Frege: a teoria da identidade na Begriffsschrift

September 13, 2017 | Autor: Luisa Coutosoares | Categoria: Analytic Philosophy, Gottlob Frege
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FREGE: A TEORIA DA IDENTIDADE NA BEGRIFFSSCHRIFT

No § 3 da Bs, Frege afirma que para a sua ideografia só tem relevância o conteúdo conceptual (Inhaltsbegriff) e por isso duas proposições, cujo conteúdo conceptual seja invariável, devem ser consideradas como idênticas. É necessário introduzir na conceptografia um sinal para exprimir esta relação de identidade de conteúdo. Este sinal, no entanto, é peculiar e diverge dos de condicionalidade ou de negação, na medida em que se aplica aos nomes e não aos conteúdos entre os quais ocorre: "Enquanto nos outros contextos, os signos não são senão meros representantes dos seus conteúdos, de modo que em toda a combinação na qual entram exprimem apenas uma relação entre os seus respectivos conteúdos, estes mesmos signos exibem-se a si mesmos quando ocorrem combinados através do signo de identidade; pois este signo exprime a circunstância de que dois nomes têm o mesmo conteúdo"1.

Esta particularidade do signo de identidade introduz portanto uma ambiguidade na designação dos nomes na Bs: em geral os nomes e todos os signos denotam os objectos, excepto nos enunciados de identidade, em que os nomes ou expressões dos dois lados deste sinal, não representam nenhum objecto, mas apresentam-se a si mesmos. A identidade estabelecida pelo sinal "=" não é portanto uma relação entre objectos, nem mesmo entre os conteúdos conceptuais, mas entre os próprios signos. Se entendermos esta                                                                                                                 1. Frege, G. - Bs, § 8: Währende sonst die Zeichen lediglich Vertreter ihres   Inhaltes sind, so dass jede Verbindung, in welche sie treten, nur eine Beziehung ihrer Inhalte zum Ausdrucke bringt, kehren sie plötzlich ihr eignes Selbst hervor, sobald sie durch das Zeichen der Inhaltsgleichheit verbunden werden; denn es wird dadurch der Umstand bezeichnet, dass zwei Namen denselben Inhalt haben".  

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afirmação de Frege no seu sentido estrito, só será lícito estabelecer uma relação de identidade entre signos autenticamente, visivelmente idênticos, como "a=a"; "a=b" não satisfaz já esta condição, pois "a" e "b", em si mesmos, na sua materialidade de signos, não são de modo nenhum idênticos. Uma interpretação assim restritiva excluiria mesmo a possibilidade de compreender qualquer identidade da matemática, como 1/2=3/6, pois os signos materialmente são diferentes. No entanto, o texto de Frege prossegue com outra especificação relevante para a compreensão do signo de identidade. A aludida "bifurcação" de significado dos signos, que ora denotam os seus conteúdos, ora se presentificam a si mesmos, levaria a pensar que a identidade tem um alcance meramente semântico, e não diz respeito ao pensamento. Nesta perspectiva o signo de identidade - como afirmará Wittgenstein - seria perfeitamente dispensável: para indicar o mesmo conteúdo bastaria repetir o mesmo signo que o representa2. Para mostrar que esta interpretação é uma "ilusão vazia", Frege recorre a um exemplo da geometria muito semelhante ao que apresentará em SuB: o de uma circunferência onde existe um ponto A, à volta do qual se faz rodar um raio. Quando este forma um diâmetro, chamamos ao ponto A, o ponto B associado à posição do raio em cada caso que se produz, a partir da regra de que a variações contínuas da posição do raio, devem corresponder sempre variações contínuas da posição B. Portanto, o nome B significa algo de indeterminado, enquanto não se especificar a posição associada do raio. Qual o ponto correspondente à posição da linha recta que é perpendicular ao diâmetro? O ponto A. Um mesmo ponto pode assim ser determinado de dois modos: 1. imediatamente através da intuição 2. como raio perpendicular ao diâmetro. A cada um destes modos de determinar o ponto, corresponde um nome particular3. É a pluralidade dos modos de determinar um mesmo conteúdo que permite os vários nomes e modos de referir um mesmo objecto, e que                                                                                                                 2. Cfr. Tratactus, 5.53, Schriften, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1980.   3. Cfr. Bs, § 8.  

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justifica portanto o signo de identidade. Este signo versará, não só sobre os diferentes nomes ou expressões de um mesmo conteúdo, mas sobre os diferentes modos de o determinar, que explicam os diferentes nomes pelos quais o exprimimos. Por isso a existência de uma variedade de signos para o mesmo conteúdo não é uma mera questão formal, e consequentemente a identidade não se poderá reduzir a uma relação meta-linguística, a uma relação que diga respeito apenas aos signos, mas abarca os diferentes modos de determinar um conteúdo, aos quais estão associados diferentes nomes. Como se torna bem patente, a distinção que Frege introduz já na Bs entre conteúdo e modos de o determinar, preludia a sua distinção entre sentido e referência, introduzida mais tarde no célebre artigo de 18924. Até o                                                                                                                 4   Embora   constitua   um   antecedente,   será   útil   sublinhar   que   na   Bs,     o   problema   principal   de   Frege   é   a   justificação   dde   uma   linguagem   conceptográfica,   questão  que  não  está  presente  em  SuB..  A  sua  noção  de  conteúdo  conceptual  é   definida   em   função   de   um   contraste   entre   a   linguagem   conceptográfica   e   a   linguagem   comum,   e   pela   relação   às   suas   consequências   na   ordem   inferencial:Esta   noção   de   conteúdo   conceptual   interessa   a   Frege   para   pôr   de   parte   certos   aspectos   da   linguagem   comum   que   não   interessam   à   análise   lógica,  como  a  diferença  entre  a  construção  em  voz  activa  ou  passiva,  e  rege-­‐se   pela   ideia   de   que   conteúdos   conceptuais   iguais,   devem   ter   uma   única   expressão   conceptográfica.   Aqui   reside   o   carácter   paradoxal   do   signo   de   igualdade   de   conteúdo,   visto   que,   em   princípio,   se   os   conteúdos   são   iguais,   pressupõe-­‐se   que   na   linguagem   conceptográfica   se   exprimem   através   dos   mesmos   signos,   e   será   inútil   introduzir   na   liinguagem   conceptográfica   um   signo   para   exprimir   a   igualdade   de   conteúdo.   No   entanto,   Frege   enfrenta-­‐se   com   o   problema   da   extrema   complexidade   das   suas   expressões   conceptográficas   e   necessita   de   introduzir   abreviaturas   por   via   de   definição   e,   para  isso,  necessita  de  introduzir  um  signo  de  igualdade  de  conteúdo,  que  fala   dos  signos  (não  dos  seus  conteúdos,  que  são  o  mesmo,  expresso  um  através  da   abreviatura.  Para  uma  justificação  mais  plena  da  utilidade  desse  signo,  Frege   recorre  aos  juízos  de  identidade  correntes  e  à  noção  de  "modo  de  determinar-­‐ se";  no  entanto,  os  modos  de  determinar-­‐se  não  são  conteúdos,  mas  modos  de   determinar   os   conteúdos,   o   que   manifesta   a   insuficiência   da   noção   de   conteúdo   conceptual   estabelecido   em   termos   de   um   contraste   entre   a   linguagem   comum   e   a   linguagem   conceptográfica:   esta   última,   destinada   a   exprimir   o   conteúdo   conceptual,   e   só   o   conteúdo   conceptual,   acaba   por   ver-­‐se   obrigada  a  exprimir  também  o  modo  de  determinar  esse  conteúdo  conceptual.   No   artigo   FuB   Frege   introduz   o   signo   de   identidade,   substituindo   o   signo   de   igualdade  de  conteúdo,  como  relação  entre  objectos,  e  não  já  entre  signos,  mas  

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exemplo geométrico revela claramente a semelhança das noções: em SuB, Frege utiliza o exemplo da intersecção das meridianas de um triângulo, cujo ponto se pode designar tanto como "o ponto de intersecção entre A e B", como "o ponto de intersecção entre B e C" etc.5.   Esta semelhança confirma que já no seu escrito lógico de 1879, Frege não só antevê uma distinção muito semelhante à de sentido/referência, como abandona a tese da identidade como uma relação entre signos linguísticos, relação esta que, além de enfraquecer notavelmente a relação de identidade, não permitiria explicar o valor cognitivo dos enunciados de identidade. Na Bs, para justificar este valor cognitivo, Frege faz uma concessão a Kant, da qual se virá mais tarde a retractar: a relevância informativa destes enunciados de identidade radica no seu carácter de juízos sintéticos, no sentido kantiano6.  Os diferentes modos de determinar o mesmo conteúdo são dados na experiência, o que garante o seu valor cognitivo, de acordo com a exigência de Kant. Mas, posteriormente, Frege propor-se-á rever toda a noção de analiticidade para justificar, contra Kant, o carácter analítico e ao mesmo tempo informativo das proposições da aritmética7. E a conclusão desse exame é a de que, apesar de analíticas, porque totalmente fundadas nas leis lógicas, as proposições da aritmética não deixam, no entanto, de ter um                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   ao  preço  de  deixar  de  parte  o  problema  da  iintrodução  de  abreviaturas  por  via   de  definição,  a  questão  que  mais  lhe  interessava  na  Bs.   5. Cfr. SuB, KS, p. 144.   6. Bs, § 8: "In diesem Falle ist das Urtheil, welches die Inhaltsgleichheit zum Gegenstand hat, im kantischen Sinne ein synthetisches".   7. É este um dos objectivos fundamentais dos Grundlagen der Arithmetik. Cfr. Proust, J. - Questions de Forme - Logique et proposition analytique de Kant à Carnap, p. 224: J. Proust assinala o significado e o alcance desta concessão de Frege a Kant, na Bs: "Concession de taille, puisqu'elle conduit à donner aux identités mathématiques le statut de propositions synthétiques au même titre que les propositions de la géométrie, dès lors qu'on leur reconnaît un intérêt pour la connaissance. Frege n'admet-il pas ici implicitement que les propositions de l'arithmétique (dont il a indiqué dans la préface le caractère logique et a priori) sont en fait synthétiques a priori - en substituant à vrai dire les lois logiques à l'intuition pure de Kant dans le rôle constructif? Le texte de 1879 présente un état transitoire de la réflexion fregéenne sur la portée théorique du concept d'analyticité (...)".  

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indiscutível valor cognitivo: este valor não lhes vem da experiência, mas de uma noção de analiticidade baseada na unidade da referência como fulcro de uma infinita pluralidade de sentidos que se pode descobrir, e através da qual é possível identificar o mesmo objecto. Cada descoberta de um novo sentido, embora se mantenha dentro do marco da análise do mesmo objecto, ou do mesmo conteúdo proposicional, traz no entanto uma nova informação. A analiticidade reformulada por Frege, se bem que no seu ponto de partida revele claramente o cunho kantiano, acabará por aproximar-se mais da perspectiva leibniziana da inerência de todo o predicado ao sujeito, princípio de todas as verdades analíticas. A necessidade de um sinal para a identidade de conteúdo está portanto justificada: "A=B" significa que o signo A e o signo B têm o mesmo conteúdo conceptual, de modo que podemos sempre substituir B por A e vice-versa8.   A semelhança de toda a exposição deste parágrafo da Bs com a de SuB é nítida: assim como neste último ensaio, Frege distingue entre aquilo que é designado pelo signo, a sua referência (Bedeutung) e aquilo que o signo exprime, o seu sentido (Sinn), também na conceptografia distingue já entre aquilo que um termo designa, o seu conteúdo e aquilo que corresponde ao termo, um modo de designar (Bestimmungsweise). E tal como em Sub, o valor cognitivo reside na possibilidade de uma mesma referência ser expressa através de uma multiplicidade de sentidos, também na Bs, o carácter informativo provém do facto de o mesmo conteúdo poder ser determinado de vários modos distintos9. Se tivermos em conta esta antecipação das noções de sentido e referência na Bs, é difícil compreender a razão da auto-crítica que o próprio Frege faz à sua teoria da identidade no início de SuB: aqui Frege afirma ter defendido na Bs, que a identidade é uma relação entre nomes ou signos de objectos, incorrendo nas críticas a que esta teoria se expõe. Nesta afirmação, Frege parece esquecer que na própria Bs, corrigira esta explicação da identidade, introduzindo a noção de Bestimmungsweise, correspondente em                                                                                                                 8. Cfr. Bs, § 8.   9. Cfr. Mendelsohn, R. L. - "Frege's Begriffsschrift Theory of Identity", Journal of the History of Philosophy, vol XX n. 3, (1982) p. 291.  

