Fragmentun, nº 45: abr.-jun. 2015 – “Homenagem a José Luís Jobim: trocas culturais, estatuto da autoria e textualidades contemporâneas”.

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- 45 HOMENAGEM A JOSÉ LUÍS JOBIM: TROCAS CULTURAIS, ESTATUTO DA AUTORIA E TEXTUALIDADES CONTEMPORÂNEAS João Cezar de Castro Rocha (Org.)

Fragmentum / Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Artes e Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras. Laboratório Corpus. N. 1 (set. 2001)-. Santa Maria, 2001-. Disponível em: www.ufsm.br/fragmentum Trimestral ISSN 1519-9894 (versão impressa) e-ISSN 2179-2194 (versão online) N. 45 (abr./jun. 2015). Homenagem a José Luís Jobim: trocas culturais, estaturo da autoria e textualidades contemporâneas, organizado por João Cezar de Castro Rocha. 1. Literatura - Periódicos. 2. Linguística – Periódicos. I. Rocha, João Cezar de Castro (org.). CDU 801 Ficha catalográfica elaborada por Fernando Leipnitz CRB-10/1958 Biblioteca Central da Universidade Federal de Santa Maria Editora do Programa de Pós-Graduação em Letras Programa de Pós-Graduação em Letras - Universidade Federal de Santa Maria Prédio 16, CE, sala 3222 – Bloco A2 Campus Universitário - Bairro Camobi CEP 97105-900 – Santa Maria, RS – Brasil Fones: 55 3220 8359 – 55 3220 8025 Email: [email protected] Site: www.ufsm.br/ppgletras Página no Facebook: PPGL Editores Fragmentum www.ufsm.br/fragmentum – [email protected] Data da Efetiva Circulação Dezembro de 2015 Impresso na Imprensa Universitária da UFSM Avenida Roraima, 1000 – Prédio 6 Campus Universitário - Bairro Camobi CEP 97119-900 - Santa Maria – RS Fone: (55) 3220-8249 Apoio

CAPES – Edital Pró-Equipamentos Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PRPGP/UFSM – Edital Pró-Revistas Pró-Reitoria de Extensão – PRE/UFSM

fragmentum Publicação do Laboratório Corpus – Laboratório de Fontes de Estudos da Linguagem, do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM Ano da Primeira Publicação 2001 Política Editorial Fragmentum é um periódico científico publicado trimestralmente nas versões impressa (ISSN 1519-9894) e on-line (ISSN 2179-2194) e destinado a pesquisadores e estudantes em nível de pós-graduação. O periódico divulga textos produzidos por pesquisadores que desenvolvem, como escopo e/ou resultado de pesquisas, as seguintes problemáticas: a) Na Linguística, questões enunciativas e/ou discursivas, tendo por eixo diretor o campo do saber sobre a história da produção do conhecimento linguístico, a partir da análise de instrumentos linguísticos bem como de outras textualidades alicerçadas pela História das Ideias Linguística em sua relação com a Análise de Discurso de linha francesa; b) Na Literatura, estudos comparados que têm evidenciado a relação do texto literário não apenas com seu contexto de produção como também com outras artes, mídias, saberes e formas, aproximação esta que articula artes e conhecimentos em suas especificidades, demonstrando processos de leitura, compreensão, interpretação e análise envolvidos no acesso a obras de arte e à recepção de um público especializado. Admitem-se textos em português, francês, inglês ou espanhol. Não são aceitos textos de pesquisadores que não tenham a formação mínima de doutor. Acadêmicos de doutorado podem submeter textos à avaliação, desde que em coautoria com o professor orientador. A partir do segundo semestre de 2015, entrará em vigor uma nova política editorial. Com periodicidade semestral, cada novo dossiê temático será organizado por dois pesquisadores e constituído de um conjunto de artigos somados a uma resenha e à divulgação, em formato de resumo, de duas teses já defendidas, que apresentem relevância para a temática em foco. Afora essa estrutura preestabelecida, Fragmentum se reservará o direito de publicar entrevistas e outras textualidades inéditas, de caráter artístico e ensaístico, quando convier. Originais em francês, português e espanhol deverão apresentar título, resumo e palavras-chave na língua em que foi escrito o texto e em inglês. Para originais em inglês, título, resumo e palavraschave deverão ser apresentados em inglês e em português.

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Editores-Chefes Enéias Farias Tavares, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Larissa Montagner Cervo, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Editoras-Gerentes Larissa Montagner Cervo, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Simone de Mello de Oliveira, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Editores de Língua Estrangeira Amanda Eloina Scherer, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Enéias Farias Tavares, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Editora Técnica Taís da Silva Martins, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Conselho Editorial Alcides Cardoso dos Santos, UNESP, Araraquara, SP, Brasil Ana Zandwais, UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil Beatriz Maria Eckert-Hoff, UDF, Brasília, DF, Brasil Bethania Mariani, UFF, Niterói, RJ, Brasil Caciane Souza de Medeiros, UNIVAS, Pouso Alegre, MG, Brasil † Carme Regina Schons, UPF, Passo Fundo, RS, Brasil Cristiane Dias, UNICAMP, Campinas, SP, Brasil Eduardo Guimarães, UNICAMP, Campinas, SP, Brasil Enéias Farias Tavares, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Eni Puccinelli Orlandi, UNICAMP, Campinas, SP, Brasil Flavio Felicio Botton, UFABC, Santo André, SP, Brasil Flávio Loureiro Chaves, UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil Gema Sanz Espinar, Universidad de Madrid, Madrid, Espanha Gerson Luiz Roani, UFV, Viçosa, SP, Brasil Gesualda Rasia, UFPR, Curitiba, PR, Brasil Gisela Biancalana, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Gladys B. Morales, Universidad Nacional de Río Quarto, Argentina Héliane Kohler, Université de Franche-Comté, França Irène Fenoglio, Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, França Isabel Cristina Ferreira Teixeira, UNIPAMPA, Bagé, RS, Brasil José Horta Nunes, UNICAMP, Campinas, SP, Brasil José Luís Jobim de Salles Fonseca, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Juan Manuel López Muñoz, Universidad de Cadiz, Cadiz, Espanha Juliana Steil, UFPEL, Pelotas, RS, Brasil Larissa Montagner Cervo, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Lucília Maria Sousa Romão, USP-Ribeirão, Ribeirão Preto, SP, Brasil Maria Cleci Venturini, UNICENTRO, Guarapuava, PR, Brasil Maria da Glória Bordini, UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil Maria José R. Faria Coracini, UNICAMP, Campinas, SP, Brasil Marilene Weinhardt, UFPR, Curitiba, PR, Brasil

Mary Neiva Surdi da Luz, UFFS, Chapecó, SC, Brasil Orna Messer Levin, UNICAMP, Campinas, SP, Brasil Paulo Ricardo Kralik Angelini, PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil Regina Zilberman, UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil Silmara Dela Silva, UFF, Niterói, RJ, Brasil Vanise Gomes de Medeiros, UFF, Niterói, RJ, Brasil Véronique Daleth, USP, São Paulo, SP, Brasil Produção Editorial Capa e Projeto Gráfico Originais Mirian Rose Brum-de-Paula, UFPEL, Pelotas, RS, Brasil Simone de Mello de Oliveira, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Projeto Gráfico Atual Leandro Cardoso Oliveira, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Produção Gráfica João Moro de Oliveira, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Revisão Viviane Teresinha Biacchi Brust, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Kelly Guasso, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Editoração Eletrônica Marcos Soares, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Indexação Portal de Periódicos da CAPES Rede Cariniana (IBICT) Portal de Periódicos da UFSM Latindex - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Google Acadêmico

SUMÁRIO Apresentação Quase um depoimento: trocas culturais e assimetria simbólica João Cezar de Castro Rocha

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Artigos Orestes, Hamlet e a constituição infame do tribunal do júri Augusto Sarmento-Pantoja

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Mitos gregos no teatro brasileiro dos últimos 30 anos  Carlinda Fragale Pate Nuñez

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O risco de D. Quixote - saber e não saber, é e não é - Marcus Alexandre Motta

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A profissionalização do escritor no Brasil do século XIX Marisa Lajolo & Regina Zilberman

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Para ler a teoria: o efeito de desconstrução e o futuro da crítica Nabil Araújo

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No meio do caminho “Crítica” / Diagnóstico / 2015 Hans Ulrich Gumbrecht

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Depoimentos Discurso de recepção de José Luís Jobim no PEN Clube do Brasil Antonio Carlos Secchin

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O furacão e as assimetrias dos fluxos culturais Benjamin Abdala Junior

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Um depoimento sobre José Luís Jobim Maria Elizabeth Chaves de Mello

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José Luís Jobim de Salles Fonseca: o senhor dono do baile Germana Salles

137

Homem de letras, intelectual, líder Regina Zilberman

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José Luís Jobim Roberto Acízelo Quelha de Souza

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Duas palavras e um testemunho Sonia Netto Salomão

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QUASE UM DEPOIMENTO: TROCAS CULTURAIS E ASSIMETRIA SIMBÓLICA*1 João Cezar de Castro Rocha (UERJ / CNPq)

O sentido de uma homenagem Este número especial de Fragmentum presta uma merecida homenagem a José Luís Jobim, professor, pesquisador e ensaísta dos mais respeitados e, sobretudo, dos mais queridos pela comunidade acadêmica. Além de sua relevante produção, Jobim também é reconhecido pela sua incomum capacidade de realização, evidenciada durante sua bem-sucedida presidência da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) - 2006-2007 - e comprovada tanto em sua participação em associações, no Brasil e no exterior, quanto em sua colaboração frequente para órgãos de fomento e pesquisa. De fato, os textos e depoimentos aqui coligidos abordam a contribuição de José Luís Jobim em todos esses campos. Nas breves observações a seguir, proponho um exame de sua obra, a fim de identificar os temas recorrentes e as preocupações que definiram o seu percurso intelectual. Um caminho O último livro de José Luís Jobim, Literatura e cultura (JOBIM, 2013), relaciona-se intrinsecamente com o projeto descortinado em seus títulos anteriores e, ao mesmo tempo, anuncia novos caminhos. Talvez seja mais correto dizer, em uma perspectiva inspirada no olhar cubista, que se trata de buscar um ângulo novo para iluminar o mesmo conjunto fundamental de questões. Principio, portanto, pelo primeiro livro de José Luís Jobim, Literatura e encenação, originalmente sua dissertação de mestrado. A premissa que estimulou seu trabalho já traz as marcas da reflexão que seria aprofundada nos livros seguintes: Pode haver Encenação sem Literatura Dramática (como também Literatura *1Texto parcialmente escrito para publicação na revista Brazil/Brasil.

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Dramática sem Encenação): a história nos fornece exemplos concretos disso. Há tipos de Encenação que tradicionalmente não recorrem a texto, como a Mímica por exemplo (JOBIM, 1980, p. 87).

Nesse trabalho, Jobim procurou entender a diferença fundamental entre, digamos, a permanência possibilitada pelo texto escrito e a radical transitoriedade da performance, que se esgota no próprio ato de sua realização. Nas palavras do autor: [...] se tomarmos uma mesma obra de arte literária dramática, verificaremos, por exemplo, que um encenador do século XVI poderá ter feito dela uma leitura diferente da leitura de um encenador do século XX, o que poderá ocasionar encenações diferentes entre si. Mas dentro destas variantes, haverá sempre uma invariante: o texto dramático, do qual partiram estas encenações (Idem, p. 137).

Destaque-se a sutil dialética: é precisamente o caráter “fixo” do texto o que assegura a metamorfose das encenações. Essa oscilação entre polos opostos caracteriza os exercícios críticos do autor, estimulando o princípio de uma radical contextualização dos lugares de enunciação discursiva – como mostrarei adiante. Por isso mesmo, no seu livro seguinte, A Poética do Fundamento (JOBIM, 1996), é preciso ler o título com uma pitada de sal. Ora, ao contrário do que uma leitura apressada poderia sugerir, não se tratava de buscar os cimentos de uma poética dos gêneros ou, em sentido ainda mais ontológico, de encontrar os elementos para uma definição atemporal da experiência literária. Na avaliação exata de Luiz Costa Lima: A História se historicizou a si mesma: passou a contar com a própria temporalidade das categorias com que opera. O livro que Jobim ora publica pressupõe essa mudança radical (LIMA, 1996, p. 10).

Tal orientação atravessa os ensaios do livro, mas se explicita no texto dedicado ao exame dos pressupostos da “História da Literatura”; instância ideal para surpreender a historicização do próprio objeto de estudo: O que a própria História da Literatura nos mostra é que houve sucessivas e diferentes representações daquilo a que chamamos ‘literatura’. Ou seja, a nossa civilização ocidental concebeu de modos diferentes o que denominou ‘literatura’: dependendo do momento, do ponto de vista, do lugar a partir do

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qual se fale, ela pode não ser a mesma coisa (JOBIM, 1996, p. 67, destaques do autor).

Trata-se de passagem-chave para compreender o percurso crítico de José Luís Jobim. De um lado, a dimensão propriamente temporal anuncia a diferença de sentidos, diferença essa produzida de acordo com contextos particulares de enunciação, assim como informada pela Weltanschaaung definidora deste ou daquele momento histórico. Assim, a operação crítica exige a reconstrução de ambientes históricos determinados, levando-se em consideração o regime discursivo dominante à época. De outro lado, Jobim adiciona uma nova ordem de contextualização, agora voltada para a identificação rigorosa do lugar a partir do qual se fale. Naturalmente, não se trata de investigação geográfica, porém do reconhecimento das hierarquias que atribuem autoridade aos discursos. Desse modo, a contextualização radical é a marca da reflexão de José Luís Jobim. No livro seguinte, Formas da teoria (JOBIM, 2002), a dupla inscrição, espaciotemporal, se aprofundou, radicalizando ainda mais a contextualização dos objetos culturais, histórica e espacialmente investidos de significação. Ademais, neste livro, Jobim adiciona uma nova variável à reflexão acerca dos lugares e dos tempos dos discursos: a importância da materialidade dos meios de comunicação. Tal aspecto, aliás, é observado por Hans Ulrich Gumbrecht: [...] todas aquelas idas e vindas continuam a ser permeadas e tornadas complexas pelas realidades de um novo ambiente de meios, cuja ambiguidade só se tornou mais poderosa (GUMBRECHT, 2002, p. 13).

Particularmente no ensaio “A produção textual e a leitura: entre o livro e o computador”, Jobim amplia seu horizonte, incorporando um elemento novo na equação espaciotemporal que dominou seus livros anteriores. Vejamos uma passagem-chave nessa constelação de temas: Considerando que o sistema de produção e circulação de textos em meio digital, até por ser muito posterior ao tradicional sistema de circulação em livros, paga tributo à tradição do livro como um objeto relevante, pode ser mais fácil perceber o quanto a literatura e a produção textual no computador se esforçam em fazer referência, quando não reduplicar, aspectos da palavra impressa em livros (JOBIM, 2002, p. 221).

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Vale dizer, a equação agora reúne três fatores: tempo, espaço e materialidade dos meios de comunicação. Assim, a tarefa do analista equivale à arqueologia de formas, formas essas compreendidas num tempo determinado, associadas a lugares específicos de enunciação, invariavelmente incorporando a dinâmica própria do meio de comunicação dominante na enunciação. Ampliando o horizonte No último livro, Literatura e cultura: do nacional ao transnacional, essas questões convergem para o que se pode considerar o livro, até agora, mais bem-sucedido de José Luís Jobim1. Vejamos como seus “campos de força”, retomando o vocabulário do livro anterior, e corretamente destacado no prefácio de Hans Ulrich Gumbrecht, concentram os aspectos discutidos até aqui. Essa dimensão foi sugerida pelo autor, ao recordar a ênfase de seu trabalho: [...] formulei questões sobre como, por que, para que, a partir de que princípios e com que termos conceituais estes processos foram produzidos e recebidos (JOBIM, 2013, p. 9-10, destaques do autor).

O princípio de uma radical contextualização ajuda a entender a estrutura do livro: os primeiros quatro capítulos tratam fundamentalmente do caráter histórico dos conceitos de passado, história literária, o “novo”, identidade nacional, e, por fim, discute-se o alcance e o significado da propalada “crise da cultura”. Nos três capítulos seguintes, Jobim lida, sobretudo, com deslocamentos temporais e suas consequências estéticas e cognitivas. Por fim, do oitavo ao décimo capítulo, o exame de ângulos diversos do conjunto da obra de Mário de Andrade permite desenvolver estudos de caso, a fim de aprofundar as intuições expostas nos capítulos anteriores. Exemplar desse cruzamento de preocupações é o oitavo capítulo, “O original e o próprio, o derivado e o impróprio: Mário de Andrade e as trocas e transferências literárias e culturais”. O parágrafo de abertura esclarece a posição do ensaio no projeto do livro (a citação é longa, mas ajuda a Nesta nota não tratarei de A crítica literária e os críticos criadores no Brasil (Rio de Janeiro: Editora Caetés / EdUERJ, 2012), pois me concentro na análise dos livros que lidam direta ou indiretamente com o processo de radical contextualização. 1

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sintetizar o rumo da reflexão proposta por José Luís Jobim): No primeiro capítulo, já fiz uma primeira abordagem da correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade nos anos vinte do século passado. [...] Mário de Andrade também produz uma teorização – que podemos observar emergindo na década de vinte – sobre como se operam as trocas e transferências literárias e culturais. E esperamos demonstrar que suas ideias sobre o sentido dos processos de apropriação e transformação do material “alheio” – tanto no sentido mais pessoal, de um poeta para outro, quanto no sentido mais abrangente, de uma literatura nacional para outra – ainda são pertinentes e atualizadas no quadro das discussões contemporâneas sobre estes temas (JOBIM, 2013, p. 151, destaques do autor).

Chegamos, assim, à dimensão mais complexa da atual reflexão do autor. Vale dizer, além da associação do plano espaciotemporal com a materialidade dos meios de comunicação, Jobim agora se pergunta sobre os modos concretos de assimilação do alheio na confecção do próprio. Desse modo, ele busca inaugurar uma reflexão de “mão dupla”, na qual importe especialmente a compreensão dos contextos nos inúmeros processos possíveis de trocas culturais. Em outras palavras, Jobim volta sua preocupação para o contexto de recepção, valorizando o processo seletivo que leva à adoção desta ou daquela ideia. Por que tal ou qual sistema filosófico foi assimilado em lugar de outras inúmeras possibilidades? Como caracterizar os fluxos e circuitos que definem os sistemas literários? Vale dizer, mais do que destacar a “origem” dos sistemas simbólicos – o que geralmente conduz à eterna busca de “influências” – Jobim se pergunta pelas torções e adaptações que ocorrem em todo processo de trocas culturais. As teorias também viajam, conforme propôs Edward Said em célebre ensaio2. Jobim parece estar de acordo com a premissa, mas deseja mapear os caminhos e identificar os atalhos, pois essa é uma viagem cujo ponto de chegada é mais importante do que o porto de partida. Esse deslocamento de perspectiva é muito prometedor. Trata-se, sobretudo, de compreender o caráter dinâmico do fenômeno de intercâmbio envolvendo culturas diversas. Devemos, pois, aguardar os próximos livros de José Luís Jobim, a fim de acompanhar o aprofundamento das hipóteses apresentadas em Literatura e cultura: do nacional ao transnacional.

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SAID, 2000, p. 195-217.

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Referências GUMBRECHT, Hans Ulrich. “Prefácio”. In: JOBIM, José Luís. Formas da teoria. Sentidos, conceitos, políticas campos de força nos estudos literários. Rio de Janeiro: Caetés, 2002. JOBIM, José Luís. Literatura e encenação. In: SOUZA, Roberto Acízelo Quelha de; JOBIM, José Luís. Teoria Literária: ensaios. Rio de Janeiro: Cronos, 1980. ______. A Poética do Fundamento. Ensaios de Teoria e História da Literatura. Niterói: EdUFF, 1996. ______. Formas da teoria. Sentidos, conceitos, políticas campos de força nos estudos literários. Rio de Janeiro: Caetés, 2002. ______. A crítica literária e os críticos criadores no Brasil. Rio de Janeiro: Caetés / EdUERJ, 2012. ______. Literatura e cultura: do nacional ao transnacional. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. LIMA, Luiz Costa. “Apresentação”. In: JOBIM, José Luís. A Poética do Fundamento. Ensaios de Teoria e História da Literatura. Niterói: EdUFF, 1996. SAID, Edward. Traveling Theory. In: BAYOUMI, Mustafa; RUBIN, Andrew (Ed.). The Edward Said Reader. New York: Vintage Books, 2000.

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ARTIGOS

ORESTES, HAMLET E A CONSTITUIÇÃO INFAME DO TRIBUNAL DO JÚRI ORESTES, HAMLET AND THE INFAMOUS CONSTITUTION OF THE JURY 

Augusto Sarmento-Pantoja Universidade Federal do Pará, Faculdade de Ciências da Linguagem, Abaetetuba, PA, Brasil

Resumo: O tribunal do júri será revisitado a partir do estudo sobre o teor trágico e a constituição do infame, enquanto ser injustiçado por sua condição subalterna, por meio de releituras das peças de teatro As Eumênides (458 a.C.), de Ésquilo, e Hamlet (1599-1601), de Willian Shakespeare. Realizaremos um confronto entre as personagens nobres dessas peças, Orestes e Hamlet, e a personalidade subalterna do jovem (sem nome) julgado no filme Doze homens e uma sentença (1957), dirigido por Sidney Lumet, apoiados nos estudos de Michel Foucault em A verdade e as formas jurídicas e nos escritos de Giorgio Agamben, em Profanações. Identificamos que a tragédia clássica, por apontar o nascimento do tribunal do júri, promove um julgamento afetado por relações de poder geradoras de medidas diferentes para criminosos diferentes, o que provoca certo conflito em relação à constituição do conceito de infâmia. Já a tragédia barroca tem a necessidade da confissão do suspeito como prerrogativa para legitimar a vingança, sendo que tal legitimação promove nova visão sobre a condição infame do julgado. Por último, o filme de Sidney Lumet concebe a falência da justiça, que delega o poder condenatório aos que “nada ou pouco sabem” acerca dos códigos jurídicos; por isso, são influenciados por sua idiossincrasia e pela própria encenação performática do tribunal. As três obras acabam por discutir, de formas distintas, várias maneiras de entendermos aspectos infames junto à imagem do tribunal do júri. Palavras-chave: trágico; infâmia; tribunal do júri; cinema; teatro. Abstract: The jury was revisited from a study on the tragic content and the creation of the infamous as a person wronged by a subordinate status through reinterpretations of the plays The Eumenides (458 BC) by Aeschylus, and Hamlet (1599-1601) by William Shakespeare. We held a confrontation between the noble characters of these plays, Orestes and Hamlet, and the subordinate personality of the (unnamed) young man tried in the movie 12 Angry Men (1957), directed by Sidney Lumet, supported in studies by Michel Foucault in Truth and juridical forms and writings by Giorgio Agamben in Profanations. We identified that classic tragedy, for pointing out the birth of the jury, promotes a trial affected by power relations that institute different measures for different offenders, which causes some conflict regarding the constitution of the concept of infamy. On the other hand, baroque tragedy has the need of the suspect’s confession as a prerogative to legitimize revenge, and such legitimacy promotes a new view on the infamous condition of the tried man. Finally, the movie by Sidney Lumet conceives the failure of justice, which delegates the convicting power to those who “know little or nothing” about the legal codes. Therefore, they are influenced by their idiosyncrasy and their own performative enactment of the court. The three works end up discussing, in different ways,

fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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many forms to understand infamous aspects with the image of the jury. Keywords: tragic; infamy; jury; cinema; theater.

I Entendamo-nos bem. Não ponho eu mira na posse do que o mundo alcunha gozos. O que preciso e quero é atordoar-me. Quero a embriaguez de incomportáveis dores, a volúpia do ódio, o arroubamento das suas aflições. Estou curado das sedes do saber; de ora em diante às dores todas escancaro est’alma. As sensações da espécie humana em peso, quero-as eu dentro de mim; seus bens, seus males mais atrozes, mais íntimos, se entranhem aqui onde à vontade a mente minha os abrace, os tateie; assim me torno eu próprio a humanidade; e se ela ao cabo perdida for, me perderei com ela. (Goethe1).

Sentir, mirar, gozar. Essa multiplicidade está imersa na leitura do teor trágico disposta no Fausto de Goethe, pois leva o homem a questionar a sua própria natureza humana em busca de um eu interior que possa congregar dentro de si os antagonismos. Esses, por sua vez, se encontram de certa forma também presentes em Hamlet2, de Shakespeare, ao imortalizar seu monólogo sobre a impossibilidade do conhecimento interior. Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne é solução para almejar-se. Morrer.., dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando ao fim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa ideia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente. Se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? (SHAKESPEARE, 2000, p. 64-65).

GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto: Quadro V, Cena I. Tradução Antônio Feliciano de Castilho. Clássicos Jackson. v. 15. Aveiro-Portugal: Universidade de Aveiro; W. M. Jackson Editores, 1956. p. 135. Arquivo disponível em meio virtual em:< http://www.superdownloads. com.br/download/159/fausto-goethe/>. 1

Todas as notas a seguir da obra de Willian Shakespeare, Hamlet: o príncipe da Dinamarca, Trad. F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Virtualbooks; M&M, 2000. Disponível em meio virtual em: . 2

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Essa seria a natureza do homem moderno em relação à eterna dúvida entre a apatia e a resistência, uma espécie de simplificação do trágico moderno. Mas qual seria então a função da vida em meio à calamidade de sua longitude? Sem dúvida, com Fausto e Hamlet compreendemos que o trágico moderno perfilha diferenças fundamentais para com sua mãe helênica, mas também exprime algumas aproximações. As diferenças compõem um quadro interessantíssimo quando nos detemos em pensar a tragédia enquanto forma estética, isso porque a introspecção nela presente leva o homem a buscar, no seu interior, as respostas para os conflitos expressos ao seu redor. Por conseguinte, há várias possibilidades para a formalização do desejo de autoconhecimento. Em Goethe, para que haja a concretização do gozo, será necessário estar imerso no atordoamento, na embriaguez, na volúpia, no ódio. De certo modo, Hamlet colabora nessa proposição de Goethe ao considerar necessário um estado onírico para que a busca seja possível, pois seria “mais nobre para a alma suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou amar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir?” (SHAKESPEARE, 2000, p. 64). Daí a necessidade dos estados oníricos para curar tais sofrimentos, sejam eles por meio da morte, golpe final; do sono, estado de latência; do sonho, a cura ilusória. A tentativa de compreender o porquê de si e/ou o porquê do outro marca a tragédia tanto nas instâncias míticas do Olimpo quanto naquelas em que os heróis estão mais preocupados em construir as defesas de seus próprios crimes. Se, por um lado, as tragédias clássicas são marcadas pela insensata disputa e pela necessidade de defender e/ou condenar os mortais, de outro lado, a tragédia moderna, para Nietzsche, apresenta a constituição de um tribunal para o deleite moral do espectador, que deve sentir prazer em assistir a punição imposta aos heróis ou a seus acólitos. O castigo arbitrado desdobra-se por meio de um ato individual de sua vontade, gerando, por conseguinte, a formação de um estado interior de culpa, a qual, por sua vez, será compelida à punição, que tarda, mas não falha para esses criminosos. Mas de quais crimes e de quais criminosos falamos? Fiodor Dostoiévski (1998), em Crime e Castigo, reflete sobre a natureza do crime, considerando que existem dois lados de uma mesma moeda, um em que não se pode produzir o crime; outro, em que os crimes são toleráveis. Vejamos o diálogo de Raskólhnikov, Razumíkhin e Porfíri. - Como? Que vem a ser isso? O direito ao crime?! Mas não será por culpa do ambiente deletério! - perguntou Razumíkhin um pouco assustado. Não, não; não é nada disso - respondeu-lhe Porfíri. - O que está em que no seu artigo o senhor divide os homens em ordinários e extraordinários. Os

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homens vulgares deviam viver na obediência e não têm direito a infringir as leis, pelo próprio fato de serem vulgares. Mas os extraordinários têm direito a cometer toda a espécie de crimes e a infringir as leis de todas as maneiras, pelo próprio fato de serem extraordinários. Se não estou enganado, pareceme que era isso o que o senhor dizia (DOSTOIÉVSKI, 1998, p. 281).

Dois pesos, duas medidas! Temos aqui uma prática cada vez mais cotidiana nos ditames da lei, promotora de inúmeras críticas à justiça, fazendo com que se deflagrem, no âmbito literário, debates continuados acerca da natureza transgressora e criminosa da humanidade. A justiça busca reagir contra essa problemática quando concebe a constituição do tribunal do júri, que delega ao cidadão comum o arbítrio da condenação. A constituição de um júri daria outra roupagem para o julgamento pelo fato de garantir a possibilidade de outros olhares, outros ouvidos, outras impressões no difícil ofício de julgar. Mas até que ponto esse júri está comprometido com tal incumbência? De qual júri falamos? De quais comprometimentos e para com quem? Considerando os aspectos até aqui expostos tomamos a partir de então o comprometimento do júri como um constituinte importante no debate sobre as representações do crime no campo artístico e ético. Com base nisso, analisaremos o filme Doze homens e uma sentença e também as tragédias Eumênides e Hamlet.

II A diferenciação entre homens perpassa por suas diferentes naturezas, pois sua posição social será outorgada como paradigma, presente desde as tragédias clássicas, especialmente quando é colocada em cena a tarefa do tribunal. Para tanto, trazemos até aqui o caso de Orestes, na constituição do tribunal, em Eumênides, e o do filme Doze homens e uma sentença. Os réus são diferentes, um representa o homem extraordinário (Orestes), e o outro, um homem ordinário (sem nome). Orestes é um criminoso confesso, mas pertence à cúpula do poder. Já o réu do filme é um submerso, pobre, morador de uma favela. Orestes, de certo modo, é beneficiado ao infligir as leis naturais, como o matricídio, pelo fato de seu crime ser assegurado por Apolo e pela própria cultura helênica. A narrativa sofre uma virada quando Orestes passou a ser defendido pelos que deveriam julgá-lo (As Parcas), o que vai afastá-lo do rótulo de infame.

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Veio de Zeus, segundo tu mesmo disseste, a determinação oracular a Orestes para vingar o assassinato de seu pai sem nada impor em relação à sua mãe? (ÉSQUILO, 2010, p 176)

Orestes foi autorizado pelo Olimpo e, nesse sentido, fica demarcado que as medidas da lei serão aplicadas sobre os ditames da sensatez e da ponderação, ou seja, sem a condenação imediata indicada aos homens vulgares, infames ou ordinários. Ao pensarmos em Crime e Castigo, em Eumênides, e em Doze homens e uma sentença, observamos um modelo de tribunal que está a subtrair-se naquele em que o tratamento diferenciado aos homens se fundamenta na possibilidade de interpretar a lei de acordo com certas conveniências e padrões, o que se dá por parte de quem detém o poder do julgamento. Isso, em muitas situações, acaba sendo utilizado como artifício para burlar essa lei, contribuindo para o aprofundamento dos modelos sociais apoiados na manutenção dos abismos classistas. Utilizando como argumento a existência de diversas formas de verdade nas muitas maneiras de se ler a história, Foucault (2002) destaca em A verdade e as formas jurídicas: [...] a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebe e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história – me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividades, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade (FOUCAULT, 2002, p. 11).

A verdade e a história que, nas práticas jurídicas, a priori, são inquestionáveis e irrefutáveis, precisarão ser revistas e ressignificadas com a constituição do júri, pois não será possível pensar no julgamento sem essas representações e sem multiplicidades de interpretações e intérpretes dos autos do crime. Ésquilo, em Eumênides, propõe a primeira cena de um julgamento; nesse caso, amparado pelo poder de persuasão dos deuses, Palas Atena e Apolo. A narrativa discute o poder de convencimento da deusa Palas Atena, posta como a juíza do caso. As Parcas, nessa tragédia, serão as representantes da acusação contra Orestes, assassino de sua mãe (Clitemnestra) por honra fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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a seu pai (Agamêmnon) - este, anteriormente, responsável pelo sacrifício de sua filha (Ifigênia) em oferenda aos deuses, com intuito de garantir proteção na empreitada sobre Tróia. Durante a narrativa, o crime de Orestes não será negado, nem escondido, pelo contrário, será justificado e defendido pelos deuses por se tratar de um crime com uma justificativa tenaz, a reparação por causa do assassinato do pai de maneira vil. Ao mesmo tempo, a morte de Clitemnestra é desprezada. Vários motivos podem colaborar com tal abordagem para com a mulher, entre elas, destacamos os laços consanguíneos. A narrativa de Ésquilo considera que a mãe ou a mulher possui o papel de geradora e não de genitora; dessa forma, a morte da mãe, ou de qualquer outra mulher, não significaria um crime de sangue, porque: Aquele que se costuma chamar de filho não é gerado pela mãe - ela somente é a nutriz do germe nela semeado -; de fato, o criador é o homem que a fecunda; (ÉSQUILO, 2010, p. 177-178)

Em sua arguição em defesa de Orestes, Apolo pormenoriza o crime de Orestes e apoia sua vingança e a condenação de Clitemnestra pela morte de Agamêmnon, pois, nesse caso, a mulher seria aquele ser ordinário, que não tem direito de descumprir a lei, mesmo que o crime praticado por Clitemnestra fosse para vingar a morte de sua filha Ifigênia, sacrificada por Agamêmnon. Vejamos a defesa de Apolo: Sim, veio, pois é totalmente diferente a morte de um herói ilustre, respeitado por ser o detentor do cetro instituído graças à vontade divina; mais ainda: ele foi atingido por uma mulher não com um arco excepcional de longo alcance, desses usados pelas bravas amazonas, e sim da forma insidiosa que ouvireis, tu, Palas, e vós, os juízes impolutos, sentados nesta corte para decidir com vossos votos a questão em julgamento. O marido voltava de uma guerra longa, depois de vencer quase todas as batalhas; sua mulher o recebeu com falso amor, e levou-o a banhar-se; quando ele saía da banheira sinistra, ela o envolveu num longo manto e num instante o abateu, preso naquele pano cheio de bordados 22

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como se fosse uma armadilha sem saída. Foi este o fim ignóbil de um herói sem par, (ÉSQUILO, 2010, p. 176)

A tragédia clássica em questão diferencia homem e mulher diante de seu crime. Entretanto, questionamo-nos se realmente seria possível vêlos como seres infames. Certamente não, se pensarmos nos parâmetros da época; mas, atualizando seus crimes, facilmente teríamos como chamá-los assim. Obviamente, tomando as devidas reservas quanto ao tempo, ao espaço e à função estética desses crimes. Apesar de diferentes, conseguem produzir o incômodo necessário ao questionamento do tribunal como uma forma abjeta de justiça, justamente por ser afetado pela ideia de diferenciação entre os homens, o que precede ao próprio julgamento. Tais diferenciações existentes tomam os argumento de Apolo no anseio de diferenciá-los e defender Orestes. Nesse sentido, a interpretação dos crimes de filho e mãe segue a lógica do valor e da função das personagens no universo social grego. A morte de seu pai, de forma pífia, não seria aceita por se tratar de um herói de alto quilate; por esse motivo, isso seria inconcebível a um herói: “depois de vencer quase todas as batalhas; sua mulher o recebeu com falso amor, e levou-o a banhar-se; quando ele saía da banheira sinistra, ela o envolveu num longo manto e num instante o abateu” (ÉSQUILO, 2010, p. 176). Contrastando com a condição feminina e materna de Clitemnestra, para Apolo eles não possuem a mesma função social, tanto que: [...] ela, como uma estranha, apenas salvaguarda o nascituro quando os deuses não o atingem. Oferecer-te-ei uma prova cabal de que alguém pode ser pai sem haver mãe. Eis uma testemunha aqui, perto de nós - Palas, filha do soberano Zeus olímpico -, que não cresceu nas trevas do ventre materno; alguma deusa poderia por si mesma ter produzido uma criança semelhante? De minha parte, Palas, sábio como sou, darei glória a teu povo e à tua cidade; quanto a Orestes, que chegou até aqui como teu suplicante, fui seu condutor até a frente de teu templo e tua imagem. (ÉSQUILO, 2010, p. 178)

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A defesa de Apolo não se limita a questionar o valor da mulher e da mãe para a manutenção da sociedade grega; ele apela para a responsabilidade dos deuses para com os homens, apontando que tanto Atena possui motivos suficientes para defender Orestes quanto Apolo, isso porque o jovem assassino é um súdito exemplar para com os deuses, em especial para com a deusa da justiça. Desse modo, o julgamento feito por Atena, enquanto juíza desse tribunal, mostra-se tendencioso, uma vez que a própria juíza também será defensora do réu. Para firmar a garantia de absolvição de Orestes, restalhe convencer as Parcas, principais perseguidoras do réu, da inocência do jovem. Vejamos como isso se dá: Coro Jamais possa a discórdia insaciável vociferar possessa na cidade, e o pó da terra nunca mais absorva o sangue escuro de seus próprios filhos por causa de paixões inspiradoras de lutas fratricidas oriundas da ânsia irresistível de vingança que leva os homens à destruição! Possam as criaturas, ao contrário, trazer contentamento umas às outras, unânimes no amor e no rancor! Esta é a cura de males sem número que afligem a existência dos mortais. Atena Poder-se-á dizer que descobristes a via dos desejos amistosos? Vossos rostos esquálidos prometem grandes vantagens para este povo. Se vosso amor responde ao seu amor e fordes veneradas para sempre, mostrar-vos-eis unânimes ao mundo, levando minha terra - esta cidade pelos caminhos retos da justiça. (ÉSQUILO, 2010, p. 192)

A estratégia da deusa da justiça compreende a extrema valorização da importância das Parcas na governança sobre os homens, reestruturando, assim, sua posição no discurso. De acusadoras e perseguidoras de Orestes, passam a aceitar o crime diante do apaziguamento da violência. Nesse sentido, seria fundamental o arrependimento dos homens na busca de que eles possam “trazer contentamento umas às outras, unânimes no amor e no rancor! Esta é a cura de males sem número que afligem a existência dos 24

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mortais” (ÉSQUILO, 2010, p. 192). O convencimento será cultivado por Atena junto às Parcas, por meio da difusão de sua vaidade e da promessa de homenagem em público. As Parcas são seduzidas pela vaidade e, em nome dela, mudam de atitude; cooptadas por Atena, deixam os caminhos da condenação e constroem um discurso de júbilo: O povo preferido por Atena acaba de ganhar a paz aqui para a felicidade de seus lares, e assim vemos selar-se a união entre as Parcas e Zeus onividente! (ÉSQUILO, 2010, p. 194)

III Saindo da esfera das tragédias clássicas propriamente ditas, temos em Hamlet outro caso de constituição do júri. Dessa vez, o acusador busca o convencimento do criminoso para que confesse seu delito em público, pois, somente desse modo, poderá ter legitimidade para cumprir sua promessa de vingança. Diferente do que acontece com Orestes, Hamlet não é o criminoso, mas deseja sê-lo. Tornar-se criminoso possui, assim como acontece com Orestes, a necessidade de justificativa; neste caso, a justificativa se faz com a confissão dos matadores de seu pai. A confissão de um crime em Hamlet garante o direito de vingança sem culpa, sem piedade. Mas acusar e culpar obriga o protagonista a recorrer aos caminhos jurídicos. É nesse sentido que dizemos que Shakespeare recorre à encenação do crime, usando atores que recuperam a versão desconhecida do crime contra o pai de Hamlet: Hoje há espetáculo ante o rei, com uma cena igual às circunstâncias da morte de meu pai, como eu te disse. Quando chegar essa passagem, peço-te que com todas as forças de tua alma observes a meu tio. Se seu crime não se manifestar ante um discurso, é que era alma penada o que nós vimos e mais negras as minhas fantasias que a forja de Vulcano. Observa-o bem. Hei de os olhos cravar-lhe no semblante; juntaremos depois nossos juízos para julgarlhe o aspecto (SHAKESPEARE, 2000, p. 71).

