Fragmentos do urbano na vida moderna em Belo Horizonte

July 6, 2017 | Autor: Valdeci Cunha | Categoria: Historia Intelectual, Culturas Urbanas, Belo Horizonte, História Da Cidade
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FRAGMENTOS DO URBANO NA VIDA MODERNA EM BELO HORIZONTE 1 FRAGMENTS OF THE URBAN IN MODERN LIFE IN BELO HORIZONTE Valdeci da Silva Cunha* Resumo O artigo analisa a produção textual inserida no Suplemento Literário do jornal Minas Gerais produzida em meados da década de 1960 e durante a década de 1970 sobre o lugar de Belo Horizonte em suas páginas. Nesse sentido, fez-se o uso do termo “fragmentos” na tentativa de captar momentos que informem sobre as relações entre a produção intelectual, um impresso e a cidade. Interessou montar uma espécie de mosaico dessas experiências e não a procura de uma totalidade de discursos lineares e sistematizados. Como alguém que anda pela cidade a fim de desvendá-la, a proposta é de um passeio por essa produção cultural no intuito de conhecer qual Belo Horizonte nos é dado a conhecer. Palavras-chave: Vida moderna, Belo Horizonte, Suplemento Literário Abstract The article analyzes the textual production inserted in Suplemento Literário of the newspaper Minas Gerais produced in the mid-1960s and during the 1970s on the site of Belo Horizonte in its pages. In this sense, did the use of the term “fragments” in an attempt to capture moments to report on the relationship between intellectual production, a periodical and the city. Interested mount a sort of mosaic of these experiences and not demand a totality of linear and systematic discourse. As someone who walks the city in order to uncover it, the proposal is of a ride for this cultural production in order to know what is in Belo Horizonte made known. Keywords: Modern life, Belo Horizonte, Suplemento Literário

Há incontáveis análises sobre o fenômeno da vida moderna em todo mundo. As razões para o seu relativo sucesso e a atemporalidade do interesse pelo tema podem ser respondidas de várias maneiras. Uma delas, e talvez a mais importante e central, está sintetizada naquilo que Marshall Berman traduz como um “tipo de experiência vital” 1

Este ensaio foi fruto das discussões e leituras feitas na disciplina ofertada pela Profa. Dra. Regina Helena Alves da Silva, no primeiro semestre de 2014, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, intitulada “Pensamento urbano do final do século XIX até a primeira metade do século XX”. * Doutorando em História Social da Cultura na Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected] REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015 ­ ISSN: 2357­8513

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que estaria marcada pelo tempo e espaço, “de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida”. Compartilhada por homens e mulheres em suas temporalidades, esse conjunto de experiências seria o que exatamente poderia ser designado “modernidade” (BERMAN, 1987, p. 15). Vale ressaltar que ao fincar raízes em seu caráter experiencial da vida cotidiana, essa forma de pensar a modernidade pode ser entendida como sinônimo de uma aventura, que carrega consigo, obviamente, todas as características da descoberta, dos riscos e dos perigos da empreitada. Para Berman, […] ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e frequentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando-o em nosso mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz (BERMAN, 1987, p. 13-4).2

Essas considerações são úteis como introdução para pensarmos o ponto que debruçarei neste texto, qual seja: se esse fenômeno é algo perceptível universalmente, pelo menos a partir de meados do século XIX, cabe ao historiador, também em sua temporalidade e espacialidade, se perguntar como essas características se deram em contextos específicos; como elas podem ter dialogado; quais são as rupturas e permanências. Afinal, de que modernidade estaríamos falando quando analisamos configurações históricas específicas. Para os fins deste ensaio, analisarei a produção textual inserida no Suplemento Literário do jornal Minas Gerais produzido em meados da década de 1960 e durante a década de 1970. Como primeira aproximação do tema, é importante ressaltar que verticalizei a busca no acervo do impresso tendo em vista as produções em que a cidade de Belo Horizonte foi tema ou assunto de interesse. Obviamente, essa escolha guarda limitações quanto às possibilidades de um levantamento mais exaustivo e aprofundado das publicações que tiveram lugar no Suplemento, mas acredito que ele se mostrará suficiente, provisoriamente, como um primeiro levantamento e esforço de leitura sobre o lugar de Belo Horizonte em suas páginas. Nesse sentido, faço o uso do termo “fragmentos” na tentativa de captar momentos, frames que informem sobre as relações entre a produção desses intelectuais, um impresso e a cidade. Interessa-me montar uma 2

Os usos do itálico são do próprio autor.

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espécie de mosaico dessas experiências e não a procura de uma totalidade de discursos lineares e sistematizados. Como alguém que anda pela cidade a fim de desvendá-la, a proposta é de um passeio por essa produção cultural no intuito de conhecer qual Belo Horizonte nos é dado a conhecer. Utilizarei, como “companheiros de viagem”, as análises de Walter Benjamin, Siegfried Kracauer e Georg Simmel. Desse, interessa-me mais detidamente o seu estudo sobre a metrópole e a vida mental, ou psicológica, que envolve o seu tecido de constituição e manutenção. Daqueles, suas relações construídas como observadores e analistas da vida nas cidades, como modelos de narrativa em que o espaço urbano é tomado como objeto de problematização talvez mais do que lugar para proposição direta de novas realidades. Marshall Berman, como já citado anteriormente, também faz parte desse time na medida em que, em seu clássico Tudo que é sólido desmancha no ar, tentou mostrar como as pessoas e alguns livros e ambientes expressaram e partilharam preocupações centrais da vida moderna. Sua leitura da produção de autores chaves da tradição do pensamento moderno como, por exemplo, Goethe, Karl Marx e Dostoiévski funciona como uma espécie de modelo para este pequeno ensaio. Criado no ano de 1966 como suplemento inserido no jornal Minas Gerais, órgão oficial do governo de Minas Gerais, o impresso “tornou-se espaço precioso para a expressão de escritores e artistas, de ensaístas e criadores de vanguarda, que tinham em suas páginas um território (relativamente) livre para sua expressão”, segundo relato de Márcio Sampaio (SAMPAIO, 2011, p. 4). Contando com uma equipe formada por Murilo Rubião (1916-1991), Affonso Ávila (1928-2012), Laís Corrêa de Araújo (1929-2006) e por Márcio Sampaio (1941), “[...] a redação do Suplemento passou a ser o ponto de encontro de uma boa parcela da intelectualidade belo-horizontina, um círculo aberto a todas as tendências, embora os acadêmicos se ressentissem de suas ausências nas páginas do semanário” (SAMPAIO, 2011, p. 4) Em sua redação, construía-se, paulatinamente, um importante lugar de sociabilidades, que congregava, entre os intelectuais citados acima, Emílio Moura, Henriqueta Lisboa, Bueno de Rivera, Francisco Iglesias, Zilah Corrêa de Araújo e Manoel Lobato; artistas plásticos, como Álvaro Apocalypse, Eduardo de Paula, Jarbas Juarez, Chanina, Nello Nuno e Ana Amélia.3 3