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traços gerais à noção de sentido, e que através dela justificara o carácter informativo dos enunciados de identidade. Além disso afirmara já que atribuir o sinal de identidade apenas às expressões, e não ao pensamento, é uma "pura ilusão", e comprova-o com o já citado exemplo geométrico. Se de facto o signo de identidade relacionasse apenas os nomes, e não o que estes exprimem, a teoria seria objecto de várias críticas: em primeiro lugar, a informação que uma proposição de identidade ofereceria, seria uma informação sobre as próprias expressões, não sobre os objectos: "a=b" exprimiria apenas o facto de "a" e "b" serem nomes do mesmo objecto. Esta análise não pode ser correcta, argumenta o próprio Frege, porque o facto de "a" ser um nome de a e "b" ser também um nome de a resulta de uma convenção puramente arbitrária que rege o uso dos signos. No entanto, quando digo que "Vénus é a Estrela da Manhã", estou a dar uma informação sobre os astros do céu, não a falar sobre o uso arbitrário dos respectivos signos10. Esta crítica que Linsky dirige à teoria da identidade de Frege, apoiando-se na sua própria auto-crítica em SuB, esquece completamente todo o texto do § 8 da Bs, em que Frege justificara o valor cognitivo do enunciado de identidade através da distinção entre Bestimmungsweise e Inhalt, para dele reter apenas a primeira frase: "A identidade de conteúdo difere da condição e negação, na medida em que se aplica aos nomes e não aos conteúdos".

Kneale formula uma crítica semelhante, reiterando também a correcção que o próprio Frege fizera já na Bs: se o sinal de identidade versasse sobre as expressões que ocorrem dos dois lados do sinal, a descoberta de que Vénus é a Estrela da Manhã pertenceria ao domínio da semântica, ou quando muito da filosofia, mas nunca da astronomia11.                                                                                                                 10. Linsky, L. - Referring, p. 22.   11. Kneale, W. e M. - O Desenvolvimento da Lógica, p. 499: "...Frege sugeriu que uma frase declarativa de identidade tem que ser realmente acerca das expressões que aparecem nos dois lados do sinal de identidade e esclareceu-o dizendo que "=" devia ser interpretado como um símbolo de identidade dos conteúdos das expressões. Mas mais tarde Frege compreendeu que esta solução não era satisfatória, porque se a frase original não era realmente acerca do planeta Vénus mas acerca dos conteúdos de certas expressões, pertenceria à

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Entre os estudiosos de Frege, só Angelelli parece ter advertido a continuidade entre a explicação dos enunciados de identidade na Bs e em SuB, e portanto a inconsequência da própria auto-crítica de Frege: neste último escrito (de 1892) não reproduz correctamente a formulação exposta na Bs, nomeadamente, não refere que neste seu primeiro trabalho (1879), já se afirma que nalguns casos, nomes diferentes podem designar a mesma coisa, mas exprimindo, cada um deles, aspectos particulares diferentes. Está já aqui a distinção entre Sinn e Bedeutung, falta apenas a terminologia. Frege é portanto injusto e incorrecto na apreciação que faz do seu próprio texto de 187912. Uma segunda crítica é dirigida à definição que Frege propõe para a identidade: Ã "A=B significa que o signo A e o signo B têm o mesmo conteúdo conceptual". Russell acusa esta definição de circularidade13. D. Wiggins explana esta circularidade, mostrando que a definição de Frege dá origem a um infinito regresso vicioso: "Ao perguntar pelo sentido de 'a=b' a resposta é que 'a' e 'b' têm o mesmo conteúdo ou designam uma só coisa. Esta explicação dá origem a uma nova proposição da mesma forma do explicandum - 'o conteúdo ou designatum de "a" = ao conteúdo ou designatum de "b" '. Dando a mesma explicação a esta última afirmação, teremos 'o conteúdo ou designatum de "o conteúdo ou designatum de 'a' " = ao conteúdo ou designatum de "o conteúdo ou designatum de 'b' " '. Mas evidentemente, deste modo nunca alcançaremos o que parece necessário para levar a cabo a explicação, ou seja, uma afirmação sobre signos"14.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   filosofia e não à astronomia, o que é obviamente falso, uma vez que a descoberta da identidade da estrela da manhã e da estrela da tarde se fez por observação e cálculo e não por reflectir sobre o emprego de palavras". A mesma crítica se pode ler em Dummett, M. - Frege. Philosophy of Language, p. 544.   12. Cfr. Angelelli, I. - Studies on G. Frege and Traditional Philosophy, pp. 39-40.   13. Cfr. Russell, B. - The Principles of Mathematics, p. 502.   14. Wiggins, D. - "Identity Statements" in Butler, R. J. (ed.) - Analytic philosophy, Second series, Oxford, Blackwell, 1968, p. 51.  

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A única forma de bloquear este infinito regresso é renunciar à pretensão de atribuir qualquer valor informativo aos enunciados de identidade entre nomes próprios. Para evitar esta circularidade viciosa, Mendelsohn15 apresenta uma alternativa à interpretação da definição de Frege; parafraseando a definição, temos: "o conteúdo conceptual de "A" é o mesmo que o conteúdo conceptual de "B" ". Para esta proposição podem propor-se duas análises lógicas possíveis, ambas da forma R (α, β) 1. R: ...................é a mesma que................ α: o conteúdo conceptual do símbolo "A" β: o conteúdo conceptual do símbolo "B" 2. R: O conteúdo conceptual de .......... é o mesmo que o conteúdo conceptual de .......... α: o símbolo "A" β: o símbolo "B" Se adoptarmos a primeira análise, a definição exprimirá uma relação entre o conteúdo conceptual do símbolo "A" e o conteúdo conceptual de "B", isto é, entre A e B, relação que é a de identidade. Esta é a interpretação que adopta Wiggins e que justifica a sua objecção de infinito regresso. Se no entanto adoptarmos a segunda análise, então a definição exprime uma relação entre o símbolo "A" e o símbolo "B", nomeadamente a relação de equivalência entre os dois signos, por terem o mesmo conteúdo conceptual. A tentativa de Mendelsohn, no entanto, não parece solucionar o puzzle da identidade: efectivamente, na primeira análise, "é o mesmo que" exprime a relação "é o mesmo conteúdo conceptual que", tendo em conta o carácter incompleto do predicado "é o mesmo que". E, sendo assim, "é o mesmo conteúdo conceptual que" e "ter o mesmo conteúdo conceptual que" exprimem exactamente a mesma relação, não havendo portanto qualquer diferença entre as duas análises da definição propostas pelo autor. Segundo a primeira análise, tratar-se-ia de uma relação de identidade, segundo a outra,                                                                                                                 15. Cfr. Mendelsohn, R. L. - art. cit., p. 296.  

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uma relação de equivalência (dois sinais com o mesmo valor, ou o mesmo conteúdo conceptual): mas uma relação de equivalência pode ser reproduzida como uma relação de identidade, como o demonstra Frege em Gla §§ 63-69. O que pensa Mendelsohn é que a relação de equivalência "ter o mesmo conteúdo conceptual" não deve ser eliminada a favor da relação da identidade de conteúdos conceptuais. Com efeito, a teoria da identidade que Frege expõe na Bs não a reduz a uma mera relação formal entre os sinais, abandonando-a à contingencialidade e arbitrariedade da relação semântica entre signo e designatum. O sinal de identidade tem um alcance mais profundo: atinge o conteúdo do juízo, o conteúdo conceptual (begrifflicher Inhalt), o que no juízo é invariante em relação às consequências lógicas: dois juízos têm o mesmo conteúdo conceptual quando as consequências lógicas que se podem tirar de premissas que os contêm, são invariantes. O conteúdo é para Frege o que permanece invariante, podendo variar o modo de apresentar esse conteúdo (Bestimmungsweise) e os signos ou os nomes que exprimem esses diferentes   modos   de   apresentar-se     A   relação   que   exprime   a   definição   Ã(A=B) é uma relação de "identidade de conteúdos" dos signos "A" e "B". Resta saber se afinal este enunciado fala apenas dos signos em si mesmos, se os signos, como diz Frege, se exibem a si mesmos provocando essa bifurcação na significação (Zwiespältigkeit in der Bedeutung) ou se falam do seu próprio conteúdo. O que Frege deverá ter querido dizer é que um enunciado de identidade diz algo sobre os respectivos signos colocados dos lados do sinal "=", enquanto estes signos denotam um conteúdo; o sinal "=" indica o facto de o conteúdo dos dois signos ser o mesmo. E este facto não tem a sua origem na convencionalidade do signo, mas no próprio conteúdo conceptual e na pluralidade de modos de o determinar. Na Introdução aos Ggs, Frege recapitulando alguns dos pontos fundamentais do seu pensamento, referirá a Bs e nomeadamente a segunda parte do § 8, cuja ideia central será precisamente esse princípio básico de que qualquer nome correctamente formado, deverá denotar alguma coisa,

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princípio que Frege considera essencial se se quer um completo rigor16. E numa flagrante auto-crítica à sua tese sobre a "bifurcação do significado" dos signos, que ora designam o objecto significado, ora se apresentam a si mesmos, Frege toma aqui uma posição radical contra este formalismo que substitui o conteúdo pelo signo: "Às vezes parece que os signos numéricos são considerados como peças de xadrez e as chamadas "definições" como regras do jogo. O signo nesse caso não designaria nada: seria ele próprio o objecto"17.

Nesta mesma Introdução, ao esclarecer a razão, pela qual substitui o sinal "≡" utilizado na Bs pelo sinal "=", nos Gla, Frege sublinha de novo a importância da distinção entre signo e designatum, advertindo que os signos que ocorrem dos dois lados de uma igualdade (como por exemplo 22=2+2) são evidentemente diferentes, mas o número que designam é o mesmo18. E por isso esta proposição não fala dos signos que ocorrem de ambos os lados do sinal "=", dizendo que têm o mesmo conteúdo, como defenderia a primeira tese da Bs, mas afirma a identidade de um número, referido pelos dois sinais diferentes. O facto de Frege, ao sublinhar a importância desta distinção entre o sinal e o seu designatum, retroceder até à Bs, parece-me ser bem sintomático da continuidade das teorias da identidade entre este primeiro escrito e o artigo de 1892. E sobretudo afasta decisivamente uma leitura do primeiro texto fregeano no sentido de uma identidade meramente                                                                                                                 16. Cfr. Ggs, p. XII: "...daß alle rechtmässig gebildeten zeichen etwas bedeuten sollen, eines Grundsatzes, der für die volle Strenge wesentlich ist".   17. Ggs, p. XIII: "Zuweilen scheint man die Zahlzeichen wie Schachfiguren anzusehen und die sogennanten Definitionen als Spielregeln. Das Zeichen bezeichnet dann nichts, sondern ist die Sache selbst (sublinhado nosso).   18. Ggs, p. IX: "Statt der drei parallelen Striche habe ich nämlich das gewöhnliche Gleichheitszeichen gewählt, da ich mich überzeugt habe, dass es in der Arithmetik grade die Bedeutung hat, die auch ich bezeichnen will. Ich gebrauche nämlich das Wort "gleich" in derselben Bedeutung wie "zusammenfallend mit" oder "identisch mit", und so wird das Gleichheitszeichen auch in der Arithmetik wirklich gebraucht. Der Widerspruch, der sich etwa hiergegen erhebt, wird wohl auf mangelhafter Unterscheidung von Zeichen und Bezeichnetem beruhen. Freilich ist in der Gleichung "22=2+2" das links stehende Zeichen verschieden von dem rechts stehenden; aber beide bezeichnen oder bedeuten dieselbe Zahl".  

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formal, uma relação estabelecida entre signos, metalinguística, visando apenas a construção do sistema; pelo contrário, Frege nunca parece ter apresentado a identidade como uma mera "questão de forma", pois desde a sua primeira versão (a da Bs, § 8), se viu na necessidade de justificar o seu carácter cognitivo, recorrendo para tal a um elemento não formal, como é o conteúdo conceptual (begrifflicher Inhalt) e os seus múltiplos modos de ser determinado (Bestimmungsweisen)19. O § 8 da Bs termina com a afirmação de uma propriedade, consequência da definição de identidade: "Ã(A≡B) significa que o signo A e o signo B têm o mesmo conteúdo conceptual, de modo que podemos sempre substituir B por A e vice versa".