Hamlet deixa claro que busca produzir uma espécie de efeito catártico contra seu tio, que, diante da recuperação da cena primeva do assassinato, ficaria tomado de culpa ao assistir, diante si, o que esconde como verdade. A elucidação do crime e das circunstâncias em que ele se deu será possível graças à conversa de Hamlet com o fantasma de seu pai, revelando que seu fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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algoz ocupa o trono da Dinamarca. Chamamos aqui atenção para o fato de que as duas narrativas utilizam uma estratégia curiosa para recuperar o testemunho catastrófico das narrativas de assassinato, a saber, a incorporação de uma personagem fantasmagórica, vinda do além. O fantasma do Rei em Hamlet e O fantasma de Clitemnestra em Eumênides retornam de um outro mundo, imbuídos da missão de “acordar” os representantes da justiça contra seus assassinos, na primeira narrativa Hamlet; na segunda, o Coro das Fúrias, como elucida o Fantasma de Clitemnestra: Dormis profundamente! Qual a serventia de sonolentas como vós? Por vossa causa sou vilipendiada no mundo dos mortos, que não cessam de me humilhar qualificando-me injuriosamente de assassina, lá, vagando envergonhada em meio a tantas sombras! [...] Continuais dormindo e não vos comoveis com meu enorme sofrimento!O criminoso, o matricida Orestes, desapareceu! (ÉSQUILO, 2010, p. 151-152)

E do fantasma do Rei: Sou a alma de teu pai, por algum tempo condenada a vagar durante a noite, e de dia a jejuar na chama ardente, até que as culpas todas praticadas em meus dias mortais sejam nas chamas, ao fim, purificadas. [...] Escuta, Hamlet! Se algum dia amaste teu carinhoso pai... [...] Vinga o seu assassínio estranho e torpe. [...] Mas escuta, nobre mancebo! A cobra que peçonha lançou na vida de teu pai, agora cinge a coroa dele. (SHAKESPEARE, 2000, p. 35-36)

Verifica-se nas duas falas que os fantasmas retornam para revirar os brios de seus defensores para que possam realizar a vingança a contento. No entanto, só o fantasma do Rei terá sucesso em sua empreitada. Clitemnestra, por ser mulher, não terá sua vingança atendida. Claro que esse não será o único motivo para que a vingança não ocorra, pois, nesse caso, temos uma vingança sobre vingança, em um contexto em que irá predominar o poder patriarcal sobre o maternal. Outro ponto em comum expresso nas referidas narrativas será o teor testemunhal presente na voz subterrânea dos fantasmas. O testemunho do 26

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assassinato, contado pela voz superstes da vítima, não terá outra maneira de revelar os detalhes de sua morte e apresentar uma nova versão dos fatos, contrapondo aos discursos oficiais, a não ser essa. Sabemos, entretanto, que o narrador superstes, para Benveniste (1995), representa não só o evento catastrófico por ele vivido, mas também a possibilidade de ser o testemunho de si mesmo, reelaborando sua própria experiência trágica. Nas tragédias aqui analisadas, nem um dos dois são sobreviventes, mas sim seus espectros, porém transfigurados, como se fossem testemunhas de suas próprias mortes, já que saem do limbo para promover o questionamento da verdade e da história. Manter-se no fato catastrófico, ser parte de um passado que permanece presente é o que os condena à condição fantasmagórica. A metáfora do fantasma, por sua vez, refere-se àquele que está no entremezo, no não lugar, vivo e morto, presente e ausente. Todas essas adjetivações podem ser perfeitamente entendidas nos diversos narradores superstes, mesmo aqueles que estão vivos e sobreviveram. Em Eumênides, a narradora de sua tragédia possui em si o peso de seu próprio crime, diferentemente do fantasma em Hamlet, que, seguindo a argumentação de Dostoievski, representa o ser extraordinário, que será descrito por Shakespeare, por meio de Hamlet, como “um rei tão bom, que, confrontado com este, era Apolo ante um sátiro... Tão terno para a esposa, que ao próprio vento obstava de bater-lhe no rosto com violência” (SHAKESPEARE, 2000, p. 24). As qualidades de seu pai contrastam com a sua dor e com a necessidade do luto, especialmente ao questionar o contraste entre o seu sofrer e o de sua mãe. Seu sofrer era tão intenso a ponto de pensar em sua própria morte: HAMLET: Oh, se esta carne sólida, tão sólida, se desfizesse, fundindo-se em orvalho! Ou se ao menos o Eterno não houvesse condenado o suicídio! Ó Deus! Ó Deus! Como se me afiguram fastidiosas, fúteis e vãs as coisas deste mundo! Que horror! Jardim inculto em que só medram ervas daninhas, cheio só das coisas mais rudes e grosseiras. Chegar a isso! Morto há dois meses! Não, nem tanto... Dois? (SHAKESPEARE, 2000, p. 24).

Ao contrário, sua mãe infligira os preceitos do luto ao se casar com seu tio, em tão pouco tempo após da morte de seu pai. Uma espécie de prenúncio de que havia algo de errado com aquela relação: E um mês depois... Paremos. Fragilidade, nome de mulher... Só um mês, sem ter gasto ainda os sapatos com que o corpo seguiu do meu bom pai, qual Níobe, só lágrimas. Sim, ela - Ó céu! Um animal que é destruído da faculdade da palavra, certo choraria mais tempo! - desposada! pelo irmão de

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meu pai, mas que tem tanto dele tal como eu de Hércules. Num mês, antes que o sal das lágrimas tão falsas secassem de seus olhos tumefeitos estar ela casada! Oh! pressa iníqua de subir para o tálamo incestuoso! Não pode acabar bem... Mas despedaça-te, coração; é mister ficar calado (SHAKESPEARE, 2000, p. 24).

A incerteza ainda se faz presente, pois Hamlet, nesse momento da narrativa, ainda não possui os dados que possam nutrir sua desconfiança; por isso, tem necessidade de promover a confissão do rei, por meio da culpa proporcionada pela encenação dos atores. Consternado pela cena, o rei, sozinho no quarto, diz: Está podre o meu crime; o céu já o sente. A maldição primeira pôs-lhe o estigma: fratricida. Rezar, não me é possível, muito embora o pendor siga à vontade; a culpa imana vence o belo intento. Tal como alguém que empreende dois negócios ao mesmo tempo, mostro-me indeciso sobre qual inicie, acontecendo vir ambos a perder. Se esta maldita mão de sangue fraterno se cobrisse, não haveria chuva suficiente no céu, para deixá-la como a neve? Para que serve a Graça, se não serve para enfrentar o rosto do pecado? E a oração, não contém dupla virtude, de prevenir a queda e obter completo perdão para os que caem? Alço os olhos. Meu crime já passou; mas, que modelo de oração servirá para o meu caso? Perdoai-me o crime monstruoso e horrendo? (SHAKESPEARE, 2000, p. 83).

A cena dentro da cena, estratégia metateatral elaborada por Hamlet para pressionar seu tio a se autodelatar, surtiu o efeito desejado. Mas nem tudo ocorre como planejado pelo jovem, já que a confissão não é realizada em público, pois o rei se afugenta em um dos quartos do castelo e, no momento que se encontra só, declara sua culpa. Contudo, o fato de a confissão ter sido realizada passa a ser suficiente para o desencadeamento das ações vingativas de Hamlet em favor de seu pai assassinado. A tragédia finaliza com a morte de todo o trono dinamarquês por meio de uma espécie de envenenamento coletivo, preparado pelo Rei contra Hamlet, mas que acaba atingindo a todos. Crime, acidentes, peripécias! Todos tiveram seu fim exemplar, infame, mortal.

IV A sala do júri é um espaço que pertence à modernidade. E quando pensamos em um tribunal moderno, devemos lembrar que a cena do julgamento aparece apenas como introito e dá lugar a um debate que fica às escuras quando se trata da sala do júri. Além disso, quase nada sabemos

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sobre o que acontece nesses espaços de julgamento, pois o que vem a público são apenas os resultados desses debates, ou seja, a culpa ou a inocência, que, ao se transformarem em sentenças, se tornam, quase sempre, inapeláveis e irreparáveis. No caso do filme Doze homens e uma sentença, encontra-se em debate a pena capital. Desse modo, a condenação do suposto homicida fatalmente o levará à cadeira elétrica. Essa película questiona a natureza das provas, das sentenças, das evidências. Nesse sentido, põe-se em dúvida toda a cena do tribunal, pois os fatos podem ser criados e recriados; por isso, não podemos deixar de lado a análise de como são apresentados e de quem apresenta os fatos, ao mesmo tempo em que ele se desloca contra quem tais fatos se apresentam. A isenção da justiça, do juiz, dos advogados e principalmente do corpo de jurados ganha evidência, já que a perspectiva cinematográfica proposta por Sidney Lumet gera a quebra das fronteiras entre o tribunal e a sala do júri, cujo interior será revelado ao expectador. A narrativa de Doze homens e uma sentença fundamenta-se assim no questionamento das evidências. Seu discurso pauta-se em elucidar o quanto o tribunal do júri se deixa influenciar muito mais pelos estereótipos sociais do que pela análise dos fatos, das provas, das evidências. Desse modo, o desnudamento das evidências questiona as certezas e determina faces impensadas até então em relação à racionalidade e à precisão das instituições jurídicas. Mas a instituição jurídica acaba por ser salva, pela insistência de um dos jurados, que, ao tentar romper com os modelos ali instalados, faz com que a fabulação passe a apontar para eficácia do júri, mesmo diante da inércia do tribunal, cuja complexa constituição é demarcada por algumas cenas que evidenciam a vulnerabilidade a que está sujeito. Destacamos duas dessas cenas que avaliamos serem representativas dessa vulnerabilidade: uma em que ocorre o confronto entre diferentes perspectivas, em ambas predominando uma consequência negativa para o bom andamento do ato de julgar, e outra em que observamos a indiferença dos julgadores. Na primeira cena, os membros do júri, em número de doze homens, estão distribuídos entre jurados inexperientes e experientes, gerando uma dicotomia: de um lado, é possível perceber a novidade entranhada na primeira experiência. De outra parte, temos a desilusão pela função de jurado. Essa dicotomia pode ser apreendida no diálogo entre o jurado 2, interpretado por John Fiedler, e o jurado 3, interpretado por Lee J. Cobb: ‑ O que achou? ‑ Não sei. Foi interessante? ‑ É mesmo? Eu quase dormi.

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‑ É que eu nunca participei de um júri antes. ‑ É? Eu já participei de muitos. Irrita-me como os advogados são prolixos. Mesmo em casos tão óbvios. Viu como falam sem parar? ‑ Acho que estão em seu dever. ‑ É estão. O sistema é assim. Mas, se quer saber, derrubava aqueles sabichões antes de termos mais problemas. Pouparia tempo e dinheiro. (LUMET, 1957, 0:06’09” – 0:06’39”).

Há uma segunda cena, na qual notamos que, para muitos dos jurados, a atividade será ainda enfadonha e associada a uma obrigação burocrática que os convocados devem cumprir sem delongas, como aponta o jurado 7, interpretado por Jack Warden: “É, vamos votar. Quem sabe possamos ir logo embora” (LUMET, 1957, 0:10’47” - 0:10’51”). Certamente, eles desejam retornar às suas vidas, mesmo que essas vidas, daquele ponto em diante, pudessem ser modificadas por cada experiência vivida naquela sala do júri, uma vez que deixam suas vidas comuns e passam a ser responsáveis pela vida e pela morte do réu; por isso, tornam-se uma espécie de “advogados” de defesa e de acusação, como alerta o juiz, interpretado por Rudy Bond: Ouviram um longo e complexo caso de homicídio em 1º grau. Um homicídio premeditado é a mais grave acusação em nossos tribunais. Ouviram os testemunhos. A lei lhes foi lida para ser aplicada ao caso. Agora é dever de vocês tentar separar os fatos, da versão. Um homem está morto. A vida de outro está em jogo. Se houver dúvida razoável sobre a culpa do acusado... dúvida razoável, devem entregar-me o veredicto de inocente. Se, entretanto, não houver... devem, em sã consciência declarar o acusado culpado. O que quer que decidam, o veredicto deve ser unânime. No caso de julgarem o acusado culpado... o tribunal não considerará a hipótese de perdão. A sentença de morte é compulsória neste caso. Estão frente a grande responsabilidade (LUMET, 1957, 0:01’20” – 0:02’27”).

A responsabilidade de julgar será destinada a outrem, que, sem formação jurídica, busca entender os fatos e tirar conclusões baseadas em suas normas, em seus desejos e em seus preconceitos, como ocorre com o Jurado 10, interpretado por Ed Begley, ao afirmar, no início do filme, sua posição: “Ouvimos os fatos, não foi? Não quer que acreditemos no rapaz, sabendo o que ele é. Convivi com eles a vida toda. Não se pode acreditar em nada que dizem. Sabem disso. Já nascem mentirosos” (LUMET, 1957, 0:14’26” – 0:14’39”). Esse posicionamento determinista cobrirá parte do debate até o final do julgamento dos jurados, ao ponto de esse mesmo jurado, mesmo quando a maioria já tinha mudado de opinião e passara a pôr em dúvida a culpa do jovem réu, posicionar-se novamente com os mesmos argumentos do início do filme: 30

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Viram o rapaz tanto quanto eu. Não me digam que acreditam naquela história da perda da faca e da ida ao cinema. Sabem como essa gente mente! Já é uma coisa nata. Que diabos! Não precisa dizer. Eles não sabem o que é verdade e não precisam de motivo para matar alguém. Não, senhor! Ficam bêbados. Bebem como gambá, todos eles! Sabem disso. E pronto! Já há alguém caído na sarjeta. Ninguém os está culpando. É o modo como são. Entende? Violentos! Aonde vai? A vida humana não significa o mesmo para eles. Eles só vivem enchendo a cara e brigando! E se alguém morrer, morreu! Não ligam (LUMET, 1957, 1:17’55” – 1:18’37”).

O acusado será caracterizado como um animal, bêbado, para quem a vida humana não importa e, por isso, deve ser condenado. Profundo preconceito, não mais partilhado pela maioria dos jurados, porém representativo da conotação mais costumeira dos tribunais do júri, que ali está sendo questionada. Nessa situação específica, caso o jurado 8, Davis, interpretado por Henry Fonda, não estivesse estarrecido com o pouco caso da justiça para realizar um julgamento realmente isento dos preconceitos, especialmente os de classe, teríamos outro encaminhamento na condução desse julgamento. Por essa abordagem, a ineficácia proposital da justiça fez com que houvesse a percepção, para o corpo de jurados, de que as evidências garantiam a culpa do jovem acusado, antecipadamente instaurada, inclusive pelo advogado indicado para defendê-lo, como nos informa Davis: Que não queria o caso nem ser escolhido. È o tipo de caso que não traz louros. Nem muita chance de vencer. Não é uma situação promissora para um jovem. Teria que acreditar nele para se esforçar. E como disse, não acredita (LUMET, 1957, 0:47’47” – 0:48’03”).

Cabe à acusação o ônus da prova e cabe à defesa construir os argumentos necessários ao convencimento da inocência do réu. Mas como fazer se as provas não são suficientes? Diante desse questionamento, apresentado pela narrativa de Doze homens e uma sentença, uma problematização, que implica o testemunho, se eleva. De fato, é preciso colocar em cena o testemunho, pois somente com o relato testemunhal será possível reconstruir a cena criminosa diante do juiz e do corpo de jurados. A verdade dos fatos agora fica a cargo daqueles que devem jurar dizer a verdade. Mas de qual verdade estamos tratando? Essas são algumas perguntas que defesa e acusação apontam no tribunal para qualificar ou desqualificar o testemunho. O que fazer quando o próprio responsável por sua defesa não acredita na inocência do réu? Seria possível, dessa maneira, defender alguém? Sem nenhum tipo de dificuldade, o que restou para o caso foi a

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imposição de suas idiossincrasias, por parte da acusação, relativizando o crime tal como apontou Dostoievski (1998) em Crime e Castigo, ao separar os homens em duas categorias: ordinários e extraordinários, tal qual já fizera séculos antes Aristóteles (2000), em sua Poética, ao indicar a existência de duas espécies de homens, representantes de duas espécies de formas poéticas, por isso, “uma se propõe imitar os homens, representando-os piores; a outra os torna melhores do que são na realidade” (ARISTÓTELES, 2000, p. 03). Medidas as devidas proporções e diferenças de tempo e de produção, Aristóteles e Dostoievski caracterizam a instável realidade do direito na análise dos julgados, pois previamente deve ser considerada a “natureza” ordinária ou extraordinária neles implicados. Quando a natureza ordinária é evidenciada, associamo-la como própria dos homens infames, como caracteriza Michel Foucault no ensaio A vidas dos homens infames, ao considerar que são “infames, por causa das abomináveis recordações que deixaram, das malfeitorias que se lhes atribuem, do respeitoso horror que inspiraram” (FOUCAULT, 1992, p. 103-104). Muitas vezes, os homens infames são o jovem morador da favela, migrantes que falam mal o idioma local e, por isso, já são condenados. Desse modo, não será à toa que o jovem de 18 anos, réu em Doze homens e uma sentença, será julgado como homem vulgar que não têm direito algum, inclusive o de infringir as leis, como entende um dos jurados mais entusiastas de tal tese determinista, o jurado 10, interpretado por Ed Begley. Para ele, “o rapaz é mentiroso! Sei tudo sobre eles. Ouçam-me! Eles não prestam! Não tem um que preste!” (LUMET, 1957, 1:18’57” – 1:19’05”). O pré-julgamento traz consigo o confronto direto com as instâncias jurídicas pelo fato de legitimar em instâncias ilegítimas o infame ao ponto de transformá-lo apenas em citação, sem dar voz para esses homens. Giorgio Agamben (2007) chama-nos atenção para esse aspecto quando analisa o ensaio de Foucault sobre a infâmia, pois, para ele, “as vidas infames aparecem apenas por terem sido citadas pelo discurso do poder, fixando-as por um momento [...] algo naquela infâmia exige o próprio nome, testemunha de si para além de qualquer expressão e de qualquer memória” (AGAMBEN, 2007, p. 58). Fica notória a necessidade de ouvir os infames, mas isso lhes é negado. Ouvi-los pode significar ter que realizar o desnudamento de tudo aquilo que compõe a “natureza” ordinária que apresentam. De certa maneira, é isso o que faz o jurado de Doze homens e uma sentença ao desvelar os meandros por trás das evidências que levaram o réu a uma pré-condenação por parte de todo o restante do júri.

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V O que seria a infâmia? Quem é infame? Como se identifica o infame? Essas são algumas questões problematizadas por Michel Foucault (1992) no ensaio A vida dos homens infames, publicado em 1977, que tomo de pronto para problematizar aqui a insistência de construção da figura infame sem que ao menos se analise: sua real infamidade! Nesse ensaio, o filósofo compreende que o infame poderia configurar-se como: Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que não sobrevivem senão do choque com um poder que mais não quis que aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas que a nós não tornam a não ser pelo efeito de múltiplos acasos (FOUCAULT, 1992, 102).

Essas vidas infames formam a característica fundamental do réu, sem nome, sem identidade do filme Doze homens e uma sentença, pois, como já referimos, há uma necessidade de transformar o réu em mais um dado estatístico, sendo tão somente aniquiladas e apagadas enquanto vida, enquanto existência. O próprio fato de não ter nome prenuncia sua condição infame, associado à debalde condição pobre, migrante, suburbano, que mal sabe falar o idioma. Estes estereótipos denunciam a existência de mais uma forma de infame, o que Foucault (1992, p. 102-103) vai chamar de “aparentemente infames” ou um falso infame, que seria aquele marcado pelas “malfeitorias que se lhes atribuem, do respeitoso horror que inspiraram, são de facto homens da lenda gloriosa, mesmo que as razões desse renome sejam inversas das que fazem, ou deveriam fazer, a grandeza humana”. Esse infame aproximase da ideia que a ele foi imputada, a fama de seus delitos e malfeitorias. Mas, pensando nas personagens analisadas neste estudo, será que há infâmia naqueles que, por pré-conceito, estavam resolutos a condenar o jovem sem ao menos avaliar os fatos com detalhes, ou, em outras palavras, será que, só pelo fato de ter uma realidade marcada pelo delito e pela pobreza, esses homem o condenam de antemão? Foucault (2002) salienta também que existe outra forma de infâmia, a qual se aproxima bastante dessa posição infame da maioria dos membros daquele júri. Para o teórico, são eles “os pobres espíritos extraviados por caminhos desconhecidos, esses são infames a todo o rigor; já não existem senão por via das poucas palavras terríveis que estavam destinadas a torná-los indignos, para sempre, na memória dos homens”. Essa forma de conceber outros homens infames está relacionada a práticas judiciárias, sendo que: fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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As práticas judiciárias – a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história ocidental, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados [...] me parece uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre homem e verdade (FOUCAULT, 2002, p. 11).

Entretanto, no ensaio sobre a infâmia, de Foucault, existe uma preocupação excessiva em considerar que a literatura “mais do que qualquer outra forma de linguagem, é a ela que continua a ser o discurso da - infâmia: cabe-lhe dizer o mais indizível - o pior, o mais secreto, o mais intolerável, o vergonhoso” (FOUCAULT, 1992, p. 127), pois seria inadmissível que além da ficção fosse possível aceitar tais práticas infames. É o que ocorre nas narrativas tanto da literatura quanto do cinema aqui analisadas, um grande jogo discursivo que elabora e reelabora as verdades e ainda mostra como, nesse universo de leitura dos crimes, todos são infames, mesmo quando existem diferenças entre esses infames, já que o nível de comprometimento desses homens será medido por sua posição social e por sua importância como atores no interior das redes de poder de que fazem parte. O filme de Sidney Lumet concebe a falência da justiça, que delega o poder condenatório aos que nada sabem, ou muito pouco, sobre os códigos jurídicos e são influenciados por suas idiossincrasias, consequentes de uma sociedade igualmente idiossincrásica. A tragédia clássica aponta, no caminho do nascimento do tribunal, um julgamento afetado por relações de poder geradoras de medidas diferentes para criminosos diferentes. Por último, na tragédia de Shakespeare, o caminho não será a diferença social, mas a necessidade da confissão para legitimar a vingança. As três produções acabam por discutir de formas distintas várias maneiras de entendermos aspectos infames do tribunal. Referências AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: ______. Profanações. Tradução e Apresentação Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. ARISTÓTELES. Diferentes espécies de poesia segundo os objetos imitados. In: ______. Arte Retórica e Arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

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BENVENISTE, Emile. O Vocabulário das Instituições Indo-européias: Poder, Direito, religião. V. 2. Tradução D. Bottmann. Campinas: UNICAMP, 1995. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Tradução Luiz Cláudio de Castro. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998. ÉSQUILO. Eumênides. In: ______. Oréstia: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides. Tradução do Grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 8. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardins Morais. Rio de Janeiro: NAU, 2002. ______. A vida dos homens infames. In: ______. O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. p. 103-104. GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto: Quadro V, Cena I. Tradução Antônio Feliciano de Castilho. Clássicos Jackson. v. 15. Aveiro-Portugal: Universidade de Aveiro; W. M. Jackson, 1956. LUMET, Sidney. Doze homens e uma sentença. Roteiro: Reginald Rose. Drama. Estados Unidos, 96 min., 1957. Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2015. SHAKESPEARE, Willian. Hamlet. Tradução F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Virtualbooks; M&M, 2000.

Augusto Sarmento-Pantoja – [email protected] Manuscrito recebido em 26 de maio de 2015 e aceito em 26 de junho de 2015.

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MITOS GREGOS NO TEATRO BRASILEIRO DOS ÚLTIMOS 30 ANOS GREEK MYTHS IN THE BRAZILIAN THEATRE OF THE LAST 30 YEARS

Carlinda Fragale Pate Nuñez Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo: A experiência exílica é uma tônica em peças brasileiras recentes de tema mítico. Baseado na Trilogia perversa (BENDER, 1986), em Ismene, Princesa de Tebas (SENNA, 2006) e n’ O Olimpo carioca (BRANDÃO, 2012), o artigo mostra que os mitos antigos, enquanto mapeiam problemáticas palpitantes para a época em que eles retornam (o páthos do imigrante, do perseguido político e mesmo da cidade tida como refúgio ideal para problemas “olímpicos”), funcionam como o “tiroir à double entrée” de que fala Espagne (1999, p. 78): não são apenas pontos de passagem entre culturas, mas deflagradores de “itinerários da memória” (ESPAGNE, 1999, p. 138). Palavras-chave: teatro mítico; transferência cultural; experiência exílica. Abstract: The exile experience is a trend in recent Brazilian theatre which makes use of mythical themes. Based on The Perverse Trilogy (BENDER, 1986), Ismene, Princess of Thebes (Senna, 2006) and The ‘Carioca’ Olympus (BRANDÃO, 2012), this article shows that while ancient myths map questions related to the period in which they return (the immigrant pathos, the politically persecuted individuals, and even the city regarded as the ideal refuge from “Olympic” troubles), they also act as the “tiroir à double entrée” mentioned by Espagne (1999, p. 78): they are not mere crossing points between cultures, but they are also triggers of “itineraries of memory” (ESPAGNE, 1999, p. 138). Keywords: mythical theatre; cultural transfer; exilic experience.

Premissas para sabermos onde queremos chegar Mitos de extração clássica chegaram ao Brasil com as caravelas. A semeadura da herança clássica confirmaria não só com frutos da terra a profecia de Pero Vaz de Caminha (Carta de Achamento, 1500) de que, em solo brasileiro, “tudo dá”: as imagens de uma natureza prodigiosa e de seres sobre- e infra-humanos que os navegantes já traziam consigo (HOLANDA, 2010) foram as sementes para processos de aclimatação, fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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sincretismo, mestiçagem e hibridização cultural (BURKE, 2003); adaptação e apropriação (HUTCHEON, 1995; SANDERS, 2006); intertextualidade, paródia (RODRÍGUEZ MONEGAL, 1980; RODRÍGUEZ, 2001; 2002), reescritura, tradução linguística e cultural, transcriação (CAMPOS, 1992), que não cessaram de germinar entre nós. Negociações nos planos do imaginário e do contato material entre literatura oral e escrita, popular e erudita, amalgamando diferentes tradições e aguçando suas contradições, preservaram e robusteceram tanto o substrato mítico nativo quanto o importado. No que diz respeito ao Brasil, temas mitológicos e demais insumos da cultura humanística europeia participaram, desde os primórdios da colonização, do audacioso processo de transplantação cultural ocorrido durante o expansionismo dos povos em direção ao Atlântico Sul, e continuam assomando como dispositivos do campo artístico, até os dias atuais (NUÑEZ, 2003, p. 219-259). Alguns pressupostos teóricos nos guiam, na abordagem da presença do mito em obras recentes do teatro brasileiro que vamos aqui desenvolver. O primeiro nos adverte para o fato de que as transformações da herança clássica se incluem no quadro das trocas culturais, em geral: elas decorrem de encontros historicamente determinados entre sistemas de referência heterogêneos. O segundo especifica o primeiro, já que o processo de transferência cultural aqui focalizado é peculiar: não dá lugar a ações recíprocas (afinal, a atualização do legado greco-latino se verifica em tempos pósteros, determinando um processo de assimilação, a princípio, de mão única1), nem contínuas (de fato, a transferência acontece de forma intermitente, marcada pela descontinuidade temporal e sujeita à ação de fontes intermediárias). Neste trabalho, não dissociamos o mito da função de privilegiado dispositivo de transferência cultural. Como narrativa de imediata e eficiente comunicação, ele age como mediador entre pessoas e entre campos epistemológicos, valendo-se de um espaço intermédio comum e permitindo que imbricações culturais ocorram ao modo de uma memória latente. Nosso terceiro pressuposto se apoia em Michel Espagne, para quem “Uma transferência cultural é um tipo de tradução, já que corresponde à passagem de um código a um novo código” (ESPAGNE, 1999, p. 8). Em outras palavras, situamos a literatura de extração mítica no espaço liminar entre estudos comparativos de adaptação e de tradução cultural, sem que Diferentemente do que ocorre nas trocas culturais, que se dão sincronicamente entre duas culturas em contato, a única possibilidade de modificação do passado pelo presente surge da descoberta de fatos e/ou documentos, ou novos modos de compreensão do legado clássico. 1

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ela se ligue exclusivamente a um ou a outro âmbito. Este duplo vínculo deriva das próprias recriações, adaptações e traduções, que não pertencem integralmente a um autor, no sentido que se dá à autoria de outros textos. Por causa do agón autoral entre o escritor e seus adaptadores, o reprocessamento artístico de um tema, obra ou mito se apresenta necessariamente como local de contestação ideológica, onde entram em choque autores, culturas, épocas, ideias e meios de expressão. Como o afirma Slavoj Žižek (2014, p. 6), “uma das melhores maneiras de detectar mudanças na constelação ideológica é comparar ‘remakes’ consecutivos de uma mesma história”. Por outro lado, uma visão atualizada dos Estudos Clássicos não pode ignorar, tanto do ponto de vista epistemológico quanto da arte, a arguta observação de José Luís Jobim: “as questões e temas evocados como herança e memória serão as que julgamos (ainda) relevantes agora, e são enfocadas a partir de teses, teorias, perspectivas que estão vigentes agora” (JOBIM, 2009, p. 102). Ou seja, uma mesma história contada de forma diferente, em adaptação ou recriação, pode ilustrar mudanças na constelação ideológica; ou, fiel ao texto precursor, ilustrar um retorno nostálgico a uma condição ideológica passada; ou ainda recuperar uma vertente ideológica inobservada ou mesmo desconhecida, mas presente num texto-fonte, que se perde, em adaptações ostensivamente concentradas na narrativa ou em considerações estéticas. Este é o quarto e último pressuposto que nos interessa registrar, assinalando, todavia, que é deste lugar, da captação do que os mitos silenciaram, no seu passado distante, e só se deixa pronunciar em línguas estrangeiras, dicções futuras e lugares estranhos à sua origem, que se tornam visíveis o essencial do mito (sua condição oracular e sua funcionalidade prática para as sociedades que o adotam) e o inesperado da história. Lidando com as obras A retomada do temário antigo no teatro brasileiro contemporâneo confirma a tendência do teatro universal de mapear problemáticas palpitantes para a época em que os mitos retornam. As peças de tema mítico que reaparecem nos palcos brasileiros dos últimos trinta anos evocam, direta ou indiretamente, a experiência exílica. Constatamos a persistência desta questão na Trilogia perversa (1986), adaptação gaúcha da maldição dos Atridas por Ivo Bender, em Ismene, Princesa de Tebas, de Pedro de Senna (2006), e na Revista do Ano – O Olimpo carioca, de Tânia Brandão (2012). Tragédia e comédia antigas se reatualizam, nos contextos históricos da imigração alemã para o sul do Brasil, da emigração de cidadãos perante fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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um cenário político em crise e da paródica posição do Rio de Janeiro como refúgio ideal para problemas “olímpicos”. O teatro brasileiro de tema greco-romano se consolidou, ao longo do século XX, por meio de obras que se tornaram emblemáticas tanto da eficaz absorção do clássico quanto de engenhosas formas de adaptação do antigo aos palcos modernos. Em sua maioria, as reapropriações brasileiras da herança clássica se prestaram a reformulações radicais, quase desfigurações da matriz grega ou romana, devidas à frequente nacionalização das problemáticas, à mudança de nomes das personagens e à hibridação de formas. Trilogia perversa O gaúcho Ivo Bender2 destaca-se, na dramaturgia de extração mítica dos últimos trinta anos, por ter concebido uma Trilogia perversa (1988), a exemplo da única trilogia remanescente do teatro grego, profundamente trágica, porém sui generis. Quanto ao tema, a mítica maldição dos Atridas é transplantada para o sofrido contexto da imigração alemã, no Rio Grande do Sul; quanto às personagens, têm nomes brasileiros ou alemães, misturando pessoas comuns e figuras históricas, em três peças que se intertextualizam com a Oréstia de Ésquilo (458 a.C.), a Electra de Sófocles e quatro tragédias3 de Eurípides, sobretudo, a Ifigênia em Áulis (405 a.C.). Mas as fontes gregas e o modelo trilógico são submetidos a um reordenamento, na trilogia brasileira, primeiramente em virtude de seleção diferenciada dos nódulos míticos para cada peça e, ademais, pela progressão temporal inversa. A disputa entre dois irmãos pelo cetro atrida e o sacrifício de uma filha por seu pai são os antecedentes míticos que motivam os acontecimentos da Oréstia: na primeira peça da trilogia grega, a mãe inconformada se vinga, matando o marido infanticida; na segunda peça, os filhos do rei morto o vingam, matando a própria mãe; e na terceira peça, o matricida é perseguido, Ivo Bender começou sua trajetória como autor dramático em 1961 com a peça As cartas marcadas. Desde então, escreveu Queridíssimo canalha (1971), Quem roubou meu anabela? (1972), Sangue na laranjada (1978) e Mulheres Mix (2001). Também publicou traduções para o português das tragédias Fedra, Ifigênia e Tebaida, de Jean Racine, e trabalhos nas áreas de teoria e crítica teatral: Comédia e Riso - uma Poética do Teatro Cômico (Editora da UFRGS/EDIPUCRS, 1996) e Ação e Transgressão - três ensaios sobre tragédias de Sófocles, Eurípides e Racine (Editora da UFRGS, 1991). Atualmente é professor aposentado de Artes Dramáticas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Para mais informações, cf. Revista BENDER, Ivo. Autores gaúchos, v. 3. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1984. 2

