. (…). Estive nas manifestações, etc., e já estava, estava muito com vontade de me meter no sindicato, de me manter na luta” (LFD). Em alguns desses casos, o desencanto leva ao último recurso: a “saída”, ou seja, a reforma antecipada. A ânsia por uma rutura total com a profissão na sequência destas reformas reflete o sentimento de cansaço e fadiga associada às alterações profundas na profissão, mas também o sentimento de que os seus esforços mobilizadores e de reivindicação política têm surtido poucos efeitos. É o caso de APC36, proveniente de uma época em que a profissão oferecia a expectativa de uma carreira vitalícia e segura, desenvolveu um compromisso com a profissão e manifestou-se, recusou pedir aulas assistidas mas acabou por assumir um papel de avaliadora dos colegas, desindicalizou-se e já pediu a reforma antecipada. “Agora acho que chegou a altura de… por um ponto final nesta etapa, que me apaixonou durante os 36 anos que cá ando, foi sempre uma paixão. (…). O “muito bom” e o “excelente” em termos de progressão da carreira não me aqueciam nem arrefeciam, portanto, a partir do momento em que não concordei com o sistema defini que faria o mínimo necessário, portanto o mínimo era ter “bom” (APC36). O certo é que a maioria dos professores, independentemente do género, disciplina ou anos de serviço, acaba por confirmar que a disposição de se envolver em ações coletivas tem seus limites: se a ação não produz as mudanças desejadas, a prontidão para se envolver diminui e, passado algum tempo, há um completo retorno à esfera privada. Podemos dizer que, além do tão falado “burnout” profissional, depois desta procura coletiva de “saída” existe um “burnout” decorrente do desânimo das possibilidades de mudança. Há um certo desamparo e desânimo. É o caso de APC26, professora de Português com 26-35 anos de serviço e o caso de CPB, professora de Português com 7-25 anos de serviço e que sempre teve um vínculo de substituição, que 10 de 15

começaram por se manifestar. “Mas realmente os professores contestaram, mas acabou por não levar a nada, as pessoas depois têm de viver pacificamente com isto. Nós se vivemos isto muito, muito intensamente acabamos por, a nível psíquico e até físico, não aguentarmos, não é?” (APC26) “Fiz uma greve, mas depois achei que não valia a pena mais e não fiz mais nada. Cheguei à conclusão que, mesmo que fosse mexido, isto era para continuar” (CPB). Uma posição ambivalente mas pragmática em que os professores pretendem obter bons resultados ao mesmo tempo que contestam alguns aspetos das reformas, sobretudo o sistema de avaliação, está patente sobretudo nos discursos dos professores que ainda não se encontram na fase final da carreira. Considerando que não estão em condições de se opor abertamente às mudanças (e estando longe da possibilidade de uma “saída” digna), estes professores refletem sobre o que está em jogo em cada situação e em cada contexto e partem para o alcance do possível: aguentar as medidas e ter em vista a satisfação dos seus objetivos mais imediatos, por exemplo, aumentar a graduação no concurso de professores, subir de escalão ou simplesmente não ter problemas com colegas. O sentimento é de injustiça das medidas e ingratidão por parte dos governos e o conhecimento tácito e as suas capacidades reflexivas adquiridas no decorrer da profissão permite-lhes decidir suportar tais medidas. É o caso de FFB, que na altura do estágio se manifestou, já se sindicalizou e deixou de participar nas mobilizações porque se sente desmotivada com os seus resultados e o facto de a ação não produzir as mudanças desejadas. É também o caso de LMD, professor de Matemática com 7-25 anos de serviço, que preferiu se sindicalizar e não pedir avaliação para não provocar situações complicadas. “Porque se me dão a possibilidade de, e eu estou numa situação tão complicada, se me dão a possibilidade de, fazendo isto, posso vir a ter um… Ai, como é que é? Uma graduação, um ponto, a minha graduação que me permita alterar a minha situação a nível de concurso eu tenho de tentar” (FFB). “Quando foi esta história, começou a avaliação dos professores, havia umas pessoas que diziam uma coisa, outros que diziam outra então achei por bem, para me esclarecer, sindicalizar-me (…). Não pedi avaliação, por causa da situação, (…) gosto de me dar bem com toda a gente e já sei que vai haver confusão” (LMD). Existem ainda os casos dos professores que parecem nunca se terem envolvido de “corpo e alma” neste assunto, na sua maioria os professores que se encontram nos primeiros três anos de serviço mas também aqueles que aceitaram as medidas reformistas. O caso de CFC é representativo dessa última situação, uma vez que sempre concordou com as medidas, cumpriu sempre os ciclos de avaliação e pediu aulas assistidas, o que lhe fez “muitos inimigos”. “Porque nós estamos aqui num trabalho, nós somos trabalhadores por conta de outrem, não somos profissionais liberais, temos de prestar contas” (CFC). No caso dos professores com menos anos de serviço, que não conheceram as vivências escolares no período anterior e vivendo em situações de constrangimentos objetivos, a reação impõe-se por si mesma e aceitam a ideia como uma obrigação inevitável de forma a encontrar um lugar na profissão. Além dos constrangimentos financeiros, que os tornam “leais” – ou mesmo submissos - à organização da “nova escola”, precisam de tempo, que ainda não tiveram, para se contextualizar com a matriz de reações possíveis no seu campo profissional. É o caso de FCD, professor de Ciências com dois anos de serviço, que se sente realizado por trabalhar mesmo em condições de instabilidade. “Aquilo que eu digo é “eu quero ser prejudicado”, porquê? Porque é sinal que eu estou a trabalhar, é assim que eu penso. (…). Tudo o que seja associações, manifestação e todas essas entidades, sindicatos e por aí a fora, eu respeito, mas não me revejo… ainda” (FCD).