Mais tarde, nos Gla (§ 65), Frege citará expressamente o princípio leibniziano como uma definição da identidade - "Eadem sunt quorum unum potest substitui alteri salva veritate"20 - acrescentando que em geral a substituibilidade contém de facto todas as leis da igualdade21. A lei exprime uma proposição bicondicional: se A=B, podem substituir-se A e B em qualquer contexto, salva veritate, e se A e B podem ser substituídos em todos os contextos salva veritate, então A=B. Qual o significado e o alcance deste princípio leibniziano adoptado por Frege (como por todos os lógicos) e qual a sua relação com o princípio da identidade? Em primeiro lugar parece evidente que o princípio diz respeito aos signos: na definição aqui citada de Frege, são os signos "A" e "B" que podem ser substituídos salva veritate, por designarem o mesmo conteúdo conceptual. Na fórmula de Leibniz, eadem, deverá também referir-se aos termos, e não aos objectos. Daí a correcção que Largeault propõe fazer à                                                                                                                 19. Cfr. também as críticas de Frege aos matemáticos formalistas, por ex. Gla, § 99.   20. Cfr. Leibniz Ger VII, p. 228, (todas citações de Leibniz são da ed. Gerhardt, salvo indicação contrária. Actualizamos a grafia). Cfr. Couturat, L. - Opuscules et Fragments Inédits (OFI), 240, 259, 362-363.   21. Gla, § 65: "In der allgemeinen Ersetzbarkeit sind nun in der That alle Gesetze der Gleichheit enthalten".  

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definição leibniziana: "eadem sunt quorum nomina sibi mutuo substitui possunt (salva veritate)"22. Quando utilizados na sua acepção normal, os termos designam ou referem os objectos, realizando o que os medievais denominavam por suppositio formalis; no entanto, podemos também utilizar as palavras para falar das próprias palavras, utilizando assim os signos para se referirem a si mesmos. Neste caso, o nome não será um nome de um objecto, mas um nome do nome, realizando o que os medievais designavem por suppositio materialis. Desde Frege, para indicar que um signo está a ser utilizado para se auto-designar, é costume a utilização das aspas: "A" significa pois que me estou a referir ao signo, e não ao referente de "A". É evidente que este duplo uso do signo modifica a sua função referencial. Como observa Frege, no caso do discurso indirecto, em que justamente as palavras são postas entre aspas, não é a sua referência normal que estas designam, mas sim o seu sentido23. Esta alteração da referencialidade dos signos no caso da suppositio materialis, vai determinar algumas restrições ao princípio da substituibilidade, como o próprio Leibniz assinalou. A primeira dessas restrições é determinada pelas "proposições reduplicativas", proposições introduzidas por "qua", "quatenus", "in quantum", "prout", etc. Por exemplo, apesar de se poder afirmar a identidade entre trilátero e triângulo, é evidente que, se dissermos que o triângulo, enquanto tal, tem 180 graus, neste caso não pode ser substituído por trilátero. Trata-se de um caso de nítida suppositio materialis24. A afirmação de que há "in eo aliquid materiale" indica precisamente que neste caso o termo triângulo não é puramente referencial, mas está em suppositio materialis, isto é, designa-se a si mesmo como nome, ou, para utilizar a expressão de Frege, exibe-se, mostra-se a si mesmo.                                                                                                                 22. Largeault, J. - Logique et Philosophie chez Frege, p. 122.   23. Cfr. SuB, KS, p. 151.   24. Couturat, L. - OFI, p. 261: "A=B significat A et B esse idem, seu ubique sibi posse substitui. (Nisi prohibeatur, quod fit in iis, ubi terminus aliquis certo respectu considerari declaratur ver.g. licet trilaterum et triangulum sint idem, tamen si dicas triangulum, quatenus tale, habet 180 gradus, non potest substitui trilaterum. Est in eo aliquid materiale)". Cfr. pp. 366-367.  

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Ocorrem também em suppositio materialis, e por isso constituem excepções à regra da substituição dos idênticos, todas as proposições reduplicativas ou reflexivas: por exemplo, embora "Sócrates branco" e "Sócrates músico" sejam o mesmo, posso dizer que "Sócrates enquanto músico canta bem", mas não que "Sócrates, enquanto branco canta bem"; ou, embora "Pedro" seja o mesmo que "o Apóstolo que negou Cristo", posso dizer que "Pedro, enquanto o Apóstolo que negou Cristo, pecou", mas não que "Pedro, enquanto Pedro, pecou"25.

                                                                                                                25. Couturat, L. - OFI, p. 402-403: "Praedicatum in locum subjecti propositionis universalis affirmativae, vel consequens in locum antecedentis propositionis affirmativae, salva veritate substitui potest in alia propositione ubi subjectum prioris est praedicatum, vel ubi antecedens prioris est consequens. Excipiendae autem sunt propositiones reduplicativae in quibus nos testamur de termino aliquo ita stricte loqui ut alium substitui nolimus, sunt enim reflexivae et respectu cogitationum se habent ut propositiones materiales respectu vocum" (sublinhados nossos). Angelelli, I. - "Über Identität und Wechselseitige Ersetzbarkeit bei Leibniz und Frege" in Lorenz, K. - Identität und Individuation, Band I, p. 42, cita ainda um outro texto, não recolhido por Couturat, mas de um manuscrito recolhido por E. Bodemann - Die Leibniz-Handschriften der Kgl. öffentlichen Bibliothek zu Hannover, Hannover, 1895, p. 113: "Distincta seu diversa dixerim quae capacia sunt praedicatorum oppositorum unde intelliggimus non esse idem sed diversa. Albus Socrates et Musicus Socrates sunt unum idem [qua]nam etsi Socrates qua Musicus bene canit, et qua albus non canit, verum tamen est album Socrates canere et quicquid de Musico Socrates etiam de Albo dici potest, nisi quod praedicationes hic excludimus reduplicativas quibus formales rationes praedicatorum albedo scilicet et musica [...] distinguuntur. Et sane revera, Socrates qua Musicus bene canit, est [...] enuntiatio praegnans, [...] constans ex his: Socrates canit, quia Socrates est Musicus, et nisi Socrates esset Musicus non bene caneret". Cfr. também Leibniz - Fragmente zur Logik, F. Schmidt, Berlin, 1960, p. 475, cit. por Schirn, M. - Identität und Synonymie, p. 18, n. 19: "Si A est B et B est A, tunc A et B dicitur idem. Vel eadem sunt A et B, si sibi ubique substitui possunt (exceptis tamen illis casibus, ubi non de re sed de modo concipiendi agitur quo utique differunt); ita Petrus et Apostolus qui Christum abnegavit idem sunt et unus terminus in alterius locum substitui potest, nisi cum hunc ipsum concipiendi modum considero, quod quidam vocant reflexivum, exempli causa cum dico Petrus quatenus fuit Apostolus qui Christum abnegavit eatenus peccavit, utique non possum substituere Petrum, seu non possum dicere Petrus quatenus fuit Petrus peccavit".  

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O fenómeno da reduplicatio pode considerar-se como uma antecipação, ou uma primeira versão da distinção entre a referência e o sentido dos nomes ou, indo às raízes nas quais assenta esta distinção na consideração dos diferentes aspectos sob os quais se apresenta cada entidade (rationes na terminologia clássica, "raisons formelles ou différents rapports d'une même chose", segundo a expressão de Leibniz26, "Bestimmungsweisen, Seiten" segundo Frege, "Momenten" na perspectiva fenomenológica de Husserl). Um nome, um signo designa algo (Bedeutung), mas ao mesmo tempo exprime um sentido, mostra esse algo sob um determinado aspecto, lado, modo de dar-se. Por isso o universo do discurso não se esgota nos indivíduos, propriedades destes indivíduos, propriedades de propriedades, etc., mas abarca todo o domínio dos possíveis aspectos, determinações sob os quais podemos conhecer e falar desses indivíduos27. Se bem que "triângulo" e "trilátero" sejam coextensionais, cada um dos termos exprime um aspecto, ou uma propriedade diferente dos mesmos indivíduos que caem sob a sua extensão: introduzem um factor intensional, correspondente ao "aliquid materiale" a que se referia Leibniz. Por esta razão é que o domínio dos "eadem sunt..." deve ser restrito a uma "aequipollentia sunt quorum unum potest alteri substitui salvis legibus calculi"28. O termo adequado neste caso será equivalência ou equipotência dos termos29. E portanto o princípio da substituição dos idênticos não pode                                                                                                                 26. Leibniz - Nouveaux Essais, Ger V, p. 344: "...on peut toujours dire dans l'abstrait, que le triangle n'est pas le trilatère, ou que les raisons formelles du triangle et du trilatère ne sont pas les mêmes, comme parlent les Philosophes. Ce sont de différents rapports d'une même chose". Cit. por Angelelli, I. - art. cit., p. 43.   27. Cfr. ibidem, p. 42.   28. Cfr. ibidem, p. 43.   29. Cfr. Couturat, L. - OFI, p. 496: "per substitutionem terminorum aequivalentium"; p. 497: "per substitutiones aequipollentium". Cfr. também Rescher, N. - "Identity, Substitution and Modality", The Review of Metaphysics, vol XIV (1960) pp. 159-167: Rescher defende a lei de Leibniz, mas com a seguinte condição: "...it would seem plausible to abandon the conception that Leibniz's Rule defines some univocal, monolitic concept of identity, but instead to conceive of a sequence of degrees of identity specificable in terms of intersubstitutibility in increasingly inclusive families of contexts. This leads us to some such sequence of increasingly strong identity concepts as for example:

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ser considerado como a lei fundamental que contém ou resume todas as leis da identidade. Tal como se apresenta, trata-se mais de uma regra para a substituição de termos equivalentes, sem alterar o valor de verdade das proposições nas quais se integram, regra que, naturalmente tem as suas restrições. No entanto, o princípio tem sido frequentemente confundido ou assimilado com o próprio princípio da identidade. Frege, como vimos, apresenta o princípio da substituibilidade na formulação leibniziana, como a sua própria definição de identidade30. Quine considera-o também como um dos princípios fundamentais que governam a identidade e assimila-o ao princípio da indiscernibilidade dos idênticos, converso da identidade dos indiscerníveis. Define-o: "em toda a proposição de identidade verdadeira, um dos seus termos pode ser substituído pelo outro em qualquer proposição verdadeira e o resultado será verdadeiro"31.

Quine identifica este princípio com a indiscernibilidade dos idênticos que se enuncia: se x é idêntico a y, tudo o que é propriedade de x, é também propriedade de y: x=y⊃ϕ(x)⊃ϕ(y) E frequentemente, ao designar a lei de Leibniz, faz-se referência indiscriminadamente tanto ao princípio da substituibilidade como ao da indiscernibilidade dos idênticos. No entanto, o primeiro diz respeito aos                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   substitution suggested name preserves truth for the identity-concept in all cases of 1) extensional contexts - E - equivalence (≡) 2) modal contexts - M - equivalence (≡) 3) epistemic contexts - S - equivalence or synonymy (≅)". Em consequência, Rescher propõe uma sequência de graus de identidade abandonando a concepção de uma definição unívoca desta noção.   30. Cfr. Gla, § 65 e "Rezension von Husserl..." KS, p. 184.   31. Quine, W. V. - From a Logical Point of View, p. 139.  

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termos, aos nomes ou expressões com as quais se designa um objecto, enquanto o segundo enuncia uma condição necessária para a identidade de dois objectos x e y. Os dois princípios estão sem dúvida estreitamente relacionados32: se a condição necessária para que dois objectos x e y sejam idênticos, é que tenham todas as propriedades em comum, tudo o que se possa dizer ou predicar de x poderá dizer-se ou predicar-se também de y; assim, todo o nome ou expressão que sirva para designar x, que seja verdadeira de x, servirá também para designar y, será também verdadeiro de y, e vice-versa. No entanto, x e y não serão senão o mesmo objecto designado por dois termos, que por isso serão também sempre idênticos e poderão substituir-se salva veritate, visto que designarão o mesmo objecto. A identidade consiste aqui na equivalência de signos com a mesma referência, já que um objecto, pela própria definição adoptada, só pode ser idêntico consigo mesmo33. Apresentar o princípio da substituibilidade como a lei fundamental ou mesmo como a definição da identidade significa atribuir-lhe um alcance meramente semântico, de relação entre termos coextensionais. Identidade seria apenas uma relação de sinonímia34.                                                                                                                 32. Cartwright, R. - "Identity and Substitutivity" in Munitz, M. K. (ed.) - Identity and Individuation, p. 119: o autor tenta mostrar que o princípio da identidade [x=y⊃ϕ(x)⊃ϕ(y)] não implica o princípio da substituibilidade, portanto os contra-exemplos que infirmam este último não infirmariam o primeiro. Para tal Cartwright não só terá de justificar que os casos que contradizem o princípio da substituibilidade não contradizem a identidade entendida como indiscernibilidade, mas também terá de responder aos que atacam a validade da identidade dos indiscerníveis. A posição do autor é delicada e difícil pois tenta manter a indiscernibilidade dos idênticos e rejeitar o princípio da substituibilidade.   33. Cfr. Schirn, M. - Identität und Synonymie, Stuttgart, F. Frommann Verlag, 1975, p. 20: "Die beiden singulären Ausdrücke 'Alexander der Große' und 'König von Macedonien, Sieger über Darius' können nur deshalb in allen (extensionalen) Aussagen salva veritate durch einander ersetzt werden, weil sie nicht zwei der Zahl nach verschiedene Gegenstände, sondern denselben Gegenstand bezeichnen, d. h. äquivalent bzw, extensionsgleich sind".   34. Cfr. Schirn, M. - ob. cit., p. 19, n. 25: depois de citar a definição de Leibniz segundo o texto publicado por Couturat, L. - OFI, p. 363, comenta: "Heute würde man in einem solchen Fall von logischer Äquivalenz oder kognitiver Synonymie sprechen".  