Orestes (408 a.C.), Electra e Ifigênia em Táuris (sem datas definidas: a primeira foi encenada entre 420 e 410 a.C.; a segunda, por volta de 414 a.C.). 3

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julgado e absolvido por um tribunal, numa ordenação paralelística e cronológica dos fatos. Já na Trilogia perversa, fatos históricos e a memória de colonos germânicos no sul do Brasil se imiscuem na trama grega, o que gera um efeito recíproco de contaminação mítica do histórico e factualização do mítico. Cada peça tem como título o ano em que ocorrem os fatos encenados: a primeira, 1941, tematiza um matricídio que se reporta àquele perpetrado por Orestes e Electra contra Clitemnestra; a segunda, 1874, tem por base o sacrifício de Ifigênia determinado pelo pai, Agamemnon; a terceira, 1826, revive, no Brasil meridional, as disputas entre Atreu e Tiestes, primeira geração humana em que se consuma a maldição familiar. Essas datas remetem, retrospectivamente, a situações fartamente documentadas: 1941, a uma grande enchente em uma zona germânica do Rio Grande do Sul; 1874, ao fim da Revolta dos Mucker4 e ao assassinato de Jacobina Maurer, líder messiânica do movimento junto a seu marido, João Jorge Maurer, um Wunderdoktor (curandeiro que realizava prodígios com ervas), e 1826 remete ao início da colonização alemã no Estado. A partir desses fatos verídicos, exumados a propósito de um matricídio (na primeira peça), do sacrifício de Teodora (na segunda) e da rivalidade entre irmãos (na terceira), núcleos temáticos da maldição dos Atridas, a Trilogia brasileira se “descola” da matriz grega por meio de dois dispositivos: a cronologia invertida e a reciclagem geopoética do mito. Inverte-se a lógica do trágico grego, na qual o mito prevalece sobre a história; subverte-se a ordenação temporal do modelo grego; historicidade e geograficidade se convertem em elementos que fazem os nexos entre os (suplícios dos) tempos míticos e os da colonização sul-rio-grandense. Com estes três elementos, Bender estipula o princípio gerenciador da toda a trilogia: a perversão – mítica, histórica e poética. Em 1941, encarnações de Electra e Orestes atuam num sítio de colonos

Cf. Janaína Amado, “A revolta ‘mucker’ ocorreu entre 1868 e 1874 em São Leopoldo, a primeira colônia alemã fundada no Rio Grande do Sul, prolongando-se até 1898. A palavra ‘mucker’ era usada como sinônimo de ‘beato’, ‘fanático’, ‘santarrão’. Assim os adversários designavam, na época, pejorativamente, os rebeldes. A revolta envolveu imigrantes alemães que se reuniram em torno do curandeiro João Jorge Maurer e de sua mulher Jacobina, inicialmente para obter esclarecimentos e, mais tarde, com fins religiosos.” Foram perseguidos e presos, mas libertados por falta de provas. Em 1874, adeptos de Jacobina promoveram um ataque em massa contra seus principais adversários. A Guarda Nacional ocupou a região, mas os rebeldes resistiram. “A 2 de agosto de 1874 a maior parte dos ‘mucker’ foi morta; os restantes foram condenados. Os impronunciados mudaram-se para outras colônias onde, anos depois, foram trucidados pela população local.” (AMADO, Janaína. Conflito social no Brasil: a revolta dos “Mucker”. São Paulo: Símbolo, 1978. p. 18-19). 4

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alemães durante o evento calamitoso da Grande Enchente5; em 1874, imigrantes alemães vivem no Brasil como apátridas, desnacionalizados/ desnaturalizados, razão pela qual se lançam à conquista de direitos civis, delirando fundar a Terra Prometida6 – Teodora, como Ifigênia, é o cordeiro que os fanáticos imolam à sua causa; em 1826, dois irmãos se amotinam contra um terceiro irmão, revestindo de um primitivismo germânico a ferocidade de Atreu e Tiestes. As três peças são medonhas. Bender vai muito além do paralelismo com as fontes gregas. Reinventa o trágico a partir de enredos originais, abordando aspectos do passado colonial no Rio Grande do Sul, em si carregados de tragicidade, porque o páthos da vida e da morte neles claramente se mesclam. A hybris do imigrante transparece na força quase elemental que lhe permite sobreviver; colonos, falando uma língua estranha, sem recursos materiais, nem referências locais, impelidos por forças sociais e inconscientes, praticam a hamartía (erro trágico) de rivalizar com a natureza e o meio que, àquela altura, os rechaçava; as falas são claras, mas ocultam motivações nubladas. Nesse território inóspito, em que o outro é o ameaçador/ameaçado, Bender moldou protagonistas no qual o agón das trocas e acomodações culturais se trava às custas da mescla entre história e mito. Ismene, Princesa de Tebas Pedro de Senna focaliza a maldita família de Édipo, com a inusitada ideia de retirar Ismene das sombras que lhe couberam como herança do glorioso teatro ateniense. A maldição dos labdácidas foi mais pesada para a simplória irmã de Antígona, que atravessou inglória toda a era pós-clássica. Um solilóquio apenas lhe foi dedicado pelo poeta grego contemporâneo Yannis Ritsos7 (2012). Nada mais, até 2006. Esta enchente foi a maior calamidade natural ocorrida no estado do RS, então com menos de 3 milhões de habitantes. As chuvas iniciaram em abril de 1941 e se estenderam por mais de três semanas, deixando 25 mil km2 do estado submersos e um contingente de 80 mil flagelados somente na capital. A enchente permanece viva até hoje na memória popular dos gaúchos. A expressão “abobado da enchente” (que significa “abestalhado”), muito conhecida dos gaúchos, teria surgido devido ao famoso cataclisma. 5

Jorge Andrade realizou projeto semelhante em Vereda da salvação (1958), peça que aborda um fato verídico: a repressão policial e morte de camponeses, fanáticos religiosos de Catulé, em Minas Gerais, em abril de 1955. A problemática social se entretece, nessa peça, com o mito de Édipo. 6

Ritsos, poeta lírico e dramático grego (1909-1990), recriou o páthos da tragédia grega em diversos títulos que retomam mitos, lendas e paisagens antigas. Ismene é um dos seus solilóquios dramáticos. 7

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A filha de Édipo manteve-se como “mulher sem qualidades”, signo de uma ausência, na tradição a que pertence. Ineditamente, essa situação muda, com Pedro de Senna, dramaturgo brasileiro, que percebeu exatamente nesta condição de sombra a situação ideal para torná-la protagonista de uma tragédia pós-moderna. A vida em negativo, como significante ao qual não se agregou nenhum significado, traduz a patética insignificância que a promoveu à exata situação de protagonista da atualidade. Pedro de Senna, nascido no Rio de Janeiro em 1975, mas residente na Inglaterra desde 2001, angariou um respeitável currículo ligado às artes cênicas e ao dramático. É professor universitário, tradutor, ator, dramaturgo e diretor de teatro. Com essa bagagem, o dramaturgo concebe o novo drama sobre a diatribe tebana. Tebas está na iminência de uma invasão. Creonte expia, demente, a responsabilidade pela morte de todos os seus familiares. Generais tomaram as rédeas da pólis. Sem poder, sem filhos, sem mulher e sem juízo, o rei vive acossado por espectros. O Coro de mortos tebanos lamenta o novo infortúnio sobre Tebas. Ismene se aconselha com Tirésias, que encara com ceticismo os próprios dons proféticos, outrora indubitáveis e prestigiosos: a voz da resistência no passado se apresenta como arauto da desistência no presente: “eu não quero mais”; “estou cansado disso tudo; eu quero que se acabe / paz”. O velho adivinho reconhece Ismene como “intocada pela maldição”. Todos os labdácidas estão mortos, à exceção dela, que se vê diante de um dilema: para salvar a cidade do inimigo, deve entregar-se a um rei estrangeiro e gerar um herdeiro. A peça retira a figura de um sono milenar para uma dupla tarefa: experimentar a força do trágico em problemáticas atuais e desselar questões subliminares e mesmo de difícil identificação na peça sofocliana, que pode ser a referência mais evidente e fundamental para a personagem, mas certamente não é a única fonte da peça brasileira. O tecido dramático da peça se constitui de ressonâncias dos Sete contra Tebas (467 a.C.) de Ésquilo, da Antígona (442 a.C.) de Sófocles, das Fenícias (411 a.C.) de Eurípides, as quais se entrecruzam com citações de Shakespeare e até de Tchekov. Há evidentes importações dos mais importantes conceitos da cultura trágica dos gregos: são vinte e duas referências à hýbris (excedência), como traço da identidade tebana; vinte e cinco, à voragem sanguínea dos labdácidas, capaz de tornar indistintos o sexo e a guerra – a anunciada invasão da cidadela é reiteradamente referida como “estupro de Tebas”, assim como Ismene, cujo corpo seria o preço pago pela entrada pacífica do inimigo, se autodenomina a “puta de Tebas”; o castigo imposto a Creonte é tremendo – restar só, como único tebano remanescente fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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na Tebas ocupada, um exilado em sua própria terra. A expiação de Creonte, na tragédia moderna, tem dimensões mitológicas, se recobramos o sentido do exílio para o homem antigo, aqui ressignificado como desterro às avessas. Alusões a atitudes covardes ou pusilânimes de Ismene, recontextualizadas no quadro da modernidade, trazem engenhosas reinterpretações capazes de converter as antigas acusações em álibis e até motivos para a valorização da mulher condenada pela tradição: Ismene - Eu abri mão de minha morte por Tebas e agora Tebas vai ser tomada [...] abri mão da morte e abandonaram a cidade para ser tomada estuprada usurpada por estrangeiros como meu sangue seria

Um mapeamento na linha da transformação da protagonista renderia uma tese. Mas não podemos deixar de referir as situações configurando deslocamentos semânticos, emanações, sutis historicidades, defasagens formais e semânticas que esta Ismene moderna encarna. As assimilações desse tipo nos interessam mais, pois constituem um acesso privilegiado à compreensão do que está sendo culturalmente transferido de um passado a princípio fictício e morto, mas se impõe com energia e sentido bem ativo, na atualidade. A peça instaura uma temporalidade anterior à própria Grécia clássica. É o próprio tempo mítico, seus eídōla (fantasmas), aqui transformados em kolossoí (colossos), com suas propriedades transcendentes e fenomenais. A concepção do texto recobra o arcaico. Assim, abala a supremacia do clássico como autêntico, para discutir o heroísmo numa perspectiva da modernidade; rompe com o naturalismo, para capturar o primordial, lá onde germina o trágico. Sem se confundir com qualquer tipo de reconstituição arqueológica, a tragédia de Ismene joga com impulsos primitivos e a centralidade do páthos, numa invenção audaciosa. A Ismene brasileira, no sistema dramatúrgico constituído, não desmente, entretanto, a tradição a que pertence: o medo, a dúvida, o ceticismo, adquirem, porém, uma autojustificação, no horizonte cultural em que ela reaparece (o Coro pontua: “Esta é a tragédia da dúvida / descrença”), já não mais como representante de um éthos (caráter) diminuído, em relação à irmã, mas de um sujeito acossado, num mundo marcado pelo pragmatismo, niilismo, pela reificação das pessoas e dos afetos. 44

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Em algumas passagens, este páthos moderno se manifesta, ligado a questões pânicas da atualidade. Ele se expressa na pusilanimidade da Princesa (“Não posso suportar os muros vazios / os fantasmas de minha indecisão”), ao ponto de desestabilizar sintaticamente o seu discurso: Ismene - Eu estava decidida tinha decidido estou decidida a não ter filhos ou será isto desafiar os deuses tentar evitar uma maldição que não se pode evitar que não perdoa que não se aplaca que não tem fim

Ao contrário do Tirésias da tradição, o da versão brasileira está imerso no niilismo: Tirésias - Que bem o meu conselho pode fazer, não sei nem que bem ele jamais fez Estou cansado disso Tebas vai cair e pronto [....................] Um plano é o que eles têm e isso basta o que eu vejo e o que eu não vejo não são nada eu sou só um velho cego o que eu digo e o que eu não digo não importam

A Ismene moderna discute tópicos de orientação feminista: a violência contra mulheres, a opção de não ter filhos e a questão do aborto. Ismene - Carregar um filho para carregar uma maldição isso é pedir demais a qualquer mulher o novo rei vai querer um herdeiro exigir um herdeiro me estuprar por um herdeiro, se estuprar for preciso [....................] ... eu tive a coragem de abrir mão de meus ideais pela minha vida e não de minha vida por meus ideais

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Para compreender a cerebralidade da peça, tem-se de pensar, de alguma forma, como Ismene. É o que diz o Tirésias de Pedro de Senna, em mais de uma oportunidade: “Minha filha, sempre tiveste boa cabeça” (p. 34); “sempre soubeste quando parar”. Aqui a reprovação antiga é revertida em louvor. O dramaturgo não é nada ingênuo, ao realçar a racionalidade negada a Ismene pelo interesse desde sempre despertado pela grandiosa causa pública e universal de Antígona. A Ismene razoável e lógica é, aliás, anunciada no célebre e hermético verso de abertura de Antígona, que literalmente se traduz por “Tu és minha querida cabeça fraternal, Ismene”8. O laço familiar que une as duas irmãs, do ponto de vista da Antígona sofocliana, é o pensamento. Quando Ismene demonstra com bons argumentos que é uma temeridade a execução do projeto religioso, Antígona afirma que realizaria o ato piedoso, mesmo ao preço de praticar uma baixeza, num oximoro que associa nobreza e vilania, piedade e baixeza. Em face de tamanha convicção, Ismene adverte Antígona de que está sendo demasiado calorosa com os mortos (a quem ela chama “frios”), insinuação de pendor necrofílico muito clara. Na versão grega, Ismene aconselha a irmã a ocultar seu projeto de enterrar Polinice. Sabia o que estava dizendo. Pela etimologia, Ismene (raiz *eis, *is com o sufixo -men) é “a impetuosa, a vigorosa”, o que contraria a atitude da personagem grega. O paradoxo é resolvido por Pedro de Senna: desfaz o descompasso entre sema e soma, nome e corpo, e permite que a personagem passe a honrar sua nomeação, nos palcos brasileiros9. Outro aspecto a assinalar diz respeito a uma sutileza histórica, discretamente obscurecida, na versão grega de Sófocles, mas que retorna, em primeiro plano, na recriação brasileira: a questão de purificar a casa real e o solo tebanos. Na peça brasileira, o casamento de Ismene é apresentado como um blefe tramado pelos generais tebanos, para evitar a erradicação do sangue labdácida daquele território. Mas Ismene compreende a estratégia desonrosa do “alto comando”, que visa manter isolados não só os descendentes, mas todos os tebanos que tiveram contato com a família de Édipo, inclusive Creonte: questão de prevenção contra o contágio político. Hörderlin, porque perseguia as estruturas do imaginário arcaico e levava a sério o fenômeno da manía (loucura) poética, propôs uma tradução estranha, mas fiel à imagem da cabeça metonímica do pensamento: “Cabeça comum e fraterna! Ó Cabeça de Ismene!” (“Gemeinsamschwesterliches! O Ismenes Haupt!”). 8

A peça se respalda na autoridade de Édipo para explicar o inesperado desencantamento da fraca Ismene. Diz Creonte: “Foi teu pai que escolheu teu nome”. A palavra paterna autoriza o protagonismo, ainda que tardio. 9

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Ismene - Eles querem me casar com o comandante de Argos Assim ele usurpa a coroa de meu tio – a coroa de meu pai numa cabeça estrangeira Ele toma a cidade em paz e poupa o povo do horror da batalha saque sangue derramado

Na tragédia de Antígona, é justamente o sangue labdácida que Creonte quer afastar do trono tebano. Para isto, o tirano tinha de curtocircuitar o casamento de Hêmon com a labdácida. Aqui, Creonte é carta fora do baralho; Ismene é destinada a um noivo que não existe de fato. As irmãs estão em perfeita correlação negativa. O heroísmo de Antígona é sublime; a sublimidade de Ismene é totalmente diferente: ela tem a grandiosidade do pequeno (devaneia, perde-se em reminiscências da infância); a dignidade do fraco (“Não me deixes, tio”); a consciência de si e de seu medo (“Esse é o meu medo”). A última das princesas faz o que qualquer mulher hoje faria. Coro - Salva a tua casa Ismene - Eu nunca quis ser rainha esta praga cancro a coroa eu queria evitar [...] Melhor não nascer é isto o que quero para meus filhos nunca nascer para esta vida esta família esta maldição

É justamente no influxo de qualidades em negativo que ela se ergue, na peça brasileira, e nega a reificação das relações conjugais, o mercadejamento do seu corpo, a gravidez utilitária. Em função destes posicionamentos, Ismene nega também a abjeção; conjura apoio para a sua decisão de não gerar filhos para a cidade caótica, sabota o plano do general e sabota o usurpador (diz-se pronta para o contrato matrimonial, mas foge, às escondidas, com Tirésias, os dois últimos a abandonar Tebas). Através da invenção de um enredo totalmente novo, somos levados a identificar, pelo contraste com o mito antigo, sutilezas tão bem concebidas e camufladas em suas fontes, que podem ter passado irreconhecidas pela crítica, a ponto de se ter fixado a imagem de Ismene apenas como o oposto complementar de Antígona – mas não foi bem assim. Da mesma forma que a obra atual é capaz de projetar luz sobre a antiga, pode-se raciocinar mirando fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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no sentido contrário, prospectivamente: os materiais antigos introduzidos na peça da atualidade funcionam como o elemento anacrônico, na função de tradutor cultural de problemáticas e padrões emotivos que melhor se deixam capturar longe de sua cotidianidade. De fato, a peça de Pedro de Senna constitui um tipo de assimilação sofisticada do material mítico-dramático, pois joga com uma elaboração estética arcaizante e hierática que leva à dissimilação dos conteúdos antigos. Se compreendemos a obra como uma peça brasileira que inventa um enredo protagonizado por Ismene, estamos inserindo a protagonista como estrangeira (grega) numa problemática camufladamente tebana e antiga, mas explicitamente pós-moderna. Se entendemos que a peça é a reexperimentação do modelo da tragédia antiga, temos de admitir que Ismene encarna uma figura moderna e falante da Língua Portuguesa surpreendida num conflito e num contexto que lhe são totalmente estranhos – e a peça passa a ser o modo de cristalização artística das soluções possíveis perante impasses existenciais – especialmente o ceticismo moderno. As duas situações combinam, no regime de construção estética do texto e do espetáculo que lhe correspondeu. A obra dá acesso a uma outra cultura, distante no tempo e muito diferente, com formas de representação e estruturas imaginárias muito diferentes das atuais, mas as adota como meio através do qual o contexto de acolhimento se espelha e se pensa. Inserida numa surpreendente malha compositiva, entre a rede transhistórica do teatro e o enclave em que ocorrem transferências culturais inusitadas, a tragédia de Ismene revoga o rótulo de simplicidade atribuído à figura mítica, para, bem ao contrário, dar materialidade a complexidades antigas e atuais. O Olimpo carioca Tânia Brandão, dramaturga premiada, historiadora, crítica, professora de Direção Teatral da UNIRIO, envereda pelo caminho da comédia, no melhor espetáculo musical de 2012, A Revista do ano – O Olimpo carioca. Em meio a uma crise político-social e econômica na Grécia, dois deuses, Hefaísto, Dionísio e uma personagem inventada, a Mulher Labareda (na verdade, disfarce de Ariadne, a esperta princesa que driblou o Minotauro e facultou a vitória de Teseu no labirinto cretense), se mudam para o Rio de Janeiro, a “Cidade Maravilhosa”, em busca de uma vida melhor. Ao chegarem, encontram um cenário de desordem, criminalidade, corrupção 48

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e degradação dos costumes, um estado de coisas muito pior do que deixado para trás. A peça atualiza o Teatro de Revista, gênero musical e burlesco brasileiro da virada do séc. XIX-XX que comentava os principais acontecimentos de um determinado período. Jogando com múltiplos modelos estéticos, fatos ocorridos na cidade do Rio entre 2011 e 2012 servem de base para uma trama curiosa: de um lado, segue bem de perto os parâmetros da revista do século XIX e de Artur Azevedo (uma cena na praia ecoa a gozação com a hidroterapia de D. Pedro, só que, nas revistas do famoso dramaturgo, a Monarquia é que se banhava); de outro, inspira-se nas revistas francesas e na moda helênica que invadiu o Brasil oitocentista. Por isto, o Olimpo. Mas há ainda uma forma de escrever contemporânea, reinvenção performática da revista10. A qualidade do espetáculo se confirma na coesão de todos os fatores, do enredo à encenação. Tão logo chegam ao Rio de Janeiro, os protagonistas se perdem: Hefaísto vai parar no subúrbio, enquanto Dionísio e Labareda o procuram na zona sul da cidade. A busca dos pares é o pretexto para cobrir a geografia da cidade e oportunizar o encontro de vários personagens, na verdade, alegorizações da vida nacional e da cultura local. Aparecem a “República” e o “Brasil”, tomando banho de sol nas areias de Copacabana – ela, com um chapéu em forma de lula, que joga com a permanência do PT no governo federal e a obstinação do ex-presidente Lula em manterse no cenário político; o “Escândalo”, sempre atento aos acontecimentos, registrados com seu celular; além da “Lei Seca”, preocupada com os motoristas alcoolizados, inclusive quando o veículo em questão é uma bicicleta; o “Povo”, rechaçado pelo casal governante. Em busca de Hefaísto, Dionísio e Labareda se encontram também com o agradecido “Mosquito da Dengue” e a chorosa “Perimetral”, com o rejuvenescido “Micróbio da Gripe” e a legalizada “Cidade do Samba” (complexo arquitetônico destinado à produção de artefatos carnavalescos, ainda financiados pelo jogo do bicho e outras contravenções), com “Copacabana”, com os índios da Rio+20, com o “FDP” – o Futuro Do Prefeito, e com uma “ecochata11” colombiana, O texto por nós utilizado foi-nos gentilmente fornecido pela autora. A versão registrada na Biblioteca Nacional, enorme, serviu de base para a criação do espetáculo. A estrutura da peça e a dramaturgia do espetáculo encenado no Teatro Carlos Gomes (Rio de Janeiro, out. 2011/fev. 2013) são da autora, que admitiu algumas piadas propostas pelo elenco. O texto é, portanto, diferente do que foi colocado em cena, fato comum à liturgia cômica, pois “o texto em cena, para ser vivo, é uma experiência de oralidade imediata” (BRANDÃO, s.d.). 10

O termo é uma gíria que define pessoas defensoras de ideais ambientalistas extremados, irredutíveis a negociações. Entram na categoria dos “chatos”, porque vigilantes e obstinados, capazes de ações temerárias, “em prol do planeta”. 11

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preocupada em decorar as novas regras da sustentabilidade. Tudo se passa, em meio à explosão de bueiros, marchas de todos os tipos, à revitalização do Cais do Porto e da Lapa e a discursos políticos. A malandragem e o misticismo religioso, estereótipos do carioca, põem em relevo o território de exclusão por onde o tema do autoexílio, transita, por meio de personagens locais e estrangeiras (gregas), atuais e antigas, deuses e mortais, conaturalizando situações cotidianas e excepcionais, o real e o mitológico – todos carnavalizados, imbricados indiferenciadamente, invisíveis e irrecuperáveis, como outros grupos de autoexilados das metrópoles – das cracolândias, dos guetos de funkeiros, gays etc. –, os “intratáveis” (ROSA; VICENTIN, 2010; SANTOS, 2013). Do ponto de vista formal, a peça incorpora procedimentos da comédia antiga, como o entreato nos moldes da parábase aristofânica, em que entram em cena personagens alegóricas representando os teatros do Rio de Janeiro (o SESC Copacabana, o Teatro Clara Nunes, o Carlos Gomes), para fazer a crítica social das artes cênicas na cidade e apontar as casas de espetáculo elitistas (Teatro Casa Grande), que nem pisam num teatro municipal como aquele em que a peça está sendo encenada (Teatro Gláucio Gil, popular, nem fala), bem como retaliar as políticas públicas, a Lei Rouanet e os métodos de proteção e/ou prejuízo às artes. Como se vê, O Olimpo carioca é uma criação atual, fundamentada na tradição. O ressurgimento extemporâneo da comicidade fantasista, mitológica, excita a encenação informal, a enunciação de problemas, crenças e descrenças, “sem papas na língua”. A peça é uma comédia e tanto. De tanto rir, caem todas as máscaras. Cai o pano As obras aqui focalizadas, valendo-se de mitos da herança greco-latina, demonstram a proeminência ancestral do tema do exílio para o teatro, e sua presença, na dramaturgia brasileira das últimas três décadas. O exilado, que tem uma vida dupla, vive a hendíade do aqui e do lá, nem aqui nem lá, presente e ausente, concomitantemente multipresente e em nenhum lugar (JANKÉLÉVITCH, 1992, p.126), já traz em si algo de personagem dramática. Propende ao teatro e ao tratamento mítico, seja pela paradoxal mobilidade para a qual a situação exílica aponta, seja pelo desmesurado, sobrenatural poder que ela encena. O teatro brasileiro dos últimos trinta anos confirma que o antigo 50

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e o novo mais produtivamente se comunicam, mantidos como nãocontemporâneos e heterogêneos. Por isso podem dialogar, trocar entre si, espelhar-se, diferenciar-se, dialetizar-se, retro- ou prospectivamente alimentar a história e o próprio mito. Assim funciona o teatro de tema mítico, como o tiroir à double entrée de que fala Espagne (1999, p. 78), não apenas cenário por onde transitam elementos interculturais, mas a partir do qual “itinerários da memória” podem ser percorridos (ESPAGNE, 1999, p. 138). Em outras palavras, tomamos as peças aqui comentadas como exempla para nossa hipótese: a de que o teatro moderno de tema clássico constitui um significativo e eficiente canal de transferência cultural não apenas de repertório temático, mas de valores, questões, imagens, crenças, modos de representação. Se a cada reescritura de um mito ou passagem da historiografia grecolatina corresponde uma reavaliação do presente em que a peça vai ao palco, deve-se levar em conta, também, que a seleção do tema antigo se dá em função dos quadros de referência do presente, e é de acordo com este código cultural que o texto antigo se vê transferido. Através desse raciocínio, defendemos uma nova abordagem, que leva em conta um terceiro espaço de concentração de sentidos: entre o universo de partida de um tema e o contexto de acolhimento, encontra-se um lugar de imbricações culturais especialíssimas, não materializadas na forma de instituições, técnicas ou hábitos, mas em materiais trans-históricos. O “trans-histórico” se aplica à irrupção de formas de expressão e de padrões de sensibilidade reincidentes em épocas históricas ulteriores àquela específica em que foram produzidas. Não se eleva acima da História, nem equaliza diferenças. Ao contrário, trabalha no interior da História, superando as cadeias de causalidades e a ilusão das continuidades. O conceito é operatório na articulação do local e do universal, do atual e do intempestivo, do particular e do mais geral, da ordem do humano. Encontram-se aí também as intermitências culturais e os signos intempestivos de um outro tempo, que se disjunta do mundo em que ele acontece. Essa disjunção com relação ao tempo indica que o mundo não é homogêneo, nem há contemporaneidade absoluta: o passado pode avançar, e o presente recuar, movimentos temidos pela História, mas que a arte sabe manejar.

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O RISCO DE D. QUIXOTE — SABER E NÃO SABER, É E NÃO É — THE RISK OF D. QUIJOTE - KNOWING AND NOT KNOWING, IT IS AND IS NOT -

Marcus Alexandre Motta Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo: Este texto sugere um tipo de crítica às gradações da “teleologia”, que se manifestam na escrita especializada. Para tanto, assume o risco de D. Quixote, acentuado o teatro tipográfico ao qual, querendo ou não, todos estamos submetidos. Palavras-chave: tipografia; saber; risco; loucura; história. Abstract: This text suggests a kind of criticism to the “teleology” gradations, manifested in the specialized writing. Thus, it assumes the risk of Don Quixote, emphasizing the typographic theater to which, like it or not, we are all subjected.
 Keywords: typography; knowledge; risk; madness; history.

Trago comigo, não poderia ser de outro modo, o demônio da perversidade. Aquele de Poe - “penso, portanto me destruo”. No caso de dizer, “estou seguro”, é isso mesmo que destrói a minha segurança e desmente o que eu disse. Descobre-se aí, nada há que possa evitar, o demônio das palavras, implantado nelas, e, elas, “vivendo suas próprias vidas, mirando-nos de soslaio, invocando-se mutualmente, abandonandonos [...]” (CAVELL, 2002, p. 204). *** Estar aqui; tão próximo. Em risco, e não. Acabo de lembrar dos “seus textos”, “seus estudos de literatura”. Li dantes. Li depois. Li e me distraí e logo chegaram. Chegaram as muitas conformações da palavra fim nos discursos, em sua grande maioria. Retumbam as gradações da “teleologia”, no sentido lato do termo (não é?). Manifestam-se como escrita especializada, ora por caráter historicista, declinando um tipo de partida ou chegada para fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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pensamento, demarcando um tempo vazio e homogêneo preenchido por explicações que acalmam as tensões da história, ora através do formismo, reivindicando a ascendência aristotélica para a categorização dos conceitos (grave confusão lógica), numa aplicabilidade nunca vista. “Tudo para atrairnos com a ideia primária de que todas as épocas são iguais ou de que são diferentes” (BORGES, 1988, p. 493). Sinto-me afortunado e traído pela ocasião. Mas o que me chega, não me deixa. Esqueço momentaneamente. “O escorrer da língua é o que conta. Os pensamentos. Solene” (JOYCE, 1996, p. 117). E ali, de além, de aquém, soa para todos os arrebatamentos dos momentos aisthesis que nunca se deixam calar quando escrevemos e nos ameaçam. Estou às voltas com ideias e sensações; desatinado sem ocasião e dando-me a entender, portanto. Experimento, assim, alguns estalos e saltos da loucura (perigosa palavra e sem outra que esteja aos pés), como obsessão de ler literariamente. Leio-os, lembro, e aspiro D. Quixote — “seguia com seu romance em resposta a quanto se lhe perguntava” (CERVANTES, 2005 p.75). Nele e por ele, a imputabilidade poética perpetra regressar a loucura ao nosso lugar não-lugar da linguagem. Faz, porém, não voltar de uma vez por todas. Tão-só em cada risco de pensamento. Como uma forma de chegar indiretamente mais perto das erupções das artes do literário. Toda a Arte é uma forma de literatura, porque toda arte é dizer qualquer coisa. Há duas formas de dizer — falar e estar calado. As artes que não são a literatura são as projeções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda a arte que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém, ou o poema, ou o romance, ou drama. Quando se diz ‘poema sinfônico’ falase exatamente e não de um modo translato e fácil. O caso parece menos simples para as artes visuais, mas, se nos prepararmos com a consideração de que linhas, planos, volumes, cores, justaposições e contraposições são fenômenos verbais dados sem palavras, ou antes por hieróglifos espirituais, compreenderemos como compreender as artes visuais, e, ainda que não as cheguemos a compreender ainda, teremos, ao menos, já em nosso poder o livro que contém a cifra e a alma que pode conter a decifração. Tanto basta até chegar o resto (PESSOA, 1998, p. 261).

Desejo de assentir nos termos daquela tarefa. Tudo linguagem, a única forma de vida (o sublinhar apenas sob a primeira palavra, ao contrário de Wittgenstein). Em todas as artes há uma forma de Literatura. Acendido risco! Loucura! O saber que é e não é. A responsabilidade é enorme. Nesse caso, somos, ou devíamos ser, as inscrições da solidão na página 56

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pobre (para que arte tenha alguma chance); ermos e findos. Ali, aspirar qualquer retorno. D. Quixote continuamente. Ali, talvez, ensaiar (marca de nossa tarefa herdada) o testemunho, algo contra, as inteligências eficientes, afinando as palavras com outras coisas que li. A maioria das abrandadas exposições que me chegam, digo, já numa distância respeitosa e atenta (ou numa proximidade radical que eu não daria por mim), vai abandonando o literário e vai esquecendo haver teatro tipográfico. Há e não há. “As obras de arte são uma escrita, e não apenas as que parecem como tais, e certamente hieroglíficas, para quais se perdeu o código e para cujo conteúdo contribuiu acima de tudo a ausência de tal código” (ADORNO, 1993, p 145). Teatro tipográfico. Em todo caso, tudo é escrita e ausência de código. Escrita gatafunhada, aquela que vem de Klee. Tipografia do inquietante, da lógica do mito, do sonho, do esgarçar da verossimilhança - literatura (em todas as artes ela está, e, elas, nela), desde sempre, apesar de Platão e todos os saneamentos da linguagem, apesar de todas eficiências e de todas discriminações. A República e suas tentativas de expulsão. Por duas vezes falha. Imita o que deseja expulsar etc. Mas permanece a ideia da eliminação. Exclusão de quê? Todos sabem. Fica a lírica. Ela não espanta a lei. Cordata, fica. Parece que conseguimos, platonicamente sem saber. Trata-se disso, tipografia. Anterioridade radical, o tipo. Antes de qualquer coisa. Após qualquer coisa. Antes da figura. Antes do conceito. Teatro tipográfico. Sem viver o próprio. A literatura não tem o próprio nem o impróprio lhe é próprio. Indevido? Ela é e não é. A infidelidade da contradição mítica – a escapar da não contradição da Filosofia e dos seus correlatos: é ou não é. Cenas da vida do bom para nada, a arte, a instabilidade, a vertigem. Tudo detido naquelas duas advertências no platonismo, seu medos: a loucura e a feminização (parentes do literário?). Melhor: a histeria (essa antiga instabilidade do intenso buraco da vida) – posso falar assim tão brutalmente do inelutável? “Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei” (ROSA, 1994, p. 856). Deslocamento intempestivo da mãe-do-corpo. A instabilidade mesma, a escrita literária – “a reconquista da vitalidade e do vigor sentimental. Se fosse possível... Quem o conseguir... Certamente chamarias isso de abertura de caminho” (MANN, 2011, p. 454). As posturas precisam ser interrogadas, desiquilibradamente. É necessário dar pulos e cambalhotas. D. Quixote mais uma vez, muitas vezes, fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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portanto. Para apontar a eficiência que a palavra fim requisita para constituir certos limites pré-definidos, esculpidos por princípios morais. Nada de entregar a arte à dimensão representativa, mediadora, técnica, semiótica e informativa, na qual ela ganha status de vitalismo fatais ou culturalismo frágeis, sacralizando-se à beira da antessala da institucionalização, segundo o simples fato de existir sem portar o saber e o não saber que é. Nada de sanear a linguagem, por conseguinte. Nada de emendar a ficção. Tudo já está e não está e assim fica, ficcionalizado - todo o resto é política. Vocês sabem: a mimesis é a inscrição do ser-falante. Toda inscrição na linguagem já gira literariamente e tomba. Mesmo aquelas que não apreciamos ou aquelas que não nos qualificam. Mas se o teatro tipográfico fosse algo ou alguém, seria Sócrates, ou Quixote, ou o literário; ou: nós, que esquecemos de que “há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances [...]” (a advertência de Machado de Assis em Várias Histórias). Nossa cultura contista, ensaísta e nada mais e, portanto, muito a atravessar. Pois há uma acepção da autoria, aqui, que de si mesma exige imaginar-se conto, uma acepção de que na ausência disso há impedimento da autoria na tarefa de garantir uma qualidade nos contos, nós. No rápido: todo Quixote inscrito em Platão (LACOUE-LABARTHE, 2000, p. 123) Toda literatura, minha lucidez de risco. Não há literatura sem a batalha ainda por terminar, contra todos os saneamentos morais da linguagem. Tantos séculos. Indignidades da arte. A arte é sem lugar – um aqui da aparição da totalidade do mundo. A Literatura é e não é. Impaciência cognitiva. Não há humano que viva sem uma totalidade agora, trabalhos de arte. Bem antes, bem depois: a verdade é informe. Citar Valery, ou qualquer um outro, é ele e não é ele. “O artista é irmão do criminoso e do demente [...] [há] alguma obra interessante, sem que o autor tivesse aprendido a entender a existência dos celerados e loucos?” (MANN, 2002, p. 333). As exigências da arte, a literatura. Tarefa enorme – conforme o espírito dos tempos alavanca a desmedida de não mais considerar certas conquistas críticas provenientes da própria arte e, concomitantemente, estabelecem o contraponto de afeição à institucionalização do discurso de eficiência, sem mais ouvir sobre atribuição crítica, mas ouvindo um bom bocado sobre referência, intra-estética ou extra-estética. Há que pensar nisso indeterminadamente. Pensar desapropriadamente. Absolutamente – o advérbio de modo aprova a quase indistinção entre 58

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o substantivo e uma terceira pessoa do singular. Não é a mentira e a não mentira toda a ficção, mesmo a verdadeira e a não verdadeira? Mente. Há de não mais enunciar cordatamente. Há de deixar os fantasmas se apresentarem nas suas vozes. Muitos não acreditam em fantasmas. Toda obra de arte se comporta como um fantasma, como diz Derrida (cito de memória). Há e não há como qualquer fantasma. Acostumemo-nos com a desapropriação. Há de presumir o saber e o não saber da arte. Dar conta da individualização da escrita e do trabalho de arte. Gesto de insinuação e sugestão de qualificação; o que seria o mesmo que ter atenção redobrada à impugnação da distinção entre trabalhos de Arte e a Literatura que a corresponde. Há de resistir à determinação social-científica e a sua multiplicidade que, por isso mesmo, faz com que a arte verse o vigor do literário: estar sempre para o outro e ser outra “arte”. A arte, portanto, nem é discursiva e nem a sua verdade é reflexo de uma época, ou de uma tendência teórica a priori admitida, ou uma definição de estilo e, sim, a insinuação ou sugestão de qualificação do individual em cada nexo vital da arte no trabalho de arte. Mas a linguagem atualizada, libertada sob o signo de individuação até radical, mas ao mesmo tempo consciente dos limites que lhe foram traçados pela língua, das possibilidades que lhe foram abertas pela linguagem, tendo em vista a individuação restante (CELAN, 1999, p. 178).