Valorizar o círculo de amizades desses intelectuais, na tentativa de recuperação de suas

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Sobre o contexto de criação do Suplemento, alguns relatos de seus criadores nos oferecem um panorama geral daquele momento nacional e, especificamente, belohorizontino. Para Márcio Sampaio, […] nos meados da década de 1960, o ambiente artístico de Minas Gerais encontrava-se em plena ebulição, com uma série de iniciativas que estimulavam artistas a trabalhar na contramão da orientação da política nacional, a qual estabelecera um programa de censura à liberdade de criação e de expressão (SAMPAIO, 2011, p. 4)

Período do governo de Israel Pinheiro, “eleito pela oposição ao regime militar”, foi dele a iniciativa da criação do Suplemento, assim como da Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP), em 1968, da Pinacoteca do Museu Mineiro e retomada da construção do Palácio das Artes. Para Affonso Ávila, […] o Suplemento surge num momento político em que Minas Gerais reage ao golpe de 64 e os grupos progressistas conseguem eleger, com maioria esmagadora, o governador Israel Pinheiro, derrotando o candidato dos militares. […] Israel Pinheiro era um homem muito aberto e inteligente, mas de temperamento um pouco explosivo, apoiou a ideia de se fazer um suplemento voltado para a divulgação da cultura em Minas. […] Fui a algumas reuniões preliminares, mas o meu trabalho foi redigir a lei que criava o suplemento (RIBEIRO, 1997, p. 136).

Para Laís Corrêa de Araújo, foi árduo o trabalho “para a valorização profissional do artista”, tanto no que diz respeito à sua remuneração quanto à “criação de um espaço onde fosse possível a liberdade de expressão”. Trabalhei efetivamente com a colaboração de pessoas importantes, fazendo leituras críticas de tudo o que recebia. […] O trabalho foi uma válvula de escape para os intelectuais brasileiros […]. O curioso em Minas é essa posição de contraditória do intelectual, que ao mesmo tempo se liga a um órgão oficial e mantém uma posição política revolucionária. [...] Existia uma ligação com a coisa oficial, e nós intelectuais não tínhamos muito campo para exercer nossas atividades, então servíamo-nos desses espaços para agir (RIBEIRO, 1997, p. 137). experiências culturais, sociais, políticas e institucionais, nos parece sugerir uma importante forma de entender as suas relações com o projeto de construção do Suplemento. Heloísa Pontes (1998), a analisar os críticos do Grupo Clima de São Paulo, entre os anos 1940-1968, balizou seu estudo em uma perspectiva comparativa, ao analisar as “estruturas de sentimentos” e a formação do ethos daquele grupo. Em seu estudo, Pontes identifica nessa primeira experiência mais consistente de grupo elementos que vão perpassar as escolhas individuais feitas posteriormente como, por exemplo, as especializações escolhidas pelos principais integrantes do grupo – destaques para Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes e Lourival Gomes Machado). Para esse empreendimento, sua perspectiva analítica se valeu do trabalho do sociólogo inglês Raymond Williams. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015 ­ ISSN: 2357­8513 10

Em testemunho feito em 2011, carregado pelas marcas da sentimentalidade e o já presente distanciamento no tempo, que não raro produzem acomodações e uma narrativa linear e sem os conflitos da época,4 Márcio Sampaio depõe que: […] de minha parte, mais ligado às artes plásticas, pude, através das páginas dos jornais, divulgar toda a produção jovem e de vanguarda, dando, contudo, a melhor cobertura para os artistas das gerações anteriores, divulgando não somente a arte mineira, como a brasileira e, na medida do possível, acontecimentos internacionais (SAMPAIO, 2011, p. 5).

Sobre o lugar conferido no impresso à arte mineira e, concomitantemente, aos artistas mineiros, Sampaio afirma que: […] desde o princípio de minha atuação como crítico, foi meu propósito centrar o trabalho sobre os artistas e as manifestações da arte mineira; isso decorreu da consciência de que a crítica do eixo Rio/São Paulo, muito mais influente, praticamente ignorava ou desconhecia a produção de Minas, que, a meu ver, apresentava qualidades no nível do que melhor se realizava nos grandes centros. […] Para os artistas jovens, abrimos a primeira página do Suplemento, os espaços de ilustração de textos e divulgação de exposições, além de possibilitar-lhes experimentações gráficas e conceituais. Foi aí que vários desses artistas começaram a realizar trabalhos remunerados e a se projetar no cenário nacional: Liliane Dardot, Madu, Eliana Rangel, Luiz Eduardo Fonseca, Carlos Wolney, Avelino de Paula, Sérgio de Paula e muitos outros (SAMPAIO, 2011, p. 5).