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A própria fórmula com que Frege define a identidade na Bs denuncia uma certa hesitação ou ambivalência do seu pensamento: se por um lado resiste a conceber a identidade como uma relação entre sinais, o que o levaria a restringir o alcance desta relação ao domínio semântico e tratar as proposições de identidade como uma metalinguagem sobre a mesmidade da referência de dois signos, por outro lado, Frege reconhece a consequência lógica desta mesma perspectiva, ou seja a assimilação da identidade à substituibilidade dos termos idênticos. A sua adesão incondicional à lei de Leibniz - "Eadem sunt..." - é, no entanto, constante ao longo de toda a obra, devido à sua fidelidade a um princípio do qual, como vimos, esta mesma lei depende - o princípio da identidade dos indiscerníveis. A questão que se mantém de pé é a de justificar o valor cognitivo real das proposições de identidade: é esta questão que levará Frege a reformular a sua teoria da identidade.

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1.2. ANALITICIDADE Antes de analisar o estatuto ontológico e epistémico atribuído por Frege à noção de sentido, noção com a qual se propõe explicar o valor cognitivo das proposições de identidade, é necessário examinar a nova perspectiva que adquire, no seu pensamento, o par analítico/sintético, a priori/a posteriori. A reformulação destas noções é, em parte, exigida pela necessidade de justificar o valor cognitivo das proposições da aritmética (Gla), e depois das proposições de identidade em geral. A nova noção de analiticidade elaborada por Frege revela bem como o seu pensamento se desenvolve (pelo menos neste ponto) tendo como interlocutores principais Leibniz e Kant. Nos Fundamentos da Aritmética (Gla), Frege propusera-se como objectivo principal demonstrar que as proposições da aritmética são analíticas, porque fundadas única e exclusivamente nas leis lógicas do pensamento, sem necessidade de qualquer recurso à experiência, e, no entanto, não são meramente tautológicas. Contrariamente ao pensamento de Kant, Frege não considera que o carácter de sintético seja condição necessária para o valor cognitivo de uma proposição. O seu projecto nos Gla será pois, à semelhança do de SuB, o de apresentar o estatuto realista, de certo modo transcendental, das proposições da aritmética (identidades do tipo "a=b"), justificando o seu valor cognitivo. Segundo a análise de Frege, podemos classificar as proposições de identidade deste tipo, como analíticas mas não tautológicas. Justifiquemos esta afirmação: Frege distingue, em qualquer proposição entre 1. o seu conteúdo e o modo como ele é apreendido pelo conhecimento; 2. a prova que legitima e justifica esse mesmo conteúdo35. As distinções de a priori/a posteriori, analítico e sintético (Frege utiliza os termos no sentido kantiano36) não dizem respeito ao conteúdo da                                                                                                                 35. Cfr. Gla, § 3.   36. Cfr. Proust, J. - Questions de forme, p. 242: "(...) Frege se réclame lui-même de la distinction kantienne: il ne cherche pas à modifier le sens des expressions

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proposição, mas sim à legitimidade do acto de julgar. Com isto o que Frege quer sublinhar mais uma vez, é que ao qualificar uma proposição de analítica ou sintética, não são as condições psíquicas ou até fisiológicas que permitiram a constituição desse juízo pela consciência, que estão em causa. O critério para a distinção entre analítico e sintético não se encontra no conteúdo, mas sim na prova, na sua legitimação. E a prova consiste num processo regressivo dessa proposição até às verdades primitivas, simples, até às proposições atómicas. Se neste processo regressivo, não se utilizar senão as leis lógicas e as definições, a proposição é analítica. Se, pelo contrário, para produzir a prova é necessário o recurso a algum dado não exclusivamente do domínio da lógica, mas proveniente de outro domínio particular, ou da experiência, a proposição será sintética. Uma verdade é a posteriori se a sua prova não pode deixar de recorrer a proposições de facto, isto é, verdades indemonstráveis e desprovidas de generalidade, enunciados que se referem a determinados objectos. Se, pelo contrário, a prova depender apenas de leis gerais, que por sua vez não requerem nenhuma prova, a verdade será a priori. A analiticidade consiste fundamentalmente na possibilidade de transformação e tradução de uma proposição em verdades estritamente formais, lógicas. É na noção de lógico, formal que reside precisamente a razão e raiz da divergência entre Frege e Kant em relação à analiticidade. A concepção mais lata de lógico em Frege permitirá uma reformulação da noção da analiticidade kantiana, objecto de crítica nos últimos parágrafos dos Gla37. Foi sobretudo o carácter demasiado restritivo da analiticidade que                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   d'analytique et de synthétique, et vise précisément ce que d'autres auteurs, Kant en particulier, ont voulu dire par là" (Gla, § 3).   37. Cfr. Gla, §§ 88 e ss.; Cfr. Proust, J. - ob. cit., p. 243: "Frege est-il simplement un logicien kantien qui aurait mieux vu que Kant l'extension possible des propositions analytiques au point d'y enfermer toute une partie du synthétique a priori? Ou bien faut-il comprendre tout autrement ses concepts et marquer des ruptures là-même où Frege n'en discerne pas?" A autora propõe-se responder à questão analisando 1) o papel que os axiomas lógicos desempenham no sistema de Frege, confrontando-o com o privilégio que lhes atribui Kant, enquanto fontes de conhecimento; 2) o carácter do programa logicista; 3) a distinção entre proposições analíticas e sintéticas como um mero apêndice à distinção kantiana. Sobre estes §§ de Gla e confronto com o pensamento kantiano, cfr.

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levou Kant a subestimar o valor cognitivo das proposições analíticas. A divisão kantiana em juízos analíticos e sintéticos aplica-se apenas aos juízos universais afirmativos, construídos sob a forma sujeito-predicado. É a pergunta sobre a inclusão ou não inclusão do predicado no conceito do sujeito que determina o carácter analítico ou sintético de um juízo. A crítica de Frege abrange, não só a própria noção em causa, mas também as noções de conceito e objecto. Em relação ao conceito, Frege contesta a sua apreensão como uma mera conjunção de características, como ocorre na análise kantiana do conceito-sujeito de um juízo. Para Frege este é o "processo menos fecundo para constuir conceitos". Definir assim um conceito leva efectivamente a um empobrecimento da estrutura predicativa e da organização formal da realidade. Um conceito, assim entendido, será constituído simplesmente pelas características, propriedades que determinam ou definem uma certa extensão; ao conceito definido por essa conjunção de características corresponde o domínio comum, ou resultante da intersecção de todos os domínios representativos de cada uma dessas características. Neste caso, uma definição não é senão uma delimitação de um domínio constituído por determinadas características preexistentes. Daí a sua infecundidade, pois de um conceito assim construído não se pode extrair nada que não esteja já lá incluído. Pelo contrário, os conceitos que traçam limites, fronteiras de extensões que não tinham sido dados, revelam a sua fecundidade, na medida em que permitem deduções nas quais há um aumento de conhecimento. Neste sentido poderiam ser consideradas sintéticas as respectivas provas, por contribuirem para um aumento de conhecimento, e no entanto, se estas recorrerem apenas a leis puramente lógicas, serão efectivamente analíticas. Frege rejeita também a noção kantiana de objecto, nomeadamente a exigência de que este seja dado sempre pela sensibilidade. A noção de objecto em Frege inclui os objectos lógicos - o verdadeiro e o falso, os

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  Weiner, J. - "Putting Frege in Perspective" in Haaparanta, L. e Hintikka, J. Frege Synthesized, pp. 9-27.  

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números, as classes - aos quais não corresponde nenhuma intuição sensível38. A razão de ser desta crítica à noção de analiticidade kantiana, reside justamente na referida distinção entre conteúdo e justificação das proposições: "Acontece frequentemente - escreve Frege - que nós descobrimos o conteúdo de uma proposição e mais tarde é que damos a correspondente prova rigorosa, em outros termos mais difíceis; e muitas vezes esta mesma prova revela também precisamente as condições que restringem a validade da proposição original. Em geral, portanto, a questão sobre o modo como apreendemos o conteúdo de um juízo deve distinguir-se de outra questão: Donde derivamos nós a justificação para a sua asserção?"39

A divergência em relação a Kant arranca desta distinção: para Kant a classificação de analítico/sintético refere-se primordialmente ao conteúdo da proposição, nomeadamente à relação que nesse conteúdo se estabelece entre sujeito e predicado; este modo de explicar a analiticidade, tem uma repercussão directa no campo epistemológico, na possibilidade de apreender as proposições analíticas, independentemente da experiência e de um modo imediato, pela mera consideração do seu conteúdo. Tendo em conta o que se                                                                                                                 38. Cfr. Gla, § 89: "Ich muß auch der Allgemeinheit der Behauptung Kants widersprechen: ohne Sinnlichkeit würde uns kein Gegenstand gegeben werden. Die Null, die Eins sind Gegenstände, die uns nicht sinnlich gegeben werden können. Auch Diejenigen, welche die kleineren Zahlen für anschaulich halten, werden doch einräumen müssen, dass ihnen keine der Zahlen die grosser als 100010001000 sind, anschaulich gegeben werden können, und das wir dennoch Mancherlei von ihnen wissen. Vielleicht hat Kant das Wort "Gegenstand" in etwas anderm Sinne gebraucht; aber dann fallen die Null, die Eins, unser ∞1 ganz aus seiner Betrachtung heraus; denn Begriffe sind sie auch nicht, und auch von Begriffen verlangt Kant, dass man ihnen den Gegenstand in der Anschauung beifüge".   39. Gla, § 3: "Es ist kein seltener Fall, dass man zuerst den Inhalt eines Satzes gewinnt und dann auf einem andern beschwerlicheren Wege den strengen Beweis führt, durch der man oft auch die Bedingungen der Giltigkeit genauer kennen lernt. So hat man allgemein die Frage, wie wir zu dem Inhalte eines Urtheils kommen, von der zu trennen, woher wir die Berechtigung für unsere Behauptung nehmen". Cfr. Proust, J. - ob. cit., p. 244.  

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disse sobre o modo de construção dos conceitos a partir das suas notas características, no caso de uma proposição analítica, a mera apreensão do conceito - sujeito da proposição - faz ver que não seria possível concebê-lo sem o seu predicado, que constitui uma das suas notas constituintes. Frege, pelo contrário, situa a distinção analítico/sintético, bem como a priori/a posteriori do lado da justificação40. A determinação da analiticidade de uma proposição não é imediata nem evidente; não basta a mera consideração do seu conteúdo, nem da estrutura predicativa do juízo. É necessário o exame da prova que legitima a verdade desse juízo. Essa prova consiste em reduzir e traduzir a proposição em proposições atómicas, simples, indemonstráveis, para além das quais não se pode prosseguir o percurso de análise. Se neste processo não se invocam senão definições e leis lógicas, a proposição é analítica. De contrário, se é necessário recorrer a dados da experiência, a proposição é sintética. A necessidade da mediação do processo de justificação para determinar o carácter analítico ou sintético de uma proposição permite conciliar analiticidade com aumento de conhecimento: porque, como afirma Frege, não sabemos à partida o que poderemos deduzir de uma proposição que contém decerto novas proposições e conceitos, mas de um modo implícito; por isso ao deduzir novos conhecimentos não estamos apenas a retirar de uma caixa o que lá tínhamos metido: "O que de uma definição se pode deduzir estava decerto contido nela, mas como uma planta o está na semente, e não como uma trave numa casa"41.