Ora, a arte reage ao período no qual faz sua aparição – sua história figura-se bem na roda de rolimã, roda para trás e desliza para frente. Sugere outras, assim. Um sentido anulado como intenção e posto como desígnio sem acabamento. Ela não se delimita pela época mais chegada, mas por outras diversas de si. Idades de mundo – idades que estão por dentro de qualquer contemporaneidade. Algo como não entender, ou não acabar de entender arte. Isso diz haver uma indeterminação do entendimento da arte? O enigmático do trabalho de arte é sempre seu estar separado. Tudo na mentira e não mentira artística; sem coibi-las ou usá-las. Mentira mítica, a lógica da contradição, ou denominemos: perversão fundamental da prática poética; ou da prática da linguagem geral. A Literatura não tem próprio. Vocês falam os seus nomes. Falam o nome. Falam nomes. Literatura é nome. Mas, não assinala. Bastardia, regência literária. Dramaturgia da desapropriação enunciativa; sem tese, mas com testemunhos. Eis o vasto campo da dramaturgia literária expressa pela fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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sua quase inviabilidade, abrangendo a autenticidade do saber e do não saber da arte: o assombro – o único fato real porque se apreende pelos sentidos e inteligência concomitantemente – de que a arte existe, de que algo existe como arte, de que o trabalho de arte continua, sendo a arte o testemunho de todas as artes. Grave força ficcionante da linguagem (como outra coisa, no avesso da potência ficcionante da razão de Kant). Logo, não somos crianças de Sócrates. Sem sujeitos próprios. Linguagem apenas. Teatro tipográfico? Só sei que não diria que nada sei. Só tomo a causa pelo efeito. Mais de D. Quixote, e de Platão. Um ator; um comediante? A figura do vazio. Acolher tudo e não realizar nada de próprio. Teatro tipográfico? Sem a lei do próprio, posso dizer, ou podemos dizer: a linguagem. A literária? Ela nas outras artes e estas no desafio dela e nela. Linguagem que vocês acolhem e não abdicam de ter poder, evitando morar no risco da desinstalação do sujeito. Seria o sujeito próprio? Ou o próprio do sujeito, como nos ensina Quixote, é o impróprio da leitura? – isso nada tem de próprio. Questões de páginas-fantasmas? Ou, teremos que viver o segredo dos espectros e as nossas vidas já estão roubadas? Hamlet. O mundo é muito antigo! Temos direito a vingança, assim sendo. Na grande comédia, a comédia do mundo, aquela para a qual sempre torno, todas as almas quentes ocupam o teatro; todos os homens de gênio encontram-se na plateia. Os primeiros chamam-se loucos; os segundos, que se dedicam a lhes copiar as loucuras, chamam-se sábios (DIDEROT, 1979, p. 361).

Instalações tipográficas, eu diria. Errei? Não sei e sei. Os seus textos, seus? Quer dizer: o sujeito nunca coincide consigo mesmo. Literário? Nada pode ser atestado; embora haja testemunho e só da linguagem. Estamos ou somos livres de alguma maneira em nossas literaturas no caminho da arte. Talvez! A tarefa da arte é derivada do seu saber e não saber, é e não é a Literatura – aproxima-se de lado da linguagem das coisas, formando seus momentos discordantes, numa analogia com a linguagem sem “fins úteis”. A tarefa, portanto, que cabe à arte deve ser compreendida como pressuposto do trabalho literário, como ausência de qualquer vestígio teleológico, para lá do abismo das idades, cuja simpatia com o deslocamento não se adapta a qualquer definição de cultura circunscrita por temporalidade delimitada.

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Assim, o saber e o não saber da arte reprova um tipo de noção de cultura que sempre precisa se interrogar sobre o que pode, ela, significar. A história das artes é uma insistência. Se existir, fica para trás. Só insiste após qualquer futuro. Na pergunta que se faz nos agoras de cada acontecimento – toda história em cada um. Toda história no tempo da história que se afina com tempo da música. Ou seja, tempo interno, não preenchido – a ideia de história no declínio do finito tropeça no infinito, as notas do sofrimento. A história é um fenômeno linguístico. “A força determinante da forma histórica do tempo não pode ser totalmente aprendida por nenhum acontecimento empírico” (BENJAMIN, 2011, p. 262). Um elemento empiricamente indeterminado é ideia. Os fantasmas sempre se adiantam no seu atraso. Encenação tipográfica, teatro da escrita. Vaguei. De antemão, ficcionalizado; inscrito. Quixote desinstala todo o platonismo. Instala-se no auge do teatro tipográfico, não seria ele o tipo antes das figuras? Um contra-tipo a Sócrates de Platão? Até porque o que há e não existe, e existe, é a arte ali. Novamente, é e não é? Há de viver de cicatrizes de nenhuma ferida. A fissura, a abertura. Nos meios de D. Quixote. Fissura é sempre por onde se pode escutar e buscar ver; aprendemos isso com Duchamp. Toda tarefa artística está no ato de requerer um telos numa linguagem que o espectro da cultura não conhece, afirmando seu parentesco com o conhecimento discursivo, cuja diferença se acentua numa quase matemática “distinção entre finito e infinito” (ADORNO, 1993, p. 189). Eu não sei o que isso estabelece como questões de fato. O trivial é: escrever literariamente, ou escrever com ela, é impura perda. Impureza da perda; ou seja: nada se perde tudo se encontra impuro, ficcionalizado. Só há, portanto, o encontro com o outro. Esse fantasma radical. Isso porque convertemos o enunciador em locutor, o locutor em ator (como diz Lacoue-Labarthe); em personagem, em figura, em pura voz. Esquecemos do tipo. A Literatura encena a si como um movimento sem defesa num embate dramático com a própria arte, possibilitando recuperar, pelo ato de fazer, o caminho da arte, talvez. Entenda, abertamente, o “relato da viagem”, ou seja, o desempenho da leitura plasmado em exercício da escrita. Tudo a arquivar a loucura, o risco, o não saber e saber; não digo a morte, mas estamos perto. A morte só ganha identidade para o assassino. Louco D. Quixote e assim continua a viver. Muito mais que vivo. Diria: a fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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vida; a aventura é teatro tipográfico. Todo ele em Platão. Tantos outros ali e fora dele; ou seja: sem escapatória. O pensamento nasceu contado. O contar é o verbo da aurora do pensamento; ouvido e olvidado – a contrapelo, análogo à ideia de Derrida sobre a autonomia pétrea da escrita em face do seu contexto de origem (DERRIDA, 2011). A loucura, a paixão. Posições em abismo; no risco de haver (verbo de toda a natureza, no reverso do verbo existir), na proximidade da morte. O sujeito morre por ali. Nasce ali. Na linguagem. Há de contar e interrompido por um comentário. Qualquer um, qualquer outro. Há sempre pausas indevidas e, por isso, há arte. A presença da arte: ou bem se é a apresentação do presente no haver arte, ou nada de arte; ou bem se é capaz de repensar um pensamento, antropológico ou filosófico, que chega e barra os passos do saber e não saber da arte, fazendo-o se constituir como problema arte no pensamento, ou se tem de deixá-lo passar ao largo, renunciando a ele. A loucura se imita. A linguagem, a mimesis, a escrita, é coisa dela. O contrário e o avesso disso também. Num inválido sentido, vou indo. Findo. Aqui toda a minha responsabilidade e admiração por Lacoue-Labarthe. Não estou preocupado com a minha ida agora. Qualifico-me, desqualifico-me na direção de suas ideias. Talvez a direção vá má, como a arte. Estreitamente, mas vai. Vai no aforo inquietante dos textos. Aonde? Donde? Mas com o quê? Na tipografia? D. Quixote! O literário ainda... talvez! Poesia: pode significar uma mudança de ar. Quem sabe talvez a literatura percorra o caminho – também o caminho da arte – em busca de tal mudança de ar? ... talvez ela consiga aqui diferenciar estranheza de estranheza [...]. Talvez a partir daí o poema seja ele mesmo... e então pode, dessa maneira sem arte, livre da arte, ir pelo seu outro caminho, isto é, o caminho da arte – e sempre ir? Talvez (CELAN, 1999, p. 176-177).

Referências ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1993. BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1998. 62

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CELAN, Paul. Cristal. Tradução Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras, 1999. CERVANTES, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote da Mancha. Rio de Janeiro: Record, 2005. CAVELL, Stanley. En busca de lo ordinario. Valência: Frónesis, 2002. DIDEROT, Denis. Textos Escolhidos — Diderot. Tradução M. de S. Chauí e J. Guinsburg. São Paulo: Abril Cultural, 1979. DERRIDA, Jaques. A Escritura e a Diferença. Tradução M. B. M. Nizza da Silva, P. L. Lopes e P. de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2011. JOYCE, James. Ulisses. Tradução António Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. LACOUE-LABART, Philippe. A Imitação dos Modernos. Tradução V. de A. Figueiredo e J. C. Pena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983. MANN, Thomas. Doutor Fausto. Tradução H. Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

Marcus Alexandre Motta – [email protected] Manuscrito recebido em 26 de maio de 2015 e aceito em 26 de junho de 2015.

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A PROFISSIONALIZAÇÃO DO ESCRITOR NO BRASIL DO SÉCULO XIX* HOW TO BE A PROFESSIONAL WRITER IN 19TH. CENTURY BRAZIL

Marisa Lajolo Universidade Presbiteriana Mackenzie, Programa de Pós-Graduação em Letras, São Paulo, SP; Universidade Estadual de Campinas, Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária, Campinas, SP, Brasil Regina Zilberman Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Letras, Porto Alegre, RS, Brasil

Resumo: Trajetória do processo de profissionalização dos escritores brasileiros no século XIX. Do Privilégio ao direito autoral. Contratos, rendimentos e reivindicações dos autores nacionais. Palavras-chave: profissionalização; autoria; propriedade literária; direitos autorais. Abstract: The process of professionalization of Brazilian writers in 19th. Century. From Privileges to copyright. Contracts, earnings and demands of the Brazilian authors. Keywords: profissionalization; authorship; literary property; copyright.

À memória de José Mindlin, a cuja generosidade as autoras devem a consulta a alguns dos documentos aqui mencionados. Bravo! Ei-la a postos, a Literatura, Dos autorais direitos na defesa; E que é certa a vitória me assegura O ardor com que se lança à heroica empresa. D. Xiquote [pseudônimo de Bastos Tigre (1882-1957)]

* Com o título “How to be a professional writer in 19th. Century Brazil”, uma versão preliminar deste artigo foi publicada em inglês em: SILVA, Ana Cláudia Suriani da; VASCONCELOS, Sandra Guardini. Books and Periodicals in Brazil 1768-1930. A Transatlantic Perspective. Oxford: Legenda; Modern Humanities Research Association and Maney Publishing, 2014.

fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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A imprensa no Brasil nasceu sob o signo da negação. A área geográfica da América que, pelo Tratado de Tordesilhas, tocou aos portugueses foi alcançada em 1500 pela frota de Pedro Álvares Cabral (1467/8-c.1520). A ocupação do território não se deu logo a seguir, como, de resto, aconteceu em praticamente todo o Novo Mundo. As primeiras povoações começaram a aparecer só após o saque das riquezas de astecas e de incas e a exploração do pau-brasil, encontrado nas costas da América lusitana. A fundação de São Salvador, em 1549, de São Paulo de Piratininga, em 1555, e de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1565, marca o início do projeto de fixar população europeia em solo americano, provavelmente com o intuito de garantir sua posse, ameaçada por todo tipo de invasores, desde os piratas que cobiçavam a preciosa árvore que acabou por nomear a região, até os huguenotes liderados por Nicolas Durand de Villegagnon (15101571), que, nas cercanias da baía da Guanabara, estabeleceram a França Antártida, de curta duração (1555-1560). Desde essa época, a administração metropolitana proibia a existência de prelos, em atividade em Portugal a partir da ação empreendedora de Valentim Fernandes (14??-1518/9), no começo do século XVI. A medida estendia-se às possessões lusitanas na África, sendo que apenas na Ásia portuguesa a imprensa floresceu ainda no século XVI: os primeiros prelos desembarcaram em Goa, em 1556, e em Macau, em 1560, conforme cronologia bastante vizinha da que marca a chegada da imprensa às colônias espanholas na América: em 1539, ao México, e, em 1583, ao Peru (SODRÉ, 2011). No Brasil, suspendeu-se a proibição apenas em 1808, e ainda assim por intervenção parcial do acaso e direta do Estado. Em 1807, diante da ameaça da invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas, o então Príncipe Regente D. João (1767-1826) transferiu a sede da corte para o Rio de Janeiro, onde aportou no ano seguinte. Conforme relata Max Fleuiss (18681943), pouco antes do embarque, o governo lusitano recebera prelos e o material tipográfico encomendados da Inglaterra. Os caixotes ainda se encontravam na alfândega de Lisboa; “na precipitação do momento, foram remetidos para bordo da fragata Medusa, um dos navios da esquadra régia” (FLEUISS, 1930, p. 597). Como o funcionamento do Estado dependia da divulgação de legislação, normas e atos públicos, aproveitou-se o material destinado originalmente à metrópole e autorizou-se a implantação da Imprensa Régia em 1808. Após trezentos anos de presença portuguesa no território do Novo Mundo, os prelos podiam, enfim, operar com legitimidade, sob a bênção do 66

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futuro rei. Para imprimir livros, não bastava, porém, a existência legal de prelos e tipografias. Aliás, no Brasil das duas primeiras décadas do século XIX, a imprensa constituía monopólio do Estado1, não sendo permitido o estabelecimento de tipografias na condição de propriedade privada. A esse empecilho somava-se outro: a publicação de uma obra dependia da concessão de um privilégio, igualmente concedido pelo Estado. A prática do privilégio remonta ao século XV, quando, em 1469, foi outorgada a Johann von Speyer (?-c.1477), tipógrafo alemão radicado em Veneza, a permissão, por cinco anos, de explorar a arte impressora naquela república. Conforme José Martínez de Souza (1999, p. 152), a concessão do privilégio “impedia que [outro editor] pudesse publicar [a obra] durante o tempo de proteção estabelecido”. Artur Anselmo (1997, p. 14) registra que, em Portugal, “os privilégios editoriais começaram a aparecer no início do século XVI e cobriam, geralmente, o período de dez anos, durante os quais nenhum outro indivíduo, de qualquer estado ou condição, poderia mandar imprimir ou vender a mesma obra, nem trazê-la de fora do Reino”. Trezentos anos depois, o modelo que garantia ao Estado a concessão dos privilégios permanecia vivo em Portugal e em suas colônias, como era o Brasil, nas duas primeiras décadas do século XIX. Em outras partes da Europa, a prática era, porém, diversa, em decorrência da emancipação das atividades econômicas ligadas ao comércio e à indústria, não mais tuteladas pelo Estado absolutista. Além disso, movimentos em prol do reconhecimento e remuneração da atividade literária se expandiam desde meados no século XVIII, intensificando-se, sobretudo na Inglaterra, nos decênios iniciais do século XIX (WOODMANSEE, 1994; NEWLYN, 2003). Não era o que ocorria nesse Brasil que inaugurava a utilização da imprensa. Ou seja, na cultura brasileira, podem ser considerados quase simultâneos dois movimentos que, na Europa, estenderam-se por mais de um século: aqui coexistiram movimentos de acomodação, por parte de uma cultura tradicionalmente ágrafa, ao mundo dos impressos, com ações em prol da profissionalização dos escritores. Em tal contexto, não surpreende que, no século XIX, se mostrem coextensivos diferentes maneiras de viabilizar economicamente a manufatura de livros, o que, de modo indireto, determinou variadas (ainda que sempre precárias) formas de profissionalização – ou ao menos, de remuneração – de quem elaborava o texto, uma das matérias-primas do objeto livro. Exceção feita à tipografia de Manuel Antonio da Silva Serva (?-1819), cuja instalação, na Bahia, foi autorizada expressamente, em 1811, por D. João (CASTRO, 1984). 1

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O percurso da legislação, nesse período, fala desse duplo movimento, em que privilégios, de um lado, e luta em prol do reconhecimento dos direitos autorais, de outro, disputam, na Europa e no Brasil, um lugar no espaço público. Data de 12 de julho de 1821 a Lei da Liberdade de Imprensa, que, ao abolir a censura prévia em Portugal, reconhece, no Art. 2, a propriedade literária. Três anos depois, com o Brasil já emancipado desde 1822, a Constituição nacional incorpora duas posições de cunho liberal: os privilégios, exceto os de utilidade pública, são extintos, e seus poderes, no caso da propriedade intelectual, transferidos para os criadores; e assevera-se que os inventores detêm a propriedade intelectual das suas descobertas ou das suas produções e conservam essa prerrogativa por algum tempo. O privilégio migra do Estado para o autor, cuja propriedade sobre seus produtos é reconhecida. A legislação brasileira não incorpora o tom progressista do Federal Copyright Act norte-americano, mas, de algum modo, ressoam, em sua formulação, conteúdos dali emanados. Porém, a garantia da propriedade intelectual não é objeto de uma legislação específica, e sim matéria do Código Penal, de 1830, cujo artigo 261 refere-se explicitamente à garantia da propriedade literária, sendo considerado crime apoderar-se de um escrito ou estampa de um cidadão brasileiro enquanto ele estiver vivo ou antes de dez anos após sua morte. A punição vem na forma do confisco dos volumes publicados ou do pagamento de multa, que leva em conta o “valor dos exemplares”. Para o jurista J. M. Vaz Pinto Coelho (1836-1894), em artigo publicado na Revista Brasileira entre 1880 e 1881, é o Código Penal que expressa o reconhecimento, mesmo que por via indireta, do direito do autor à sua propriedade intelectual. Tanto que sentença de 1871, calcada no artigo 261, afiançou a posse, por seus herdeiros, da obra Guia Médico-Cirúrgico, de José Henriques de Proença, indevidamente publicada por outro editor (COELHO, 1880, 1881; HALLEWELL, 2005, p. 244). Se, em Portugal, o artigo constitucional que atribuía aos inventores “a propriedade de suas obras ou de suas produções”, de 1826, foi posterior ao brasileiro de teor similar, naquele país as discussões relativas à regulamentação dos direitos de autor anteciparam-se às que vieram a ocorrer entre nós. Os debates lusitanos, nascidos com a aprovação da Constituição, intensificamse nas décadas de 1830 e 1840, graças, sobretudo, à vigorosa participação do então parlamentar Almeida Garrett (1799-1854), alcançando sua aprovação em 1851. No Brasil, propostas equivalentes foram relegadas ao esquecimento, embora se registrem ao menos três iniciativas parlamentares. 68

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O primeiro projeto foi formulado, em 1856, pelo deputado pernambucano Aprígio Justiniano da Silva Guimarães (1832-1880), e o segundo, proposto um ano depois, pelo igualmente deputado Bernardo Avelino Gavião Peixoto (1829-1912), com fito semelhante e, à primeira vista, conteúdo idêntico (NEVES, 2011; BIGNOTTO, 2007). Aprígio Guimarães chegou a publicar, em 1859, o opúsculo Propriedade literária: histórico e sustentação de um projeto a respeito, apresentado à Câmara dos senhores deputados em 14 de agosto de 1856, mas os resultados devem ter sido mínimos, reduzindo-se provavelmente à sua leitura por Bernardo Peixoto. Igualmente pouco convincente deve ter sido o projeto de autoria de José de Alencar (1829-1877), proposto em 1875 à Câmara de Deputados2. Alencar exercia, na ocasião, mandato parlamentar, na sequência da atuação como deputado pela província do Ceará e como ministro da Justiça, entre 1868 e 1870. Mas notabilizara-se nacionalmente como dramaturgo e, sobretudo, como ficcionista; talvez a dupla experiência – política e literária – tenha conduzido à proposta de legislação focada na proteção da propriedade literária. No primeiro artigo do projeto, o proponente define o que entende por “propriedade literária e artística”, que goza da mesma materialidade da “propriedade em geral”, razão porque deve receber da legislação garantias iguais, tal como sua transmissão aos herdeiros “sem limitação de tempo” ou “distinção de nacionalidade”. Na fundamentação do projeto, que acompanha a proposta, o deputado exemplifica como entende a questão da materialidade da obra, bem como os direitos de transmissão: “A joia de ouro que se transmite na família, de geração em geração, não é nem mais preciosa, nem mais sua, do que devia ser o poema de José Basilio da Gama, cujos parentes ainda existem” (ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO, 1875). O segundo artigo destina-se a proteger os direitos de reprodução da obra, detidos exclusivamente pelo autor e seus sucessores, a não ser quando cedidos “por escritura pública”. O artigo expõe igualmente o conceito de obra adotado por Alencar, redutível à sua “essência ou substância”, expressa pelo “título”, quando este for produto da “invenção do autor”, a “forma”, compreendida como “estilo”, e seu “plano”, se decorrer de “criação própria”. Alencar compartilha, pois, moderna concepção de obra literária, caracterizada pela originalidade, o que a faz única, razão porque remete a um autor nomeado e seu proprietário. Devemos a Valéria Augusti, a quem agradecemos, os dados relativos ao projeto de José de Alencar. 2

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A insistência nas noções de propriedade e criatividade explica-se no artigo 3, relativo aos crimes de contrafação, que minavam a indústria do livro no Brasil, prejudicando, sobretudo, os autores que desejassem sustentar-se financeiramente com dividendos auridos do exercício de sua profissão intelectual. Alencar experimentava esse problema desde a publicação de O guarani, em 1857, objeto de pirataria no mesmo ano de seu lançamento em livro (HOHLFELDT, 2003). Não apenas o romancista era vítima da contrafação; obras de escritores portugueses como Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco (1825-1890) circulavam no Brasil, na maioria das vezes, à revelia dos autores, não remunerados, de modo que edições piratas eram frequentemente mais lucrativas, à custa da retração da produção local. Por sua vez, o Estado brasileiro, representado por Pedro II (1825-1891), não se manifestava, pois o monarca acompanhava a posição de Alexandre Herculano (1810-1877), contrária ao reconhecimento da propriedade literária e favorável ao mecenato (HERCULANO , 1999). Contudo, talvez o autor de Iracema não precisasse advogar em causa própria. Um ano antes de encaminhar ao parlamento sua proposta, assinara contrato com seu editor, Baptiste Louis Garnier (1823-1893), recebendo “um conto e cem mil reis”3 pela impressão dos romances Diva, Iracema e As minas de prata, obras que não eram inéditas, tendo sido publicadas respectivamente em 1864, 1865 e 1866. Mas José de Alencar era inimigo político do imperador, que lhe recusara a senadoria vitalícia em 1870; além disso, deveria estar preocupado com o destino financeiro de sua família após seu falecimento, apreensão justificada, como sugerem depoimentos relativos à condição miserável a que eram relegadas as viúvas de escritores (LAJOLO; ZILBERMAN, 2001). Alencar não se limita a propor o artigo 3, relativo ao “crime da contrafação”, punível com “as penas de furto”, matéria também das inquietações dos precursores Aprígio Guimarães e Bernardo Peixoto. Inclui ainda o artigo 11, em que indica quem poderia julgar os responsáveis pelo delito: um “júri de três escritores”, solução coerente com a condição do proponente que, deputado na ocasião da elaboração do projeto, fora sempre um artista. Entretanto, tal como ocorrera às iniciativas anteriores, a de Alencar não prosperou, a não ser na memória de alguns intelectuais que, em 1877, quando do enterro do romancista, aventaram a fundação da Sociedade Disponível em: . Acesso em: 22 dez. 2011. 3

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José de Alencar (MAGALHÃES JUNIOR, 1966), destinada à defesa dos interesses dos escritores, medida que também não avançou. A almejada legislação, durante o reinado de Pedro II, não se concretizou, tendo de aguardar a instalação do regime republicano, aprovada apenas em 1898, na sequência de reivindicações que tomaram mais de cinco anos. O artigo inicial da lei brasileira de 1898 não apresenta diferenças substanciais de conteúdo, se comparado ao que rezava a Constituição de 1824. Passa, contudo, para o primeiro plano o reconhecimento dos “direitos autoraes”4, substituindo a noção de propriedade e encerrando um debate que ocorreu na Europa do século XVIII e, no Brasil, ocupou o oitocentos, com intensidade maior em sua década final. Em linhas gerais e sumárias, o quadro cronológico das contendas relativas ao reconhecimento da propriedade intelectual e literária no Brasil toma aproximadamente oitenta anos. Antes dele, vigoravam os privilégios, depois de sua abolição, a aceitação de que o autor era responsável e senhor de sua criação artística ou científica, mas somente após 1898 pôde esse indivíduo contar com a proteção legal de que carecia. A concessão de privilégios aparece documentada em obras publicadas no Brasil no início do século XIX, caracterizando-a como a forma legal de estabelecer algum tipo de vínculo econômico entre um autor e o objeto livro do qual faz parte seu texto. É o caso da Corografia brasílica, de Aires de Casal (1754-1821), que em 1817 recebeu um privilégio real. No texto, que assegura ao autor privilégio de vender e imprimir o livro, algumas passagens materializam e exemplificam os direitos garantidos por tal concessão. O documento estipula um prazo de vigência – catorze anos – e o direito de sucessão – “o mesmo privilégio possa por morte do suplicante passar aos seus herdeiros, ou a quem ele o deixar, contanto que não exceda o espaço dos ditos catorze anos concedidos” (CASAL, 1817). Ao mesmo tempo, e de forma talvez ainda mais sutil, sugere também um momento em que a importação de livros, seu trânsito de um país para o outro, era corrente, condição talvez acirrada no Brasil pela longa proibição da existência de gráficas em seu território. Se, em 1817, tanto Brasil quanto Portugal faziam parte do território que o decreto intitula “meus Reinos e Domínios”, a necessidade da explicitação desta cláusula pode sugerir a consciência do legislador do trânsito clandestino de livros entre diferentes pontos do planeta. Por sua vez, a concessão do privilégio estava plenamente justificada, Disponível em: . Acesso em: 21 dez. 2011. 4

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já que a obra era “fruto de muitos anos de trabalho, em que [o autor] fizera consideráveis despesas” (CASAL, 1817). Mas essa deveria ser uma desculpa de praxe, pois, conforme destaca Lúcia Maria Bastos Neves (2011), também é utilizada para outorgar a prerrogativa real a Antônio José Osório de Pina Leitão (1762-18??), que almeja lançar o épico Alfonsíada. Ao estabelecer a pena em que incorreriam os infratores, a de “perderem todos os exemplares dela, que lhes forem achados, metade para o denunciante, e outra metade para os cativos” (CASAL, 1817), identifica-se a manutenção, no século XIX, de medidas legais originadas na Idade Média: a “metade para os cativos” corresponde a um tipo de imposto a ser utilizado no resgate de prisioneiros de guerra. Que essa sanção era igualmente rotina documental, sugere-o a pesquisa de Lúcia Maria Bastos Neves, ao informar que as Memórias históricas do Rio de Janeiro, de 1820, de José de Souza Azevedo e Araújo Pizarro (1753-1830), estavam protegidas pelo privilégio, que impedia ser aquela obra vendida, impressa ou importada por outro livreiro ou tipógrafo, sob pena de perda dos exemplares, que ficariam “metade deles para o denunciante, a ‘outra metade para os cativos’”. Se pensarmos que nem sempre a finalidade precípua de uma verba governamental é respeitada em sua efetiva aplicação, podemos cogitar que a fraude de um privilégio interessaria ao Estado, que se beneficiaria, ao taxá-la pesadamente. Não apenas a menção ao velho imposto destinado à “remissão” ou “redenção” dos cativos confere traço arcaico ao documento. O ajuste de uma publicação ser regulado por um privilégio parece prolongar, no século XIX brasileiro, práticas muito antigas, correspondentes a outro estágio da civilização do livro e do impresso. É preciso sublinhar, porém, que, se a concessão do privilégio ameaçava o autor com penas legais, de outro lado, afiançava a proteção do Estado para o produto final, o livro. A abolição dos privilégios e o término do monopólio estatal sobre as empresas gráficas determinaram a adoção do regime da livre iniciativa no campo industrial das casas impressoras, deixando os escritores ao arbítrio do mercado. Em uma região em que grassava o analfabetismo mesmo entre a população livre (a educação dos escravos de origem africana esteve vetada até 1860), alcançar a aprovação da tipografia para a edição de um livro era tarefa ingrata a ser desempenhada pelos autores. Não que tipografias, que podiam imprimir jornais, material para anotação, e até livros, destinados, sobretudo, ao emergente mercado escolar, principalmente na Corte, fossem um mau negócio. Tanto que impressores nascidos na Europa migraram para o Brasil e instalaram prósperas empresas (LAJOLO; ZILBERMAN, 2002). Mas, da sua parte, aos autores, senhores 72

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sem dúvida de sua propriedade artística, cabia correr atrás de recursos para produzir seus livros; e, depois, procurar leitores (e nem precisavam necessariamente ser leitores) para adquirir suas obras. Dois casos ilustram a difícil situação. Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), em 1829, não era propriamente uma pessoa desconhecida no meio cultural e político carioca. Fora pregador na Capela Real desde 1808, ano da chegada da família real portuguesa ao Brasil, e professor, desde 1814, de Filosofia Moral e Racional. Pertencera à junta diretora da Impressão Régia e, antes da independência política, publicara, junto com Gonçalves Ledo (1781-1847), o Revérbero Constitucional Fluminense, para Carlos Rizzini (1957, p. 166), “o mais importante panfleto político do tempo”. De Pedro I recebeu o grau de Oficial da Ordem Imperial do Cruzeiro, e conquistou, em 1824, o lugar de cônego na Capela Imperial, tendo sido eleito em 1826, deputado pelo Rio de Janeiro. Não se reelegendo, foi nomeado diretor da Tipografia Nacional e do Diário Fluminense, órgão oficial sucessor da Gazeta do Rio de Janeiro. Esse currículo, porém, não bastou para poupá-lo de recorrer à subscrição, como forma de viabilizar a publicação de seu Parnaso Brasileiro, talvez a primeira antologia de poemas brasileiros editada no país. Subscrições eram a alternativa para a manutenção de um periódico desde o aparecimento desses veículos no Brasil colônia. Ao lançar na Bahia, em 1811, por intermédio da tipografia de Manuel Antônio da Silva Serva, As Variedades, ou Ensaios de Literatura, provavelmente a primeira revista literária da história brasileira (SODRÉ, 2011), seu editor, Diogo Soares da Silva de Bivar (1785-1865), valeu-se desse expediente. No anúncio do lançamento do periódico, ele promete que “o preço de cada folheto se fixa em 480 réis para os assinantes, pagos adiantados de 3 em 3 meses, e para os que o não forem se venderá a 560 réis” (AS VARIEDADES, 1992). Na abertura do primeiro número, Bivar justifica por que o público leitor deve acolher a proposta de adiantar o pagamento. Evidencia também o problema que atormentará, por todo o século XIX pelo menos, os impressores brasileiros: as despesas tipográficas eram mais caras na colônia que na metrópole, fragilizando a indústria local diante do concorrente estrangeiro: Se esta tarefa for tida em alguma conta, assim pela sua disposição, como pela sua novidade neste país, esperamos que o público se apressará de concorrer para a subscrição que se há de abrir na loja da Gazeta, bem persuadido o mesmo público de que sem a antecipada certeza de uma pronta saída, não é possível que semelhantes empresas se levem avante, e mormente em um país

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em que as despesas de impressão excedem em muitas que se fazem na Europa (AS VARIEDADES, 1992).

Bivar não foi bem sucedido em seu empreendimento, pois As Variedades não ultrapassaram o terceiro número (ou um segundo número duplo, conforme Sodré). Cunha Barbosa não deveria ter problema similar, já que, à época do lançamento do Parnaso Brasileiro, dirigia a Tipografia Nacional, herdeira da Imprensa Régia, fundada por D. João. O texto, constante na quarta capa do segundo volume do livro, lançado em 1831, desmente a hipótese. Ao nomear o local das subscrições, o texto sugere uma parceria – rendosa a médio e longo prazo – entre autores presuntivos e estabelecimentos relacionados a imprensa e a livros. Veiga e Plancher5 são livreiros, estabelecidos nos endereços mencionados pelo documento, e a Tipografia Nacional é a casa publicadora do Parnaso. Por sua vez, o anúncio permite ainda que se tenha uma ideia aproximada dos custos de uma obra no Brasil entre o final da terceira e o começo da quarta década do século dezenove. Observe-se antes que o preço da subscrição e do número avulso dos volumes do Parnaso era mais alto que seu correspondente de As Variedades. Diogo Bivar cobrava 480 réis por exemplar pago antecipadamente; depois de impresso, custaria 560 réis, um acréscimo de 15%. Januário pedia adiantado 500 réis (já que a subscrição estava orçada em 2000 réis) pelo volume, desde que “não contenham mais de oito folhas de impressão” (BARBOSA, 1999, p. 38); já publicado, passava a custar 600 réis, um aumento de 20%. Na época, um aspirante a oficial recebia 12$000 do governo, interessado em estimular a carreira da Marinha (AUTOBIOGRAPHIA DE C. C. OTTONI), valor próximo do que era pago a um professor de primeiras letras, cujo salário, conforme decreto federal de 14 de junho de 1830, correspondia a 150 mil réis anuais. Um diretor da Tipografia Nacional, cargo ocupado por Januário da Cunha Barbosa à época, ganhava 800 mil réis por ano, mais uma gratificação de 5% do rendimento líquido da oficina (LAJOLO; ZILBERMAN, 1996, p. 313). Logo, os dois mil réis que Januário solicitava aos assinantes podiam pesar no orçamento doméstico de um profissional de classe média que dependia de salário anual. O anúncio sugere ainda uma prática provavelmente corrente no mercado livreiro do período: cabia ao comprador – no caso, o subscritor João Pedro e Evaristo da Veiga (1799-1837) compraram a livraria de Silva Porto, situada na Rua da Quitanda. Posteriormente, os irmãos se separaram, fundando cada um sua própria loja. Pierre Plancher, emigrado francês, a partir de 1824 manteve gráfica e loja na rua do Ouvidor. 5

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– manter-se informado, pela leitura dos jornais, relativamente à efetiva publicação da obra. Corroboram esse hábito outros anúncios de lançamento de livros, encontráveis em periódicos da época ou de antes, já que as casas onde aqueles eram vendidos, se eram livrarias, não se limitavam a isso. Os livros compartilhavam, com outras mercadorias, o espaço da loja, não ocupando provavelmente o mais nobre, que os tornaria mais visíveis. Como a publicação dos dois volumes do Parnaso brasileiro estendeuse de 1829 a 1831, é de supor que ao renomado cônego não tenha sido fácil concretizar seus objetivos. Por outro lado, é de supor também que tenha alcançado mais sucesso que a sulina Delfina Benigna da Cunha (17911853). Nascida em São José do Norte, Delfina ficou cega aos vinte meses de idade. Deve ter recebido alguma instrução, pois, em 1826, dedica a Pedro I um poema em que solicita proteção, alegando sua dupla deficiência, visual e pecuniária: Quem te fala, Senhor, quem te saúda Não vê raiar de Febo a luz brilhante; Dá-lhe pio agasalho um breve instante, Seu fado imigo, em brando fado muda: A sustentar o peso assaz lhe ajuda De uma vida, que à morte é semelhante, Não chegue a ser aflita mendigante Quem um tal protetor roga lhe acuda. (CUNHA, 2001, p. 42)

Em outro soneto, agradece a ajuda real, uma pensão, mantida depois por Pedro II6: Apenas o meu triste mal soubeste, Egrégio Imperador d’alta memória, Tornar-me venturosa, enfim, quiseste: (CUNHA, 2001, p. 43)

A pensão provavelmente não bastou para a moça superar a dupla condição de cega pobre e poeta. Ao publicar seu livro, dirige-se primeiro aos leitores com sinceridade digna de nota, pois deixa evidentes a penosa situação financeira e a necessidade de vender a obra para assegurar a sobrevivência: Não é a glória quem me convida a fazer a presente publicação: nem posso ter Informa MúcioTeixeira (1921, Tomo II, p. 87): “D. Pedro I, logo que morrera o pai da nossa poetisa, estabeleceu-lhe uma mesada, que lhe permitia viver modestamente; essa pensão foi generosamente mantida por D. Pedro II, a quem Delfina consagrou mais de uma das suas inspiradas poesias”. 6

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pretensões a louvores; a minha obra os não merece, disso tenho consciência. Qual será, pois, o motor da audácia com que ao Público ofereço meus versos? Leitores, é a – necessidade! – A necessidade é o meu amor próprio, eu nem posso ter outro. Filha do Rio Grande, aí, nos estragos gerais, eu padeci, e padeci muito: foi-me forçoso recolher ainda uma vez ao Rio de Janeiro, mas preciso viver! Tenho precisão de recursos, e eu peço recursos, oferecendo em troca o único trabalho de que é capaz quem é cega desde o berço! Este pensamento é o único que devia estampar no frontispício desta obra, assim o fiz (CUNHA, 2001, p. 27).

