Fratres. Ou o incesto prodigioso

June 8, 2017 | Autor: J. Abreu | Categoria: Artes Visuais, Erotismo
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Tal é a criatura originária que mais vivamente remanescendo na consanguinidade do Irmão e da Irmã, neles se faz carne e sangue. […] Eterna é a sua noite de bodas. Natália Correia, As Núpcias

Fratres. Ou o incesto prodigioso, por José Guilherme Abreu Eterna é a sua noite de bodas! A que registo alude esta frase, quase onírica? A ideia de um erotismo perpétuo parece-nos hoje utópica, por irremediavelmente vedada, velada ou apenas adormecida. Manter os sentidos focados no todo da uni(di)versidade dos amantes, dir-se-ia que é uma impossibilidade, desde logo pela extinção implacável dos ardores que fundem um no outro os amantes. Mas o erotismo, como já lembrou Bataille, não é somente uma finalidade do corpo, visto que “a actividade sexual reprodutiva é comum aos homens e aos animais sexuados, mas aparentemente só os homens fizeram da sua actividade sexual uma actividade erótica, pelo que a diferença que separa o erotismo da actividade sexual simples é uma busca psicológica independente do fim natural presente na reprodução e no cuidado a dar aos filhos” (Bataille, El Erotismo: p. 8). Sendo uma finalidade exclusiva do corpo, deixa de ser erotismo. É instinto. E curiosamente, logo o instinto se torna extinto, dado o carácter sazonal da libido animal. Só nos humanos, a libido se transforma em erotismo. E se Eros, ao desferir a sua seta, funde os amantes, fundando a unidiversidade neles, Eros é a universidade da unidade renovada. Toda a arte, em particular a literatura, é do aflorar desses êxtases que se ocupa. Vejamos um vislumbre dessa realização, num dos seus momentos mais felizes: Purificado está o corpo do Irmão pela abstinência. A sua veste é de linho branco e muitas abluções lhe são ordenadas para que a limpeza do seu corpo seja a imagem da limpeza da sua alma, que deve estar imaculada porque é o espelho que vai reflectir o rosto da Irmã no qual ele se reencontra a si mesmo. Cumprido esse seu rito, um coro apaixonado eleva-se de um bosque de mirtos e envolve-o em cânticos de amor que fazem mover os mundos. O seu coração torna-se um braseiro devorador e ele pede a Eros: – Dá-me a flôr desejada. Então como a luz sai por si mesma das trevas, surge a mulher branca e cintilante. É a Sóror Mística que se reúne ao Irmão para que apodreça o fruto que destruiu a perfeita unidade das duas naturezas. Ela toma-o pela mão e ele pergunta: – Onde me levas? – Ao limiar da transparência de onde se alcança a estrela flamejante. E o que era feio torna-se belo. O que era fraco torna-se forte. E o que era ignaro torna-se sábio Ele segue-a e acha-se na câmara nupcial. É o Templo onde a Irmã dá ao Irmão a flor mística do amor. Aves de ouro e de prata voam das suas cabeças unidas. (Natália Correia, As Núpcias: 35-36)

Eros, em última instância, é poder de transfiguração. Transfigura os amantes em Irmãos, e os irmãos em Amantes. Duplo interdito, portanto. Apenas um primeiro vislumbre. Mais adiante, a imagem assume contornos mais claros: Movidos por forças de um passado imemorial da vida que reclama que se retome o caminho para que as esferas da luz original, Irmão e Irmã cumprem os rituais sagrados da sua conjugação, no ser duplo de asas resplandecentes, saído do claro ovo que a Noite produziu. Assim se faz a obra que é a união do Sol e da Lua de que emergem o macho vermelho que é o fogo da paixão e a fêmea branca que traz o crescente lunar no púbis. Saído de um lírio de luz, ele é a fonte da iluminação. Ela transporta o lótus que regenera e purifica. Voltados para o ponto do céu onde a aurora se levanta, os Irmãos Amantes transmutam em ouro o resplendor das suas apaixonadas carícias, pois que recebem a graça de ascenderem à comunhão inefável no mistério da união sexual. Não é ainda o ouro da culminação da Obra, mas, por enquanto, só o anúncio fulgente da união dos opostos. Por isso, retirada que é a venda ao Irmão, não o ceguem os assombros

prometidos no mistério da consumação carnal do masculino e do feminino que refaz o Único. Pois os seus olhos terão de abrir-se para verem a luz mais completa ilumina o mistério final. (Natália Correia, As Núpcias: p. 47)