A atribuição do carácter analítico à justificação ou prova, e não ao conteúdo da proposição, será determinante para a conclusão fregeana em                                                                                                                 40. Kitcher, P. - "Frege's Epistemology", The Philosophical Review, 88, n. 2 (1977) p. 257: "(Frege) objected to the definition of analyticity in terms of content because he saw that definition is incomplete. Recognizing that Kant's taxonomy of truths corresponds to a classification of sources of knowledge, he proposed to present a complete version of the concept of analyticity by distinguishing propositions on the basis of their (ideal) justifications, and he claimed that by proceeding thus, he had arrived at the root of Kant's classificatory system".   41. Cfr. Gla, § 88: "Sie (die Folgerungen) sind in der That in den Definitionen enthalten, aber wie die Pflanze im Samen, nicht wie der Balken im Hause".  

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relação ao estatuto das proposições da aritmética. Em oposição a Kant, que as considera sintéticas a priori, Frege pretende demonstrar a sua analiticidade, sem as privar de valor informativo. A primeira objecção de Frege à classificação de Kant, é de carácter epistémico: para as classificar de sintéticas a priori será necessário recorrer a uma intuição pura: "As verdades da aritmética são sintéticas a priori ou analíticas? Se introduzirmos a oposição do analítico e sintético, obtemos quatro combinações das quais uma é excluída, a de analítico a posteriori. Mill optou pelo a posteriori, opção que não deixa outra possibilidade. Resta-nos examinar, quanto a nós duas possibilidades apenas: sintético a priori e analítico. Kant decide-se a favor da primeira. Neste caso não podemos deixar de apelar para uma intuição pura, que será o fundamento do conhecimento; no entanto é difícil dizer se esta é espacial, temporal, ou seja o que for"42 (sublinhados nossos).                                                                                                                 42. Gla, § 12: "Sind die Gesetze der Arithmetik synthetisch a priori oder analytisch? Wenn man den Gegensatz von analytisch und synthetisch hinzunimmt, ergeben sich vier Combinationen, von denen jedoch eine, nämlich analytisch a posteriori ausfällt. Wenn man sich mit Mill für a posteriori entschieden hat, bleibt also keine Wahl, so dass für uns nur noch die Möglichkeiten synthetisch a priori und analytisch zu erwägen bleiben. Für die erstere entscheidet sich Kant. In diesem Falle bleibt wohl nichts übrig, als eine reine Anschauung als letzten Erkenntnissgrund anzurufen, obwohl hier schwer zu sagen ist, ob es eine räumliche oder zeitliche ist oder welche es sonst sein mag". Cfr. Proust, J. - ob. cit., p. 248-252: A divergência de Frege em relação a Kant consiste em que para o primeiro, os axiomas nos quais se fundam as verdades matemáticas não devem a sua validez a uma intuição pura: "Mais cette conception (de Frege) diffère aussi de celle de Kant, pour lequel les axiomes tirent leur validité de l'évidence inhérente à la construction dans une intuition pure (mais il s'agit alors d'axiomes mathématiques ou physiques: la logique ne se dévelloppant précisément pas dans l'intuition, elle ne comporte que des règles). Pour Frege, les axiomes ne peuvent pas recevoir de démonstration parce qu'ils sont l'instance constitutive de l'idée même de démonstration (dans le cas des lois logiques) ou les vérités indécomposables constitutives d'un objet de science déterminée (dans le cas des sciences particulières). Mais aussi bien ne doiventils pas en recevoir. Les vérités axiomatiques de manière générale n'ont pas besoin de preuve". Torna-se bastante problemática a legitimação dos axiomas em Frege, pois embora nos seus escritos prevaleça um critério não epistémico,

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Frege aponta, à guisa de comentário, que muitas vezes, quando não se pode apresentar outro fundamento, se recorre com demasiada facilidade à intuição. E alude à ambiguidade do sentido desta palavra na obra de Kant, citando dois textos, um da Logica, onde se dá a seguinte definição: "A intuição é uma representação singular (repraesentatio singularis), o conceito uma representação geral (repraesentatio per notas communes) ou reflexiva (repraesentatio discursiva)"43.

O outro texto citado é da Crítica da Razão Pura, onde, ao contrário do primeiro, que não faz nenhuma referência à sensibilidade, se põe como condição necessária de toda a intuição, a sua origem sensível: "É portanto pela sensibilidade que os objectos nos são dados, só ela nos pode proporcionar intuições"44.

De acordo com o primeiro sentido da intuição referido no texto da Logik, poder-se-ia admitir que 100.000 fosse uma intuição, visto que não é um conceito geral. Mas não é este o sentido que utiliza Kant para, na Crítica fundamentar o estatuto das leis da aritmética. Aqui é o seu carácter sintético, o facto de implicar portanto alguma intuição sensível, que garante o estatuto científico da aritmética. A comparação com as proposições da geometria proporciona a Frege um reforço para a argumentação da analiticidade das verdades matemáticas. No caso da geometria, a necessidade do recurso à experiência mostra que os seus objectos - os pontos, as rectas e as superfícies - não são particulares (ou singulares), mas podem considerar-se como representantes ou conceitos gerais dos pontos, rectas e planos intuídos                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   não "psicologista", mas paradoxalmente realista, há também alguns textos que denunciam o recurso a uma caracterização epistémica, apresentando os axiomas como "fonte de conhecimento" assimilada por sua vez a intuição (cfr. carta a Hilbert 27 Dez. 1899, cit. por Proust, J. - ob. cit., p. 250).   43. Logik, Hartenstein, VIII, p. 88, cit. por Frege, G. - Gla, § 12: "Die Anschauung ist eine einzelne Vorstellung (repraesentatio singularis), der Begriff eine allgemeine (repraesentatio per notas communes) oder reflectirte Vorstellung (repraesentatio discursiva).   44. Cfr. ibidem; O texto é citado pela ed. Hartenstein, III, p. 55. Reproduzimo-lo tal como é citado por Frege: "Vermittelst der Sinnlichkeit also werden uns Gegenstände gegeben und sie allein liefert uns Anschauungen".  

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pela sensibilidade. Outro tanto não acontece com os números: nenhum número se pode considerar como representante dos outros, cada um tem as suas características particulares. As verdades da geometria, argumenta Frege, regem o domínio de tudo o que é objecto de intuição espacial. Só mediante uma elaboração conceptual é que se pode pensar por exemplo num espaço de quatro dimensões ou com uma curvatura positiva, e então abandona-se o terreno da mera intuição sensível. O pensamento conceptual pode ainda supor o contrário de algum axioma geométrico, sem entrar em contradições, ao raciocinar a partir de hipóteses em conflito com a intuição. Isto mostra que os axiomas da geometria são independentes uns dos outros, e independentes das leis fundamentais, portanto são sintéticos. Pelo contrário, as proposições fundamentais da matemática não são independentes umas das outras. Seria impossível negar alguma delas sem entrar em contradição com o próprio pensamento. Daí conclui Frege a estreita conexão entre as leis da matemática e as do pensamento, e a sua consequente analiticidade: não carecem de nenhuma intuição sensível como dado, fonte ou fundamento do seu conhecimento45. Como representante desta opção pela analiticidade das proposições matemáticas, Frege evoca aqui Leibniz, citando várias passagens a favor dessa hipótese46. A álgebra - pensa Leibniz - recebe as suas potencialidades                                                                                                                 45. Cfr. Gla, §§ 13 e 14. A diferença de estatuto entre as proposições da aritmética e as da geometria radica em dois conceitos diferentes de generalidade, como observa Proust, J. - ob. cit., p. 245: "Il y a d'un côté, la généralité 'relative' des axiomes de la géométrie. Ses principes sont généraux en ceci qu'ils ne concernent pas des "objets" déterminés. Ils forment un cadre transcendental à toute position d'objet dans l'espace. Néanmoins la généralité 'absolue' leur fait défaut dans la mesure où ils ne valent que dans un domaine particulier. Les axiomes de la géométrie ne sont nécessaires que dans la pensée de l'objet spatial ou physique. Mais ils ne couvrent pas tout le champ du pensable par leurs déterminations. Ainsi, ces axiomes synthétiques sont bien généraux en ce sens qu'ils sont des vérités transcendentales, mais ce sont aussi des vérités déterminées dans la mesure où elles ne sont pas des conditions universelles de la pensée en général, comme c'est le cas exclusif des vérités logiques".   46. Cfr. Gla, § 15: os textos são citados através de Baumann - Die Lehren von Zeit, Raum und Mathematik, p. 56-57 (Erdmann, p. 424 e p. 83; Ger, II, p. 62). Refiro aqui o pensamento de Leibniz segundo a interpretação de Frege.  

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de uma arte mais elevada, a verdadeira lógica. No entanto, o logicismo de Leibniz leva à assimilação de todas as verdades sintéticas às analíticas, das contingentes às necessárias. Isto é, para Leibniz não haveria afinal nenhuma verdade que não se revelasse no fundo analítica, visto que toda a proposição verdadeira tem uma prova a priori, fundada no conceito dos seus termos, se bem que nem sempre nos seja acessível essa prova, dada a infinitude da análise que exigiria. Frege parece rejeitar o excessivo logicismo desta afirmação de Leibniz, que o leva a exigir a analiticidade como condição necessária de qualquer juízo verdadeiro, como relação imanente do predicado ao sujeito. O predicado está sempre incluído no sujeito, portanto, quem puder ver o conteúdo do conceito-sujeito, não necessitará já de prova, pois torna-se evidente a inclusão do predicado no sujeito. Esta formulação, ao prescindir da mediação da prova, perde o interesse, para Frege, pois anularia essa relativa imprevisibilidade das deduções matemáticas, que as torna não tautológicas e lhes confere o seu valor informativo. Frege resiste a aceitar a redução de todas as proposições da aritmética ao princípio da identidade: "Este modo de ver apresenta por sua vez algumas dificuldades. Pode aceitar-se que a árvore da ciência dos números, com um cimo tão elevado, uma tão vasta ramagem que não cessa de crescer, radique apenas na identidade? E como é que as formas vazias da lógica poderiam extrair de si mesmas um tal conteúdo?"47

A crítica de Frege dirige-se sobretudo contra o suposto formalismo que esta interpretação da analiticidade pode implicar: uma proposição de identidade, neste caso, seria meramente formal, ou mesmo uma convenção ou estipulação da linguagem. A descoberta de uma identidade dar-se-ia no campo semântico, na referência dos signos com os quais se pretenderia manipular os próprios processos da natureza48. Mais uma vez, Frege rejeita o                                                                                                                 47. Gla, § 16: "Aber auch diese Ansicht hat ihre Schwierigkeiten. Soll dieser hochragende, weitverzweigte und immer noch wachsende Baum der Zahlenwissenschaft in blossen Identitäten wurzeln? Und wie kommen die leeren Formen der Logik dazu, aus sich heraus solchen Inhalt zu gewinnen?"   48. Cfr. Putnam, H. - "The Analytic and the synthetic", Mind, Language and Reality, Philosophical Papers, vol 2, Cambridge Univ. Press, 1975. Putnam

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uso meramente formal dos símbolos, desvinculados do conteúdo, ou da referência, invocando o seu princípio semântico segundo o qual a um signo deve corresponder um sentido e eventualmente uma referência, portanto não se apresentam, ou exibem nunca a si mesmos, como signos: "Quem emprega a palavra ou signos matemáticos tem a pretensão de referir algo, e ninguém esperaria que, de signos vazios possa resultar algo com sentido"49.

Contra o formalismo, Frege reitera a distinção entre os próprios símbolos e os seus conteúdos, mesmo no caso, como é por vezes o da matemática, em que estes conteúdos só sejam captados através dos respectivos símbolos. Se bem que Leibniz não tenha possivelmente defendido nunca o formalismo matemático que Frege critica tão fortemente, em vários textos, é possível que este visse na sua noção de analiticidade, e sobretudo na possibilidade de redução de todas as verdades a identidades, um formalismo latente e implícito. Daí a sua aparente rejeição da posição leibniziana, se bem que coincida com a sua no que respeita ao carácter analítico das proposições da matemática. Mas a causa concreta da discordância de Frege em relação a Leibniz, deve situar-se no tipo de relação sujeito-predicado uma relação de inerência, fundamento de toda a proposição analítica. Como referimos já, Frege vê esta inclusão ou inerência de um modo peculiar (à imagem da planta contida na semente), que permite a mediação de uma prova e a fecundidade e inovação do conhecimento. Além disso, e também contra Leibniz, Frege mantém a distinção analítico/sintético; as próprias proposições de identidade, como o demonstrará SuB, podem em muitos casos ser sintéticas e a posteriori. Uma das razões pelas quais Frege mantém a distinção é sem dúvida a sua teoria                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   defende uma noção de analiticidade que se aproxima deste convencionalismo implícito, pragmático. As verdades analíticas são verdadeiras "em virtude das regras da linguagem", são "verdadeiras por estipulação", são "verdadeiras por convenção implícita".   49. Gla, § 16: "Jeder, der Worte oder mathematische Zeichen gebraucht, macht den Anspruch, dass sie etwas bedeuten, und niemand wird erwarten, dass aus leeren Zeichen etwas Sinnvolles hervorgehe".  