Guilhermino Cesar (1908-1993) enfatiza as dificuldades econômicas da autora: O auxílio pecuniário da Coroa não bastava, talvez, à subsistência da poetisa, pois várias vezes se realizaram, no Rio, espetáculos em seu benefício. Em maio de 1840, no S. Januário, Delfina agradece ao público dizendo que ali comparecera tangida pela desventura, em busca de “sustento, paz e vida” (CESAR, 1956, p. 98, destaques do autor).

E complementa: “em 1842 vemo-la de novo constrangida, implorando no mesmo teatro a caridade dos fluminenses” (CESAR, 1956, p. 99): E foi então que ela teve de emigrar para o Norte. Passou a viver no Rio; viajou pela Bahia e pelo vale do Paraíba, em suas cidades então dominadas pela “nobreza do café”, onde teria encontrado repouso e consolação nas casas solarengas. Nas cidades de Parati, Lorena e Campos, colheu muitas assinaturas para a publicação de seu último livro. Só na primeira dessas cidades obteve a contribuição de cerca de 130 assinantes, enquanto as da sua província natal, reunidas, não chegaram a 200 (CESAR, 1956, p. 99).

A consolidação da prática de remunerar regularmente os escritores não ocorreu antes de 1840. Recebimentos registrados a partir de 1841, época em que o regime monárquico adotado após a separação política de Portugal se estabiliza, com a ascensão de Pedro II ao trono brasileiro. No mesmo período, são paulatinamente dominadas as revoltas regionais que ameaçaram a unidade do império durante a administração regencial, entre 1831 e 1840. A Corte carioca assumia e consolidava a supremacia cultural da nação, posição mantida até o final do século XIX. É, porém, depois de 1860 que se solidifica o modo particular de funcionamento do sistema brasileiro de remuneração dos escritores. Observando o período entre 1858 e 1872, verifica-se a hegemonia do livreiro Baptiste-Louis Garnier, que, desde meados de 1840, administrava a filial brasileira da empresa da família, sediada em Paris. Garnier inclui em 76

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seus catálogos autores de livros didáticos, necessários ao ensino secundário, em expansão no país, como J. B. Calógeras (1810-1878), Justiniano José da Rocha (1812-1862) e Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (18251876). E oferece um aparentemente bom contrato de publicação das obras a José de Alencar, celebrado por esse em narrativa memorialista redigida provavelmente em 1873: “Ao cabo de vinte e dois anos de gleba na imprensa, achei afinal um editor, o Senhor B. Garnier, que espontaneamente ofereceume um contrato vantajoso em meados de 1870” (ALENCAR, 1990, p. 70). Garnier, porém, não se limita aos então consagrados, pois, já em 1864, aposta no jovem Machado de Assis (1839-1908), que inaugurara sua colaboração junto àquele editor no ano anterior, ao participar da produção do Jornal das Famílias, cuja circulação estende-se de 1863 a 1878. Em 1864, Garnier e Machado de Assis assinam um contrato para publicação de Crisálidas, livro de poemas, sendo oferecidos ao autor 150 réis por exemplar vendido. Essa quantia aumenta cinco anos depois, quando lança Falenas, segundo livro de versos de Machado, remunerado a 200 réis o exemplar, o mesmo valor pago por volume do simultaneamente publicado Contos Fluminenses. Destaca-se, nos dois contratos, o fato de Garnier adquirir “a propriedade plena e inteira não só da primeira como de todas as seguintes” edições (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1939, p. 177), de modo que o autor abre mão de seus escritos. Observa-se também que, no caso de Crisálidas, o editor inicia os pagamentos após a impressão dos livros e na ocasião em que são expostos à venda. Com Contos Fluminenses e Falenas, a situação muda: não apenas Garnier aumenta o valor individual de cada volume, como paga antecipadamente a primeira edição, de mil exemplares, o que significa que Machado de Assis recebeu adiantado dois mil réis por cada um de seus livros. Tais gestos podem significar que Garnier não precisava se preocupar com a comercialização da primeira edição dos livros previstos, um de contos e outro de poemas; mas reservava-se o direito de lançar novas impressões, deixando para mais adiante a definição da época da publicação e do número de volumes. Como esses livros não foram reeditados antes do início do século XX, é de supor que Garnier conhecia o alcance mercantil de seus editados, não se comprometendo com o futuro deles a médio prazo. Nos contratos assinados entre 1864 e 1869, Machado de Assis vende sua propriedade literária, renunciando aos direitos sobre elas. A prática não é exclusiva dele, correspondendo ao procedimento usual dos intelectuais brasileiros do período. Calógeras é um dos poucos que foge ao modelo, pois, fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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mediante pagamento, cede a primeira edição de sua obra, indicando que essa não poderá ultrapassar a impressão de dois mil exemplares. O historiador compromete-se a não reeditar o livro, enquanto a obra permanecer em estoque; da sua parte, Garnier remunera-o regiamente, pois compra seu produto por “um conto e seiscentos mil réis” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2001, p. 97). João Batista Calógeras, autor do Compêndio da História da Idade Média, título abreviado para História Média no contrato de Garnier, era europeu: nascera na Grécia e formara-se em Paris, radicando-se no Brasil em 1841 (PATRONOS. Cadeira 12). Sua procedência talvez justifique por que seu contrato aparentemente transfere menos poderes ao editor, já que Garnier não adquire a propriedade literária da obra, limitando-se à primeira edição de dois mil exemplares. Por outro lado, Calógeras é refém do empresário, já que os preciosos “um conto e seiscentos mil réis” servirão para abater sua dívida junto à casa que o publica: “a quantia [...] lhe fica creditada em dedução da quantia de que é devedor ao Sr. Garnier”. De todo modo, a desigualdade entre o modo de contratar Calógeras, de uma parte, e, de outra, Machado, aponta para uma concepção diferenciada das relações entre o autor e seu produto artístico ou intelectual. Calógeras não perde seus direitos, já que as próximas edições serão negociadas com Garnier ou com outra empresa; Machado, como a maioria de seus contemporâneos, vende sua propriedade, renunciando à posse dos textos. Assim, no Brasil do século XIX, tal como ocorre na Europa do final dos setecentos e início do oitocentos, vigoram dois conceitos – o de propriedade literária e o de direitos autorais – que não são sinônimos. O primeiro predominou no período, ao menos no Brasil, já que o segundo ainda não estava consolidado, o que só acontece quando sancionada a Lei n. 496, de 1o agosto de 1898, que define e garante os direitos autorais. Em ensaio sobre a história dos direitos de autor, Anne Latournerie observa que a expressão “direitos de autor” aparece tardiamente. É em 1838 que aparece o primeiro livro que emprega a expressão “direitos de autor” no título – o Traité des droits d’auteurs, dans la littérature, les sciences et les beauxarts, de A.-C. Renouard (1838): O uso dessa palavra, inventada pela doutrina, seria assim generalizada e desenvolvida ao longo da segunda metade do século XIX, mesmo que isso não impedisse o emprego concomitante da noção de “propriedade” literária e artística. As nuances de vocabulário escondiam também debates de fundo sobre a filosofia e a natureza real dos direitos em jogo (LATOURNERIE, 2001, destaques da autora).

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Calógeras parece ter tido, em suas negociações editoriais, uma carta na manga: sua obra fora aprovada pelo Conselho da Instrução Pública, conforme indica o contrato, circunstância que talvez justifique por que o valor de um livro destinado à escola era tão mais elevado que um livro de poemas. Mercadorias, ambos, dirigem-se eles a consumidores distintos. A obra de conteúdo didático conta com público cativo, podendo ser produzida em maior quantidade. Assim, o historiador J. B. Calógeras pode receber 1.600$000 por seu compêndio, que alcançará a marca de dois mil exemplares, quando mesmo obras como o Meandro poético, de Fernandes Pinheiro, coletânea de versos brasileiros já então canônicos e também destinados à “mocidade dos colégios”, como define Machado de Assis (ASSIS, 1959b, p. 245), não superam mil volumes, por ocasião de seu lançamento. O livro de Calógeras, depois de impresso, mostra-se lucrativo, pois seus dois tomos, encadernados, são postos à venda, em 1865, por 6$500 réis, significando que bastava comercializar cerca de 25% dos exemplares para recuperar a remuneração paga ao autor7. Cabe lembrar que não era barato produzir livros no Brasil dos oitocentos e que Garnier, desde 1862, imprimia seu catálogo em Paris, decisão que suscitou, de um lado, a ira dos trabalhadores gráficos (HALLEWELL, 2005), de outro, o elogio de Machado de Assis: “A impressão, feita em Paris, é o que são as últimas impressões da casa Garnier: excelente” (ASSIS, 1959b, p. 246)8. Pode-se cogitar que o ganho do editor correspondia aproximadamente a 50% do preço comercializado, garantindo sua fortuna. Somem-se a isso dois fatores: o rendimento não se restringia ao livro de Calógeras, por exemplo, pois cálculo similar pode ser aplicado a obras como as de Justiniano José da Rocha e Fernandes Pinheiro. Além disso, o editor recompensava de modo desigual seus autores, mesmo quando ocupavam nicho semelhante, como é o caso do livro didático. Assim, Justiniano José da Rocha recebia menos que Calógeras, e Fernandes Pinheiro obtinha mais dinheiro quando se dedicava a obras de conteúdo religioso do que quando se voltava à literatura dos brasileiros: o Catecismo de doutrina cristã rendeu-lhe 1$800.000, em contraposição ao Meandro poético, que custou 300$000 a Garnier. Significativo é igualmente o teor dos contratos assinados entre Cf. “Livros à venda na mesma livraria”, separata anexada ao quinto tomo da História da fundação do império brasileiro, de J. M. Pereira da Silva (1817-1898), publicado por Garnier, em 1865. A título de comparação, Compêndio de história antiga e Compêndio de história da Idade Média, obras de Justiniano José da Rocha igualmente contratadas por Garnier, eram vendidas, em versão encadernada, cada uma delas a 2$400 réis. 7

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Publicado originalmente no Diário do Rio de Janeiro, em 22 de novembro de 1864.

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escritores brasileiros atuantes, sobretudo, na segunda metade do século dezenove e editores sediados no Rio de Janeiro, lugar onde se instalavam as principais empresas nacionais vinculadas à indústria do livro. Destaca-se, de 1872, interessante exemplar de contrato estabelecido entre Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (1825-1884) e Garnier, que já contava, em seu catálogo, com O garimpeiro, romance daquele escritor. Aparece, neste e no contrato anterior, de 18709, a presença da identificação explícita de “autor” e de “editor” na indicação das partes contratantes, denominações ausentes nos documentos que os antecedem cronologicamente. Observa-se também que, já às primeiras linhas, os dois textos fornecem uma espécie de cartografia do mundo livresco brasileiro da época: um autor residente em Ouro Preto, na província de Minas Gerais, recorre a um editor do Rio de Janeiro, sede da administração pública nacional, para a publicação de suas obras. Na sequência, o contrato de 1872 menciona lado a lado as expressões “propriedade” e “direitos de autor”, e antecede com o possessivo “suas” o substantivo “obras”, sugerindo a superposição de duas noções que, na ocasião, como se apontou, pautavam os debates sobre as prerrogativas dos escritores sobre sua produção literária. O contrato de Bernardo Guimarães mostra como as “obras” são concebidas enquanto “propriedade” do autor que, por ser seu proprietário, pode vendê-las. Ao mesmo tempo, na medida em que a venda configurada pelo contrato inclui os “direitos do autor”, registra-se o reconhecimento da existência daqueles, conforme uma legislação que regulamenta as relações – direitos e deveres – que regem a posse de uma obra. A quantia estipulada para a aquisição das duas obras – “seiscentos mil réis” – é igual à que Machado de Assis recebe, em 1876, pela venda do romance Helena, e mais do que rendera O garimpeiro, cedido, em primeira edição, por “quinhentos mil réis”. As condições de pagamento, garantido “ao primeiro pedido do autor”, parece desvincular a remuneração do escritor e o efetivo lançamento da obra, situação, aliás, que Machado igualmente havia superado. Por sua vez, o contrato de 1872 não faz menção a edições subsequentes dos textos de Bernardo Guimarães, quando, em contratos assinados, em 1869, por Machado, encontra-se cláusula referente a reedições, prevista também no documento relativo a O garimpeiro. Talvez Garnier tivesse desistido de acreditar que livros brasileiros alcançassem novas edições; ou então começasse a adotar a prática de que o romancista Disponível em: . Acesso em: 26 dez. 2011. 9

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Coelho Neto (1864-1934), por meio de uma das personagens do romance A conquista, de 1898, o acusou: reimprimir indefinidamente os obras de seus editados, sem prestar contas a eles (COELHO NETO, 1985). De todo modo, parecem, em 1872, ir longe os tempos do privilégio. Permanecem, no entanto, as práticas – correntes até este início de século XXI – de estabelecimento de um prazo para a vigência do contrato e da transferência de direitos e deveres de autores e editores a seus herdeiros e sucessores. Em 18 de julho de 1874, um recibo de Bernardo Guimarães documenta o valor recebido por outro de seus livros, A captiva Isaura: 600$000 réis, indicando, nos anos 70 do século XIX, certa estabilidade no valor dos livros contratados por Garnier. Seis anos depois, em 1878, outro documento assinado entre Bernardo Guimarães e Garnier inclui, entre as obras acordadas, o título O pão de ouro, citado no contrato de 1872. No texto de 1878, a cláusula primeira dá quitação do valor acertado pelas duas obras: 600$000 réis, especificando a seguir “já pagos”, expressão que dialoga com cláusula de 1872 que registra que seiscentos mil réis “serão já pagos ao primeiro pedido do autor”. A razão para esse procedimento talvez se deva à distância geográfica que separava autor e editor. É o que sugere carta de Bernardo Guimarães a Garnier, escrita em Ouro Preto e datada de 25 de fevereiro de 1870, em que declara aceitar as condições propostas para a publicação de O garimpeiro.10 Segundo o documento, o remetente envia a carta junto com a cópia do contrato assinado por ele. Informa ainda que autoriza a entrega da “quantia de quinhentos mil réis” aos senhores João Antônio de Mattos e Cia., “por conta do Sr. Moritz Mayer Sohn”, encarregado de seus negócios. Aparentemente, Bernardo Guimarães recebeu duas vezes por O pão de ouro, já que esse livro de contos veio a público apenas em 1879. Mas A captiva Isaura, lançada, em 1875, com o título de A escrava Isaura, fora na época – e assim permaneceu – grande sucesso editorial, o que provavelmente colocava seu criador em condições de barganhar com o impressor. Preços e contratos estabilizam-se, nos anos 1870, em torno aos 600$000 réis pagos por Garnier por uma ou mais obras. Na década seguinte, o mais prestigiado editor brasileiro aparentemente diminui o valor de seus adiantamentos e aumenta as exigências. Recibo assinado por Machado indica que o editor responsabiliza-se apenas pela compra da primeira edição e registra compromisso explícito do autor de não reimprimir a obra antes de esgotados os exemplares à venda. Disponível em: . Acesso em: 26 dez. 2011. 10

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Por Histórias sem data, Machado obtém 300$000, quantia inferior à oferecida por Helena, em 1876 (600$000). Algumas hipóteses podem ser formuladas a respeito: Garnier, na ocasião, praticamente monopolizava a indústria brasileira do livro, já que seus concorrentes dedicavam-se prioritariamente ao mercado escolar ou não passavam de tipografias que imprimiam obras na maioria custeadas pelos próprios autores, posição que dificultava o poder de barganha dos editados. Por sua vez, Machado não vinha sendo publicado por Garnier desde 1876, ano do lançamento de Helena. Os livros seguintes – Iaiá Garcia (1878), Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Papéis avulsos (1882) – foram impressos respectivamente por O Cruzeiro, gráfica responsável pelo jornal onde aquele folhetim primeiramente aparecera, pela Tipografia Nacional, empresa do Estado desde os idos de Januário da Cunha Barbosa, e por Lombaerts, do belga Jean-Baptiste Lombaerts (1821-1875) e seu filho Henri Gustave Lombaerts (1845-1897), este homenageado pelo ficcionista em comovido necrológio (ASSIS, 1958, p. 1019). Desde 1878, Machado deixara de colaborar para o Jornal das Famílias, não mais em circulação a partir daquele ano, participando, todavia, como contista, sobretudo, de A Estação, revista de qualidade gráfica superior produzida por Lombaerts, similar às equivalentes europeias, destinada à elite feminina da Corte (TEIXEIRA, 2010). Em 1884, talvez o ficcionista desejasse reatar os laços com seu primeiro editor, aceitando soma menor de dinheiro por um livro de contos, a maioria deles publicados anteriormente na Gazeta de Notícias e A Estação. Contudo, pode-se pensar também que a opção por lançar uma antologia de narrativas curtas, em uma época em que o conto não figurava entre os gêneros mais prestigiados, tenha sido a razão do rebaixamento do valor pecuniário da obra. Estaria o pagamento na dependência do gênero literário da obra? Histórias sem data é uma antologia de contos, enquanto O seminarista, A captiva Isaura e Helena são romances. Valores distintos para gêneros literários diferenciados e para escritores em posições desiguais na hierarquia do sistema literário é uma hipótese que se reforça por um documento mais antigo: o recibo de duzentos mil réis que, em 1860, Francisco Leite Bittencourt Sampaio (1834-1895) passa pela venda de um livro de poemas. Se o gênero da obra e a época do contrato podem justificar a quantia oferecida ao autor, é de registrar que Sampaio também desfruta de prestígio político e intelectual. Sergipano e espírita, foi governador da província do Espírito Santo, autor de letras musicadas por Carlos Gomes (1836-1896) e diretor da Biblioteca Nacional; por 82

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outro lado, o livro foi publicado em 1860, quando tinha 26 anos. Talvez a juventude do autor justifique o fato de seu livro de poemas receber um terço do valor atribuído aos colegas romancistas; ou talvez o gênero escolhido não sugerisse rendimento maior. É relativamente ao gênero poesia que alguns documentos de meados do século XIX compõem panorama mais detalhado das possibilidades que o mundo dos livros abria para profissionalização de intelectuais. Dois recibos identificam não mais o autor de um livro, mas a até hoje recorrente figura do organizador. Recibo de 1880 traz para a cena Alfredo do Vale Cabral (1851-1894), aqui introduzido não como chefe da seção de manuscritos da Biblioteca Nacional, posição que a história canônica da leitura no Brasil lhe reserva, mas como compilador de poemas de Laurindo Rabelo (1826-1864). A redação do documento sugere uma narrativa interessante: Garnier teria produzido um livro de Laurindo Rabelo, que falecera e deixara obras inéditas que interessavam ao editor publicar. A quantia mencionada pelo recibo, superior à que Bittencourt Sampaio recebera vinte anos antes, remunera a pesquisa e recolha de inéditos de Rabelo, cujas trovas Vale Cabral já divulgara na Revista Brasileira, em 1880. Por tarefa equivalente, mas aparentemente mais complexa do que a encomendada a Vale Cabral, e agora relativa à obra de Fagundes Varela (1841-1875), Visconti Coaracy (1837-1892) quatro anos depois recebe 150$000 réis, quantia inferior à oferecida àquele. A Cabral competia selecionar as que “não andam na edição do referido Sr. Garnier”11, enquanto que a Coaracy cabia reuni-las em um único produto, lançado, em 1892 em dois volumes. A questão torna-se mais instigante quando se compara o documento de 1884 com outro de 1880, assinado pela viúva de Fagundes Varela que registra ter recebido 726$000 réis por 605 exemplares de uma obra de seu marido: O evangelho, provavelmente Anchieta ou o Evangelho nas selvas, publicação póstuma (1875) lançada pela Livraria Imperial, impressa na Typ. de Brown & Evaristo com apresentação do editor. A hipótese mais provável é que Garnier, tendo arrematado o estoque da Livraria Imperial, tenha comprado da viúva os direitos relativos ao título. A edição da Garnier de 1892 das obras completas de Fagundes Varela, mencionada antes, informa que se trata de uma “edição organizada e revista, e precedida de uma notícia biográfica por Visconti Coaracy e de Trata-se das Obras poéticas, de Laurindo Rabelo, organizadas por Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1891), publicada por Garnier em 1876. 11

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um estudo crítico pelo Dr. Franklin Távora” (OBRAS COMPLETAS DE L. N. FAGUNDES VARELA, 1892). Esclarece-se o sentido da expressão “compilação das obras de Fagundes Varela” posta no recibo assinado por Coaracy, ao mesmo tempo que a transação levada a efeito entre a viúva do poeta e Garnier aponta a praxe – ou a lei – de passarem os direitos de autor a seus herdeiros, como rezam outros contratos já comentados. A última década do século presencia alterações no padrão dos contratos e dos pagamentos aos escritores. Machado de Assis, contudo, não parece ter sido mais bem aquinhoado. Por Quincas Borba, o ficcionista volta para o patamar dos 600$000, que alcançara quinze anos antes, tendo sua reeedição, em 1896, recebido 250$000 réis. A nova impressão de Memórias póstumas de Brás Cubas valeu os mesmos 250$000, tanto quanto o relançamento, em 1897, de Iaiá Garcia, originalmente publicado por O Cruzeiro. Mas o Garnier que assina os contratos nesse final de século é outro: Baptiste-Louis morrera em 1893, e até recebera louvado necrológio de seu editado mais famoso (ASSIS, 1959a, p. 395), mas isso não parece ter bastado para Hippolyte (1816-1911), irmão do falecido e seu herdeiro, oferecer ao escritor contratos mais vantajosos. É para Hippolyte Garnier, em janeiro de 1899, logo, pouco tempo depois de aprovada a legislação relativa aos direitos autorais, que Machado de Assis vende a “propriedade inteira e perfeita” (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1939, p. 186) de suas obras, composta até aquele ano por A mão e a luva, Americanas, Brás Cubas, Contos fluminenses, Crisálidas, Dom Casmurro, Falenas, Helena, História da meia-noite, História sem data, Iaiá Garcia, Páginas recolhidas, Papéis avulsos, Quincas Borba e Ressurreição, conforme o documento as identifica e aqui relacionadas em ordem alfabética. Por esse conjunto, o escritor recebeu oito contos, o que pode parecer um valor elevado, mas representa menos de seiscentos mil réis por titulo, abaixo do que vinha recebendo em contratos anteriores. Além disso, Aluísio Azevedo (1857-1913) recebera, dois anos antes, também de Hippolyte Garnier, dez contos, cedendo a “inteira e perpétua propriedade” (MENESES, s. d., p. 279) de Filomena Borges, Memórias de um condenado, O cortiço, O Coruja, O mulato, Pegadas e Uma lágrima de mulher. Assim, Aluísio abre mão de sete títulos, a mais de um conto de réis cada um, e nem cede toda sua produção, já que romances prestigiados como Casa de pensão não constam desse rol. Machado de Assis, por sua vez, produziu novas obras, o que requereu contratos suplementares. O de 1900 dá conta da edição das Poesias completas, que inclui as Ocidentais, além de Crisálidas, Falenas e 84

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Americanas, já pertencentes, conforme o documento, “ao sr. H. Garnier” (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1939, p. 186). Na nova negociação, o autor obtém 800$000 réis, o que indica um pequeno progresso junto ao editor; mas, para chegar a isso, cabe-lhe submeter-se a uma restrição: renunciar “aos direitos e benefícios concedidos aos autores pela nova lei de reaver a propriedade das suas obras com a condição de reembolsar o editor da importância recebida” (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1939, p. 191). A lei nem bem tinha sido implantada, pois sua regulamentação teve de aguardar as décadas seguintes, já em pleno século XX; mas os empresários, mesmo à distância, como Hippolyte Garnier, que residia em Paris, se precaviam, impondo regras draconianas a quem fizesse parte de seu catálogo. Machado parecia acomodar-se, contudo, a essas normas, pois, em 1902, procura vender a Hippolyte o volume de Várias histórias, publicado, em 1894, por Laemmert, que o comercializava, provavelmente com bom lucro, por 3$000 réis, em 1896, a se crer em informação de Olavo Bilac (1865-1918). Em correspondência de 1902, oferece-lhe a obra por 1:200$000 réis, mas contenta-se, pelo visto, com 1:000$000 réis. Não que o contista não se preocupasse com seu livro. Em carta de 10 de julho de 1903, Machado de Assis encaminha ao editor versão cuidadosamente corrigida de Várias histórias. Os cuidados se justificavam, pois, conforme as palavras do autor, a coletânea vinha sendo adotada pelas escolas, e tal procedimento poderia ser afetado pela quantidade de erros tipográficos encontráveis na edição original (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1939, p. 203). Alteração também no quadro editorial do final do oitocentos é a entrada em cena de um novo editor dedicado à ficção. Trata-se de Domingos de Magalhães, proprietário da Livraria Moderna, do Rio de Janeiro, que prestigiou, sobretudo, a emergente geração de ficcionistas filiados ao Naturalismo. Adolfo Caminha (1867-1897) lançou, em 1893, A normalista, por aquela editora, que igualmente produziu, do mesmo autor, mas em 1894, No país dos ianques, remunerado por 400$000 réis. Por cinco mil exemplares de O bom crioulo, o escritor cearense recebeu 2:000$000 réis, tiragem e quantia superiores àquelas que seus contemporâneos costumavam obter. Domingos de Magalhães ainda incorporou a seu catálogo o ficcionista Coelho Neto, a quem ofereceu um salário de 400$000 réis mensais por cinco anos. Não se sabe se o contrato exigia exclusividade do autor. Aparentemente não, pois carta do mesmo Coelho Neto, dirigida a outro importante livreiro e editor do período, Francisco Alves (1848-1917), sugere o compartilhamento de projetos de publicação de livros. Nesse documento, fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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o novelista solicita o comparecimento do editor a um almoço junto com o outro autor do mesmo livro, José Veríssimo (1857-1916). Espécie de preview de um livro a ser lançado? Exposição crua de falta de modéstia, dado o alto valor que Coelho Neto atribui a seu próprio trabalho, considerando-o “o mais original que se tem feito entre nós?” (Carta de Coelho Neto a Francisco Alves). Celebração do final de uma encomenda editorial? Dois anos depois, outra carta, também de Coelho Neto a Alves, talvez enfraqueça um pouco a sugestão de relações de solidariedade entre o autor e seu editor: Rio, 29-08-98 Meu caro Alves: Volto à carga. Não é uma insistência importuna, é uma emergência, um caso inadiável: a garantia do meu esforço. Não é justo que eu perca o que, com tanto sacrifício, comecei a acumular. Vence-se no dia 31 o meu seguro e eu vejo-me em dificuldades para saldar a apólice porque neste mês, com o nascimento do menino e despesas ocurrentes (?) foi-se todo o meu ganho. Peço-te que, no caso de não aceitares a minha proposta me adiantes sob penhor da mesma obra ou de outra a tua escolha, a quantia de 1.000$000 até seis de outubro próximo, impreterivelmente. Com isso, salvarei meu capital que, só por falta de cumprimento da promessa do Alberto Torres que nos marcou a data de 15 de setembro para recebermos a importância da Terra Fluminense, periga. Sabes que sou cumpridor de minha palavra, principalmente em questões delicadas de dinheiro. Conto contigo absolutamente Amigo (Carta de Coelho Neto a Francisco Alves)

Nesta carta, manifesta-se, de maneira inegável, a assimetria que vige entre ambos: logo ao início, a carta já sugere a negativa que teria recebido solicitação anterior do autor (“volto à carga”); na sequência, configura-se a gravidade da situação na qual o escritor recorre ao editor. Ao longo da carta, a figura de Francisco Alves adquire certo perfil de capitalista ou banqueiro, ao mesmo tempo em que empalidece o perfil profissional do escritor, que propõe hipotecar uma obra (“me adiantes sob penhor da mesma obra ou de outra, à tua escolha, a quantia de [...]”) como forma de socorrer-se em uma urgência. Francisco Alves é o último grande editor do século XIX brasileiro. Tal como os predecessores Garnier, Laemmert (fundada por Eduardo (18061880) e Henrique (1812-1884) Laemmert, originários da Alemanha) e Lombaerts, não nasceu no Brasil, para onde emigrou em 1863. Regressou a Portugal, mas retornou em 1876, a convite do tio, Nicolau Antônio Alves 86

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(1827-1902), proprietário da Livraria Clássica, fundada em 1854. Assumiu a direção dessa empresa por volta de 1882, mas a partir da década de 1890 dedicou-se ao ramo industrial, voltando-se particularmente para o segmento escolar, em expansão no período. Nessa condição, a editora de Francisco Alves acolheu a produção de cunho didático elaborada pela geração de que fazia parte Coelho Neto, e incluía nomes que viriam a constituir o cânone finissecular brasileiro, como Alberto de Oliveira (1857-1937), José Veríssimo, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Olavo Bilac. Como o investimento em livros escolares significava retorno garantido para autores e editores, os primeiros não se furtaram a participar do empreendimento, de que resultaram os por muitas décadas best-sellers Poesias infantis, de Olavo Bilac, Contos pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto, e Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manuel Bonfim (1868-1932). Além disso, Alves tinha a seu serviço os mais prestigiados autores dos então circulantes livros de leitura, elaborados por, entre outros, Abílio César Borges (1824-1891), o célebre Barão de Macaúbas, João Kopke (1852-1926) e Felisberto de Carvalho (1850-1898). Por outro lado, a situação deixava seguidamente os escritores cativos do editor, de que é sintoma a troca de correspondência entre Coelho Neto e Alves. Na argumentação daquele, transparece ainda a fragilidade do sistema econômico que estrutura a produção intelectual na menção à irregularidade de pagamentos prometidos por Alberto Torres (1865-1917), intelectual e então presidente do Estado do Rio de Janeiro. A obra mencionada na correspondência é Terra fluminense (Educação Cívica), de Coelho Neto e Olavo Bilac, destinada, conforme o subtítulo, ao ensino, e lançada tãosomente em 1898 pela Imprensa Nacional, a sucessora da Tipografia Nacional, logo, da Impressão Régia, em funcionamento desde os idos de D. João. Assim, quando o século está próximo de seu encerramento, e o Brasil inaugura o regime republicano, implantado em 1889, permanecem os problemas dos começos, justificando uma série de reivindicações e queixas, resumidas nos seguintes tópicos: a) o reduzido número de leitores e, sobretudo, de consumidores de matéria impressa, como proclama Machado de Assis em crônica de 1866 (ASSIS, 1962, p. 841), o que compromete a manutenção do sistema empresarial de impressão de livros; b) as dificuldades experimentadas pelo escritor que desejasse viver de seu trabalho intelectual, como denuncia José de Alencar; c) a concorrência desleal com o livro importado, já que o preço do fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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papel impresso era menor que o do “papel simplesmente liso, para escrever”, conforme esclarece F. Conceição em ensaio publicado na Revista Brasileira (CONCEIÇÃO, 1879, p. 607-611); d) a falta de regulamentação dos direitos autorais, que prejudicavam tanto os escritores brasileiros como os portugueses lidos no país, segundo acusação do dramaturgo lusitano Manuel Pinheiro Chagas (1842-1895), em carta dirigida a Pedro II (CHAGAS, 1879). As reivindicações dos escritores brasileiros começam a ser formuladas ao final do regime monárquico, intensificando-se, sobretudo, na primeira década do regime republicano. Este fora implantado em nome da modernização do país, e os intelectuais que lutaram por seu estabelecimento eram os mesmos que proclamavam a necessidade de valorizar o tipo de trabalho que eram capazes de produzir. O socialista Pardal Mallet (1864-1894) foi um dos primeiros a manifestar sua posição em prol do reconhecimento dos direitos autorais, conceito que prefere empregar, em vez da ainda então bastante usual noção de “propriedade literária”, segundo ele, característica de uma visão de mundo capitalista. O jovem militante da causa dos escritores formula a questão desde o prisma da relação entre o proprietário dos meios de produção e os operários, sublinhando o teor da exploração, por aqueles, do trabalho desses (MALLET, 1890). Se, nem sempre, os intelectuais adotam tão claramente o posicionamento político de Mallet, eles se revelam unânimes em um ponto, exposto por Adolfo Caminha (CAMINHA, 1895) e Olavo Bilac: os editores aproveitavam-se no trabalho alheio, com grandes vantagens para suas empresas. Nada mais expressivo que a crônica de Bilac de 24 de agosto de 1900. Logo na abertura, a menção a Artur de Azevedo (1855-1908) documenta a atualidade do assunto que dá título ao texto: “Direitos autorais” (BILAC, 2011, p. 50-51). Ao longo de seu desenvolvimento, Bilac faz um esboço histórico da situação vivida pelo escritor no Brasil e, com extrema ironia, trabalha os sentidos ideológicos e metafóricos da expressão “pão do espírito” a partir da qual se desqualificam reivindicações econômicas de intelectuais e escritores. Na pena irreverente do poeta, a figura do editor não sai incólume: o substantivo de que se vale para caracterizar a ação (“pirataria”) e o agente dela (“pirata”) são eloquentes da precariedade da situação vivida pelos escritores. Ao retomar a metáfora do “pão do espírito”, em uma divertida identificação com o mundo da produção, “padeiros e fornecedores”, fazendo às vezes de duplos de “escritores editores” e “compiladores”, equacionam a questão. E, ao encaminhar-se para o final da crônica, ao internacionalizar a 88

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questão, interioriza no texto (“quebram-nos os versos, escorcham-nos a prosa”) a questão da infra-estrutura literária e da materialidade da Literatura. Aspectos pelos quais seu texto se torna extremamente contemporâneo deste século XXI, quando certas vertentes dos estudos literários debruçam-se, com olhares renovados, sobre a articulação Literatura-sociedade. Referências ALENCAR, José. Como e porque sou romancista. Adaptação ortográfica de Carlos de Aquino Pereira. Campinas: Pontes, 1990. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1875. ANSELMO, Artur. Estudos de história do livro. Lisboa: Guimarães, 1997. AS VARIEDADES, ou Ensaios de Literatura. Reedição fac-similar. Salvador: Arquivo do Estado, 1992. ASSIS, Machado de. A Semana. São Paulo: Mérito, 1959a. ASSIS, Machado de. Crônicas. São Paulo: Mérito, 1959b. ASSIS, Machado de. Obra completa. v. 3. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. ASSIS, Machado de. Obra completa. v. 3. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962. AUTOBIOGRAPHIA DE C. C. OTTONI. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2012. BARBOSA, Januário da Cunha. Parnaso Brasileiro de Januário da Cunha Barbosa. Prefácios e índices. Organização, edição e apresentação por José Américo Miranda. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 1999. BIGNOTTO, Cilza Carla. Novas perspectivas sobre as práticas editoriais de Monteiro Lobato (1918-1925). Campinas: Ed. da Unicamp, 2007. BILAC, Olavo. Registro: crônicas da Belle Époque carioca. Organização Alvaro Santos Simões Jr. Campinas: Ed. da Unicamp, 2011. CAMINHA, Adolfo. Cartas literárias. Rio de Janeiro: s. e., 1895. fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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PARA LER A TEORIA: O EFEITO DE DESCONSTRUÇÃO E O FUTURO DA CRÍTICA READING THEORY: THE EFFECT OF DECONSTRUCTION AND THE FUTURE OF CRITICISM

Nabil Araújo Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo: Este texto enfoca a abordagem da “Teoria” como “gênero heterogêneo” na obra de Jonathan Culler, a fim de contrapor ao gesto estabilizador aí em jogo o “efeito de desconstrução” (Derrida) inerente a uma historiografia que, revertendo o discurso normalizado das teorias e metodologias do estudo literário, identifica-se com a reconstituição não do passado da crítica, mas de sua possibilidade de futuro. Palavras-chave: “Teoria”; crítica literária; efeito de desconstrução; monstruosidade; historiografia da crítica. Abstract: This text focuses on Jonathan Culler’s approach to “Theory” as “heterogeneous genre”, in order to contrast the stabilizing gesture at stake therein with the “effect of deconstruction” (Derrida) inherent to a historiography that, reversing the normalized discourse of the theories and methodologies of literary study, identifies itself with the reconstitution not of the past of criticism, but of its future possibility. Keywords: “Theory”; literary criticism; effect of deconstruction; monstrosity; historiography of criticism.