V. Vivências profissionais resultantes das reformas Em vários momentos das entrevistas, os professores comentaram espontaneamente as vicissitudes do impacto destas reformas no seu trabalho. A vivência das reformas parece ser construída por recurso a uma 11 de 15

diversidade de lógicas de justificação, muitas hesitações, processos confusos. No entanto, o associativismo docente, novamente, contrapõe essa tendência e os professores com forte envolvimento sindical e associativo aparecem como aqueles que têm uma visão mais globalizante dos impactos das reformas, indicando que os professores que se opõem aos valores consagrados nas políticas educativas também mais dificilmente se adaptam aos novos padrões de trabalho na escola. Os fatores que mais ressaltaram do conjunto das histórias profissionais foram fatores estruturais relacionados com a carreira e as condições de trabalho sugerindo que a ideia funcionalista de que os profissionais em geral colocam a necessidade dos “clientes” à frente dos seus interesses pessoais pode parecer errada à luz desta análise. A maior parte dos professores sente o sistema de colocações a nível nacional e o processo de progressão na carreira como constrangimentos. Os professores com um vínculo instável, com menos de 3 anos de serviço e até aos 13 anos de serviço, naturalmente, falam de um percurso profissional de obstáculos, mas a possível frustração é evitada resultando num compromisso sustentado a partir de matrizes de instabilidade na carreira. É o caso de AMB. “Eu não consigo estabilizar em lado nenhum, não é? Nunca sei se vou ficar um ano inteiro num sítio ou se vou ficar só um mês. Eu nunca sei o que é que no ano seguinte me vai acontecer, se eu vou continuar a ter uma escola ou se eu vou ficar em casa” (AMB). Por sua vez, os restantes professores, apesar de terem conseguido o seu lugar num contexto muito diferente do atual, também se sentem dependentes das novas regulamentações e criticam a tentativa que tem sido feita para desregulamentar as relações de trabalho. Podemos falar da reemergência de uma consciência de precariedade e vulnerabilidade que convencionalmente nesta fase de carreira deveria ser relativamente ultrapassada para conduzir à consolidação da carreira. Ou seja, estas reformas reintroduzem uma nova forma de insegurança mesmo numa fase consolidada da carreira que conduz a comportamentos e vivências de autodefesa. É o caso de CCC. “Enquanto nas Novas Oportunidades dizem que agora a experiência conta, para nós a experiência não conta nada, há que recomeçar tudo do princípio. E os professores que estão entre os 50 e os 60 na verdade estão fartos de começar tudo do princípio. (…). Porque na verdade há um conjunto de pessoas que sempre trabalharam e que neste momento estão a ser altamente prejudicadas (…). Estava no topo, porque, também não percebi como, andei para trás e apesar de já ter todas as penalizações já devia estar desde Janeiro de 2009 no topo da carreira não estou, eu e milhares de outros que entretanto se fartaram e reformaram.” (CCC) Os seus discursos e o modo como se posicionam face aos seus contextos particulares mostram uma resistência geral à lógica de avaliação que induz um “mal-estar”, excetuando para os professores que se conformaram e/ou aceitaram as medidas de política. Se por um lado o conflito resultou num movimento conjunto de solidariedade que, de alguma forma, reforçou a identidade profissional coletiva, a maioria dos professores, em especial aqueles que apresentam algum vínculo associativo, consideram que estes procedimentos têm enfraquecido consideravelmente as bases de relações harmónicas entre colegas e a colaboração genuína, reforçando julgamentos e vigilância mútua, provocando situações de atritos e confrontos de colega contra colega. No caso dos jovens professores esta situação pode implicar uma dificuldade acrescida no que diz respeito ao processo de socialização dos modelos profissionais transmitidos pelas gerações precedentes e assim as reformas podem ter introduzido uma tendência de rutura da solidariedade profissional inter-geracional tão funcional à escola. Pode-se ainda dizer que as professoras apresentam uma atitude simultaneamente mais crítica e mais insegura relativamente a este processo. É o caso de MCC, professora de Ciências com menos de 3 anos de serviço. “O que eu sinto na escola é em termos de acolhimento. Sinto que há grupos formados… fechados dentro dos professores que estão cá há muito tempo. E esses grupos são fechados entre eles, funcionam como grupos de amigos, pessoas que convivem dentro e fora da escola, pessoas que se relacionam. (…). Estabelecer diferenças, aquele que é melhor, aquele que não é tão bom e isso cria rivalidades, cria constrangimentos, criar conflitos…” (MCC). Também as condições de trabalho são tema recorrente no discurso dos professores, em especial a partir dos 12 de 15