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da significação, que não separa, mas integra uma teoria da referência e uma teoria do sentido. Dentro desta concepção não cabe portanto isolar o domínio dos signos do dos sentidos, e este do da referência, e supor assim uma teoria dos sentidos (ou das significações enquanto entidades por si) que se ocupe primordialmente da sinonímia das formas linguísticas e da analiticidade dos enunciados. Isto é, em Frege há uma zona puramente formal, um esquema conceptual, mas este componente formal é, de certo modo um dado, um elemento tão constitutivo da realidade como os próprios factos, a experiência propriamente considerada. Por isso cabe fazer a distinção - uma proposição pode ser meramente analítica se se situar exclusivamente neste campo formal, sem nenhum incurso na experiência; é o caso das leis lógicas e das verdades da aritmética, que não constituem propriamente a estrutura conceptual do sujeito, mas sim o aspecto formal da própria realidade. Uma proposição será sintética, se integrar um dado cuja origem não vem desta estrutura formal, mas da experiência dos factos.

v  v  v  

Consideremos uma outra perspectiva, que ilustra uma diferente sistematização do formal/material, do analítico/sintético: Quine, que considera esta distinção como um dos preconceitos empiristas50, explica a noção de analiticidade precisamente a partir da teoria da significação: um enunciado é analítico se for verdadeiro em virtude de significações e independentemente dos factos. Significações e factos pressupõem a distinção entre significar e nomear, distinção sublinhada e ilustrada claramente por Frege e Russell: "Scott" e "o autor de Waverley" nomeam ou referem a mesma coisa, mas diferem quanto ao sentido. Segundo o exemplo de Quine, "9" e "o número dos planetas" designam uma mesma coisa, mas são bem diferentes quanto ao sentido; neste caso, para determinar a identidade da referência destas duas expressões foram necessárias                                                                                                                 50. Cfr. Quine, W. V. - "Two Dogmas of Empiricism", From a Logical Point of View, p. 20.  

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investigações e observações astronómicas e não bastou a mera reflexão teórica sobre os seus significados. A mesma distinção se pode considerar em relação aos predicados: um termo singular designa uma entidade, abstracta ou concreta, enquanto um termo geral ou universal é verdadeiro de uma, de várias ou de nenhuma entidade. A extensão será a classe das entidades das quais é verdadeiro um termo geral. Assim por exemplo os termos gerais "criatura com coração" e "criatura com rins" têm a mesma extensão, mas diferem quanto ao sentido. Tendo em conta estas duas vertentes da teoria da significação em geral, Quine pensa que, podendo separar-se uma teoria do sentido da teoria da referência, é fácil reconhecer um conjunto de enunciados que são sempre verdadeiros pelas suas significações e independentemente dos factos, ou das referências das suas expressões. "Nenhum homem não-casado é casado" é uma proposição logicamente verdadeira, isto é, é verdadeira seja qual for a interpretação que se der dos seus componentes. "Nenhum solteiro é casado" é sempre verdadeiro em virtude de uma relação de sinonímia entre "solteiro" e "não casado". Neste caso, a noção de analiticidade remete-nos para a de sinonímia ou definição, noções às quais se reduz a de analiticidade51. Outra tentativa de explicar esta noção remete para o domínio de uma linguagem artificial, com "regras semânticas" precisas; neste caso, a analiticidade é uma propriedade daqueles enunciados que exprimem as próprias "regras semânticas" que constituem a linguagem. No entanto, a noção de "regra semântica" revela-se também vaga e imprecisa: nem todo o enunciado verdadeiro que afirme que os enunciados de uma determinada classe são verdadeiros se poderá considerar como uma "regra semântica", pois então todas as verdades seriam "analíticas" no sentido de que são verdadeiras em virtude de regras semânticas52. Por isso conclui Quine: "Do ponto de vista do problema da analiticidade, a noção de linguagem artificial com regras semânticas é sol de pouca dura. As regras semânticas como determinantes dos enunciados analíticos de uma linguagem artificial                                                                                                                 51. Cfr. Quine, W. V. - ob. cit., p. 24.   52. Cfr. ibidem, p. 34.  

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não têm interesse a não ser que tenhamos entendido já a noção de analiticidade"53.

Em todas as tentativas de definir a noção de analiticidade e de a distinguir dos enunciados sintéticos, está implícita a concepção segundo a qual a verdade de um enunciado depende de dois factores: da linguagem e do facto extra-linguístico. Do ponto de vista empirista, a componente factual deve reduzir-se a um campo de experiências confirmativas. No caso de que a sua verdade seja determinável unicamente em função da componente linguística, o enunciado é analítico. No entanto, Quine pensa que esta distinção, entre a componente linguística e a factual, na determinação da verdade de qualquer enunciado, não tem sentido, pelo menos para os enunciados científicos; se é verdade que, tomada no seu conjunto, a ciência apresenta essa dependência dupla em relação à linguagem e aos factos, essa dualidade não se pode comprovar em todos os enunciados da ciência, considerados um a um. A unidade de significação, que Frege transferira dos termos individuais para o enunciado, é aqui transportada por Quine para um domínio ainda mais global, o do conjunto de toda a ciência: "O que afirmo agora é que a nossa rede continua a ser de malhas demasiado estreitas, mesmo quando consideramos o enunciado inteiro como unidade. A unidade de significação empírica é o todo da ciência"54.

É em nome deste holismo semântico das proposições científicas que Quine rejeita um frente a frente entre a componente linguística e a componente fáctica dos enunciados um a um. A ciência enquanto esquema conceptual tem, sem dúvida, um papel preponderante na previsão da experiência futura, à luz da passada; mas a relação ciência (esquema conceptual, teoria) - experiência dá-se, segundo Quine, num campo de forças cujas condições-limite são a própria experiência. Um conflito com a experiência na periferia do campo levará a reajustamentos dos outros enunciados. Mas não se pode afirmar de uma experiência em particular uma relação directa com um enunciado particular no interior do campo; só                                                                                                                 53. Ibidem, p. 36.   54. Ibidem, p. 42.  

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indirectamente, através de considerações sobre o equilíbrio que afecta o campo como um todo55. A proposta de Quine consiste, não só numa dosificação diferente do formal e do material, do conceptual e do empírico na constituição do conhecimento científico, mas numa reformulação das funções que, na ciência, desempenha cada uma das componentes. A sua concepção holista da ciência elude um confronto directo, entre experiência ou facto e enunciado, caso por caso, evitando portanto os escolhos da teoria verificacionista; a distinção entre proposições analíticas (necessárias, a priori) e proposições sintéticas (contingentes, a posteriori) perde também sentido visto que no conjunto de enunciados científicos tomados como um todo, qualquer proposição pode ser adoptada como analítica. Em última análise a proposta de Quine traduz um pragmatismo mais acentuado ainda do que o de Carnap: este opta entre diferentes formas de linguagem, diferentes estruturas científicas, mas o seu pragmatismo deixa de fora a fronteira imaginária entre o analítico e o sintético; o pragmatismo de Quine vai ainda mais longe ao rejeitar esta mesma distinção. O que leva o homem a adaptar, moldar as suas próprias estruturas conceptuais de modo a poder integrar o fluxo contínuo de impressões sensoriais e dados da experiência, é, no fundo, um motivo de ordem pragmática56.                                                                                                                 55. Cfr. ibidem, p. 42-43.   56. Cfr. ibidem, p. 46. Também em nome do pragmatismo, Putnam no seu artigo "The Analytic and the Synthetic", Philosophical Papers, vol 2, pp. 33-69, contesta a posição de Quine e defende a distinção. Os enunciados analíticos, para Putnam, embora impossíveis de verificar e também impossíveis de refutar, são no entanto incontestáveis. "This must be a mystery to one who does not realize the significance of the fact that in any rational way of life there must be certain arbitrary elements. They are 'true by virtue of the rules of the language', they are 'true by stipulation', they are 'true by implicit convention'. Yet all these expressions are after all nothing but metaphors: true statements but couched in metaphor nonetheless. What is the reality is that they are true because they are accepted as true (...)" Na perspectiva de Quine este tipo de enunciados que existem em qualquer linguagem, em qualquer modelo científico, estão sempre sujeitos a revisão, como qualquer outro enunciado. Daí a falta de sentido de estabelecer uma distinção entre tipos de enunciados. Putnam, pelo contrário, defende a distinção porque resguarda os enunciados analíticos, imunizando-os de qualquer revisão: "Does the fact that everyone

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Esta breve resenha da perspectiva de Quine tem sobretudo o intuito de acentuar a diferença da noção de analiticidade de Frege, em relação a uma perspectiva que poderíamos designar de semântica, ou linguística, que é, até certo ponto, consequência da adopção do princípio leibniziano, como veremos. Frege não define um enunciado analítico nem através da sinonímia, nem da definição, nem, muito menos das "regras semânticas". A sua exploração da noção de analiticidade figura sobretudo na filosofia da matemática e não desempenha um papel importante na teoria geral do significado. No entanto, há uma relação estreita entre analiticidade e sentido: ambas são, para Frege, noções cognitivas. A introdução do sentido tem como finalidade dar uma explicação do valor cognitivo de certos enunciados; e a analiticidade é determinada pelo modo como é possível justificar a verdade de um enunciado (e não pelo modo como de facto, na prática, nós podemos conhecer essa verdade, se é que a conhecemos). É este carácter cognitivo, epistémico da noção de analiticidade, intimamente unida à noção de sentido, que distancia a posição fregeana da dos positivistas lógicos em geral, e de certo modo a imuniza em relação às críticas de Quine em "Two Dogmas". As objecções deste texto atingem sobretudo a concepção verificacionista do significado e a sua confrontação directa entre o enunciado e a experiência por um lado, e a explicação da analiticidade em termos de sinonímia, que se revela vaga e improdutiva, por outro.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   accepts a statement make it rational to go on believing it? The answer is that it does, if it can be shown that it would be reasonable to render the statement immune from revision by stipulation, if we were to formalize our language". Para distinguir estes enunciados de outros que eventualmente se possam aceitar de um modo arbitrário e não razoável, Putnam aponta no seu trabalho algumas características essenciais dos enunciados analíticos. E conclui: "Having done this, we can see that the acceptance of analytic statements is rational even though there are no reasons (in the sense of "evidence") in connection with them". Cfr. também a crítica a "Two Dogmas of Empiricism" feita por Dummett em Frege. Philosophy of Language, pp. 598-563. A crítica fundamental de Dummett dirige-se ao holismo de Quine que inviabiliza o carácter comunicativo da linguagem: "Total holism, such as appears to be advocated in "Two Dogmas" is necessarily solipsistic" (...) "The "Two Dogmas" model can give no account of the communicative function of language, for it was devised in the first place without attention to that function".  

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Para Frege, o que determina a analiticidade de uma proposição é de facto o seu sentido; mas a sua noção de sentido está longe de poder identificar-se com consequência lógica, ou com o conjunto de proposições que uma proposição implica, o "modelo" no qual essa proposição é verdadeira ("Modelo" significa aqui o conjunto de mundos possíveis nos quais o enunciado é verdadeiro). Uma proposição será analítica se for verdadeira em todos os mundos possíveis. Assim entendido o sentido revela-se como uma noção híbrida entre o cognitivo e o puramente extensional, entre o que de facto apreendemos ao captar os possíveis usos de uma expressão na nossa linguagem, e a sua referência propriamente dita57. Para os "verificacionistas" o sentido consiste no método para a verificação de uma proposição, e verificação é sempre uma confrontação directa entre o enunciado e a experiência. Não é esta a noção de sentido em Frege: se uma proposição da aritmética for uma afirmação com quantificação universal para todos os números, posso captar o seu sentido sem ter de percorrer toda a série de números naturais. Este não é, de modo nenhum o único processo para captar o sentido de uma proposição58. É a íntima relação da analiticidade com a noção de sentido que torna peculiar a posição de Frege: por um lado coincide com Kant, tanto na aceitação da distinção entre analítico/sintético, a priori/a posteriori, quanto na consideração do carácter epistémico destas noções; por outro lado diverge de Kant na medida em que este carácter epistémico assume uma feição mais realista, mais "objectiva" do que em Kant59. A explicação que dá Frege de                                                                                                                 57. Cfr. Dummett, M. - ob. cit., p. 633.   58. Cfr. Dummett, M. - ob. cit., p. 634.   59. Para um juízo comparativo do pensamento de Kant e Frege sobre o analítico/ sintético, cfr. Proust, J. - ob. cit., p. 258-264: "Cette analogie (entre la pensée de Kant et Frege) ne doit pourtant pas masquer la différence de statut entre l'a priori de Kant et celui de Frege. L'analyse des conditions de possibilité a priori de la connaissance conduit Kant à la déduction d'un pouvoir transcendental de constitution et d'organisation des formes du savoir. L'a priori frégéen reste la marque d'une connaissance universelle et nécessaire, mais ce transcendental s'est affranchi du support d'un sujet. Il reste condition d'objectivité, mais ne reste pur qu'à s'avérer indépendant de tout processus de connaissance. L'acte d'un sujet n'est donc plus fondateur, la primauté de l'a priori est celle d'un originaire absolu, dont le sujet (en tant que rationnel) est le produit" (p. 262).