A novidade americana: “theory” como “gênero heterogêneo” Cerca de uma década atrás, Fabio Akcelrud Durão iniciava suas “Breves observações sobre a Teoria, suas contradições e o Brasil” com uma constatação taxativa: É apenas devido à nossa profunda ignorância em relação aos Estados Unidos que um fenômeno dos mais instigantes nas ciências humanas nos últimos quarenta anos pôde nos passar despercebido: o surgimento e consolidação daquilo que hoje já se convencionou chamar simplesmente de Teoria (DURÃO, 2004, p. 81).

fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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Sete anos (e diversos artigos sobre o assunto) depois, a já longa e prolífica cruzada do autor para dirimir o referido lapso ganharia sua síntese definitiva – Teoria (literária) americana: uma introdução crítica (2011) –, livro então destinado a preencher a lacuna editorial em torno da “Teoria” entre nós. De volta, contudo, ao pioneiro artigo de 2004, salta aos olhos que, nele, a obra em que mais ostensivamente se apoia Durão no sentido de caracterizar o dito “fenômeno” ignorado pelos brasileiros – Literary theory: a very short introduction (1997), de Jonathan Culler – é citada justamente a partir de sua edição brasileira – Teoria literária: uma introdução (1999) –, surgida dois anos depois da publicação original, e, desde então, um dos títulos a que mais frequentemente se referem neófitos e especialistas, no país, quando se trata de discutir a dimensão e o papel da teoria nos estudos literários e culturais. Acrescente-se a isso o fato de já contarmos, àquela altura, com uma edição corrente de On deconstruction (1982) – Sobre a desconstrução (1997) –, outro importante e influente livro de Culler acerca do mesmo “fenômeno” abordado por Durão, como fica claro por seu subtítulo – “Theory and criticism after Structuralism” [Teoria e crítica depois do estruturalismo] –, e se faz preciso admitir que a “ignorância” de que fala então o autor não era assim tão “profunda”, nem tão grande e vergonhoso o desconhecimento, por parte do público acadêmico brasileiro, em torno “daquilo que hoje já se convencionou chamar simplesmente de Teoria”. Parece-me, pois, que nosso problema maior a esse respeito é menos o do acesso à informação do que o do modo privilegiado pelo qual esse acesso se dá entre nós: e aqui seria preciso, antes mais nada, evidenciar o deletério efeito acadêmico-pedagógico da abordagem do “fenômeno” da “Teoria” empreendida nos célebres manuais de Culler – até para que se possa aquilatar o quanto dessa abordagem (e de suas consequências) permanece onde quer que, em inglês ou em português, nos EUA ou no Brasil, se insista em caracterizar e apresentar a “Teoria” como “fenômeno”. *** O parágrafo de abertura do hoje clássico On deconstruction descreve a cena crítica daquele momento, primórdios dos anos 1980, nos seguintes termos: Se os observadores e beligerantes dos recentes debates críticos pudessem concordar em alguma coisa, seria em que a teoria crítica contemporânea é confundidora e confusa [confusing and confused]. Houve um tempo em que poderia ter sido possível pensar a crítica como uma atividade única 94

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praticada com diferentes ênfases. A acrimônia do debate recente sugere o contrário: o campo da crítica é contenciosamente constituído por atividades aparentemente incompatíveis. Até mesmo tentar uma lista – estruturalismo, “reader-response criticism”, desconstrução, crítica marxista, pluralismo, crítica feminista, semiótica, crítica psicanalítica, hermenêutica, crítica antitética, Rezeptionsästhetik... – é flertar com um vislumbre transtornador do infinito que Kant chama o “sublime matemático” (CULLER, 1982, p. 17)1.

Há aí um advérbio para o qual é preciso chamar a atenção: as atividades que constituem o campo da crítica são, segundo Culler, “apparently”, aparentemente incompatíveis. Ainda no mesmo parágrafo, Culler afirma: “A contemplação de um caos que ameaça derrotar a capacidade de sensatez pode produzir, como Kant sugere, uma certa exultação, mas a maioria dos leitores fica apenas perplexa ou frustrada, e não tomada de admiração” (CULLER, 1982, p. 17). E então: “Ainda que não prometa [causar] admiração, este livro procura enfrentar a perplexidade”; “tentar uma explicação, especialmente se ela pode também beneficiar os muitos estudantes e professores de literatura que não têm nem o tempo nem a inclinação para acompanhar o debate teórico e que, sem guias confiáveis, encontram-se numa moderna feira de são Bartolomeu” (CULLER, 1982, p. 17). Mais à frente: “Este livro tenta dissipar a confusão, fornecer sentido e fins, discutindo o que está em jogo nos debates críticos de hoje e analisando os projetos mais interessantes e valiosos da teoria recente” (CULLER, 1982, p. 18). Culler parte, portanto, da percepção de uma confusão no campo da crítica contemporânea que deixa as pessoas perplexas. Ele pretende eliminar a confusão e a perplexidade, fornecendo “sentido e fins” para o leitor; e ele o fará, basicamente, tentando mostrar que aquilo que gera a confusão e a perplexidade – a incompatibilidade das atividades reunidas no campo da crítica – não passa, na verdade, de um fenômeno aparente: tais atividades são apenas “aparentemente” e não “realmente” incompatíveis. No prefácio ao livro, Culler (1982, p. 8) explica, com efeito, que, de acordo com uma nova compreensão do assunto, “os trabalhos de teoria literária estão estreita e vitalmente relacionados a outros escritos dentro de um domínio até agora não nomeado, mas frequentemente chamado de ‘theory’ para abreviar”. Mais do que um domínio disciplinar, o termo “theory” denominaria, na verdade, segundo Culler (1982, p. 8), “um novo gênero” de escrita. “Esse novo gênero é, com certeza, heterogêneo”, acrescenta Culler (1982, p. 8), e explica: Esta e as demais traduções de trechos em língua estrangeira citados neste artigo são de minha responsabilidade. 1

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“Theory” é um gênero por causa do modo como seus trabalhos funcionam. [...] esses trabalhos extrapolam o quadro disciplinar dentro do qual eles normalmente seriam avaliados e que ajudaria a identificar suas sólidas contribuições ao conhecimento. [...] o que distingue os membros desse gênero é sua habilidade para funcionar não como demonstrações dentro dos parâmetros de uma disciplina, mas como redescrições que desafiam as fronteiras disciplinares (CULLER, 1982, p. 9, destaques do autor).

Se a heterogeneidade radical da crítica contemporânea se afigura como uma característica intrínseca e definidora de um novo gênero discursivo, o qual, apesar, ou justamente por causa dessa característica, se vê imbuído de uma coesão interna capaz de distingui-lo de outros gêneros, deveria ser possível um panorama do desenvolvimento e da consolidação da “theory” no campo dos estudos literários, algo que o próprio Culler, aliás, não tarda a oferecer. Em “Criticism and institutions: the American university” [Crítica e instituições: a universidade americana] (1987), Culler volta à questão da “aparente” incongruência no coração da crítica contemporânea. “A teoria crítica”, ele então pondera, “encoraja-nos a pensar na crítica como escolas beligerantes, ou, no vocabulário mais recente, comunidades interpretativas, cada uma com seus próprios axiomas de crítica” (CULLER, 1987, p. 85). Contra a ideia de uma “crítica normal” monoparadigmática, isto é, regida por este ou aquele paradigma crítico em detrimento dos demais, Culler sustenta, por sua vez, que as “práticas institucionais de ensino e escrita sobre literatura criam uma ‘crítica normal’ mutável, eclética, que ao mesmo tempo fomenta a inovação e a recupera” (CULLER, 1987, p. 86). Um tal estado de coisas se deveria mesmo às especificidades institucionais dos estudos literários nos Estados Unidos, em comparação, por exemplo, com a Grã-Bretanha; tendo esboçado as diferenças básicas entre esses dois contextos acadêmicos, Culler oferece a seguinte síntese a respeito da situação americana: O principal desenvolvimento crítico dos últimos 20 anos na América foi o impacto de várias perspectivas e discursos teóricos: linguística, psicanálise, feminismo, estruturalismo, desconstrução. Um corolário disso foi a expansão do domínio dos estudos literários para incluir muitos interesses previamente afastados de tais estudos. Na maioria das universidades americanas de hoje, um curso sobre Freud é mais provável de ser oferecido no departamento de Inglês ou de Francês do que no de Psicologia; Nietzsche, Sartre, Gadamer, Heidegger e Derrida são mais frequentemente discutidos por professores de literatura do que por professores de filosofia; Saussure é negligenciado por linguistas e apreciado por estudantes e professores de literatura. Os escritos de autores como esses recaem num gênero miscelânico [miscellaneous genre], cuja designação mais conveniente é simplesmente “theory”, a qual, hoje, tem vindo referir-se a trabalhos que logram desafiar e reorientar o pensamento em

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campos fora daqueles aos quais eles ostensivamente pertencem, porque suas análises da linguagem, ou da mente, ou da história, ou da cultura oferecem originais e persuasivas abordagens do significado (CULLER, 1987, p. 87).

Uma década mais tarde, o ímpeto sintetizador e didático de Culler atingirá o ápice com seu pequeno (e até hoje muito influente) manual Literary theory: a very short introduction [Teoria literária: uma introdução muito breve]. “Muitas introduções à teoria literária descrevem uma série de ‘escolas’ de crítica. A teoria é tratada como uma série de ‘abordagens’ em competição, cada uma com suas posições e compromissos teóricos”, explica Culler (1997, p. vii) nas primeiras linhas do prefácio ao manual, afirmando, na sequência, que esses “movimentos teóricos” identificados em tais introduções têm, na verdade, “muito em comum”, e que é isso que se tem em vista quando se fala em “theory” (CULLER, 1997, p. vii). Culler justifica, dessa forma, sua opção por “discutir questões e asserções compartilhadas” ao invés de “fazer o levantamento de escolas teóricas”, ainda que venha a oferecer, no Apêndice ao livro, “que pode ser lido no começo ou no fim ou consultado constantemente”, o que chama de “breves esboços de importantes escolas ou movimentos críticos” (CULLER, 1997, p. vii). Eis a lista: formalismo russo, New Criticism, fenomenologia, estruturalismo, pós-estruturalismo, desconstrução, teoria feminista, psicanálise, marxismo, novo historicismo/materialismo cultural, teoria pós-colonial, discurso das minorias, “queer theory”. Não parece razoável, contudo, projetar toda essa heterogeneidade de perspectivas num único e mesmo “gênero” discursivo chamado “theory”, sob a alegação de que tais “movimentos” ou “escolas” compartilhariam entre si um “desafio amplo ao senso comum” e “investigações sobre como o sentido é criado e como identidades humanas ganham forma” (CULLER, 1997, p. vii). Ninguém melhor do que Jacques Derrida, o grande mestre para Jonathan Culler, evidenciou o que está em jogo numa tal homogeneização, justamente ao se pronunciar sobre as formas de manifestação da desconstrução no contexto da ascensão da “theory” nos Estados Unidos. Isso ele o fez de modo lapidar e definitivo numa conferência de 1987, curiosamente intitulada “Some statements and truisms about neo-logisms, newisms, postisms, parasitisms, and other small seismisms” [Algumas declarações e truísmos sobre neo-logismos, novismos, pós-ismos, parasitismos e outros pequenos cismismos], proferida, ironicamente, no colóquio que marcou a fundação do Critical Theory Institute em Irvine (California), colóquio que se chamou “The states of ‘theory’” [Os estados da “theory”]. fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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O “efeito de desconstrução” e o “campo de forças” da crítica Comentando o já referido texto de Culler (1987) publicado naquele mesmo ano, Derrida observa que, nele, o autor corretamente sugere que a palavra “theory” é a mais conveniente designação para o que acontece em alguns departamentos de literatura nos Estados Unidos no que se refere ao estudo de certos corpora, campos e autores, acrescentando, então, por sua vez, “que isso, na verdade, não acontece nem em outros departamentos desse país nem nos departamentos de literatura de outros países de algum modo estatisticamente notável”, o que o leva a considerar a palavra e o conceito de “theory” como “um artefato puramente norte-americano” (DERRIDA, 1994, p. 71). Mais à frente, jogando com o título do colóquio de que então participava, Derrida afirma pensar que o conceito de “theory” em jogo na expressão “states of ‘theory’” é “um conceito que poderia ganhar forma apenas ‘in the States’ [nos EUA], que apenas tem um valor, um sentido e uma especificidade ‘in the States’ e num momento específico” (DERRIDA, 1994, p. 81). A partir de então, àquilo que Culler chama simplesmente “theory”, Derrida se referirá, com frequência, como “the States’ theory” [a teoria dos Estados Unidos/a teoria americana], numa brilhante corruptela do título do colóquio. Derrida (1994) considera positiva a “emergência” da “States’ theory” em sua irredutibilidade mesma de emergência, isto é, naquilo mesmo que “não pode, não vai e não deve querer reivindicar o título de uma ciência ou uma filosofia”, justamente por implicar “uma forma de questionamento e de escrita [...] que desestabiliza a axiomática, a fundação e os esquemas organizadores da ciência e da filosofia elas próprias” (DERRIDA, 1994, p. 83). À “desestabilização” aí em foco Derrida julga por bem chamar “um efeito de desconstrução” [an effect of deconstruction]; com essa expressão, ele não se refere “nem a textos específicos nem a autores específicos, e, sobretudo, não a essa formação que disciplina o processo e o efeito de desconstrução em “uma” teoria ou “um” método crítico chamado desconstrucionismo ou desconstrucionismos” (DERRIDA, 1994, p. 83). Com esse efeito de desconstrução, explica Derrida, ver-se-ia desorganizado “não apenas a axiomática dos discursos filosóficos e científicos como tais, do discurso epistemológico, das várias metodologias da crítica literária (New Criticism, formalismo, tematismo, historicismo clássico ou marxista), mas até a axiomática de conhecimento simultaneamente em ação na ‘States’ theory’” – e aí Derrida cita a listagem de Culler das “perspectivas e discursos teóricos” que teriam impactado o desenvolvimento da crítica 98

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contemporânea: “linguística, psicanálise, feminismo, estruturalismo”, explicando que o último elemento da série culleriana, “desconstrução”, introduz na mesma “um elemento de perturbação, desordem ou irredutível caos” (DERRIDA, 1994, p. 84). Mas, se o efeito de desconstrução de que fala Derrida não se deixa reduzir nem a uma teoria ou método crítico nem à “States’ theory” na forma em que a descreve Culler, ele não consistiria, por outro lado, “em opor-se reativamente à teorização, mas, ao contrário, em regularmente desconstruir os pressupostos filosóficos de teorias existentes ou das teorias implícitas nos discursos que denigrem a filosofia ou a teoria”, tratando-se de “exceder o teórico ao invés de impedi-lo e de tomar posições ‘contra a teoria’ [against theory]”2 (DERRIDA, 1994, p. 87). Daí adviria um resultado tão paradoxal quanto previsível, observa Derrida: “a própria coisa que excede ao mesmo tempo o teórico, o temático, o tético, o filosófico e o científico provoca, como gestos de reapropriação e sutura, movimentos teóricos, produções de teoremas” (DERRIDA, 1994, p. 87). Gestos e movimentos, bem entendido, eminentemente “instauradores” ou “instituidores”, algo que “constrói e fortifica teorias, oferece temáticas e teses, organiza métodos, disciplinas, até escolas” (DERRIDA, 1994, p. 88). Derrida destaca, nesse sentido, o chamado “pós-estruturalismo, vulgo desconstrucionismo” [poststructuralism, alias deconstructionism], que consiste na formalização de certas “necessidades estratégicas” do impulso desconstrutivo, propondo “um sistema de regras técnicas, procedimentos metodológicos ensináveis, uma disciplina, fenômenos escolares, um tipo de conhecimento, princípios, teoremas, que são, em sua maioria, princípios de interpretação e leitura (ao invés de escrita)” (DERRIDA, 1994, p. 88). Derrida reconhece que o chamado desconstrucionismo “não é monolítico”, havendo diferenças entre os desconstrucionismos e os entre os desconstrucionistas, mas considera ser possível afirmar “que há desconstrucionismo em geral cada vez que o impulso [jetty] desestabilizador fecha-se e estabiliza-se num conjunto ensinável de teoremas, cada vez que há auto-apresentação de uma, Aí Derrida reage a um debate então em curso na universidade americana desencadeado pelo célebre manifesto de Steven Knapp e Walter Benn Michaels “Against Theory” (1982). “Enquanto o advento da teoria estruturalista e pós-estruturalista no final dos anos 1960 foi atacada por tradicionalistas que reclamavam a perda de um foco próprio na literatura, nos anos 1980 a ‘theory’ tornou-se um modo dominante nos estudos literários, estimulando um renascimento da produção crítica. ‘Against Theory’ introduziu dúvidas junto às tropas de uma geração de jovens críticos acerca do iminente estabelecimento da ‘theory’, afirmando uma atitude revisionista que veio a ser chamada ‘neopragmatismo’. [...] Apesar de não ter colocado um freio no trabalho em ‘theory’, ‘Against theory’ desencadeou um dos mais vibrantes debates dos anos 1980 e pressagiou a mudança para métodos críticos com um foco mais prático – notavelmente, o New Historicism [novo historicismo] e os estudos culturais – que se tornaram proeminentes do final dos anos 1980 em diante” (LEITCH, 2001, p. 2458). 2

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ou, mais problematicamente, da teoria” (DERRIDA, 1994, p. 88). Isso posto, e seria preciso reconhecer a “States’ theory” nos termos em que Culler a define e a apresenta – como um gênero discursivo, heterogêneo, é verdade, mas ainda assim, ou justamente por isso, um gênero, com todas as características estáveis que permitem identificá-lo como tal e diferenciálo de outros gêneros discursivos –, e, sobretudo, “na forma” em que ele o faz – por meio de sínteses didáticas que assumem o formato de livros de referência ou manuais, “guias confiáveis” a serem utilizados na divulgação e no ensino da “theory”, nos EUA ou em outros países (como já se disse, ambos foram traduzidos e editados no Brasil) –, que a “States’ theory”, em suma, nos termos e na forma em que Culler a define e apresenta, configurase como uma espécie de “gesto estabilizador” do impulso desconstrutivo ou “efeito de desconstrução” de que fala Derrida, um gesto que, como todo movimento de estabilização, “procede por cláusulas predicativas, assegura com declarações assertóricas, com asserções, com declarações como ‘isso é aquilo’: por exemplo, desconstrução é isso ou aquilo” (DERRIDA, 1994, p. 84) – ou, poder-se-ia acrescentar: a “theory” é isso ou aquilo, é “um gênero heterogêneo”, por exemplo. Derrida toma a estabilização teórica como uma consequência ou um “resultado”, a um só tempo “paradoxal e previsível”, do “efeito de desconstrução” no que ele tem de essencialmente desestabilizador; mas a ordem das coisas bem que poderia, aqui, ser alterada, uma vez que o “efeito de desconstrução” só se faz possível e necessário onde quer que “uma” teoria ou “a” teoria se imponha como um horizonte estável e institucionalmente hegemônico. Isso vem à tona na intepretação muito particular do título do colóquio que Derrida oferece logo no início de sua conferência. Por que o plural em “The states of ‘theory’”? Declarar um único possível estado de teoria, “a” teoria, pondera Derrida (1994), equivaleria a presumir: [...] a possibilidade de totalizar todos os fenômenos teóricos, todas as produções teóricas, todos os teoremas numa tabela, numa tábua, logo numa superfície legível, que poderia, como qualquer tabela estável e estabilizada, permitir a leitura da tabularidade taxonômica, as entradas e os lugares, ou ainda a genealogia, finalmente fixada numa árvore de teoria, de identidades, entidades e nomes – sejam comuns ou próprios – de teoria. Uma tabela botânica (DERRIDA, 1994, p. 64).

O plural “states”, “estados”, por sua vez, “desestabiliza ou aponta para a instabilidade, na verdade para a essencial desestabilização de tal tabela”, colocando em questão “a própria possibilidade de um discurso 100

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que pressuporia, hoje, apressadamente, tal objetivação taxonômica” (DERRIDA, 1994, p. 64); tal pressuposição, contudo, lembra Derrida, é “feita por tantas pessoas, dentro e fora da universidade, quando a doxa [...] joga com os títulos de teorias e teoremas como se com peças num tabuleiro de xadrez: New Criticism, estruturalismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-marxismo, novo historicismo, etc.” (DERRIDA, 1994, p. 64-65). Esses “teoremas, teorizações, teorias”, prossegue Derrida, “compartilham ou postulam um campo que, certamente, não é comum e unificável, [nem] na verdade identificável” (DERRIDA, 1994, p. 65). Se há, de fato, algo como um “campo” [field] em que esses elementos se encontram em jogo, tratar-se-ia, antes, de um “campo de forças” [field of forces], um “campo de forças plurais” [field of plural forces]: “em seus fenômenos e títulos usuais, essas forças podem ser chamadas forças libidinais, forças políticoinstitucionais ou histórico-sócio-econômicas, ou forças concorrentes de desejo e poder” (DERRIDA, 1994, p. 65). E ainda: “Forças nunca vão sem suas representações, suas imagens especulares, os fenômenos de refração e difração, o reflexo ou reapropriação de forças distintas ou opostas, a identificação com o outro ou o oponente, etc.” (DERRIDA, 1994, p. 65). Bem entendido, Derrida refere-se aí a “forças” que seriam mesmo anteriores à própria constituição e institucionalização de uma teoria como teoria, de um método como método. “Nesse campo de forças plurais, onde mesmo contar não é mais possível, há apenas jetties teóricos”, afirma Derrida (1994, p. 65), explicando que com a palavra “jetty” [jetée] ele quer referir-se “à força daquele movimento que não é ainda sujeito, projeto ou objeto, nem mesmo rejeição, mas na qual ganha lugar qualquer produção e qualquer determinação, que encontram sua possibilidade no ‘jetty’” (DERRIDA, 1994, p. 65). Poder-se-ia querer enxergar aí o trajeto que vai do “jetty” teórico indeterminado à teoria propriamente dita como um processo de crescente determinação do pré-teórico (pré-subjetivo, pré-objetivo) rumo ao propriamente teórico, descrevendo-se algo como um amadurecimento da teoria. Mas isso equivaleria a ignorar o caráter intrinsecamente conflitual, por assim dizer, do “campo de forças” de que fala Derrida. “Cada ‘jetty’ teórico – bem como sua reapropriação como um conjunto teórico, uma teoria com seus axiomas, seus procedimentos metódicos, suas estruturas institucionais – entra a priori, originalmente, em conflito e competição”, enfatiza, com efeito, Derrida (1994, p. 65). Se a constituição das teorias e dos métodos críticos tem, de fato, num “campo de forças plurais”, suas condições de possibilidade, essas condições, no entanto, são essencialmente tensas, conflituais, não podendo haver nada, em suma, como uma linha reta fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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de desenvolvimento ou de amadurecimento levando de uma prototeoria à teoria propriamente dita. Mas como, então, as teorias, os métodos, as escolas críticas ganhariam forma a partir desse horizonte de indeterminação conflitual? Hegemonização do campo de forças, reorientação para a monstruosidade Derrida identifica certo procedimento retórico pelo qual o ímpeto de hegemonia das forças teóricas em conflito tem vazão por meio de uma declaração de novidade. “Cada ‘jetty’ teórico é a instituição de uma nova declaração sobre a totalidade do estado e de um novo establishment visando a uma hegemonia oficial” (DERRIDA, 1994, p. 68). Refletindo sobre a função do adjetivo new [novo] em títulos como “New Criticism” e “New Historicism”, Derrida chama a atenção para isso que “tende a tornar-se a técnica de autolegitimação, auto-instituição e autonominação”: Houve um tempo em que títulos e cabeçalhos [letterheads] seguiamse ao estabelecimento de uma instituição e ao trabalho de seus membros fundadores. Hoje, sabemos que, certas vezes, é melhor começar com cabeçalhos e auto-representação. Todos os fundadores de instituições sabem disso. Quanto a decidir se títulos em “new” [novo] são mais eficientes do que aqueles em “post” [pós], [...] se é mais apropriado periodizar violentamente e tornar em telos historicista o mensageiro que anuncia uma nova era ou o herói que supera ou abate um velho dragão, isso é uma questão de detalhe. Trata-se, basicamente, do mesmo gesto, o estratagema cultural como um inevitável resíduo do mais velho dos historicismos (DERRIDA, 1994, p. 68).

Em vista desses e de outros “newisms” [novismos], e de “post-isms” [pós-ismos] como Post-structuralism, Postmodernism, Post-Marxism, Derrida detecta, pois, a recorrência do estratagema que consiste em “responder ao que é novo dando, imediatamente, a isso, o título ‘novo’ [...], ou então anunciar como superado e fora de uso precisamente aquilo que é precedido de um ‘pós’ e que é visto a partir de agora como uma pobre palavra com um ‘pós’ afixado nela” (DERRIDA, 1994, p. 73). Esse estratagema, Derrida (1994) o julga consoante com o “mais velho dos historicismos”. Relembrese, quanto a isso, a função da História da Crítica no âmbito do New Criticism, isto é, a de confirmar e legitimar historiograficamente, por meio de uma abordagem evolucionista e teleológica da história das ideias críticas, a pretensa revolução intelectual e epistemológica representada pela ascensão 102

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e institucionalização do New Criticism nas universidades americanas, reafirmando, assim, seu caráter de marco definitivo da modernidade nos estudos literários. Tendo o New Criticism perdido seu espaço institucional para outras correntes teóricas, esse esquema historiográfico não deixou de ser atualizado, deslocando-se o telos da narrativa do marco formalista fixado nos anos 1940-50 para os pretensos marcos de outras pretensas revoluções nas décadas subsequentes. A propósito, não é difícil imaginar, com base no que afirma Culler acerca da suplantação da “teoria literária” pela “theory” como “gênero heterogêneo”, uma narrativa evolucionista da história da crítica que tomasse por telos o pretenso marco instituído por essa nova pretensa revolução. Daí a importância da questão levantada por Derrida (1994) a esse respeito, quando diz: Ao invés de continuar jogando o completamente tedioso jogo que consiste em aplicar os mais surrados esquemas da história das ideias à especificidade do que está acontecendo agora, especialmente neste país [EUA]; ao invés de ceder a normalizar e legitimar representações que identificam, reconhecem e reduzem tudo tão apressadamente, por que não estar interessado, antes, em monstros “teóricos”, nas monstruosidades que anunciam a si mesmas na teoria, nos monstros que, de antemão, superam e tornam cômicas todas as classificações ou ritmos como: depois do New Criticism vem um “ismo” e, então, um “pós-ismo”, e então, de novo, outro “ismo”, e, hoje, ainda outro “ismo”, etc. (DERRIDA, 1994, p. 79).

Mas uma monstruosidade “nunca apresenta a si mesma”, reconhece Derrida (1994, p. 79); “ou então, se vocês preferirem, ela apenas apresenta a si mesma, isto é, deixa-se ser reconhecida, permitindo-se ser reduzida àquilo que é reconhecível; isto é, a uma normalidade, uma legitimidade que não é ela”. Em suma: “Uma monstruosidade só pode ser ‘desconhecida’ (méconnue), isto é, não-reconhecida [unrecognized] e mal compreendida [misunderstood]. Ela só pode ser reconhecida depois, quando tornou-se normal ou a norma” (DERRIDA, 1994, p. 79). Derrida (1994) associa, então, na sequência, o monstruoso àquilo que acontece ou que irrompe sem que tenha sido previsto ou programado, numa palavra: ao “evento”; “se há eventos ‘teóricos’ que marcam uma instituição”, ele diz, “eles devem ter a forma sem forma de uma monstruosidade; isto é, eles não podem ser reconhecidos ou legitimados na hora e ainda menos programados, anunciados e antecipados de qualquer forma” (DERRIDA, 1994, p. 80). Derrida (1994) toma então como exemplo o famoso colóquio “The Languages of Criticism and the Sciences of Man” [As linguagens da crítica e as ciências do homem], ocorrido em 1966 na Johns Hopkins University, fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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do qual ele próprio participou, e a respeito do qual se costuma dizer ter sido “um evento no qual muitas coisas mudaram [...] na cena americana” (DERRIDA, 1994, p. 80). Assim: O que é agora chamado “theory” neste país pode mesmo ter uma ligação essencial com o que se diz ter acontecido lá em 1966. [...] O certo é que se algo aconteceu lá que poderia ter o valor de um evento teórico, ou de um evento dentro da teoria, ou, mais provavelmente, o valor do advento de um novo sentido teórico-institucional de “teoria” – daquilo que tem sido chamado “theory” neste país por cerca de vinte anos –, esse algo somente veio à luz posteriormente e ainda está tornando-se mais e mais claro hoje. Mas o que também é certo é que ninguém, ou entre os participantes ou próximo a eles, teve qualquer consciência temática do evento; ninguém poderia fazer ideia dele e, sobretudo, ninguém poderia ou teria ousado programá-lo, anunciá-lo ou apresentá-lo como um evento. Isso é certo; e é tão certo que se alguém reivindicasse hoje programar ou apresentar um evento similar, essa pessoa estaria equivocada – não há dúvida quanto a isso. Essa é mesmo a receita mais segura para se estar equivocado (DERRIDA, 1994, p. 80).

A imprevisibilidade de que fala Derrida (1994) pode ser aquilatada pelo fato de que o colóquio que se costuma tomar como o grande marco franco-americano da teoria “pós-estruturalista” ou, simplesmente, da theory, foi originalmente pensado, como se pode ler no prefácio à edição em livro dos anais do colóquio, como abertura para “um programa de dois anos de seminários e colóquios que procuravam explorar o impacto do pensamento ‘estruturalista’ contemporâneo sobre métodos críticos em estudos humanísticos e sociais”, e que o grande propósito desses encontros era o de colocar em contato “importantes proponentes europeus de estudos estruturais numa variedade de disciplinas com um amplo espectro de scholars americanos”, esperando-se, com isso, “estimular inovações tanto no conhecimento [scholarship] recebido quanto no treinamento dos estudiosos [scholars]” (MACKSEY; DONATO, 2007, p. xxi-xxii). Ora, a simples menção de alguns nomes da “missão estruturalista” francesa então enviada aos EUA, nomes particularmente importantes para a teoria crítica do século XX como os de Georges Poulet, Lucien Goldmann, Tzvetan Todorov, Roland Barthes, Jacques Lacan e Jacques Derrida, dá uma ideia do nível de fragmentação e contradição internas do “pensamento” (dito “estruturalista”) que se gostaria, então, de apresentar e divulgar nos EUA. Como agrupar e conciliar, afinal, num mesmo espaço ou campo, a hermenêutica da “interioridade”, claramente “pré-estruturalista”, de um Poulet, o estruturalismo sui generis, dito “genético” (dada sua filiação 104

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piagetiana), de um Goldmann, o projeto todoroviano de uma poética estruturalista que se desvencilhasse, enfim, da subjetividade inerente ao trabalho da interpretação, o cada vez maior distanciamento barthesiano em relação a esse mesmo projeto (que o próprio Barthes, não obstante, chegara a subscrever) rumo a uma teoria do “Texto” de coloração “pós-estruturalista”, mas num sentido dessa expressão que não se confundiria nem com a extrapolação de um estruturalismo mais ortodoxo no pensamento de Lacan, nem com a desconstrução do estruturalismo lévi-straussiano em Derrida? Um tal agrupamento, não seria ele, em vista de sua improbabilidade, de sua artificialidade (de que outra maneira todos esses autores viriam a se reunir pessoalmente e a se discutir mutuamente a não ser por ocasião de um colóquio “estruturalista” num país estrangeiro?), de sua heterogeneidade radical, de sua oposicionalidade interna, não seria ele, em suma, algo de monstruoso? O fato de que os anais com as contribuições do grande acontecimento “estruturalista” em terras americanas tenha aparecido em livro, quatro anos mais tarde (em 1970), com o subtítulo “The Structuralist Controversy” [A controvérsia estruturalista], e, sobretudo, que essa expressão tenha sido alçada a título principal do livro a partir da edição de 1972, parece sugerir que sim. Em suas ressalvas em relação ao modo como o colóquio de Johns Hopkins veio a ser arquivado pela memória acadêmica norte-americana, pelas reconstituições históricas do pensamento crítico “pós-New Criticism”, Derrida estimula-nos a recuar ao ponto em que, aquém das rotulações a posteriori, vê-se desenhado pelo conjunto nada harmonioso daquelas comunicações feitas em 1966, bem como das frequentemente acaloradas discussões que a cada uma delas se seguiram (cf. MACKSEY; DONATO, 2007), algo como um campo de forças plurais e conflituais em torno de problemáticas como “estrutura”, “estruturalismo”, “sujeito”, “linguagem”, “literatura”, “interpretação”, “crítica”, etc. Ora, é nesse campo conflitual que tem, então, lugar a intervenção derridiana destinada a celebrizar-se, sua hoje clássica comunicação “Structure, sign, and play in the discourse of the Human Sciences” [Estrutura, signo e jogo no discurso das ciências humanas], bem como o debate que a ela se seguiu (cf. MACKSEY; DONATO, 2007, p. 265-272) – a voz de Derrida erigindo-se em tensão com as demais vozes “estruturalistas” lá presentes, mas também, e sobretudo, com a voz maior, ausente, de Claude Lévi-Strauss. O que quer que viesse a ser afirmado na ocasião acerca, por exemplo, da “estrutura”, o seria de maneira necessariamente dificultosa, conflitual e sem álibis “teóricos” – e isso não poderia nunca ter sido anunciado ou programado. É isso o que se vê completamente obliterado quando, sem que se o fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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leia, sem que se volte a lê-lo com a devida atenção, se se refere ao texto de “Structure, sign, and play in the discourse of the Human Sciences” como uma espécie de certidão de nascimento do “post-structuralism”, ou da “deconstruction”, ou da “theory”. Retornando, com efeito, ao próprio texto, em vista da sugestão derridiana de uma produtividade originária aquém de qualquer rótulo estabilizador a posteriori, é surpreendente acompanhar Derrida, na conclusão de seu discurso, refletindo mesmo sobre um certo “nascimento” – por vir: “Aqui, há uma espécie de questão, chamemo-la histórica, da qual nós estamos apenas vislumbrando, hoje, a concepção, a formação, a gestação, o parto” (DERRIDA, 2007, p. 265). E ainda: Emprego essas palavras, admito, com um olhar sobre a atividade da procriação [childbearing] – mas também com um olhar sobre aqueles que, da companhia dos quais eu não me excluo, desviam seus olhos em face do ainda inominável que está proclamando a si mesmo e que pode fazê-lo, como é necessário quando quer que um nascimento está para acontecer, apenas sob a espécie da não-espécie, na forma informe, muda, infante e aterradora da monstruosidade (DERRIDA, 2007, p. 265).