O interdito do incesto tem como fundamento a constituição do ser humano como ser humano social, e assinala, como já notou Lévi-Strauss, a passagem do estado de natureza para o estado de cultura, ou se se preferir, para o estado de di-visão. Visão, por um lado da natureza corporal ou animal, percepcionada como tempo. Visão, por outro, da natureza conceptual ou ideal, que nega o tempo, despedaçando-o em finitude, com a consciência da morte corporal. A essência do humano reside na proibição do incesto e o doar das mulheres, é a sua consequência (Bataille, El Erotismo: p. 161) A civilização constitui-se a partir desse dar. Os irmãos dispersam-se pelas tribos vizinhas e espalham diversidade pelas cadeias do ADN, miscigenando culturas e multiplicando híbridos. O erotismo torna-se um desígnio universal e permanente, e o êxtase sexual perdura no espírito, para lá do imediato. Torna-se busca e programa. Transforma-se em desejo perpétuo, em fetiche cultural e, banalizado, em aliança política, instituída casamento. Na modernidade, a cultura é a erotização generalizada. O desejo fascinado de tudo experimentar, de tudo viver – “ser tudo de todas as maneiras!”, clamava Pessoa. E de tudo possuir. Mas o desejo de infinito, no ter, não é, pela sua impossibilidade, o correlato moderno da transcendência, no campo da possibilidade de ser? No final de contas, de tudo tanto querer, nada é bastante para, em plenitude, aflorar (ou desflorar?) o ser. As limitações biológicas temporais do corpo não con-sentem a fusão na totalidade dos corpos distintos, embora essa seja a demanda premente, libertina. Buscar a nudez, cingir o abraço e tragar o colo, na procura incessante do corpo do irmanado. Universal como a arte, o erotismo conduz ao limiar do ilimitado, e a transposição desse limiar abrirá o caminho até uma condição existencial inédita e original, na correspondência do salto do estado de natureza para o estado de cultura, em Lévi-Strauss. O salto, agora, do estado de cultura para o estado de discernimento, pela superação do tabu do incesto, ponto de partida para a superação do derradeiro tabu: a transposição da morte. O sono mágico em que a tua Amada está imersa é o véu que lhe cobre o rosto. Imortal, ela consentiu em mergulhar no sono que lhe dá a aparência de morta. Porque sendo ela tu e tu ela, terás de passar pela morte para levantares o véu que oculta a sua divindade que é a tua, e que a olhos mortais não é dado ver. Alucinado, lutas com o Espectro que guarda a Bela Adormecida. Queres levá-la para o Templo, onde, formando contigo uma única alma, ela abrirá os olhos. Mas o sequestrador do teu Tesouro cerca-a com uma muralha de forças malignas. Em vão tentas escalá-la. Desamparadamente cais no teu corpo com num cadáver. Até que, reanimado por límpidos cânticos, neles alcançarás o conhecimento de que não é visível o Templo onde a Bela Adormecida acordará. Porque ela está em ti. E estando em ti, és tu o Templo em que ela está. (Natália Correia, As Núpcias: 116) Trata-se, pois, de beber o cálice do nosso próprio ser. Tragar o corpo. Esgotá-lo com a repetição do matrimónio incestuoso das duas naturezas, encafuadas naqueles que se buscam. Agora só tu poderás desenredar os espinhos entrelaçados uns nos outros do caminho da saída. Porque, afastado da tua origem como um raio da sua fonte luminosa, para nela te reintegrares terás como único guia o chamamento da Irmã Mística que, na cripta mais funda do teu ser, em sua morte aparente nutre a tua imortalidade. (Natália Correia, As Núpcias: 123-124) Rubra é a alvorada das suas núpcias: a volúpia perpétua do crepúsculo geocultural.

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