sete anos de serviço, parecendo indicar o aparecimento de uma visão crítica relativamente à profissão. Preocupações com horários sobrecarregados e a proliferação de tarefas burocráticas, proveniente de uma “avalanche” de procedimentos, diminuem o tempo para “trabalhar” sobretudo na perceção dos professores veteranos – que no decorrer do seu percurso tinham experimentaram uma melhoria progressiva das condições de trabalho. É o caso de HFB que concebe esta situação como um obstáculo que se interpõe entre a sua função e a prática quotidiana. “Transformou-se o professor num funcionário burocrático, administrativo, sobrecarregadíssimo de papeladas, de reuniões, de funções. (…). Cada vez menos professora e cada vez mais funcionária é aquilo que nos vão exigindo.” (HFB) Já as gerações mais jovens revelam pragmatismo na leitura dos seus contextos profissionais e uma versatilidade profissional que se deve, em larga medida, ao facto de serem “obrigados” a aprender muito depressa o modus operandi e o modus vivendi da profissão. Apresentam a elasticidade suficiente para recontextualizar as suas funções de forma a enquadrar as exigências constantes dos atores a quem devem prestar contas – coordenadores de área disciplinar, coordenadores de ano, diretores de turma, diretor da escola e Ministério da Educação - contribuindo assim para a tal “proletarização ideológica”, como refere Rodrigues (2002).É o caso de FCD, professor que se adapta às condições e requisitos impostos pelos contextos, procurando se enquadrar naquilo que são as “novas” funções do professor – como lecionar várias disciplinas, diferentes anos em diferentes escolas todos os anos. “Foi chegar, chegar, chegar, conhecer o coordenador, um bocadinho à pressa porque as aulas já tinham começado há dois meses, foi chegar dizer o que era o programa, dizer os objetivos e ‘agora desenrascate’.” (FCD) Num contexto de promoção de ingénuas exigências tecnocratas – inerentes à objetividade e previsibilidade da prática - a diminuição da autonomia profissional e o aumento da responsabilização do professor aparecem “naturalizados” nas narrativas profissionais. É interessante neste sentido constatar que a padronização de processos profissionais importantes é reportada, mas nem sempre num sentido crítico. Por um lado encontrase um conjunto de professores que consideram ser importante uma relação de liberdade ou independência entre colegas, percecionando os mecanismos de coordenação interna como, por vezes, limitativos da ação do professor na sala de aula; por outro, um conjunto de professores, em especial os com menos anos de serviço, que caracteriza o seu relacionamento com os colegas como uma aceitação e conformidade, implicando a transferência de uma parte da sua autonomia individual para os colegas com mais experiência, por exemplo, em decisões como ensinar e como avaliar. IFC e APC26 caracterizam esta disparidade de entendimentos. “Todos os professores do meu grupo têm de proceder do mesmo modo, têm de recorrer ao mesmo manual, têm de fazer o mesmo tipo de testes, têm de avaliar do mesmo modo (…). Portanto, há uma excessiva uniformização” (IFC). “O grupo de inglês funciona muito mais assim. Elas por exemplo fazem um teste igual, fazem todas o mesmo teste, são capazes de fazer todas o mesmo tipo de ficha, trabalham muito em grupo” (APC26). A esta dinâmica que privilegia relações competitivas e de desconfiança dentro do coletivo profissional acrescenta-se a vivência de uma lógica de responsabilização individualizante, evidente no discurso de LMD. “Às vezes, quando uma determinada turma não tem resultados e às vezes não é só à nossa disciplina, é às várias disciplinas, cai sempre sobre os professores, porque os professores é que têm de justificar porque é que têm negativas, porque é que eles não aprendem” (LMD).