Passadas duas décadas do colóquio de Johns Hopkins, Derrida reitera, no colóquio de Irvine, em tom sentencioso: “Monstros não podem ser anunciados. Não se pode dizer: ‘Aqui estão nossos monstros’ sem imediatamente transformar os monstros em animais de estimação” (DERRIDA, 1994, p. 80). Por uma historiografia teratológica da crítica A remissão à monstruosidade aquém de toda domesticação adquire, aí, em Derrida, os contornos de uma reversão do arquivamento (do evento), de um desarquivamento, pois – o qual, à medida que implica o abalo, a desestabilização da axiomática, por exemplo, do “post-structuralism”, da “deconstruction”, ou da “theory”, pode, também ele, ser considerado um efeito de desconstrução. Seria preciso admitir, além do mais, que esse efeito, à medida que coincide com um desvelamento ou um desrecalque das condições conflituais de possibilidade do discurso teórico-metodológico no campo dos estudos literários, um desrecalque, portanto, da própria “historicidade” desse discurso, vem claramente ao encontro de uma demanda historiográfica – conjunção essa que desmentiria, aliás, a alegada a-historicidade da desconstrução, comprovando, como quer Derrida (1994, p. 92), que “o ‘jetty’ desconstrutivo é, do começo ao fim, motivado, posto 106

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em movimento por uma preocupação com a história, mesmo se ele leva à desestabilização certos conceitos de história” (DERRIDA, 1994, p. 92). Como conceitos de história desestabilizados pela desconstrução, Derrida (1994, p. 92) menciona o conceito absolutizante ou hipostaziante de tipo neo-hegeliano ou marxista, o husserliano, o conceito heideggeriano de epocalidade histórica. De especial interesse, contudo, para a problemática aqui abordada, é a desestabilização da modalidade de história que se poderia chamar “metodológica”, já que implicada pela figura do “método”, pela existência e pelo funcionamento de um método, qualquer que seja ele. No texto da abertura do seminário “La langue et le discours de la méthode” [A língua e o discurso do método] – ministrado em 1983 na École Normale Supérieure –, Derrida detém-se, com efeito, no que chama de “historicidade paradoxal do método” (DERRIDA, 1983, p. 37). O paradoxo em questão pode ser enunciado da seguinte forma: há uma historicidade diretamente relacionada à “repetição que instrui todo método” (DERRIDA, 1983, p. 36) – isso porque “todo método implica regras gerais, [...] técnicas de repetição, procedimentos recorrentes que se deve poder aplicar; numa situação dada e seguindo certos protocolos, um sujeito deve poder reiterar os processos, os procedimentos” (DERRIDA, 1983, p. 37) –, a qual se institui, entretanto, no sentido de uma tradição metodológica, “a custo de uma historicidade mais fundamental”. No âmbito metodológico, historicidade confunde-se com repetibilidade, a história constituindose de repetições, isto é, de aplicações do mesmo conjunto de protocolos, processos e procedimentos por diferentes sujeitos a diferentes objetos em diferentes circunstâncias. Essa mesma história revela-se, num certo sentido, profundamente a-histórica; ou, na formulação lapidar de Derrida: “Por essa força de repetição, o método detém a um só tempo força de história e poder de anular uma certa historicidade ligada, ela, ao evento singular” (DERRIDA, 1983, p. 37). Ora, não é justamente essa historicidade ligada ao evento singular e anulada ou recalcada pela normalização teórico-metodológica do conhecimento que se veria desvelada, trazida à tona novamente, em seu caráter monstruoso, por efeito de desconstrução? Um tal desvelamento da historicidade monstruosa no subsolo da normalização teórico-metodológica não poderia confundir-se, bem entendido, com uma reconstituição de tipo historicista, pelo fato de que o evento, a monstruosidade, o evento no que ele tem de eminentemente monstruoso estaria ligado “antes ao futuro” do que ao passado, de modo que não o passado mas o futuro é que aí poderia se ver de alguma forma reconstituído – melhor dito: uma “possibilidade de fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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futuro”. Em uma entrevista concedida a Elisabeth Weber em 1990, três anos depois, portanto, do colóquio de Irvine, Derrida explica que “a figura do porvir [avenir], isto é, aquilo que não pode senão surpreender, aquilo para o que nós não estamos preparados, [...] anuncia-se sob as espécies do monstro. Um porvir que não fosse monstruoso não seria um porvir, seria já um amanhã previsível, calculável e programável” (DERRIDA, 1992, p. 400) – ou seja, poder-se-ia acrescentar, um amanhã gerado por um golpe de método. Derrida, então, conclui: Toda experiência aberta ao porvir é preparada ou se prepara para acolher o vindouro [arrivant] monstruoso, para acolhê-lo, isto é, conceder a hospitalidade a isso que é absolutamente estrangeiro, mas também, é preciso dizê-lo, procurar domesticá-lo, quer dizer, fazê-lo entrar na casa, e fazê-lo assumir os hábitos, fazer-nos assumir novos hábitos. É o movimento da cultura. Os textos e os discursos que provocam, de partida, reações de rejeição, que são denunciados justamente como anomalias ou monstruosidades, são frequentemente textos que, antes de ser por sua vez apropriados, assimilados, aculturados, transformam a natureza do campo da recepção, transformam a natureza da experiência social e cultural, a experiência histórica. Toda a história mostrou que cada vez que um evento se produziu, por exemplo, na filosofia ou na poesia, ele tomou a forma do inaceitável, até do intolerável, do incompreensível, quer dizer, de uma certa monstruosidade (DERRIDA, 1992, p. 400-401).

O fato de que esse “movimento da cultura” de que aí fala Derrida com certo fatalismo, esse movimento pelo qual o evento monstruoso vem a ser assimilado pela cultura oficial apenas à custa da domesticação de sua monstruosidade originária, ou seja, à custa do próprio evento “como evento”, o fato de que ele não se mostre, em suma, rigorosamente irreversível, o que se atesta pelos próprios efeitos desestabilizadores de desconstrução de que também fala Derrida, acena para a possibilidade de um tipo diferenciado de historiografia, de operação historio-“gráfica”, que se identificasse justamente com a produção de tais efeitos de desvelamento da monstruosidade originária de um evento discursivo original ulteriormente “domesticado” – isto é: “apropriado”, “assimilado”, “aculturado” na forma de uma teoria, um método, uma escola de pensamento. Em vista de seu escopo monstruoso, poder-se-ia chamar “teratológica” a uma tal operação historiográfica. Os mecanismos do processo de apropriação/assimilação/aculturação de eventos do passado a serviço de objetivos diversos no presente tornaramse mais e mais conhecidos e denunciados desde que há quase cento e cinquenta anos o jovem Nietzsche desmascarou a moderna cultura histórica 108

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europeia como o grande motor desse processo. Não é um mérito menor, por exemplo, do mais importante livro de filosofia da ciência do século XX – The Structure of Scientific Revolutions [A estrutura das revoluções científicas] (1962), de Thomas Kuhn – o de ter evidenciado o complexo “persuasivo e pedagógico” (para empregar os termos do próprio Kuhn) formado pela figura do manual científico e de seu complemento diacrônico, a História da Ciência, a serviço da fixação institucional de uma imagem a-histórica de ciência e de cientificidade. “Essa imagem tem sido derivada, até pelos próprios cientistas, principalmente do estudo de realizações científicas acabadas, tal como registradas nos clássicos e, mais recentemente, nos manuais em que cada nova geração de cientistas aprende a praticar seu ofício”, afirma, com efeito, Kuhn (1996, p. 1), logo na introdução de Structure. Sobre os manuais, Kuhn observa ainda que eles parecem sugerir “que o conteúdo da ciência é unicamente exemplificado pelas observações, leis e teorias descritas em suas páginas”, e que normalmente são lidos “como se afirmassem que os métodos científicos são simplesmente aqueles ilustrados pelas técnicas manipulativas empregadas na coleta das informações do manual, juntamente com as operações lógicas empregadas ao relacionar tais informações às generalizações teóricas do manual” (KUHN, 1996, p. 1). O resultado disso, conclui Kuhn a respeito, é “um conceito de ciência com profundas implicações a respeito de sua natureza e seu desenvolvimento” (KUHN, 1996, p. 1), conceito que vem a ser reforçado, então, pela tradicional historiografia da ciência, cujo escopo é assim definido por Kuhn: Se a ciência é a constelação de fatos, teorias e métodos coletados nos textos atuais, então os cientistas são os homens que, com ou sem sucesso, esforçaramse por contribuir com um ou outro elemento dessa constelação particular. O desenvolvimento científico torna-se o processo gradativo através do qual esses itens foram adicionados, isoladamente e em combinação, ao sempre crescente estoque que constitui a técnica e o conhecimento científicos. E a história da ciência torna-se a disciplina que registra tanto esses incrementos sucessivos quanto os obstáculos que inibiram sua acumulação. Preocupado com o desenvolvimento científico, o historiador, então, parece ter duas tarefas principais. De um lado, deve determinar por que homem e em que ponto do tempo cada fato, lei e teoria científicos contemporâneos foram descobertos ou inventados. De outro lado, deve descrever e explicar o amontoado de erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos constituintes do moderno texto científico (KUHN, 1996, p. 2).

Ora, não é outro senão esse mesmo modelo a um só tempo sincrônico (o manual) e diacrônico (a historiografia) de normalização cognitiva aquele fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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impingido ao campo literário por René Wellek com seu manual de teoria e metodologia dos estudos literários publicado em 1949 (cf. WELLEK; WARREN, 1984) e sua monumental History of Modern Criticism (19551992). Mas é preciso cuidado, aqui, para não converter o acontecimento em estrutura: a obra de Wellek seria apenas a realização paradigmática de um movimento de normalização cognitiva nos estudos literários que não nasce nem morre com ela, apenas ganha, com ela, uma formulação exemplar. É preciso evitar, assim, atribuir ao acontecimento implicado pela obra de Wellek, ou a qualquer outro, e seja para endossá-lo ou contestá-lo, o caráter fundador e estrutural que, por exemplo, Foucault gostaria de atribuir ao que ele considera ser o nascimento, no século XVIII, do que chama de “a” ciência. Eis a narrativa de Foucault a esse respeito: O século XVIII foi o século da disciplinarização [mise en discipline] dos saberes, ou seja, da organização interna de cada saber como uma disciplina tendo, em seu campo próprio, a um só tempo critérios de seleção que permitem descartar o falso saber, o não-saber, formas de normalização e de homogeneização dos conteúdos, formas de hierarquização e, enfim, uma organização interna de centralização desses saberes em torno de um tipo de axiomatização de fato. Logo, organização de cada saber como disciplina e, de outro lado, disposição desses saberes assim disciplinados do interior, o colocar-lhes em comunicação [leur mise en communication], sua distribuição, sua hierarquização recíproca numa espécie de campo global ou de disciplina global a que se chama precisamente a “ciência”. A ciência não existia antes do século XVIII. Existiam ciências, existiam saberes, existia também, se vocês quiserem, a filosofia. A filosofia era justamente o sistema de organização, ou antes de comunicação, dos saberes uns em relação aos outros – e é nessa medida que ela podia ter um papel efetivo, real, operatório no interior do desenvolvimento dos conhecimentos. Aparecem agora, com a disciplinarização dos saberes, em sua singularidade polimorfa, ao mesmo tempo esse fato e essa restrição que então fazem corpo com nossa cultura e a que se chama a “ciência” (FOUCAULT, 1997, p. 161-162).

A narrativa foucaultiana do processo de “disciplinarização dos saberes” só parece fazer sentido em vista do postulado de uma distinção fundamental entre um espaço “propriamente científico”, internamente homogêneo, em que vigora a seleção, a normalização, a hierarquização e a centralização do conhecimento, e um espaço extracientífico, ou, de acordo com o que diz Foucault, pré-científico: o espaço dos “saberes polimorfos e heterogêneos” (FOUCAULT, 1997, p. 162), posteriormente disciplinados pela “ciência”. Mas insistir nessa distinção equivale a corroborar a imagem a-histórica de ciência de que fala Kuhn (1996), derivada dos textos clássicos e dos manuais científicos baseados em “realizações científicas acabadas”. 110

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Foucault procede a uma crítica da consciência setecentista dessa imagem de ciência como implicando um “progresso da razão” (FOUCAULT, 1997, p. 162), mas, ao fazê-lo, deixa intocada a própria imagem em questão. Uma obra como a de Kuhn, por sua vez, nos leva ao questionamento da própria imagem do campo científico como internamente homogêneo (e da própria “cientificidade” como um traço ou critério homogêneo), à percepção de uma heterogeneidade e de um polimorfismo internos a isso mesmo que se gostaria de chamar “a” ciência – percepção essa extensiva, além do mais, a isso que se gostaria de chamar “a” filosofia. Ora, essa percepção não é um dado, mas uma conquista, resultado de uma atividade historiográfica que consiste em reverter a normalização cognitiva operada pelo complexo persuasivo-pedagógico composto pelos manuais científicos e pelas tradicionais narrativas da história da ciência. Ao futuro: da crítica Eis-nos em face, pois, dessa outra modalidade de historiografia da crítica, da percepção da heterogeneidade radical inerente ao campo de forças das teorias críticas como o resultado ou o efeito de um gesto historiográfico que desestabiliza, desarquiva, reverte o discurso normalizado das teorias e metodologias críticas rumo à disformidade, à monstruosidade daquela oposicionalidade indecidível da qual elas emergem como tais, e que fora recalcada pelo processo de normalização cognitiva: espécie “teratológica” de historiografia, identificada com a reconstituição não do passado da crítica, mas de sua “monstruosa possibilidade de futuro”. Contrariamente às espécies historiográficas orientadas para o passado crítico, que têm na “memória” o seu grande instrumento, seja para antiquarizar, para monumentalizar ou para criticar o objeto dessa memória, a espécie teratológica caracterizar-se-ia, antes, por um golpe de desmemória, por um monstruoso esquecimento em face dos ditos grandes marcos da teoria crítica ocidental, acarretando o desarquivamento, a reversão dos mesmos até o ponto em que a crítica pudesse, então, uma vez mais, “acontecer”. “De todo agir faz parte o esquecimento: assim como da vida de tudo o que é orgânico faz parte não apenas a luz, mas também a obscuridade” (NIETZSCHE, 1964, p. 9). É nada menos do que a própria vida da crítica que dependeria, pois, do advento desse esquecimento – por vir.

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Nábil Araújo – [email protected] Manuscrito recebido em 26 de maio de 205 e aceito em 26 de junho de 2015.

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NO MEIO DO CAMINHO

“CRÍTICA” / DIAGNÓSTICO / 2015

Poucos colegas, se há algum, no pequeno mas multívoco mundo internacional de nossa profissão acadêmica, têm seguido e comentado as mudanças continuadas da “Crítica Literária” com tanta circunspecção, complexidade analítica, transparência e sobriedade (às vezes irônica) como meu amigo José Luis Jobim. Paradoxalmente, de algum modo esta visão panorâmica se tornou seu foco especializado e sua forma de identidade intelectual. Tendo em vista o quão presente e simplesmente útil esse livro permaneceu, fiquei surpreso de perceber que treze anos já se passaram desde que Jobim me deu a oportunidade bem-vinda de escrever uma breve introdução para Formas da Teoria – Sentidos, Conceitos, Políticas e Campos de Força nos Estudos Literários. Meu ponto de ênfase foi, além de descrever o estilo de Jobim, localizar com precisão, através de sua perspectiva, 2002 como um primeiro momento em que quase um século de abundante produção e incessante importação de “teorias” em nossa disciplina tinha chegado, então, a uma surpreendente parada. Mas, enquanto naquele momento era possível imaginar que esse movimento singularmente dinâmico dentro das “Humanidades e Artes” tinha diminuído muito pouco, talvez em um congestionamento temporário, nossa retrospectiva hoje, sem muita controvérsia, vê o início do século XXI como um tempo de transição. A “era da teoria”, não há dúvida, não recomeçou, e em vez de reclamarmos ou nos flagelarmos por isso, aprendemos a apreciar uma pletora de novas questões e gostos, possivelmente junto com o desaparecimento da intensidade e pressão que costumavam acompanhar a obrigação de estar a par dos novos “paradigmas” a cada ano. Enquanto isso, acostumamo-nos ao hábito de reivindicar o surgimento de “viradas” em todos os lugares, como se esse sucessor mais fraco do conceito de “mudança de paradigma” pudesse e tivesse que manter vivo um passado sem o qual conseguimos viver surpreendentemente bem. Se alguma coisa é confusa nesse lado mais bucólico (e principalmente menos passional), é a dificuldade que temos em encontrar um conceito abrangente para o presente mais recente nos “Estudos literários”. Mesmo se fosse possível, como argumentei1, explicar tais transformações como uma pequena parte dos efeitos decorrentes de uma nova constelação na construção social do tempo que modela nossas condições de experiência e, através delas, nosso pensamento, isso de modo algum excluiria a possibilidade de tornar Above all in Our Broad Present and After 1945.

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fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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centrífugo nosso oikos intelectual e profissional anteriormente coerente. Esse é o caso e será a premissa do breve exercício em que, espero, Jobim me acompanhará, de modo que, mais tarde ou o mais breve possível, possamos trocar impressões pessoalmente e face-a-face, no Rio ou em Stanford. Quais são os elementos e observações que valem a pena registrar no estado centrífugo dos “Estudos literários” hoje? Essa é a questão por trás do meu retrato rápido com intenção de diagnóstico? Continuando a ser um “fetichista decimal” – rótulo que há muitos anos atrás meu amigo alemão, Gert Mattenklott, recentemente falecido, atribuiu ao meu modo pedestre de descrição –, contabilizo seis exemplos nesse diagnóstico. O primeiro que desejo mencionar mostra muito claramente o impacto de uma mudança na construção social do tempo, em uma linguagem mais familiar e provavelmente mais precisa; ele pode derivar do que identifico como um processo em que a “visão de mundo histórica”, nos termos em que emergiu no final do século dezoito e início do dezenove, está desaparecendo agora. Continuamos a retornar ao passado para editar e contextualizar textos. Algumas vezes, penso, devido aos novos recursos digitais, fazemos isso com maior precisão do que jamais foi feito, e, alguns de nós, entre os quais meu colega de Stanford Franco Moretti, usam os poderes de computação dos mesmos artefatos eletrônicos para sintetizar uma quantidade de detalhes sem precedente em uma nova e mais “remota” visão. Mas nenhum desses projetos alega que pode fundamentar ou pelo menos sugerir qualquer prognóstico ou especulação em relação ao futuro, como gostavam nossos predecessores desde o tempo de Hegel. Junto com esses pressupostos, muito naturalmente, desapareceu a questão anteriormente central sobre quais poderiam ser as chances de ver o futuro desvelado pela história da literatura. Isso pode ter a ver com essa nossa nova modéstia em nossas abordagens do passado e com uma tendência crescente a incluir o componente somático da existência humana, “como se” fosse um manuscrito ou “como se” fosse uma performance oral; trata-se de uma premissa anteriormente pré-consciente que formata o processo e, com isso, o resultado de nosso trabalho. Essa própria preocupação também explica as referências frequentes a um “Renascimento da Filologia” como o que tem sido mal compreendido. Diferente da “Filologia” no sentido tradicional (e ainda válido) de “curadoria de texto”, a nova – e frequentemente muito vaga – camada de consciência sobre a mídia nos estudos literários tem um potencial futuro de mudar a camada programática de autocompreensão do nosso trabalho. Todas as mudanças mencionadas até agora (e outras) podem ter 118

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contribuído para a impressão de que a noção de “literatura” parece viável de novo. O agora famoso ensaio de Michel Foucault (quase um manifesto) sobre a necessidade de uma historicização radical (como se gostava de dizer então) dos conceitos mais básicos na Crítica Literária, como “texto”, “gênero”, “leitor”, por exemplo, e – acima de tudo, no ensaio de Foucault – “autor” (mas também o conceito de “literatura”, obviamente), faz quase 50 anos. Em reação contra essa promessa de diferenciação, uma tendência logo surgiu para substituir, em muitos contextos acadêmicos diferentes, o conceito de “literatura” (como demasiado específico, historicamente) pelo de “cultura” – que também parecia aberto o suficiente para a conclusão de novos objetos de interesse, não estritamente “literários”, no espaço dos “Estudos Literários”. O que veio a seguir foi, como sabemos, a dominância de curta duração dos “Estudos Culturais” como padrão disciplinar. Hoje, pelo menos no mundo acadêmico norte-americano, o conceito de “Literatura” tem de retornar ao viável – embora os colegas agora tendam a evitar dar-lhe uma definição meta-histórica ou transcultural, cuja impossibilidade de concretização tinha sido um insight do final do século XIX. Em vez de parecer muito abstrato e claro, o conceito de “Literatura” parece conter uma conotação de concretude ou presença que alguns de nós (incluindo eu) gostam de associar com Realismo epistemológico (o oposto do Construtivismo ubíquo e, portanto, cada vez mais banal) que desejávamos, plenamente conscientes de sua impossibilidade. Talvez esse retorno – muito surpreendente, retrospectivamente – do conceito de “Literatura” seja o contexto em que uma nova proximidade entre a Crítica Literária e a produção literária deva ser mencionada, talvez mesmo uma mudança na proporção demográfica entre escrever e ler, em sentido amplo (a alternativa para esse tópico poderia ter sido meu segundo ponto, isto é, a nova ênfase na leitura estética). Pelo menos nas universidades americanas não se pode ignorar que, tanto em nível de graduação, quanto de pós-graduação, há um número crescente de alunos que optam pelo lado “prático” com as disciplinas das Humanidades: pelo Conservatório em vez da Musicologia; pela Oficina de Arte em vez da História da Arte; e pela Escrita Criativa [Creative Writing] em vez da Teoria Literária ou da História Literária. Na minha própria perspectiva (confessadamente local), este desenrolar converge com a impressão de que em uma de cada duas casas de nossa vizinhança há um novo romance surgindo – aparentemente sem muita preocupação sobre se tantos novos livros potenciais encontrarão leitores ou mesmo um mercado (o que pode ser um ponto positivo). Aqueles de nós que continuam a ler (além de escrever, é óbvio) mudaram muito naturalmente – e sem argumentos complicados teoricamente – para fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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uma seleção de textos, tanto históricos quanto contemporâneos, que se poderia chamar de “comparativos” no contexto acadêmico, e de “World Literature” em contextos menos ambiciosos. “World Literature” como uma nova tendência crítica, eis minha quinta observação, apenas afirma o óbvio, isto é, que, em uma cultura que virou “global” (em um sentido bem preciso) através da comunicação eletrônica, é improvável, para não dizer impensável, que leitores de literatura – de fato, leitores de qualquer coisa – continuem a manter-se nas fronteiras nacionais do “cânon” ao selecionarem seu material de leitura. Isso explica o efeito acadêmico colateral de que a “Literatura Comparada”, mais do que qualquer literatura nacional “estrangeira”, é a escolha de estudantes hoje que querem envolver-se com o texto literário na graduação ou no doutorado. Às vezes, sinto (ou temo?) que os Estudos Literários reagiram com uma superprodução de teoria e referências históricas (quando deixaremos de ver o uso da palavra “Weltliteratur” por Goethe mencionado com um gesto orgulhoso de erudição?). Indo adiante rapidamente, para evitar quaisquer contribuições involuntárias a essa superprodução acadêmica e também concluindo minha lista de diagnósticos, “World Literature” como um contexto natural (isto é, não acadêmico) de nossas operações acadêmicas tem, é claro, mudado irreversivelmente o status de contribuições à Crítica Literária (entre outras disciplinas, obviamente), de contribuições que não vêm de alguns países europeus e dos países norte-americanos, externamente e internamente. Situações de assimetria e casos de injustiça acadêmica, é óbvio, continuam infelizmente a existir, mas sinto que ninguém pode negar que a produção crítica do Brasil, por exemplo, junto com a substância (sim, quero dizer “substância”) da literatura e cultura brasileiras, encontram mais ressonância internacional do que tinham, digamos, há dez ou vinte anos atrás. É desnecessário (e, portanto, banal) dizer que há muito espaço para melhorar. Por outro lado (o lado mais local), essa mesma mudança significativa teve o efeito benéfico de diminuir o tom (não o entusiasmo) de críticos, ao falarem sobre “suas” literaturas e culturas nacionais. A ambição (“romântica”, no sentido histórico) de sempre tentar provar que os textos do cânon nacional eram os itens-chave “incomparavelmente valiosos e até então injustamente negligenciados” para um novo cânon a ser criado foi substituída por uma atitude de confiança, orgulho não atenuado e sobriedade comparativa. Meu amigo Jobim, como eu disse no início desse breve exercício de diagnóstico, tem sido um predecessor enfático não-messiânico exatamente de tal atitude cultural e estilo intelectual. De certo modo, este já era o meu 120

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ponto naquela introdução ao seu livro Formas da Teoria – mas, há treze anos, Jobim parecia um agradável excêntrico, em vez de um precursor, porque ninguém poderia ter antecipado plenamente a mudança de posições na orquestra internacional da Crítica Literária (se é que um leitor da sobriedade e ironia de Jobim pode usar tal metáfora pesada). E é exatamente o que quero dizer, quando afirmo que “não poderíamos ter antecipado o que ocorre agora”. Naquela época, a maioria de nós presumia e teria reivindicado que poderia, mas, agora, prevalece a impressão de que perdemos tal otimismo, o que me traz de volta a meu ponto inicial sobre as premissas profundamente transformadas com as quais observamos o passado agora – um passado remoto e um passado recente. Esta, obviamente, é a razão pela qual paro aqui – em vez de especular sobre o futuro (e talvez sobre o fim) da Crítica Literária. Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University)

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DEPOIMENTOS

DISCURSO DE RECEPÇÃO DE JOSÉ LUÍS JOBIM NO PEN CLUBE DO BRASIL

Há treze anos, foi publicado um livro relatando uma deliciosa conversa entre o músico Tom Jobim e os escritores Antonio Candido, Callado e Houaiss. O livro chamava-se Três Antônios e um Jobim. Hoje, nesta bela cerimônia de posse no PEN Clube, sou tentado a denominar meu breve discurso de recepção de “Três Jobins e um Antonio”; este, o que vos fala, aqueles, as três faces de José Luís Jobim: a do professor, a do administrador e a do escritor, três maneiras diversas de afirmar a mesma excelência. O professor Jobim talvez não se recorde, mas estive entre os que assistiram ao concurso público de provas e de títulos para professor adjunto em que ele se saiu vitorioso, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 1994. Há 21 anos tornou-se também professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e, atualmente, é professor titular de Teoria da Literatura na UERJ. A contínua auto-exigência de aperfeiçoamento profissional o fez trilhar todas as etapas do ensino e da pesquisa, tornandose sucessivamente mestre, doutor e pós-doutor em Letras. Sua tese de doutorado teve por tema o livro didático e o ensino de literatura no segundo grau, evidenciando a preocupação de Jobim em refletir sobre as inter-relações entre os diversos segmentos da difusão do saber literário. Tais desdobramentos práticos são a tônica das indagações do nosso caro teórico. Pesquisador do CNPq, não restringe à sala de aula o alcance de suas intervenções no magistério, sendo continuamente requisitado como orientador de dissertações e teses, num total de 22 pesquisas concluídas e aprovadas. Não se esquiva de contribuir também para o aperfeiçoamento das instituições a que se vincula, daí resultando, paralela a seu trabalho docente, uma notável atuação no campo administrativo. Atualmente, é diretor (eleito pelo voto de todos os segmentos da comunidade) do Instituto de Letras da UERJ e ocupou o cargo, talvez, de maior responsabilidade no âmbito das organizações universitárias de Letras: a presidência da Associação Brasileira de Literatura Comparada, a ABRALIC, a maior do gênero da América Latina, com 1200 associados. Comandada pela tenacidade, competência e entusiasmo de Jobim, a ABRALIC sediou, no Rio de Janeiro, seu X Congresso Internacional, em fins de julho de 2006, com o tema “O local, o regional, o nacional, o inter-nacional, o planetário: lugares dos discursos literários e culturais”. O evento congregou mais de 2500 pessoas. Na condição fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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de secretário da entidade, pude acompanhar mais de perto a atuação de Jobim, e constatei sua irreprimível vocação de desarmar conflitos e propor alternativas exequíveis em terreno quase sempre minado pelos conflitos de interesse ou solapado por gigantescas vaidades. Jobim era o ponto de equilíbrio, a voz sensata que, em ano de frustrados anseios futebolísticos, controlava a bola no meio-de-campo para, sem egoísmo, passá-la a fim de que um companheiro mais bem colocado fizesse o gol, que, afinal, é o resultado de uma articulação feliz envolvendo o trabalho de uma equipe inteira. Deixei para o final o registro do terceiro Jobim, o escritor. Ora na autoria ou na organização de livros, ora como colaborador de periódicos nacionais e estrangeiros, Jobim registra mais de uma centena de publicações. No âmbito da reflexão teórico-crítica, é indispensável assinalar as obras Introdução ao Romantismo, 1999; A biblioteca de Machado de Assis, 2001; Formas da teoria, 2003; e Literatura e informática, 2005. A abrangência de temas revela uma sensibilidade simultaneamente atenta à preservação de nosso legado cultural e antenado às transformações tecnológicas que entabulam um profícuo diálogo com o futuro. Mas, em tão vasta e qualificada produção, prefiro efetuar o resgate de uma faceta injustamente posta em penumbra pelo próprio Jobim. Refiro-me ao poeta, que, em 1980, lançou Panorama do concreto e, em 1987, Ponto final. O primeiro, publicado em edição conjunta com Carlos Augusto Corrêa sob o título Itinerário urbano, foi ganhador do concurso nacional de poesia comemorativo do cinquentenário da Fundação Casa do Estudante do Brasil, e desenvolve, em uma dicção extremamente concisa, um contracanto anti-ufanístico centrado nas mazelas subumanas dos habitantes às margens pouco plácidas da Pauliceia barra-pesadíssima dos anos 70. Outra seria a proposta da obra de 87, que, desde o título – Ponto final – acena para a temática da decomposição, do aniquilamento e da morte, que povoa todo o volume. Jobim convoca autores de várias épocas e latitudes para lhe fornecerem epígrafes, com as quais dialoga em textos, muitos deles, de notável rendimento estético. Paradoxalmente, é no diálogo com as vozes do Outro que a de Jobim se afirma em maior nitidez. Evidencia-se, também, o ganho formal do livro em confronto com a publicação de estreia, seja na prática do soneto, seja na composição de peças que atestam grande domínio de recursos rítmico-rímicos. O viés meditativo é a tônica do volume, como se percebe, por exemplo, nos dísticos decassílabos dedicados a um louco: “Sequer vislumbramos sua paisagem, / nem imaginamos suas imagens. // Mal suportamos essa sua voz / que insiste tanto em lembrar-se de nós: // Evitamos a lembrança que vemos / por causa do louco em nós, que tememos”. Na afetuosa 126

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dedicatória com que fui brindado, José Luís anotou: “este ponto que, espero, é apenas vírgula”. De público, cobro a transformação deste sinal, aguardando a vírgula, que abre caminho para novas frases, e o travessão, na demanda de novos diálogos. Secchin/ Jobim é uma rima. Conhecendo a capacidade do amigo, do escritor, do profissional que hoje ingressa no qualificado quadro de membros desta Casa, e conhecendo igualmente sua inesgotável disposição e operosidade para trabalhar em prol das instituições a que se integra, posso garantir-lhes: além de uma rima, Jobim é uma solução. Bandeira e José Luís falaram da morte. Em “Consoada”, o poeta pernambucano aludiu à “Indesejada das gentes”. Eleito por inteligente unanimidade para o PEN Clube, Jobim revelou-se o “desejado das gentes”. Por isso, ao chegar, encontra-nos aqui, para recebê-lo, com a casa limpa e a mesa posta, com cada coisa em seu lugar. Este é um lugar de produção do saber. Este é o seu lugar. Bem-vindo! Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2006. Antonio Carlos Secchin (UFRJ – Academia Brasileira de Letras)

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O FURACÃO E AS ASSIMETRIAS DOS FLUXOS CULTURAIS

Uma primeira imagem me veio, ao recordar da convivência com o colega e amigo José Luís Jobim de Salles Fonseca, a do furacão, cuja passagem assistimos, logo ao término de um evento sobre Machado de Assis, na Casa de las Américas, em Havana. Seus giros avassaladores perturbaram a vida dos povos do Caribe. Jobim chegou mesmo a tomar o avião para voltar ao Brasil, mas os efeitos dos ventos do furacão que se aproximava fizeram literalmente que o avião batesse asas ao se aproximar da cabeceira da pista de decolagem. Resultado, o avião não decolou, e o amigo teve de se abrigar em um hotel. Não foi para aquele de onde havia saído para o embarque, porque havia a possibilidade de inundação das ruas de seu entorno. Estava próximo do oceano, como também a Casa de las Américas. Dirigiu-se, então, ao meu hotel, que ficava numa região mais alta da cidade. E, lá, nos encontramos, sem que pudéssemos ficar em nossos quartos, situados nos andares superiores: as janelas eram de vidro e, embora reforçadas por largas fitas de papel grosso, poderiam não resistir e os quartos seriam inundados. Ficamos, de forma solidária, no lobby do hotel, onde havia vários bares e restaurantes, tomando mojitos, refletindo sobre a situação literária e cultural entre os países iberoamericanos e observando os coqueiros, em torno do hotel, que se inclinavam, mas não se partiam. Estavam solidamente presos ao chão. E o furacão varreu a ilha e não foi registrado nenhum acidente grave. Havia uma solidariedade geral no país, preparado para receber anualmente furacões similares, numa prática quase rotineira. Valho-me dessas imagens para associá-las, desde as conversas descontraídas, como as do lobby do hotel, até as discussões em congressos e também os artigos e livros publicados pelo colega e amigo. Em nossa área, podemos associar os furacões às fortes assimetrias dos fluxos culturais, que varrem a teoria e crítica literárias em dimensão planetária. E só conseguem fazê-lo – como nos volteios dos furacões – a custo de polarizações que não admitem mediações. E são essas mediações, sem perder sua base no solo – como na resistência dos coqueiros – que podemos ler as muitas publicações do colega. Só para exemplificar, podemos citar o título Literatura e cultura: do nacional ao transnacional (Rio de Janeiro: Eduerj, 2013). O mundo é visto, então, em rede, em que as polaridades se interpenetram e são híbridas. Toda identidade é plural, pressupõe uma fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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somatória de caracteres que emergem de acordo com as situações contextuais. Por isso, não podemos nos restringir aos fluxos assimétricos que, como furacões da moda, penetram o discurso crítico, nas mídias e na universidade. Veio o furacão da globalização a sufocar o polo oposto, o da nacionalidade. Esta, por sua vez, não pode se restringir à posição de um Jeca, de Monteiro Lobato. A essa imagem, esse nosso escritor acrescentou depois a imagem de Zé Brasil. E reflexões em que o desenvolvimento se alinhou com articulações entre o nacional e o supranacional. E são essas articulações, em termos de literatura e de cultura, que encontramos nas publicações de Jobim. Essa é a dimensão espacial, que encontramos nos textos do crítico brasileiro, mas as imbricações também são de ordem temporal. Há um repertório e um conjunto de habitus que seguem nossa trajetória histórica. Inclusive, como aponta, fixações provenientes dos tempos coloniais, que são diferentes daqueles da colonização norte-americana e canadense. Muito da maneira de ser do colonizado, diríamos, ainda persiste. No caso, aceitando as assimetrias dos fluxos culturais, sem sentido crítico, o furacão globalizador. Não se apercebe que a efetiva globalização pressupõe reciprocidade e que ela não existe. Aprendemos com a experiência do outro, hegemônico ou não, uma experiência diferente da nossa. Para tanto, exige-se uma postura crítica, como demonstra Jobim em suas reflexões, seja em relação a outras situações da atualidade, seja em relação ao nosso percurso histórico. Logo, que nos assumamos como sujeitos do conhecimento e vendo os outros também na condição de sujeitos. São repertórios literários e culturais que circulam, como desenvolve Jobim. Há que considerar as suas recepções, que se atualizam de forma diferente, dependendo do contexto. E conectividades que se estabelecem com base nos campos intelectuais supranacionais. Para além do furacão avassalador que coloca a competitividade como uma das mais fortes inclinações da ética humana, opõe-se assim, para minimizar a força desses ventos assimétricos, a solidariedade. No caso da literatura, entre colegas de universidades de diferentes países, hegemônicos ou não. Trata-se de uma experiência vivida por Jobim, que tem circulado por muitos países, em seu cursos, eventos e palestras. Um campo intelectual pautado solidariamente pelas trocas culturais. Isto é, aprender também com a experiência do outro, sem abdicar de nossa condição de sujeitos. Não nos sujeitamos assim à direção avassaladora dos ventos, mas procuramos opor-lhes a resistência comunitária supranacional, procurando soprar na direção oposta. Para tanto, uma atitude se coloca como paradigmática: a criticidade. Não apenas em relação ao outro, mas também a nós próprios. 130

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É imprescindível ao crítico uma visão abrangente dos conceitos que utiliza, suas implicações em rede. Inclusive em relação às outras áreas do conhecimento. Os estudos literários beneficiam-se, de forma análoga, das teorizações de outras disciplinas, mas têm suas especificidades. Da mesma forma que não podemos “aplicar” mecanicamente uma teoria formulada em outros contextos e situações, também não podemos reproduzir acriticamente modelos estabelecidos dessas outras áreas. Os ensaios de Jobim apontam nessa direção: domínio do instrumental crítico utilizado, relacionando-o e problematizando-o com suas bases de modelização e tendo em conta a dimensão comunicativa do texto, sempre dirigido a um leitor virtual, que hoje se vale de vários suportes. E será dessa forma, não aceitando a “colonização” que nos vem da recepção acrítica dos fluxos culturais assimétricos e nem a “colonização” por critérios e metodologias que nos vêm de outras áreas, que os escritos de Jobim apontam para uma crítica afinada com a “nossa” razão de ser. “Nossa”, assim entendida de forma relativa, por vir de nossa experiência históricocultural híbrida e que se situa num mundo atual em que as assimetrias culturais são evidentes, com o conceito de competitividade, que veio da hegemonia do campo econômico, superando o de solidariedade. E, assim, a lógica do efeito de curto prazo superando o de longo prazo, de ordem estrutural. Por oposição, surgem os blocos supranacionais, que emergem da economia para a vida cultural: os blocos comunitários ao lado dos campos intelectuais, acima referidos. É nessa direção que o conjunto das produções críticas de Jobim nos convida a pensar. São situações múltiplas, híbridas, que se interpenetram, envolvendo história, situação sociocultural e outras áreas do conhecimento. O próprio sujeito da enunciação já é formado dessa forma, como os receptores de sua mensagem. Impõe-se, pois, criticidade e abertura do campo literário para outras áreas do conhecimento, sem deixar de se colocar como sujeito híbrido, mas sujeito, e não objeto do conhecimento – é de se enfatizar. Do nacional, isto é, neste caso, da universidade brasileira, é que se acessa a transnacionalidade, pautada de forma solidária pelas articulações dos campos intelectuais supranacionais, que também aspiram por virem a se constituir blocos culturais igualmente transnacionais. As assimetrias que vêm da concentração dos ventos do furacão poderão ser, assim, atenuadas. Há que se preparar futuros críticos para receberem criticamente os furacões das assimetrias culturais. Articulações de solidariedade que possuem suas raízes no solo, como os coqueiros de Havana, mas capazes de resistirem à força dos ventos, por terem, neste caso, não apenas raízes no chão, mas articulações que fragmentum, n. 45, Abr./Jun. 2015.