Depois dessa breve apresentação, voltemos ao foco de meu interesse neste ensaio: a cidade de Belo Horizonte na produção cultural inserida no Suplemento Literário.5 Em 1971, Paulo Mendes Campos6 publicou três fragmentos de impressões nas páginas do impresso em que a cidade de Belo Horizonte funcionou como cenário para sua escrita. No pequeno texto intitulado “Belo Horizonte”, recorreu ao escritor Charles Baudelaire, assim como também o fizeram Walter Benjamin e Marshall Berman, para 4

Pierre Bourdieu (2002) chamou a atenção para o que ele considerou ser “uma ilusão biográfica” o fato das narrativas retrospectivas tenderem a expor a trajetória de uma vida como um caminho linear que englobaria, em forma etapas, um começo/meio/fim. Para ele, ao contrário, “[...] os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social”, o que colocaria para o pesquisador o desafio de perceber os vários desvios nos movimentos dos indivíduos durante o percurso de sua vida social. 5 Evito aqui o uso do conceito de representação dado às complicações teórico-metodológicas que as formas de instrumentalizá-lo têm trazido para a análise histórica. Uma delas, por exemplo, é a ideia mecanicista de espelhamento do real ou de sua reflexão. Dado o tamanho reduzido deste trabalho, não faremos uso dele. 6 Paulo Mendes Campos nasceu em Belo Horizonte, em 1922, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1991. Estudou Veterinária e Direito, mas não chegou a concluí-los. Atuou, principalmente, como escritor e jornalista brasileiro. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015 ­ ISSN: 2357­8513 11

pensar as experiências urbanas da modernidade parisiense. Ampliando o escopo dos escritores, Campos inclui em sua lista Machado de Assis e Marcel Proust. Para ele, “[...] escritores urbanos, viram com desgosto que as cidades mudam mais depressa que os homens. Belo Horizonte é hoje para mim uma cidade soterrada. Em vinte anos eliminaram a minha cidade e edificaram uma cidade estranha” (CAMPOS, 1971, p. 11). Vale ressaltar que o escritor havia se transferido para o Rio de Janeiro em meados dos anos 40 e, até onde se sabe, não voltou a morar na capital mineira. Seu olhar seria, então, de um indivíduo marcado inserido espacial e temporalmente nas dimensões local-estrangeiro, favorecido pelas possibilidades de uma análise comparativa. Sobre isso, ele nos diz que “[...] para quem continuou morando lá, a amputação pode ter sido lenta, quase indolor; para mim foi cirurgia de urgência, a prestações, sem a inconsciência do anestésico” (CAMPOS, 1971, p. 11). A imagem de uma “cidade soterrada”, que sugere um contraste com uma cidade que um dia já esteve viva e pulsante, aproxima-se com o universo simbólico baudelairiano referido nos estudos acima citados. Berman, por exemplo, ao analisar as modificações feitas em Nova Iorque entre os anos de 1910 e 1970, empreendidas sob a orientação do engenheiro norte americano Robert Moses, nos diz que “[...] por dez anos, do final dos anos 50 ao início dos 60, o centro do Bronx fo martelado, dinamitado e derrubado” (BERMAN, 1997, p. 277). Como resultado, “[...] o impacto cumulativo de tudo isso é que o nova-iorquino vê-se em meio a uma floresta de símbolos baudelaireana” (BERMAN, 1997, p. 274). A ideia de ruína é outro elemento presente nas discussões destes autores. Ainda em Berman, temos que “[...] entre os muitos símbolos e imagens com que Nova Iorque contribui para a cultura moderna, um dos mais notáveis, nos anos recentes, foi a imagem da ruína e da devastação modernas” (BERMAN, 1997, p. 275). Se para Campos e Berman as ruínas parecem se manifestar como resultado negativo da ação dos homens no espaço urbano, uma perspectiva diferente parece ser sugerida por Georg Simmel. Em texto intitulado “A ruína”, Simmel parece estar mais interessado em pensála como um produto da ação da natureza, como uma resposta, à ação dos homens sobre ela. Essa inversão de sentido conferiria às ruínas o seu caráter sedutor. Para ele, “[...] o que erigiu o edifício foi a vontade humana, o que confere sua aparência atual é o poder da natureza, mecânica, rebaixador, corrosivo, demolidor” (SIMMEL, 1959, p. 3). Nesse REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015 ­ ISSN: 2357­8513 12

sentido, a ação da natureza, ao reordenar o produto da experiência humana e dar-lhe novo sentido, teria o poder de demonstrar para o homem o seu caráter também de ruína. Se a sedução da ruína estaria em sua peculiar tragicidade, para Simmel, “[…] abstraindo de outras observações e complicações, o homem como ruína é mais triste que trágico e carece daquela quietude metafísica que se insere na queda da obra material, como que a partir de um a priori profundo” (SIMMEL, 1959, p. 5). Talvez isso explique o sentimento de nostalgia, amargura e tristeza do escritor mineiro. Em nome do progresso municipal, enterraram as minhas casas; enterraram os pisos de pedra das minhas ruas; enterraram os meus bares; minhas moças bonitas; meus bondes; minhas livrarias; banco de praça; folhagens; enterraram-me vivo na cidade morta. Por cima de nós construíram casas modernas, arranha-céus, agências bancárias; pintaram tudo, deceparam as árvores, demoliram, mudaram as fachadas, acrescentaram varandas, disfarçaram de novas as casas velhas, mudaram o espaço livre, reviraram os jardins, mexeram por toda a parte com uma sanha cruenta (CAMPOS, 1971, p. 11).