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analítico, recorrendo à prova de um enunciado, não se situa ao nível da justificação que de facto damos de uma proposição, mas da sua justificação possível, mesmo que não seja captada por algum sujeito. As condições de possibilidade das proposições analíticas não residem pois numa subjectividade transcendental, mas num "mundo" real, constituído pelos sentidos das expressões que empregamos. Frege diverge de Kant também na atribuição do carácter analítico de uma proposição, não ao conteúdo de uma proposição, mas à sua justificação. E, finalmente, a sua análise das proposições aritméticas nos Gla, leva Frege a uma conclusão diametralmente oposta à de Kant: estas proposições são analíticas, e não sintéticas a priori, se bem que a sua analiticidade não signifique de modo algum trivialidade. É a noção fregeana de sentido que permitirá resolver a aparente tensão entre o carácter informativo e a analiticidade de uma proposição: será analítica se o processo de determinação da sua verdade não recorrer senão às leis lógicas do pensamento; é informativa se a captação deste resultado não for imediato. Conjugando estes dois aspectos de uma proposição, caberia admitir as seguintes possibilidades: 1. compreender uma proposição sem saber se é verdadeira ou falsa; 2. reconhecer como verdadeira, sem captar que é analítica; 3. descobrir que é analítica60.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Esta perspectiva permite a J. Proust concluir: "L'approche transcendentale certes persiste, mais sans son arrière-plan critique. Rupture fondamentale, qui appelle d'autres divergences". Entre estas divergências está fundamentalmente o que J. Proust denomina com grande acuidade o "ontotranscendentalismo" fregeano: "La question que se pose Frege est encore du type kantien: 'Comment une science pure et a priori des mathématiques est-elle possible?' Mais la réponse qu'il fournit à cette question est indéniablement précritique. Il n'envisage pas de passer au crible les instruments de production du savoir dont nous pouvons légitimement faire usage (...) Frege cherche un fondement en amont de toute connaissance. Non seulement est-elle ce qui oriente l'activité discursive, elle en forme aussi la condition de possibilité. J'ai appellé 'ontotranscendantalisme' cette problématique philosophique qui consiste à placer dans l'existence indépendante d'essences et de visées d'essences (sens) les conditions de possibilité d'une connaissance par un sujet".   60. Cfr. Dummett, M. - ob. cit., p. 637.  

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Dissolve-se portanto, na análise de Frege a necessária coimplicação kantiana entre analítico, evidente, trivial. Por outro lado, Frege diverge também radicalmente do modelo criticado por Quine em "Two Dogmas": as proposições analíticas seriam proposições que instituem os significados de outras proposições, verdades geralmente aceites por uma implícita convenção, sem outra razão para serem aceites como tal. Daí o estarem sujeitas, na perspectiva de Quine, a uma contínua revisão, o que as torna tão vagas como fluidas. A diferença é patente, em relação à posição de Frege: para este o conjunto de proposições que são geralmente aceites como verdadeiras e que por isso podem exercer uma função de controle sobre as outras proposições e eventualmente sobre os próprios significados, é constituído por um número muito mais limitado de verdades, que não coincide de modo nenhum com todas as proposições analíticas ou a priori; este conjunto é constituído pelas leis fundamentais que, segundo Frege, não necessitam nem admitem qualquer prova e que são verdadeiras independentemente de qualquer convenção, estipulação, ou até da sua captação pelo sujeito cognoscente como verdadeiras. Daí a sua inalterabilidade, e a impossibilidade de acrescentar ou subtrair a este conjunto alguma proposição que introduza uma modificação de significado, porque isso significaria simplesmente modificar radicalmente, não só a linguagem, como toda a estrutura do pensamento. A análise de Frege de analítico difere do modelo rejeitado por Quine, tanto pelo domínio e alcance que se lhe atribui dentro da linguagem, como pela função que assumiria no conjunto do conhecimento. Por isso mesmo, não se podem aplicar a Frege as críticas à distinção analítico/sintético, justificadas pelo modelo linguístico que Quine tem em mente. Uma perfeita compreensão da noção fregeana de analiticidade, seu âmbito, alcance e função tanto no conhecimento como na linguagem, requer no entanto, como observámos, um exame da sua noção de sentido.

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1.3. O PUZZLE DA IDENTIDADE EM "ÜBER SINN UND BEDEUTUNG" O célebre artigo Über Sinn und Bedeutung, publicado em 1892, abre com um texto que tem sido amplamente comentado e analisado por todos quantos se têm ocupado do problema da identidade, porque estas poucas linhas de Frege representam uma espécie de súmula na qual se formulam as principais questões sobre este tema: "A identidade desafia a reflexão dando origem a questões que não são muito fáceis de responder. 1) É ela uma relação? 2) Uma relação entre objectos 3) ou entre nomes ou sinais de objectos?"61.

O objectivo central deste artigo parece ser, por estas linhas de entrada, o de apresentar uma elucidação sobre a natureza da identidade. No entanto, se lermos com atenção as linhas seguintes, comprovaremos que a pergunta fulcral que Frege aqui formula não é propriamente "Qual a característica fundamental ou como se define a identidade?", mas sim "Como deverá caracterizar-se a identidade de modo a explicar a diferença de valor cognitivo entre uma proposição do tipo a=a e outra do tipo a=b?". Fora já a necessidade de explicar esta diferença que levara Frege, na Bs a considerar a identidade como uma relação entre signos. "As razões que parecem apoiar esta concepção são as seguintes: a=a e a=b são evidentemente proposições de diferente valor cognitivo; a=a sustenta-se a priori e, segundo Kant, deve ser denominada de analítica, enquanto que proposições da forma a=b contêm, frequentemente, extensões muito valiosas do nosso conhecimento, e nem sempre podem ser estabelecidas a priori"62.                                                                                                                 61. Frege, G. - SuB, KS, p. 143: "Die Gleichheit fordert das Nachdenken heraus durch Fragen, die sich daran knüpfen und nicht ganz leicht zu beantworten sind. Ist sie eine Beziehung? eine Beziehung zwischen Gegenständen? oder zwischen Namen oder Zeichen für Gegenstände?"   62. Ibidem, p. 143: Die Gründe, die dafür zu sprechen scheinen, sind folgende: a=a und a=b sind offenbar Sätze von verschiedenen Erkenntniswerte: a=a gilt a priori und ist nach Kant analytisch zu nennen, während Sätze von der Form

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O primeiro exemplo de Frege é o de que a descoberta da identidade (ou mesmidade) entre o sol nascente e o sol poente, foi uma das maiores descobertas astronómicas, rica em consequências. Este exemplo leva a pôr de parte a primeira alternativa aventada por Frege, a de que a identidade fosse uma relação entre objectos - mais precisamente, a relação de um objecto consigo mesmo: "Assim, se quiséssemos considerar a igualdade como uma relação entre aquilo a que os nomes "a" e "b" se referem, pareceria que a=b não poderia diferir de a=a, desde que a=b seja verdadeira. Deste modo, expressaríamos a relação de uma coisa consigo mesma, relação que toda coisa tem consigo mesma, mas que nunca se dá entre duas coisas distintas"63.

Uma relação de identidade não pode dar-se nunca entre dois objectos que, pelo simples facto de serem dois, serão necessariamente distintos, não idênticos: é um dos aspectos, ou uma das versões do princípio da identidade dos indiscerníveis, ao qual Frege não deixou nunca de aderir. Não pode haver dois objectos distintos solo numero, mas se são dois, terão necessariamente alguma determinação interna que os faz ser não idênticos. Posta de parte a primeira alternativa, por contradizer o princípio da identidade dos indiscerníveis, Frege fora levado, na Bs, a considerar a segunda: a de que a identidade seria uma relação entre os signos que representam o mesmo objecto:

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  a=b oft sehr wertvolle Erweiterungen unserer Erkenntnis enthalten und a priori nicht immer zu begründen sind".   63. Ibidem, p. 143: "Wenn wir nun in der Gleichheit eine Beziehung zwischen dem sehen wollten, was die Namen "a" und "b" bedeuten, so schiene a=b von a=a nicht verschieden sein zu können, falls nämlich a=b wahr ist. Es wäre hiermit eine Beziehung eines Dinges zu sich selbst ausgedrückt, und zwar eine solche, in der jedes Ding mit sich selbst, aber kein Ding mit einem andern steht." Note-se, de passagem a referência ao princípio leibniziano: não há dois objectos idênticos.  

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"...parece que por a=b quer-se dizer que os sinais ou os nomes "a" e "b" se referem à mesma coisa, e neste caso, a discussão versaria sobre estes sinais, entre os quais se afirmaria uma relação"64.

Como vimos já, não é esta exactamente a tese defendida na Bs, e por isso na autocrítica do artigo de 1892, Frege parece estar a ser incorrecto e injusto com o seu próprio texto de 1879. No entanto, é em SuB que Frege aponta de facto as razões da inconsistência desta explicação da identidade. Se esta fosse uma relação entre sinais ou nomes, basear-se-ia apenas no facto, meramente arbitrário, convencional, de estes nomes designarem alguma coisa. O fundamento da identidade seria a conexão referencial entre um nome e o objecto por ele designado. Sendo esta conexão meramente contingente, determinada pela maneira como designamos, ou pelo signo que decidimos empregar para o referir, a relação de identidade diria respeito apenas aos signos e ao nosso modo de referir os objectos, e nunca chegaria portanto a exprimir nenhum conhecimento. Neste caso continuaria por explicar o diferente valor cognitivo entre a=a e a=b: as duas proposições teriam exactamente o mesmo valor cognitivo. Esta é a razão pela qual Frege afirma ter posto de parte a sua tese da Bs. A diferença do valor cognitivo entre estas duas formas de proposições só poderá explicar-se se, à diferença entre os sinais, corresponder uma diferença no modo de apresentação daquilo que é por eles designado. Como observámos já, esta terminologia (modo de apresentação, Art des Gegebenseins) é utilizada por Frege também na Bs; o exemplo geométrico que aqui apresenta para explicar esta diferença no modo de apresentar-se, ou de dar-se do mesmo objecto, é nitidamente semelhante ao exemplo de SuB65.                                                                                                                 64. Ibidem, p.143: "Was man mit a=b sagen will, scheint zu sein, daß die Zeichen oder Namen "a" und "b" dasselbe bedeuten, und dann wäre eben von jenen Zeichen die Rede; es würde eine Beziehung zwischen ihnen behauptet."   65. Cfr. Bs, § 8 e SuB, Ks, p. 144: O exemplo do primeiro texto propõe um círculo onde existe um ponto determinado A, à volta do qual se faz rodar um raio. Quando este forma um diâmetro chamamos ao ponto oposto a A, B, associado à posição do raio em cada caso que se produz, a partir da regra de que a variações contínuas da posição do raio, devem corresponder sempre variações contínuas da posição B. Portanto, o nome B significa algo de indeterminado, enquanto não se especificar a posição associada do raio. Qual o ponto correspondente à posição da linha recta que é perpendicular ao diâmetro? O

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À noção de modo de dar-se, que ocorre já na Bs, corresponde a sua noção de sentido, introduzida em SuB: "É natural pensar que existe, em relação com um signo (nome, combinação de palavras, palavras escritas) para além daquilo a que o signo se refere, que podemos chamar referência do signo, também aquilo a que eu gostaria de designar por sentido do signo, no qual se contém o modo de apresentação"66.