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levam a um chão simbólico maior, com enlaces supranacionais. Para tanto, são imprescindíveis – como se pode depreender - articulações que apontem para o alargamento de perspectivas. Uma forma de poder simbólico que tenha suas bases na força sociocultural pautada por um comunitarismo que ultrapasse as rígidas fronteiras das delimitações históricas. Benjamin Abdala Junior (USP/CNPq)

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UM DEPOIMENTO SOBRE JOSÉ LUÍS JOBIM

No início dos anos oitenta, eu voltava à universidade, para terminar o curso de Letras, interrompido na Pontifícia Universidade Católica (PUC), dez anos antes, pela minha primeira gravidez. Por razões particulares (dois filhos pequenos, total indisponibilidade para voltar à PUC, de difícil acesso para mim, naquele momento), retomei o curso na Universidade Santa Úrsula (USU), no intuito de lá obter o meu diploma. Foi uma experiência bem interessante. Havia um grupo de professores jovens, empenhados em fazer crescer a universidade. Entre eles, José Luís Jobim de Salles Fonseca, ou José Luís, como todos o chamavam. Muito moço, talvez o mais jovem dos professores que tive na vida, impressionava então pela seriedade, serenidade e doçura nas aulas, aliadas a uma grande determinação, ao pragmatismo e ao espírito de combate. Fui sua aluna em um curso de Teoria da Literatura e lembro-me da simplicidade com que ele abordava os temas mais complexos, tornando-os accessíveis aos alunos de graduação, e da preocupação constante de que todos entendessem a proposta do curso e o que estava sendo feito em sala de aula. Formei-me e perdi-o de vista durante cerca de uma década. Em 1991, fiz concurso para a Universidade Federal Fluminense (UFF), onde tomei posse em 1992. Chegando ao Instituto de Letras, uma das primeiras pessoas que encontrei foi o Jobim, que tinha perdido o José Luís e se tornara simplesmente assim: Jobim. Desde então, aliado ao fato de, pouco depois, ele ter se casado com uma das minhas amigas mais queridas, Bethania Mariani, estreitamos muito nossas relações de amizade. Além disso, por afinidades teóricas e acadêmicas, trabalhando sempre na mesma linha de pesquisa, Jobim se tornou o meu grande parceiro de trabalho na UFF, com quem participei e participo de bancas, congressos, mesas redondas, publicações, entre as quais se destaca o livro dele sobre a biblioteca de Machado de Assis, com o qual muito me orgulho de ter colaborado, pois trata-se de obra de referência sobre o autor, no Brasil e no estrangeiro. Com a convivência, pude perceber algumas características que cada vez descubro mais um pouco e que fazem dele uma pessoa bem especial. A primeira seria a capacidade de simplificar, associada a um pragmatismo raro, entre os pesquisadores de literatura. Jobim sempre procura simplificar os problemas e situações mais complexos, abrindo os caminhos e tornando-os mais fáceis, eliminando obstáculos, derrubando verdadeiras montanhas, para alcançar suas metas. Se acreditar em uma coisa, ele lutará por ela, incansavelmente, insistentemente. Jobim possui fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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uma inteligência viva, curiosa e arguta, um espírito de observação e perspicácia, que o tornam imbatível nas relações acadêmicas, além da “inteligência emocional”, que muito o auxilia nos inúmeros combates e lutas que a profissão exige. Um ótimo exemplo disso foram os congressos da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) e da Associação Nacional de Pós-Gradução e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL). Ele presidiu o primeiro e secretariou o segundo, sempre com muito bom senso e competência, sabendo exatamente onde, como e o quê fazer, enfim, contribuindo para a realização de dois brilhantes eventos. Essas qualidades, por si só, já o colocariam em um lugar único no meio acadêmico, já que ele está sempre preocupado em trabalhar, em fazer bem feito. No entanto, elas nada seriam, se não houvesse uma outra, talvez a maior de todas as qualidades do Jobim: a generosidade. Sou testemunha de inúmeros trabalhos que ele aceita por pura generosidade, sem nenhuma preocupação com carreirismo, apenas para realizar algo em que acredita. Isso tem se revelado bem evidente na sua atuação como coordenador da Pós-Graduação em estudos de literatura da UFF. Jobim tem sido incansável batalhador pelo programa, buscando novos caminhos, estimulando os colegas a fazerem o mesmo, prosseguindo com afinco a luta dos seus antecessores, mas buscando marcar diferenças, para maior crescimento da pós. No que diz respeito à pesquisa, ele é Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ, a prestigiosa bolsa que distingue alguns professores no Rio de Janeiro, os que mais se destacam, e que, obrigatoriamente, devem ser pesquisadores PQ1, no CNPq. Com isso, atualmente, Jobim desenvolve projetos que visam a uma análise crítica dos fundamentos alegados por produtores de textos (literários, teóricos, críticos) dos séculos XX e XXI sobre sua própria escrita, considerando a perspectiva de críticos e teóricos sobre a produção literária dessas obras. Propõe, na verdade, um estudo em abordagem histórica (contrastando com a produção de sentidos do século XIX) dos conceitos e da terminologia empregados nos discursos de e sobre a literatura no presente (em contraponto ao passado), tematizando, entre outras coisas, as comunidades teóricas, críticas e/ou literárias, organizadas em torno de conceitos compartilhados, a organização de campos a partir de conceitos comuns e os termos e conceitos cuja reiterada presença e aparente permanência encobrem diferenças de conteúdo no seu emprego. Aborda, assim, questões pertinentes e importantes para os estudos literários, como o estatuto da autoria, as diferentes perspectivas sobre os suportes da escrita, sejam eles novos ou antigos, as textualidades do agora.

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Se considerarmos suas publicações, resultados do desenvolvimento desses projetos de pesquisa, Jobim também impressiona pela vasta produção, com contribuições enriquecedoras para os estudos literários e culturais, para o debate em torno do conceito de literatura, crítica etc., além do que se refere às questões identitárias na literatura brasileira em geral, bem como na obra de Machado de Assis, muitas das quais são estudadas e citadas, consideradas mesmo fundamentais para os estudos deste autor, tanto no Brasil, quanto nos estudos lusófonos, em universidades norte-americanas e europeias. Maria Elizabeth Chaves de Mello (UFF/CNPq/FAPERJ)

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JOSÉ LUÍS JOBIM DE SALLES FONSECA: O SENHOR DONO DO BAILE Se José Luís Jobim de Salles Fonseca tivesse sido meu professor, eu o homenagearia por isto. Se tivesse sido meu orientador, também seria uma oportunidade para dedicar uma homenagem, mas ele não foi nem uma coisa, nem outra, no sentido homônimo da palavra. O ofício de professor e orientador se deu pela boa conversa, as indicações a seguir e o estímulo constante à carreira. Já conhecia Jobim de ouvir, de ver, de ler. Mas o reconheci mesmo por ocasião de umas férias que ele e Bethania passaram em Belém, não lembro se em janeiro de 2004 ou 2005. Na ocasião, fomos a Icoaraci, no bairro do Paracurí, comprar cerâmica. Passamos a tarde a escolher as peças e depois fomos saborear um bom caranguejo, como era o desejo da Bethania. Na época, Jobim era o presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) e diretor do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Como àquela altura eu pouco prestava atenção a quem ocupava os cargos no mundo acadêmico, esbocei um comentário sobre o último evento da Associação e, logo depois, soube que estava diante do atual presidente. Felizmente, os anos que seguiram após aquele só consolidaram uma amizade e a parceria acadêmica. Neste momento, tenho, cá para mim, que a melhor homenagem seria comentar a vasta obra, a história acadêmica nas Instituições do Rio de Janeiro, suas incursões internacionais, mas prefiro lembrar as lições na prosa informal. A presença do amigo e do profissional Jobim foi muito importante no momento em que precisávamos submeter um importante projeto à CAPES e necessitávamos de uma Instituição parceira. Na busca pela parceria, após receber algumas recusas, conversei com Marisa Lajolo, que me disse: “procure o Jobim, Germana. Ele apoiará o projeto”. Bingo! Conversamos informalmente em São Paulo, por ocasião da ABRALIC, e elaboramos o projeto juntos, com correspondência por e-mail. Submetemos o projeto PROCAD-AF e tivemos êxito, o que se configurou em uma importante contrapartida acadêmica entre a Universidade Federal do Pará (UFPA) e a UERJ, com visíveis resultados, tanto na produção, quanto na formação de recursos humanos. Os resultados desse projeto foram consolidados com publicações de coletâneas organizadas pelos membros da equipe, as quais, certamente, contribuíram muito para a melhoria do Programa de Letras da UFPA e, principalmente, para a condução da vida acadêmica dos nossos alunos, sendo que muitos já seguem no Curso de Doutorado, alguns na UERJ. Coordenávamos o projeto eu, pelo lado da UFPA, e Roberto fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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Acízelo, pela UERJ. Não refuto em afirmar que a mediação das partes era promovida pelo nosso amigo em comum, Jobim. Durante esses anos, entre muitas visitas suas à UFPA e algumas nossas à UERJ, Jobim foi um mestre. Aprendi muito. Suas qualidades passam da magnífica elegância para o trato pessoal, para a objetividade em propor soluções aos problemas que parecem insolúveis, para a organização na condução da vida acadêmica. Lembro-me que, quando fui assumir a coordenação do Programa de Letras na UFPA, Jobim recomendou a mim e a minha parceira de trabalho que conduzíssemos a gestão para todos, indistintamente, e que a condução do trabalho acontecesse de forma diferenciada, para que a gestão ficasse marcada. Quanto à primeira indicação, cumprimos a rigor, mas em relação à segunda, se o trabalho que realizamos nos dignificou, a história dirá. Além dessas recomendações, devo ressaltar o apoio irrestrito de Jobim para que a UFPA abraçasse a ABRALIC. Durante toda a gestão, Jobim, com sua expertise, seja acadêmica, seja para a condução de decisões políticas, foi um fiel amigo e grande colaborador. Acredito que a vida, regida por caminhos aleatórios, aproxima-nos de boas e más experiências com o ser humano. Na condução desses caminhos surgem aqueles a quem vale dirigir nossa atenção e que merecem homenagens, por serem pessoas especiais. Essas são pessoas exclusivas, particulares, não apenas pela construção de uma carreira, mas porque em relação a elas é possível, ao lado da história profissional, juntar qualidades diversas que, somadas, compõem seres humanos especiais. Esta é uma oportunidade para que eu possa expor a admiração que tenho ao Jobim, cuja amizade me orgulha muito. Parece óbvio ressaltar que a fidelidade, a lealdade, o compromisso, a generosidade, a erudição, a simplicidade, a tolerância, a paciência, entre outras qualidades, são suficientes para patentear o homenageado. Mas não são. Jobim é um mestre, e a um mestre devemos honras, prestígio, mas principalmente gratidão. Por isso, é justo e valoroso que Jobim receba as páginas reunidas, esboços da nossa admiração e amizade, que jamais poderão ser traduzidas em papel e tinta, pois, de tão fecunda relação de afeição, as linhas são provisórias para aquilatar toda a consideração a quem compartilhou lições e a quem fez do dedo de prosa a melhor situação para partilhar seus conhecimentos. Viva Jobim!!! Viva a nova idade que escreve uma história gloriosa de benfeitorias e conquistas sublimes. A vida, quando construída para o bem, sem egoísmos e com abundante generosidade, resulta em afetos, amizades e admiração, sentimentos que todos os que partilham dessa coletânea alimentam em relação ao bravo Jobim. Germana Sales (UFPA) 138

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HOMEM DE LETRAS, INTELECTUAL, LÍDER

Homme de Lettres, ou, em uma designação menos sexista, Gens de Lettres, foi a expressão que, nos séculos XVII e XVIII, os franceses cunharam para dar conta da ação dos estudiosos da literatura, da cultura e das ciências que podiam servir ao Estado, mas que não necessariamente se envolviam em política fora dos quadros de preferência acadêmicos. No Brasil do século XIX e da primeira metade do século XX, o termo poderia incorporar pensadores e intelectuais, os quais, formados sobretudo em Ciências Jurídicas ou em Filosofia, atuavam na imprensa e lecionavam no ensino superior, que dava seus primeiros passos em nosso país. A expansão do ensino universitário e o estabelecimento de uma política de fomento à pós-graduação e à pesquisa subverteram em parte o conceito tradicional de Gens de Lettres: substituíram o arcabouço universalista e não especializado pela expertise e pela necessidade do compromisso com a formação de recursos humanos, que convertem o apreciador da literatura em docente, orientador e pesquisador, cuja visibilidade se traduz em publicações científicas, qualificadas por avaliações contínuas. José Luís Jobim preenche com naturalidade o novo desenho do professor, intelectual e pesquisador brasileiro. Graduou-se e doutorou-se em Letras, completando sua formação com estágio pós-doutoral nos Estados Unidos. Leciona em duas das mais importantes universidades brasileiras, a Estadual do Rio de Janeiro e a Federal Fluminense. É pesquisador reconhecido, de que dão testemunhos bolsas concedidas por agências federais, como o CNPq, e estaduais, como a FAPERJ. Presta consultoria a órgãos de fomento e avaliação, como CAPES, INEP e FAPESP, além dos mencionados CNPq e FAPERJ. Esse retrato, contudo, não esgota a apresentação do homem de Letras que é José Luís Jobim, acrescentando-se ao desenho outro fator essencial, capaz de especificar o que é contemporaneamente pertencer ao mundo da literatura e da cultura: significa escolher participar da elaboração de políticas públicas para o campo intelectual a que a pessoa se vincula, abrindo mão da posição contemplativa com que muitas vezes se representa o pesquisador. José Luís Jobim, que presidiu a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) e colaborou com a diretoria da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), ilustra bem o perfil da “gente de Letras” de nossos dias. E o fez com grande

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competência, haja vista seu permanente comprometimento com as duas principais associações da área de Letras em nosso país. Outro fato essencial que particulariza a ação do intelectual em nosso tempo decorre do alcance e impacto das pesquisas realizadas. Vocacionado para o estudo teórico da literatura, José Luís Jobim dedicou-se primeiramente à reflexão sobre os fundamentos da Ciência da Literatura. No começo dos anos 1990, organizou uma coletânea fundamental para os estudos literários nacionais, Palavras da crítica: tendências e conceitos no estudo da Literatura, em que sistematiza, com o apoio dos autores que participam da obra, as noções básicas das Teorias Literárias vigentes no século XX. A poética do fundamento: ensaios de teoria e história da literatura, de 1996, Introdução aos termos literários, de 1999, e Formas da Teoria – sentidos, conceitos e campos de força nos estudos literários, de 2002, são livros que levam adiante o empenho por construir uma Teoria da Literatura apoiada na experiência brasileira, sem perder de vista a contribuição internacional. O conhecimento teórico levou o pesquisador a investigar as consequências históricas de conceitos básicos. Assim, voltou-se à discussão de um tema reincidente na tradição brasileira – o “nacionalismo”, matéria de discussões que, oriundas do século XIX, persistem no século XXI, endossando-o ou opondo-o a noções como as de globalização. Evitando a polarização contraproducente, o pesquisador propõe uma reflexão sobre o trânsito entre culturas e espaços distintos, passagem que faculta resistir às teses, hoje descartadas, relativas à “influência” ou à “dependência” de uma sociedade ou civilização sobre outra. O exame do que o pesquisador denomina “trocas e transferências literárias e culturais” permite retomar termos da Teoria da Literatura que não apenas conceituam, mas que avaliam produções artísticas, como imitação ou originalidade, autonomia ou sujeição, facultando, ainda, perguntar pelo lugar do Brasil e da América Latina na elaboração de um pensamento que extravase fronteiras geográficas e intelectuais. Os resultados dessas propostas medem-se em livros publicados nos últimos anos, como Trocas e transferências culturais: escritores e intelectuais nas Américas, de 2008, lançado em 2009 na Inglaterra, com o título Cultural Transfers and Exchanges: From National to Transnational Blocks, e Literatura e cultura: do nacional ao transnacional, de 2013. Cabe mencionar duas outras linhas de investigação abrigadas pela ação intelectual e liderança de José Luís Jobim: em meados dos anos 1990, capitaneou pesquisa sobre a biblioteca de Machado de Assis, instigado pelo ensaio pioneiro de Jean Michel Massa dedicado ao tema. Desse trabalho 140

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coletivo resultou a obra de referência fundamental, A biblioteca de Machado de Assis, impressa em 2001. Se, diante de Machado de Assis, Jobim buscou atar as pontas entre o passado das leituras do Bruxo do Cosme Velho e o que resta desse universo de livros, diante da pós-modernidade, ele não deixou de se posicionar quanto às modificações dos suportes que conduzem a produção literária a novas alternativas, objeto de Literatura e informática, de 2005. Permanentemente dinâmico diante dos novos desafios, José Luís Jobim sumaria a “gente de Letras” do novo século, e todos que participamos desse universo sentimo-nos muito orgulhosos de tê-lo como companheiro e líder nessa jornada. Regina Zilberman (UFRGS/CNPq)

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JOSÉ LUÍS JOBIM

José Luís Jobim de Salles Fonseca, aliás, Jobim, simplesmente, para todos os efeitos de identificação no espaço acadêmico, em especial no das Letras. Se buscarmos um análogo para as dimensões de sua personalidade, na alternativa entre o extenso nome completo e sua versão minimalista, é na plenitude daquele que o encontraremos, e não na redução desta. Pois Jobim não é um, são vários. Há, em primeiro lugar, o professor, dedicado ao ensino das matérias de sua eleição, no Brasil e no exterior. No magistério, fez carreira diversificada, iniciando-se nos níveis fundamental e médio, até concentrar-se no grau de sua preferência, o universitário, em que há muito atua na graduação e na pós-graduação. Lecionou no venerável Colégio Pedro II (onde, por sinal, foi aluno) e, depois, na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), nas quais se tornou, por concurso público, professor titular de teoria da literatura. A dimensão do docente, por sua vez, se compõe com outra, a do pesquisador. Assim, dos estudos sistemáticos das questões de sua especialidade, lastro constante de suas aulas e cursos, vem resultando extensa produção intelectual, notável tanto pela abrangência, quanto pela qualidade, em que se contam conferências, palestras, publicações. Entre estas, além de inúmeros ensaios em periódicos especializados e livros coletivos, destacam-se obras como A poética do fundamento (1996), Formas da teoria (2002), A crítica literária e os críticos criadores no Brasil (2012), Literatura e cultura: do nacional ao transnacional (2013). Acrescentem-se os vários volumes coletivos que concebeu e organizou, entre os quais o marcante Palavras da crítica (1992), e se terá uma imagem de sua importante contribuição no âmbito das pesquisas especializadas e da produção bibliográfica na área dos estudos literários. E da consagração ao ensino e à pesquisa na universidade resulta uma terceira frente em que atua, a da administração. Sua contribuição nessa esfera – que, de resto, desmente a crença usual na incompatibilidade entre a dedicação à pesquisa e o serviço administrativo – configura intenso compromisso com o fortalecimento institucional não só da UERJ e da UFF, mas do conjunto da área de Letras. Desse modo, o vemos no exercício de diversos cargos, nas duas universidades a que tem servido – chefe de departamento, diretor de unidade, coordenador de pós-graduação; na gestão de importantes associações científicas, como a Associação Brasileira fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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de Literatura Comparada (ABRALIC), de que foi presidente, e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), cuja diretoria integrou; no assessoramento a agências de fomento à pesquisa, muito especialmente a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Em todos esses cargos e posições, algumas constantes: capacidade de planejamento, clara visão técnica dos problemas, senso prático para resolvê-los, e, sobretudo, human skills na mediação de conflitos e na busca das convergências possíveis entre posições polares. O escritor, por fim, constitui uma quarta dimensão dessa personalidade múltipla e dinâmica. De certo modo, já mencionamos essa vertente do seu labor intelectual, com a referência feita a seus ensaios e livros, cujos textos sobressaem não só pelo rigor conceitual e correção acadêmica, mas também pela clareza, fluência e elegância de que são dotados, atributos que lhes conferem estatuto verdadeiramente literário. Acrescentemos, contudo – não sem alguma indiscrição –, que, no escritor, convivem o ensaísta, sua face pública e notória, e o poeta, este quase secreto, e praticamente só conhecido no círculo de seus amigos mais próximos, que, desse modo, pelo menos por enquanto, são os únicos em condições de atestar-lhe o valor. Professor, pesquisador, administrador, escritor: traços externos e funcionais, por certo, mas, nele, fecundados por intensa humanidade, sempre a assinalar-lhe gestos e atitudes, invariavelmente generosos, desprendidos, solidários. Eis, então, Jobim, aliás, José Luís Jobim de Salles Fonseca. Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ/CNPq/FAPERJ)

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DUAS PALAVRAS E UM TESTEMUNHO

Na minha longínqua memória vou encontrar o Jobim como colega, primeiramente do Mestrado em Literatura Brasileira e, a seguir, do Doutorado em Teoria da Literatura, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde eu já lecionava no Departamento de Ciência da Literatura, naquele período, um dos mais aguerridos do panorama literário e teórico do país. Entre os nossos professores, podemos citar Eduardo Portella, Afrânio Coutinho, Cleonice Berardinelli, Celso Cunha e Cyro dos Anjos, entre outros importantes mestres. Formamos um grupo que nos levou à Biblioteca Nacional em um curso de Guilherme Figueiredo, para pesquisar sobre teatro. Prossegui aquele trabalho, que resultou no texto Censores de pincenê e gravata: dois momentos da censura teatral no Brasil, de 1981, dissertação de mestrado com a análise dos pareceres inéditos dos censores do Conservatório Dramático e a história da instituição (de 1830 a 1860), articulada como uma análise do discurso entre poder político-cultural e institucional, ideologia da censura e função dos intelectuais, depois publicada em nova estrutura. Em um capítulo do seu Formas da Teoria, de 2003, Jobim tratará do tema “Censura e Moral”, a partir dos pareceres de Machado de Assis, do Conservatório Dramático. Como não ver naquele estudo uma origem comum da nossa formação? O trabalho de 2003 discute, ainda, outros temas importantes que vão de questões culturais amplas, como o capítulo de abertura, dedicado a “Nacionalismo e Globalização”, àqueles que tratam de aspectos teóricos ligados à narrativa e à história ou à intertextualidade. Um primeiro eixo de pesquisa que nos liga, portanto, refere-se à Literatura Brasileira, à Teoria da Literatura e aos temas culturais da identidade nacional brasileira. Passados muitos anos, quando já professora em Roma, reencontro o Jobim como Diretor da Faculdade de Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde também lecionei. Desde então, temos colaborado em torno de pesquisas sobre Machado de Assis e Antônio Vieira, principalmente. A este núcleo deve-se ligar a sua colaboração com o professor Silvano Peloso, da Universidade de Roma “La Sapienza”. Da parceria institucional da Sapienza com a UERJ nasceram projetos importantes que culminaram no Congresso do Terceiro Centenário do nascimento do grande pregador jesuíta, comemorado em Roma, em 2008, e depois levado pelo mesmo grupo à Universidade de Lisboa e, finalmente, ao Rio de Janeiro, na UERJ, sob a coordenação de Jobim, Ana Lúcia de Oliveira e Antônio Celso fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 45, Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

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Alves Pereira. Outro fruto da colaboração entre a Sapienza e a UERJ, com o patrocínio do ex-Reitor Antônio Celso Alves Pereira e do atual Reitor, Ricardo Vieiralves, foi a fundação da coleção Brasil-Itália da EdUERJ, sob a direção de Italo Moriconi, em que foram publicados volumes como Literatura e identidade e Descobrindo o Brasil, sob a coordenação de Jobim e Silvano Peloso, reunindo professores das duas instituições universitárias citadas. Em relação a Machado, não se pode esquecer o volume A biblioteca de Machado de Assis, organizado por Jobim, em 2001, importante volume coletivo para a consulta da bibliografia referente ao autor carioca, e o congresso de 2008, na UERJ, na comemoração dos cem anos do desaparecimento do autor de Dom Casmurro. Na tradução do Quincas Borba, que organizei e orientei em 2009, na Itália (Viterbo, Sette Città), o posfácio é de Jobim, não só como justa homenagem à nossa parceria, mas também como reconhecimento pelos seus trabalhos na área. Um segundo eixo, assim, do perfil do Jobim configura-se pela sua capacidade de organizador da cultura que caracteriza as suas atividades institucionais de direção, coordenação e promoção. Por último, não poderia deixar de referir-me à literatura comparada que marcará também o seu trabalho de pesquisador, levando-o tanto aos aspectos teóricos da contemporaneidade, como ao trabalho crítico desenvolvido no seu estudo de 2012, A Crítica Literária e os Críticos Criadores no Brasil. É importante lembrar que o professor José Luiz Jobim representa uma geração de estudiosos formados na Universidade brasileira, mas com especialização no exterior, capaz de construir pontes de intercâmbio que desprovincializam, sem subordinar o pensamento brasileiro. Somo ao testemunho o valor da personalidade do homenageado de hoje, raro exemplo de ética acadêmica e de profissionalismo.

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Sonia Netto Salomão (Sapienza, Universidade de Roma)

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Números Publicados Fragmentum 1 História, memória e mito no Romanceiro da Inconfidência Silvia Carneiro Lobato Paraense 2001 Fragmentum 2 Memória da escrita e escrita da memória Marcia Cristina Corrêa 2001 Fragmentum 3 Questões sobre identidade e diferença: tensão entre o mesmo e o outro Vera Lúcia Pires 2002 Fragmentum 4 Literatura, história e memória em Baú de Ossos Pedro Brum Santos 2002 Fragmentum 5 A formação do pós-graduação em Letras no Rio Grande do Sul Entrevista com Regina Zilberman Amanda Eloina Scherer (Org.) 2004 Fragmentum 6 Uma trajetória em busca do saber: uma referência na história das idéias lingüísticas no RS Entrevista com Leonor Scliar Cabral Amanda Eloina Scherer (Org.) 2004 Fragmentum 7 História das idéias x história de vida Entrevista com Eni Orlandi Amanda Eloina Scherer (Org.) 2004 147

Fragmentum 8 Vozes da narrativa contemporânea Silvia Carneiro Lobato Paraense (Org.) 2004 Fragmentum 9 Da agenda azul ao romance de Saramago: os manuscritos da Biblioteca Nacional de Lisboa Gerson Luiz Roani 2004 Fragmentum 10 Edição Bilíngue Oralité et écriture de l’histoire Entretien avec François Dosse Oralidade e escritura da história Entrevista com François Dosse Amanda Eloina Scherer (Org.) 2006 Fragmentum 11 Sujeito, ética e história Entrevista com José Luiz Fiorin Amanda Eloina Scherer (UFSM) - Org. 2007 Fragmentum 12 Ciência e política na/da história Entrevista com Eduardo Guimarães Amanda Eloina Scherer (UFSM) - Org. 2007 Fragmentum 13 Circulação das idéias lingüísticas Grupo de Estudos Lingüísticos - GEL Amanda Eloina Scherer (UFSM) e Verli Petri (UFSM) - Orgs. 2007

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Fragmentum 14 Percurso, discurso e pesquisa em Letras na UFSM Amanda Eloina Scherer (UFSM) e Verli Petri (UFSM) - Orgs. 2007 Fragmentum 15 A literatura regionalista gaúcha na história das idéias lingüísticas Apresentado por Pedro Brum Santos (UFSM) Verli Petri (UFSM) - Org. 2008 Fragmentum 16 Constituir, formular e fazer circular sentidos: dispersão e memória no discurso sobre/na cidade Larissa Scotta (UFSM) - (Org.) 2008 Fragmentum 17 Por uma história social das idéias lingüísticas no Sul do Brasil Entrevista com Ana Zandwais Maurício Beck (UFSM) - Org. 2008 Fragmentum 18 A língua que se faz comunicar: história e memória da Comunicação Social Entrevista com Quintino de Oliveira Caciane Souza de Medeiros (UFSM) - Org. 2008 Fragmentum 19 A gramática no tempo presente Mary Neiva Surdi da Luz (UFSM) - Org. 2008 Fragmentum 20 História das Ideias Linguísticas Larissa Montagner Cervo (UFSM) - Org. Jan./Mar. 2009

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Fragmentum 21 – No Prelo Língua da escola e língua da vida: um fazer entre o político, o científico e o institucional Entrevista com Amanda Eloina Scherer Cristiane Dias (Unicamp) e Rejane Arce Vargas (UFSM) – Orgs. Abr./Jun. 2009 Fragmentum 22 Entre línguas e culturas: uma história de vida e uma história social na Linguística Aplicada Entrevista com Maria José Coracini Beatriz Eckert-Hoff (UNITAU, UniAnchieta) e Marluza da Rosa (Unicamp) – Orgs. Jul./Set. 2009 Fragmentum 23 Historicidade e Papel da Memória II Jornada Regional de Iniciação Científica em Estudos Linguísticos I Seminário de Teses e Dissertações em Andamento XII Seminário Corpus Amanda Eloina Scherer (UFSM) e Verli Petri (UFSM) - Orgs. Out./Dez. 2009 Fragmentum 24 História das Ideias Linguísticas no Sul e os Estudos do Discurso Entrevista com Leci Barbisan Taís da Silva Martins (UFSM) - Org. Jan./Mar. 2010 Fragmentum 25 Verso e reverso: Teatro itinerante e outros teatros Entrevistas com Clóvis Dias Massa e Ben-Hur Benvenato de Almeida Elaine dos Santos (UFSM) e Pedro Brum Santos (UFSM) - Orgs. Abr./Jun. 2010 Fragmentum 26 Dicionário, sujeito e espaço José Horta Nunes (UNESP – São José do Rio Preto) - Org. Jul./Set. 2010

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Fragmentum 27 Breve história de uma Linguística do mundo da vida Entrevista com Izidoro Blikstein Verli Petri (UFSM) - Org. Out./Dez. 2010 Fragmentum 28 Celso Pedro Luft: Um saber linguístico no sul Amanda Eloina Scherer (UFSM) e Maria Iraci Sousa Costa (UFSM) - Orgs. Jan./Mar. 2011 Fragmentum 29 Percursos teóricos e analíticos em Análise de Discurso Parte I Bethania Mariani (UFF) e Vanise Medeiros (UFF) - Orgs. Abr./Jun. 2011 Fragmentum 29 Percursos teóricos e analíticos em Análise de Discurso Parte II Bethania Mariani (UFF) e Vanise Medeiros (UFF) - Orgs. Abr./Jun. 2011 Fragmentum 30 Ponto de vista teórico e gesto analítico Larissa Montagner Cervo (UFSM) e Taís da Silva Martins (UNICENTRO) - Orgs. Jul./Set. 2011 Fragmentum 31 Ponto de vista teórico e gesto analítico Amanda Eloina Scherer (UFSM) e Larissa Montagner Cervo (UFSM) Orgs. Out./Dez. 2011 Fragmentum 32 De fragmentum a mosaico Lucília Maria Sousa Romão (FFCLRP/USP) e Fernanda Correa Silveira Galli (FFCLRP/ USP) - Orgs. Jan./Mar. 2012 151

Fragmentum 33 Reflexões sobre a produção do conhecimento linguístico Caroline Mallmann Schneiders (UFSM) e Maria Iraci Sousa Costa (UFSM) - Orgs. Abr./Jun. 2012 Fragmentum 34 Edição Bilíngue William Blake, Poet, Painter, and Artist-Printmaker An Interview with Michael Phillips William Blake, Poeta, Pintor e Artista-Gravurista Uma entrevista com Michael Phillips Enéias Farias Tavares - Org. Jul./Set. 2012 Fragmentum 35 Linguagem, cultura e interação: espaços simbólicos construídos em Língua Portuguesa na China e em Macau Parte I – Histórias, personagens e espaços Roberval Teixeira e Silva (Universidade de Macau) – Org. Out./Dez. 2012 Fragmentum 35 Linguagem, cultura e interação: espaços simbólicos construídos em Língua Portuguesa na China e em Macau Parte II – Políticas linguísticas e abordagens teóricas Roberval Teixeira e Silva (Universidade de Macau) – Org. Out./Dez. 2012 Fragmentum 36 Modos de subjetivação operados pela voz em discurso Pedro de Souza – Org. Jan./Mar. 2013 Fragmentum 37 Fundo Documental Neusa Carson Simone de Mello de Oliveira (UFSM) e Nádia Régia Maffi Neckel (UNISUL) – Orgs. Abr./Jun. 2013

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Fragmentum 38 Vol. 1. A Tragédia Grega: Tradução, Encenação e Crítica Carlos Roberto Ludwig (UFT) e Enéias Farias Tavares (UFSM) – Orgs. Jul./Set. 2013 Fragmentum 39 Homenagem à Leda Bisol: diálogos e perspectivas em Linguística Evellyne Costa (UFSM) e Tatiana Keller (UFSM) – Orgs. Out./Dez. 2013 Fragmentum 40 Enunciação, política e história – Um olhar sobre as línguas e a linguagem: Homenagem a Eduardo Guimarães Mónica Zoppi Fontana (UNICAMP) e Sheila Elias de Oliveira (UNICAMP) – Orgs. Jan./Mar. 2014 Fragmentum 41 “Archives et manuscrits de linguistes. Quel apport pour la linguistique?” “Arquivo e manuscritos de linguistas. Qual a contribuição para a linguística?” Irène Fenoglio (CNRS – ITEM Paris) – Org. Abr./Jun. 2014 Fragmentum 42 A Poesia e a arte de William Blake: o Catálogo Descritivo Alcides Cardoso dos Santos (UNESP/Araraquara) – Org. Jul./Set. 2014   Fragmentum 43 Memória e trajetória: o testemunho de Maria da Glória Bordini Pedro Brum Santos (UFSM) – Org. Out./Dez. 2014   Fragmentum 44 Linguagem e Sentido  Ana Zandwais (UFRGS) – Org. Jan./Mar. 2015

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Fragmentum 45 Homenagem a José Luís Jobim: trocas culturais, estatuto da autoria e textualidades contemporâneas João Cezar de Castro Rocha (UERJ) - Org. Abr./Jun.2015

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Laboratório Corpus Prédio 16, CE, sala 3302 Campus Universitário - Camobi 97105-900 - Santa Maria, RS - Brasil Fone: 0xx 55 3220 8956 http://www.ufsm.br/corpus E-mail: [email protected]

Integram o Laboratório Corpus os Grupos de Pesquisa: GRPESQ/CNPq Linguagem, Sentido e Memória GRPESQ/CNPq Literatura e História

 

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