Há uma melancolia nessas narrativas, misto de fragmentos das memórias de tempos sugeridos como irreversíveis e uma fatalidade do presente. A modernidade parece traduzida em uma grande perda daquilo que um dia foi entendido como um espaço mais habitável pelas pessoas situadas no espaço urbano. A degradação do espaço físico sugere a ruína do ser em suas dimensões física e psicológica. Kracauer, no texto intitulado “Dois planos”, ao narrar suas impressões sobre as modificações de uma baía em Marselha, nos sugere uma apreensão do espaço marcada por características similares. As transformações pelas quais passou esses espaços são captadas por uma narrativa que mistura fragmentos de experiências nesses lugares com uma escrita com características poéticas. Nas cavidades esponjosas do bairro portuário a fauna humana formiga e nas poças o céu está imaculado. Palácios obsoletos se transformaram em bordéis, que sobrevivem a toda galeria de ancestrais. A massa de humanos, na qual pessoas de diferentes nações se misturam, é afogada por avenidas e ruas repletas de bazares (KRACAUER, 2009, p. 54).

Paulo Mendes Campos, ao estilo flâneur, que nos rememora as experiências nas cidades de escritores como Baudelaire e João do Rio, assim descreve a sua experiência de reencontro com a capital mineira de meados da década de 1960: […] vou por Belo Horizonte: mancando. Uma perna bate com dureza no piso presente; a outra procura um apoio nas pedras antigas. […] vou andando pela paisagem nova, desconhecida, pela paisagem que não me quer e eu não entendo, quando, de repente, entre dois prédios hostis, esquecida por enquanto dos zangões imobiliários, surge, intacta e doce, a casa de Maria. […] Ah! se eles, os empreiteiros, soubessem! Se eles soubessem que aqui e ali repontam restos emocionais de minha cidade em ruínas! Se eles REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015 ­ ISSN: 2357­8513 13

soubessem que aqui e ali vou encontrando passadiços que me permitem cruzar o abismo! (CAMPOS, 1971, p. 11).

No pequeno texto intitulado “Folhas, flores e frutos” a narrativa sobre a cidade tendo como suporte a própria experiência vivida também ocupa o lugar central da escrita. Em contraponto as imagens melancólicas das “casas modernas, arranha-céus, agências bancárias” citadas na passagem acima, Campos movimenta as de uma cidade anteriormente verde, composta por “folhas, flores e frutos”. Vale ressaltar que a dicotomia entre passado e presente, progresso e tradição é traduzida por uma espécie de dialética do uso do espaço urbano vazia de síntese, ou seja, o olhar do escritor sugere a impossibilidade de convivência no mesmo espaço dos dois momentos. Isso parece reforçar a afirmação de Simmel sobre o caráter triste da ruína humana, referida anteriormente neste ensaio. Paulo Mendes nos relata que: […] passando umas férias em Belo Horizonte, tomei um bonde cujo percurso não conhecia. Ia olhando os bangalôs de um bairro novo, quando de repente, em sobressalto, disse em voz alta: é ela! E era mesmo, uma árvore, uma alta e robusta paineira que conheci ainda menino. A cidade se estendera até o limite extremo de meu mundo, a minha selva. Belo Horizonte pra mim é uma cidade de árvores que se foram. [...] Belo Horizonte era vegetal. Folhas, flores e frutos. Verde e perfumada. Percorro antes de dormir aquelas ruas compridas, os jardins iluminados pelas rosas (CAMPOS, 1971, p. 11).

Outra voz similar ao lamento de Paulo Mendes Campos pode ser verificada no poema de Dantas Motta7 intitulado “O noturno de Belo Horizonte”. Publicado no Suplemento Literário no ano de 1975, nele lemos as seguintes estrofes: O chope não me traz o desejado esquecimento/ Os insetos morrem de encontro à lâmpada/ Ou se açoitam no sofrimento destas rosas secas./ Vem do Montanhês este ar de farra oculta,/ Bem mineira, e um trombone, atravessando/ A pensão “Wankie”, próxima à Empresa Funerária,/ Acorda os mortos desolados na Rua Varginha./ Uma lua muito calma desce do RolaMoça/ E se deita, magoada, sobre os jardins da Praça,/ O telhado do Mercado Novo, o bairro da Lagoinha (MOTTA, 1975, p. 6).

Antes de prosseguirmos, um dado curioso sobre esse poema de Dantas Motta. Em 1924, um grupo de intelectuais visitou Belo Horizonte em uma “caravana” destinada a conhecer (e reconhecer) o valor de Minas Gerais na tradição cultural brasileira. Foi o momento de coroação e exaltação do lugar do Estado, e por extensão da 7

José Franklin Massena de Dantas Mota nasceu bem Carvalhos, sul de Minas, em 1913, e faleceu em 1974. Formou-se em 1938 na Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais e exerceu a advocacia tanto em sua região natal como no Vale do Paraíba. Viveu sempre em Aiuruoca, mas manteve contato com escritores no Rio, São Paulo e Belo Horizonte.

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capital mineira, na modernidade nacional. Entre os integrantes, estavam os paulistas Mário e Oswald de Andrade. Mário, fascinado pela capital mineira, 8 escreveu um poema também intitulado “Noturno de Belo Horizonte”, no mesmo ano. Nele, podemos ler: Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos,/ Calma do noturno de Belo Horizonte.../ O silêncio fresco desfolha das árvores/ E orvalha o jardim só./ Larguezas./ Enormes coágulos de sombra. O polícia entre rosas.../ Onde não é preciso, como sempre.../ Há uma ausência de crimes/ Na jovialidade infantil do friozinho./ Ninguém./ O monstro desapareceu./ Só as árvores do mato-virgem/ Pendurando a tapeçaria das ramagens/ Nos braços cabindas da noite./ Que luta pavorosa entre floresta e casas.../ Todas as idades humanas/ Macaqueadas por arquiteturas históricas/ Torres torreões torrinhas e tolices/ Brigaram em nome da?/ Os mineiros secundam em coro:/ – Em nome da civilização!/ Minas progride./ […] Cheiro fecundo de vacas,/ Pedreiras feridas,/ Eletricidade submissa.../ Minas Gerais sáxea e atualista/ Não resumida às estações-termais!/ Gentes do Triângulo Mineiro, Juiz de Fora!/ Força das xiriricas das florestas e cerrados!/ Minas Gerais, fruta paulista.../ […] Alegria da noite de Belo Horizonte!/ Há uma ausência de males (ANDRADE, 1968, p. 6-7).9