VI. Fragmentos de histórias profissionais de professores atravessados pelas reformas educativas As narrativas biográficas em análise encontram-se moldadas pelo complexo e controverso contexto educativo onde nos situamos e as reformas constituem momentos significativos da vida profissional de cada um dos professores da amostra. Salvaguardando que os significados e vivências aqui apresentados não são 13 de 15

fixos ou permanentes - sendo necessário levar em consideração o fluxo ininterrupto da história de vida profissional e social e as subjetividades daí decorrentes - encontramos proximidades e distâncias nos discursos destes professores especialmente relacionados com o vínculo associativo e a geração profissional a que pertencem. Podemos detetar uma certa proximidade no que diz respeito aos ideais e valores sociais implícitos à função do professor. A ideia funcionalista de que os profissionais, em geral, colocam a necessidade dos “clientes” à frente dos seus interesses pessoais e profissionais é ainda transportada pelos discursos ideológicos destes professores, independentemente das variáveis em análise – no sentido oposto ao que acontece em relação às vivências, muito relacionadas com as particularidades das carreiras e condições de trabalho dos professores. Mas, ao contrário de uma comunidade profissional homogénea cujos membros partilham identidades profissionais, como também era descrito pelo funcionalismo, encontramos oposições. Nem sempre encontramos relações de coerência entre os diferentes níveis, designadamente entre as perceções, reações e vivências nas histórias de vida profissional de um mesmo professor, sendo possível identificar múltiplas pequenas contradições, sobretudo nos professores “novatos” que são submetidos a uma pluralidade de normativos de profissionalismo, muitas vezes contraditórios, vinculados tanto pela formação inicial, como pela tutela e associações profissionais. Este tipo de volatilidade deixa-nos a sensação de que o desejado é moldável consoante as circunstâncias e a reflexividade de cada profissional. É, ainda, possível verificar a emersão de elementos da amostra que perseguem objetivos distintos, objetivos esses que trespassam as suas reações e vivências às medidas de política em causa. No caso das gerações mais novas de professores vislumbra-se decisões que não descartam a existência de incertezas mas que vão no sentido de uma adaptação “leal” que assegure um lugar na profissão (especialmente para aqueles que têm um vinculo precário com o sistema) ou uma adaptação estratégica baseada numa análise das oportunidades do contexto e da situação que contribua para uma melhor condição laboral. Já para os professores “veteranos”, sobretudo aqueles que se encontram fortemente vinculados a um sindicato ou associação profissional, estas transformações acabam por desmoronar a forma como percebem e fazem o seu trabalho e a sua expectativa de carreira segura, havendo uma necessidade de salvaguardar as suas identidades e agir no sentido da auto e hétero proteção profissional. É muito influente o papel do sindicalismo, não só na construção do discurso destes professores, mas também na forma de reação e vivência das reformas. A ideia de resistência dos professores com um vínculo associativo forte é essencialmente marcada por uma problematização do real e pela procura do “verdadeiro” sentido das reformas, além da construção de alternativas ou afirmação de uma cultura de contestação, ao contrário da adoção de uma estratégia de sobrevivência evidente nos restantes casos. Mas, não se adaptando aos novos papéis e padrões de trabalho, muitos professores nesta condição optam ou começam a orientar-se para a “saída”, ou seja, para a reforma antecipada. É, desta forma, que as “vozes” e as resistências não impedem que as mudanças legisladas se instalem, pelo contrário. As reformas impõem-se aos professores e, aos poucos, estes põem-se em marcha na direção contraditória aos sistemas de justificação ideológica que os professores que não podem ou não querem optar pela “saída” apresentam. Naturalizando um profissionalismo mais restrito e instrumental, num contexto de perda de prestígio e confiança social, as condições através das quais esta profissão reivindicou e alcançou determinadas prerrogativas “especiais” parecem estar a ser postas em causa.

VII. Referências bibliográficas Afonso, A. (2009). Nem tudo o que conta em educação é mensurável ou comparável. Critica à accountability baseada em testes estandardizados e rankins escolares, Revista Lusófona de Educação, 13, 13-29. Araújo, H. (1995). As professoras primárias e as suas histórias de vida: das origens aos primeiros anos de vida profissional”, Educação, Sociedade e Culturas, 3, 7-36. Ball, S. (1993). Education policy, power relations and teachers´ work. British Journal of Education Studies, 2, 106-121.

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Enquadrada nas medidas de mudança laboral da Reforma da Administração Central, que também regulamenta a Avaliação de Desempenho Docente – Decreto Regulamentar n.º 2/2008 de 10 de Janeiro. i

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Veja-se Sacristán (1995) para uma discussão relevante da indefinição das funções do professor.

Os dados apresentados nesta comunicação integram o conjunto de dados recolhidos no âmbito do projeto “Os professores do ensino público e associativismo docente em Portugal: a reconstrução de identidades e discursos” a decorrer no Centro de Investigação em Estudos Sociais do ISCTE-IUL, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. iii

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