O cotejo das duas produções com títulos homônimos sugerem que Motta teria procedido a uma releitura do poema produzido por Mário de Andrade. Se considerarmos o lugar de destaque que o escritor paulista ocupou como uma referência para os modernistas mineiros, tanto por sua produção, amizade e contribuições em publicações desse caráter, essa aproximação parece se sustentar.10 Por ora, esse contato interessa-me como um índice para pensarmos nas mudanças de concepção sobre a cidade de Belo Horizonte. A euforia, o entusiasmo e o otimismo presentes no poema de Mário são invertidos em Motta. Se a cidade da pintada na década de 20 é calma, brilhosa, com “silêncio fresco” e com ausência de crimes, a da década de 70 sufoca as pessoas que nela vivem. A música que vem de suas ruas acordam “mortos desolados”. Se para Motta a lua “deita magoada sobre os jardins da Praça”, no poema do escritor paulista “o silêncio fresco desfolha das árvores/ E orvalha o jardim só”. Se tomarmos exemplos na 8

Há alguma referência sobre uma possível visita de Mário a Minas Gerais, em 1919, momento que ele parece ter feito algumas pesquisas em cidades do interior do Estado, mas não se sabe ao certo se ele teria visitado Belo Horizonte. 9 Encontramos esse poema no livro Poesias Completas do escritor, datado do ano de 1955. Não descobrimos, até o momento, qual a data de sua primeira publicação. Para este ensaio, uso o publicado no Suplemento Literário, de 1968. 10 Na história intelectual de Minas Gerais (ou dos intelectuais mineiros) pode-se facilmente localizar o lugar de destaque ocupado pelos escritores das primeiras décadas do século XX. Concentradas em torno dos diálogos com o modernismo estreado em São Paulo, depois da Semana de Arte Moderna de 1922, inicia-se em Belo Horizonte a reunião de intelectuais e escritores ligados a quatro revistas literárias: A Revista (1925), Electrica (1927), Verde (1927) e a leite criôlo (1929). A revista Verde, entretanto, foi feita pelos moços da cidade de Cataguases, cidade ao norte de Minas Gerais, e concentrou a atenção do nascente meio de escritores, tanto do Estado quando fora dele. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015 ­ ISSN: 2357­8513 15

pintura brasileira, aquele estaria próximo da cidade pintada por Oswaldo Goeldi, onde o homem é sempre colocado na sua pequenez, em ambientes escuros e solitários, demonstrando a enorme opressão em que ele vive em meio a uma cidade triste e melancólica. A cidade de Mário, ao contrário, lembra mais os trabalhos de Tarsila do Amaral, sempre cheios de cores vivas e onde é sempre possível notar a ausência de conflito e a presença do progresso como elemento positivo.11 Esse otimismo com a cidade de Belo Horizonte, a partir dos principais nomes do modernismo paulista, também pode ser visualizado em uma entrevista dada por Oswald de Andrade, no mesmo momento da criação do poema de Mário sobre a capital. Em uma entrevista publicada no jornal Diário de Minas, ao ser perguntado sobre a arquitetura de Belo Horizonte, ele afirmou: Não lhe posso negar que a primeira impressão que tive da capital não foi das melhores. Vê-se na sua construção uma desordem banal copiada de todos os estilos, como infelizmente em São Paulo e no Rio. O que salva esse aspecto caótico e neológico da vossa capital é a sua provisoriedade. Toda a pastelaria dos edifícios atuais desaparecerá pouco a pouco, absorvida pelo progresso formidável que se anuncia e realiza em Minas. O cimento armado matará com certeza os Versalhes de estuque. E, como a cidade foi possantemente rasgada e o seu local muito bem escolhido, os arranha-céus se instalarão admiravelmente aqui. Assim, tenho a esperança de que Belo Horizonte virá a ser uma das mais belas cidades do século XX. Sendo do seu tempo, entrará por isso mesmo na tradição (ANDRADE, 1990, p. 16-7).

Quase como uma negação da realização desse destino manifesto para a Belo Horizonte do futuro, a pena desses escritos nos oferece um quadro desolador de sua vida urbana. Sugerem que a modernidade por antecipação prognosticamente colocada com euforia no início do século XX por escritores e intelectuais, tanto mineiros quanto paulistas, podem não ter acontecido. Há os que afirmam ter ocorrido em Belo Horizonte uma “modernidade tardia”, mas não entrarei nesse mérito agora. 12 Basta, apenas, afirmar que essa forma de apreender as realidades complexas de nossa formação história apresenta um erro metodológico, qual seja, o de localizar o passado histórico nacional “devedor” de um “processo civilizador europeu”. Diferente daquela “ausência de males” verificada por Mário de Andrade, Motta parece ser incapaz de emitir um olhar positivo sobre a cidade. O universo de palavras 11

Uma pequena parte das obras de Oswaldo Goeldi e da Tarsila do Amaral pode ser consultada na Enciclopédia Itaú Cultura Artes Plásticas disponível na internet no endereço eletrônico http://ow.ly/y19pi. 12 Essa discussão pode ser encontrada, por exemplo, no livro Modernidades tardias (1998), fruto de pesquisas produzidas no projeto Modernidades Tardias no Brasil, desenvolvido pelo Centro de Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015 ­ ISSN: 2357­8513 16

que ele escolhe para designar a sua experiência em contato com a realidade de sua “experiência vital”, como se referiu Berman, se traduz em imagens que sugerem um estado de melancolia e niilismo. Tísicos boiam que nem defuntos na solidão/ Dos Guaicurus. O próprio noturno de Belo Horizonte/ Tem lá suas virtudes: nas pensões mais imorais/ Há sempre um Cristo manso falando à Samaritana./ As mulheres do Norte de Minas, uma de Guanhães,/ Duas de Grão-Mogol e três da cidade do Serro/ Mandam ao ar esta canção intolerável/ Que aborrece até mesmo o poeta Evágrio (MOTTA, 1975, p. 6).

Walter Benjamin, ao se referir que seria com Baudelaire que, pela primeira vez, Paris se tornou objeto da poesia lírica, entende que o uso que o escritor faz da melancolia foi alegórico. Para Benjamin, “[...] essa poesia não é nenhuma arte nacional e familiar; pelo contrário o olhar do alegórico a perpassar a cidade é o olhar estranhamento”. Tópico constante na sua apreensão da experiência de Baudelaire como um narrador da vida urbana parisiense, sua forma de captar o urbano seria através do “[...] olhar do flâneur, cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida vindoura do homem da cidade grande” (BENJAMIN, 1985, p. 38-9). Os sujeitos que se manifestam no discurso apresentam-se imersos em um estado de solidão ao percorrem a cidade. O que parece estar sempre em jogo é a quase impossível adequação de seu ser nesse espaço e um sentimento de impotência misturado e confundido com o de aceitação e conformidade com esta condição. Simmel, em “A metrópole e a vida mental”, sugere que: [...] a razão mais profunda para qual a metrópole conduz ao impulso da existência pessoal mais individual – sem embargo de quão justificada e bem sucedida – parece-me ser a seguinte: o desenvolvimento da cultura moderna é caracterizado pela preponderância do que se poderia chamar de o “espírito objetivo” sobre o “espírito subjetivo” (SIMMEL, 1973, p. 23).

Essa forma de “reação” aos estímulos, dilemas e condições da vida na cidade parece próximo do que Simmel entendeu como uma “atitude blasé”. Ela resultaria dos “estímulos contrastantes” que, em rápidas mudanças e compressão concentrada, seriam impostos aos nervos. “Disto também parece originalmente jorrar a intensificação da intelectualidade metropolitana” (SIMMEL, 1973, p. 16). Pobre Evágrio, perdido na estação de Austin./ Triste e duro como uma garrafa sobre a mesa./ Entanto nada indica haja tiros, facadas, brigas/ De amantes na Rua São Paulo, calma e sem epístolas./ O Arrudas desce tranquilo, grosso e pesado,/ Carregando cervejas, fetos guardados, rótulos de/ Farmácia, águas tristes refletindo estrelas (MOTTA, 1975, p. 6). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015 ­ ISSN: 2357­8513 17

Se, como afirmou Simmel, a vida na metrópole extrai do homem, “[...] enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de consciência diferente da que a vida rural extrai”, uma reserva possível às formas de vida na cidade urbana que é sugerido pelo poema é a conformidade às suas regras. Revoltar-se ou reagir parece ser uma atitude que comportaria um ônus, físico e psicológico, excessivamente alto para a sua condição individual e solitária. Como finaliza o Motta, “[...] tudo, ao depois, continuará irremediavelmente/ Como no princípio. Somente, ao longe,/ Na solidão de um poste, num fim de rua,/ O vento agita o capote do guarda” (MOTTA, 1975, p. 6).

Entretanto, essa não foi a única forma de se apreender a temporalidade e a espacialidade belo-horizontina pelas páginas do Suplemento Literário de acordo com o recorte escolhido para este ensaio. Houve alguns relatos de escritores e intelectuais que positivaram a experiência dos anos 60 e 70 comparando-as ou não com os anos iniciais da construção e transferência da capital para a cidade de Belo Horizonte. Abordarei alguns casos desse tipo de relação. Alphonsus de Guimaraens Filho,13 em texto de 1961, mas publicado no Suplemento em 1976, também faz um exercício narrativo-poético de rememorar a cidade vivida nos anos 20. Em “Belo Horizonte, década de 20 (de um diário escrito em Brasília)”, o escritor, próximo da estratégia de Paulo Mendes Campos, parte de uma comparação entre dois momentos da capital mineira cotejados com a experiência em outra cidade. Como Campos, infância é um dos lugares onde as formas de contraponto ganham conforto e terreno sólido para a projeção para os dias do presente. “Minha experiência em Brasília de imediato me transporta a outra, essa vivida na infância”, nos afirma Guimaraens Filho. Seu olhar para o desenvolvimento da cidade, de seu progresso traduzido nos melhoramentos urbanos, ficam evidentes quando ele se refere a Belo Horizonte dos anos 20. Mas só de pensar em pistas asfaltadas, no que já se fez quanto à pavimentação tanto das avenidas como das áreas das superquadras e das artérias que conduzem às cidades satélites me faz pensar também no 13

Afonso Henriques de Guimarães Filho nasceu em Mariana, em 1918, e faleceu no Rio de Janeiro, em 2008. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da UFMG, em 1940. Em literatura, teve uma atuação como poeta.

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privilégio dos que nasceram ou estão se criando nestes tempos. Me acode o desejo de dizer-lhes: – Poeira, amigos, poeira era em Belo Horizonte, na Belo Horizonte da década de 20, não esta cidade que dentro em pouco estará pavimentada de sorte a evitar o pó que tanto ofende a vossa pituitária. Mas não digo nada; antes me limito a confrontar a Belo Horizonte da minha infância e esta Brasília da minha madureza (GUIMARAENS FILHO, 1976, p. 8-9).

Suas memórias do tempo vivido na capital mineira ainda são ativadas por uma imagem curiosa, que está ligada diretamente com o sensível da experiência. “O vento de Belo Horizonte! Nunca mais vivi, em qualquer cidade, sensação análoga à que me trouxe o vento da minha meninice” (GUIMARAENS FILHO, 1976, p. 8-9). Funcionando em um duplo sentido, ou seja, como elemento objetivo do passado e uma alegoria do tempo passado, o vento sugere uma ideia de fugacidade e instabilidade próxima daquele título escolhido por Berman (1987) para o seu livro, que por sua vez foi pego de empréstimo do Manifesto do Partido Comunista, de Friedrich Engels e Karl Marx. Ângelo Oswaldo,14 em 1972, publicou um artigo intitulado “Belo Horizonte: uma semana de artistas modernos”. Nesse período, ocupava os cargos de secretário e membro da comissão de redação. Vale destacar que o texto trouxe uma fotografia da recepção de Mário de Andrade na estação central Belo Horizonte, de 1939. Na foto constam, dentre outros, João Camilo de Oliveira Torres, Murilo Rubião, Guilhermino César, Marques Rebelo, João Alphonsus e Ciro dos Anjos. Composto 50 anos depois do evento da semana de 22, é sintomático na argumentação de Ângelo Oswaldo a releitura da história da modernidade mineira tendo como objetivo explícito realocar a vida literária da capital mineira na memória do modernismo brasileiro. […] Belo Horizonte também teve uma Semana de Arte Moderna, da qual participaram muitos daqueles que agitaram o Teatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 22. Não a Semana retardatária de 1944, quando artistas modernos ainda escandalizaram a cidade com a exposição famosa no Edifício Mariana. Foi em 1924, portanto dois anos depois, na última semana de abril. A cidade, sem ter chegado aos trinta anos, era então aglomerado tranquilo de burocratas, que atestavam estar, entre tanta poeira e árvores, a nova Capital de Minas. Aquela semana de abril representou marco decisivo para que a vertente mineira do modernismo fosse aberta (OSWALDO, 1972, p. 12).

Curiosamente, não foi a tão lembrada exposição de arte moderna de 1944 o exemplo a partir do qual Belo Horizonte teria atingido a sua maioridade cultural e 14

Ângelo Oswaldo de Araújo Santos nasceu em Belo Horizonte, em 1947, e é jornalista, advogado e gestor público. Formou-se em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, em 1971, e cursou o Instituto Francês de Imprensa, em Paris (1973/1975). Foi crítico literário do “Diário de Minas” e editor do Suplemento Literário do Minas Gerais.

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moderna.15 Pelo contrário, o crítico considera que esse teria sido um evento “retardatário”, apesar de sugerir ainda certo escândalo por parte da produção dos artistas envolvidos no evento. Aqui também é evidente a influência positiva dos modernistas paulistas da década de 20. Aliás, é importante ressaltar que o crítico em nenhum momento se preocupou de citar algum tipo de contribuição dos mineiros para o que ele chamou de “semanas de artistas modernos”. A única referência aos escritores que aqui viviam os colocou quase que como meros acompanhantes dos visitantes. Ao mencionar a chegada deles, comenta que “Carlos Drummond de Andrade e Emílio Moura foram encontrá-los à porta do Grande Hotel, na Rua da Bahia” (OSWALDO, 1972, p. 12). Ainda sobre a importância dos ilustres convidados, que é referido no texto mais de uma vez como “embaixada”, que antes de chegar em Belo Horizonte haviam visitado as cidades de São João del Rei e Tiradentes, afirmou que: No Grande Hotel, hospedavam-se os políticos e fazendeiros abastados que vinham a Belo Horizonte. No dia seguinte ao da chegada do hóspede, ela já poderia soletrar seu nome nas páginas do “Minas” ou do “Diário”. A seção “Pelos Hotéis” dava notícias de todos, e quem não ficasse em hotel também aparecia no jornal; havia o registro dos passageiros que a Central trazia, bem como dos que embarcavam (OSWALDO, 1972, p. 12).

Ainda segundo Oswaldo, “[...] dominava-os a ideia de descobrir o passado nacional, a linha evolutiva do processo de criação brasileiro” e teria sido desse encontro com as “cidades históricas” que Tarsila teria encontrado as cores de sua nova pintura e Oswald de Andrade o tema dos poemas que formam o “Roteiro de Minas”. 16 Diferentemente dos artigos analisados até agora, e por fim, acredito ser importante recuperar a valorização de alguns textos publicados no Suplemento de críticos que se preocuparam em valorizar algum aspecto da cultura produzida em Minas Gerais e/ou por escritores ou artistas mineiros. Escolhemos, dado o limite deste ensaio, a recepção do escritor Avelino Fóscolo, nascido em Sabará.17 No ano de 1967, Oneir Baranda18 publicou um longo artigo intitulado “Avelino Fóscolo e o nascimento de Belo Horizonte”. Dividido em duas partes, publicado nos

15

Esse parece ser um ponto pacífico nos estudos que se debruçam sobre o tema como, por exemplo, em Ribeiro (1997), Silva; Ribeiro (1998) e Vivas (2012). 16 Parte integrante do livro de poesia Pau-Brasil, em 1925, publicado pela primeira vez em Paris. 17 Avelino nasceu no ano de 1864, em Sabará, e faleceu em Belo Horizonte, em 1944. Escreveu os romances A mulher (1890), O caboclo (1902), O mestiço (1903) e A capital (1903). 18 Consegui reunir poucas informações sobre Oneir Baranda. Consta que ele foi professor da UFMG, em meados da década de 1960, e tem um estudo sobre povoamento de núcleos urbanos no Vale do Jequitinhonha. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015 ­ ISSN: 2357­8513 20

números 20 e 21 do Suplemento daquele ano, foi uma das raras vezes que conseguimos encontrar o interesse do impresso por Fóscolo ou por suas obras. Para além desse artigo, localizamos a publicação de um trecho de seu livro O caboclo (1902), em seu número 531 de 1976, e um pequeno ensaio de 1997, por Letícia Malard, em que ela, curiosamente, faz apenas uma pequena apresentação do escritor repetindo os mesmos lugares comuns sobre a sua obra e trajetória, por exemplo, que ele tinha um olhar visionário e ser uma “testemunha ocular e ao mesmo tempo literária da época da construção e dos primeiros tempos da capital mineira” (MALARD, 1997, p. 12-3). Para Baranda: O romance “A Capital”, de Avelino Fóscolo, publicado em 1903, é um depoimento importante para a compreensão do ambiente de Belo Horizonte, na época da instalação da nova capital de Minas Gerais. Testemunha ocular dos acontecimentos – a escolha do local, os trabalhos da Comissão Construtora, os tempos difíceis iniciais –, o autor transmite-nos experiências pessoais, transformando o livro num valioso documentário da história social mineira do fim do século (BARANDA, 1967, p. 2).

Sua leitura do romance de Fóscolo se preocupou em acompanhar passo a passo o desenvolvimento estrutural de sua composição textual. Cotejando a sua escrita e análise com elementos constituintes da história de Belo Horizonte do começo do início da década de 20, o ensaio de Baranda, por extensão, também se apresenta, hoje, como um importante registro para pensarmos como a década de 60 leu obras escritas no período de inauguração da capital mineira. Para Baranda, [...] suas personagens principais [do romance A capital], que cristalizam os tipos de comportamento das várias camadas de população envolvidas na mudança, adquirem as dimensões de símbolos, no entrechoque do gigantismo do empreendimento com a pequenez dos problemas quotidianos (BARANDA, 1967, p. 2).

Paralelo às suas análises, somos informados, por exemplo, que o único divertimento popular era o “passeio domingueiro no Parque Municipal, ainda em formação” e que a “população se transformava, perdia o típico ar moroso do mineiro para se comportar como metropolitano”. Não sabemos de onde ele retirou essas informações, se indiretamente da narrativa de Fóscolo ou se do livro Memória histórica e descritiva de Abílio Barreto, citado numa nota de rodapé, mas sem referência direta no texto. Ainda para Baranda, mesmo com os problemas com a sua fundação – a “inauguração trouxe também mudanças na economia [...] mas as condições de vida REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015 ­ ISSN: 2357­8513 21

eram penosas, a crise atingindo a todos” – , o romance terminava com uma “visão apocalíptica de Belo Horizonte, mas Avelino Fóscolo vislumbra uma redenção futura pela indústria que a rejuvenescera” (BARANDA, 1967, p. 2). Em sua conclusão, Avelino Fóscolo, “mais do que um romancista”, seria “um verdadeiro cronista do quotidiano da infância da cidade e a leitura de sua obra impõe-se a todos aqueles que estudam a história social e econômica da terra mineira”. Não por outra razão “sua reedição faz[ia]-se necessária e urgente”, pois traria o mérito de “preencher uma grande lacuna da bibliografia dos estudos estaduais” (BARANDA, 1967, 19

p. 2).

Assim, a título de encerramento, acredito ter sido possível abordar algumas formas de perceber e lidar com o espaço urbano em alguns textos publicados no Suplemento Literário em um período da história de Belo Horizonte ainda carente de estudos sobre a sua produção cultural, qual seja, os anos de 1960 e 70. Retomando o início deste ensaio, os exemplos analisados me foram úteis para uma primeira reflexão sobre as diferentes vozes que se entrecruzaram nas formas de percepção do espaço urbano da capital mineira. Ora por uma vertente niilista e trágica, ora por um olhar otimista e vislumbrante, essas respostas à modernidade movimentaram temporalidades e demandas importantes como elementos integrantes de sua constituição como fenômeno paradoxal e contraditório. Como dito no início desse ensaio, compete ao historiador, então, tentar captar as suas formas e traduzi-las em um narrativa que dê conta dessa sua condição.

Fontes Suplemento Literário do jornal Minas Gerais. O acervo completo está disponível no endereço eletrônico http://www.letras.ufmg.br/websuplit/Lib/html/WebSupLit.htm Referências bibliográficas ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão. Entrevistas. 1ª edição. São Paulo: Editora Globo, 1990. BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: Flávio R. Kothe (Org.). Walter 19

Curiosamente, com uma rápida olhada em sebos brasileiros, no site da Estante Virtual, nos damos conta que não existe nenhum exemplar de A capital disponível para a compra. Obviamente, quando há algum, o preço é elevado.

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Benjamin: sociologia. 1ª edição. São Paulo: Ática, 1985. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia das letras, 1987. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. 2ª edição. Fundação Getúlio Vargas: Rio de Janeiro, 2002, p. 183-191. BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris do século XIX: o espetáculo da pobreza. 1ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1982. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. 1ª edição. São Paulo: Cosac Naify, 2009. PONTES, Heloísa. Destinos mistos. Os críticos do Grupo Clima em São Paulo (19401968). 1ª edição. Companhia das Letras: São Paulo, 1998. PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. 17/12. 427p. Tese. UNICAMP, IFCH, 1999. RIBEIRO, Marília Andrés. Neovanguardas: Belo Horizonte, anos 60. 1ª edição. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1997. SILVA, Fernando Pedro da; RIBEIRO, Marília Andrés. Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte. 1ª edição. Belo Horizonte: C/ARTE, Rede Minas, 1998. SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida urbana. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p. 11-25. ______________. A ruína [1959]. Há uma tradução disponível no endereço eletrônico http://www.scribd.com/doc/51820334/A-Ruina-Georg-Simmel VIVAS, Rodrigo. Por uma história da arte em Belo Horizonte: artistas, exposições e salões de arte. 1ª edição. Belo Horizonte: C/Arte, 2012.

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