E a aplicação desta distinção aos exemplos fregeanos é imediata: a referência das expressões "o ponto de intersecção de a e b" e "o ponto de intersecção de b e c" é a mesma, sendo diferente o seu sentido. A referência das expressões "Estrela da Manhã" (EM) e "Estrela da Tarde" (ET) é a mesma, mas são diferentes os sentidos. A terminologia é nova - Sinn und Bedeutung, em vez de Art des Gegebenseins e Inhaltsbegriff - mas a distinção e suas aplicações são as mesmas em Bs e SuB. A diferença do valor cognitivo entre a=a e a=b reside portanto no facto de que "a" e "b" diferem, não só na sua forma como sinais, mas no modo como designam a sua referência, ou seja, no facto de que à diferença dos sinais corresponde uma diferença de sentido. Os exemplos tirados da aritmética ilustram talvez ainda melhor o aumento de conhecimento de proposições do tipo a=b: as expressões "22" e "3+1" são dois modos diferentes de referir o mesmo número 4, e a igualdade expressa em "22=3+1" traduz um aumento de conhecimento em relação à proposição imediatamente evidente e tautológica de "4=4"67.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   ponto A. Um mesmo ponto pode ser determinado de dois modos, correspondendo a cada um, um nome particular. O exemplo de SuB: o ponto de intersecção das medianas de um triângulo, tanto se pode designar 'o ponto de intersecção entre A e B', como 'o ponto de intersecção entre A e C'.   66. SuB, Ks, p. 144: "Es liegt nun nahe, mit einem Zeichen (Namen, Wortverbindung, Schriftzeichen) außer dem Bezeichneten, was die Bedeutung des Zeichens heißen möge, noch das verbunden zu denken, was ich den Sinn des Zeichens nennen möchte, worin die Art des Gegebenseins enthalten ist."   67. Cfr. Gla, § 67: "Die vielseitige und bedeutsame Verwendbarkeit der Gleichungen beruht vielmehr darauf, daß man etwas wiedererkennen kann, obwohl es auf verschiedene Weise gegeben ist". Cfr. também "Logik in der Mathematik", NS, p. 242: "Es ist doch nicht unmittelbar einleuchtend, daß

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A explicação dada por Frege em SuB, para a diferença de valor cognitivo das proposições "a=a" e "a=b" não parece portanto divergir da que Frege apresenta na Bs, a não ser na terminologia. Tanto neste escrito de 1879, como no artigo de 1892, o valor informativo de proposições do tipo "a=b" reside no facto de, à diferença dos signos que ocorrem dos dois lados do sinal de igualdade, corresponder uma diversidade de "modos de apresentar-se", "modos de designar", ou sentidos de um mesmo objecto, que é a referência comum dos dois sinais. No entanto, o que Frege quer rejeitar claramente na sua elucidação de SuB é o carácter arbitrário (Willkürlichkeit) da relação de duas expressões com o mesmo objecto designado, que enfraqueceria o valor informativo da proposição de identidade "a=b". Na proposição, o sentido corresponde ao pensamento expresso (Gedanke) e a referência ao seu valor de verdade. Portanto, "a=a" exprime um pensamento diferente do de "a=b", embora a sua referência possa ser a mesma. Os diferentes pensamentos são pois os "modos de apresentação" do verdadeiro e do falso. Ora bem: enquanto na Bs estes "modos de apresentação" pareciam derivar fundamentalmente dos diferentes modos de alcançar um conhecimento - intuitiva ou dedutivamente - e dos respectivos modos de designar, dos diversos recursos linguísticos para exprimir um mesmo conteúdo conceptual (Inhaltsbegriff), agora, em SuB, estes "modos de apresentação" não têm apenas uma raiz subjectiva linguística ou epistémica - mas são constituintes ontológicos do mundo real. Na Bs, ao explicitar os dois modos como pode ser determinado o mesmo ponto, no seu exemplo geométrico, Frege afirma que um dos modos é dado imediatamente, através da intuição, enquanto o outro procede por "construção" de um ponto associado com o raio perpendicular ao diâmetro. Os "modos de apresentação" são nitidamente determinados pelos processos cognitivos que conduzem ao mesmo objecto. E ao referir o exemplo "Os Gregos derrotaram os Persas" ou "Os Persas foram derrotados pelos Gregos", Frege afirma que aqui, o que permanece invariante é o conteúdo conceptual, embora varie a sua expressão, ou modo de designar o mesmo                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   137+469=606 ist, sondern diese Erkenntnis ergibt sich erst durch eine Rechnung. Dies besagt, doch viel mehr als der Satz '606=606'. Durch jenen wird unsere Erkenntnis erweitert, durch diesen nicht. Es muß also auch der Gedankeninhalt beider Sätze verschieden sein".  

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conteúdo. Segundo a distinção entre sentido e referência de SuB seria analisado de diferente modo: o que permanece invariante é o seu valor de verdade, mas as duas frases exprimiriam pensamentos (sentidos) diferentes. Os "modos de apresentação" do verdadeiro, segundo a teoria de SuB, não procedem apenas de diferentes, embora arbitrários, modos de o exprimir e designar, mas constituem, eles mesmos, elementos da própria realidade, dotados de uma consistência ontológica68. A grande inovação da teoria da identidade em SuB, em relação à da Bs, consiste pois na atribuição de um estatuto objectivo, realista, à noção de sentido que permite justificar de um modo muito mais forte do que o meramente convencional, o carácter sintético das proposições de identidade do tipo "a=b". Sintético precisamente porque, segundo a própria definição de Frege, podem na sua justificação recorrer a um dado da experiência. O célebre exemplo, da identidade entre a Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde, como referimos, constituiu uma descoberta da Astronomia, mediante observações dos Astros, etc., e não uma mera descoberta linguística de sinonímia. A sua caracterização do sentido incidirá constantemente numa nota: aquilo que Frege entende por sentido não é, de modo algum, o facto de um nome ter referência, nem mesmo o próprio objecto designado, mas algo para além de... O objecto que constitui a referência será mesmo prescindível e não essencial para o sentido do nome ou de qualquer outra expressão, afirma Frege expressamente num escrito mais tardio, postumamente publicado:

                                                                                                                68. Cfr. Grossmann, R. - Reflections on Frege's Philosophy, Evanston, Northwestern Univ. Press, 1969, p. 155: "The so-called senses of 'Über Sinn und Bedeutung' are simply the modes of presentation mentioned both in the Begriffsschrift and the Grundlagen. However, in the earlier works these modes of presentation are not aknowledged to be ontological constituents of the world. Frege's decisive step in this paper is his realization that he cannot explicate the nature of identity in terms of modes of presentation without in some way making room for such modes in his ontology. He must have argued that if one cannot give a satisfactory account of identity without mentioning modes of presentation, then there must be, in addition to expressions and their referents, such modes of presentation".  

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"(...) Portanto o objecto designado por um nome próprio parece ser totalmente inessencial para o pensamento-conteúdo da frase que o contém"69.

A oposição entre pensamento ou conteúdo de uma proposição e objecto, referência dessa proposição, servirá aqui de grelha para situar a noção de sentido. Este pertence ao domínio do pensamento, e não ao dos referentes, dos objectos designados (no caso das proposições, os objectos lógicos, o Verdadeiro e o Falso), nem ao dos signos propriamente ditos. A localização do sentido é apresentada por uma via negativa, de certo modo: não é o signo, mas algo que se lhe associa, tão pouco é o objecto designado, uma vez que se pode até prescindir deste sem que isso afecte o sentido (é o caso dos nomes de ficção, de frases nem verdadeiras nem falsas que, no entanto, têm sentido). "(...) Podemos deduzir imediatamente do que acabámos de dizer (que o objecto não é essencial para o sentido, ou para o conteúdo de uma proposição) que alguma outra coisa deve ser associada com o nome próprio, algo que é diferente do objecto designado e que é essencial para o pensamento da proposição na qual ocorre o nome próprio. Chamo-lhe o sentido do nome próprio. Assim como o nome próprio forma parte da proposição, assim o seu sentido forma parte do pensamento"70.

Enquanto em SuB, Frege começara com o sentido do nome próprio e daí partira para o das proposições que, por designarem objectos (V e F) são também nomes próprios, neste escrito mais tardio, de 1906, Einleitung in der Logik, segue um percurso inverso, das proposições para os nomes nelas contidos, dos pensamentos (conteúdo e sentido das proposições) para o sentido de um nome próprio, singular. Este processo regressivo serve para                                                                                                                 69. NS, "Einleitung in die Logik", "Sinn und Bedeutung", p. 208: "Demnach scheint der Gegenstand, den ein Eigenname bezeichnet, ganz unwesentlich zu sein für den Gedankeninhalt eines Satzes, der den Eigennamen enthält".   70. Ibidem: "Aber das können wir wohl hieraus entnehmen, dass mit dem Eigennamen noch etwas verbunden sein muss, was verschieden ist von dem bezeichneten Gegenstande und was für den Gedanken des Satzes wesentlich ist, in dem der Eigenname vorkommt. Ich nenne es den Sinn des Eigennamens. Wie der Eigenname Teil des Satzes ist, ist sein Sinn Teil des Gedankens".  

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sublinhar e ilustrar a pertença do sentido ao domínio do pensamento, como parte sua (...ist der Sinn Teil des Gedankens). Deste modo sintetiza Frege, num escrito já tardio, duas teses que se vão perfilando com progressiva nitidez na evolução do seu pensamento e que constituem duas traves mestras da sua filosofia da linguagem: 1. o sentido tem algo que ver com o valor cognitivo de uma expressão 2. o sentido de uma expressão complexa (proposição) é composto pelos sentidos dos seus elementos constituintes. A síntese destas duas teses está patente num texto do escrito antes citado, que, apesar de um pouco extenso, convém transcrever na íntegra: "Podemos alcançar este mesmo ponto (que o sentido é parte do pensamento, como o nome é parte da proposição) por outras vias. Muitas vezes o mesmo objecto tem vários nomes próprios; no entanto estes não são todos intersubstituíveis. Isto só se pode explicar pelo facto de que nomes próprios do mesmo objecto podem ter diferentes sentidos. A proposição "Mont Blanc tem cerca de 4.000 m de altura" não exprime o mesmo pensamento que a proposição "A montanha mais alta da Europa tem cerca de 4.000 m de altura", se bem que o nome próprio "Mont Blanc" designa a mesma montanha que a expressão "a montanha mais alta da Europa" (...) Resulta por isso que há algo associado com um nome próprio, diferente do seu significado, que pode ser diferente como entre nomes próprios com o mesmo significado, e que é essencial para o conteúdo do pensamento da proposição que o contém. Uma proposição, na qual ocorre um nome próprio, exprime um pensamento singular, e nisto distinguimos entre uma parte completa e uma insaturada. A primeira corresponde ao nome próprio; não é, porém o significado do nome próprio, mas o seu sentido. Consideramos a parte insaturada do pensamento também como um sentido, nomeadamente o sentido da parte da proposição além do nome próprio. E na linha destas considerações vem a assimilação do próprio pensamento com o sentido, nomeadamente da proposição. Assim como o pensamento é o sentido de toda a proposição, assim também uma parte do pensamento é o sentido de parte da proposição. Portanto o pensamento revela-se da mesma

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espécie que o sentido de um nome próprio, mas completamente diferente do seu significado"71.

A primeira tese - o sentido constitui o valor cognitivo ou informativo de uma expressão - é a resposta ou a solução à questão que Frege levantara no início de SuB sobre a razão da diferença de proposições de identidade do tipo "a=a" e "a=b", quanto ao seu valor informativo. Ao substituir um dos nomes por outro com a mesma referência, mas com sentido diferente, alteramos o pensamento da proposição, ou melhor, trata-se de outro pensamento. "A Estrela da Manhã é a Estrela da Manhã" não exprime o mesmo pensamento que "A Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde", se bem que, tanto a referência dos nomes, como a das proposições seja a mesma. A descoberta de que a Estrela que surge no céu ao entardecer é a mesma que a que aparece na alvorada, foi uma descoberta astronómica, como o foi a descoberta que o Sol nascente é o mesmo que o poente72.                                                                                                                 71. Ibidem, p. 208-209: "Andere Wege führen zu dem selben Ziele. Vielfach hat derselbe Gegenstand verschiedene Eigennamen; aber diese sind doch nicht durchweg vertauschbar. Dies ist nur dadurch zu erklären, dass Eigennamen von derselben Bedeutung verschiedenen Sinn haben können. Der Satz 'Der Montblanc ist über 4 000 m hoch' drückt nicht denselben Gedanken aus wie der Satz 'Der höchste Berg Europas ist über 4 000 m hoch', obwohl der Eigenname 'Montblanc' denselben Berg bezeichnet wie der Ausdruck 'der höchste Berg Europas', der nach der hier angenommenen Redeweise ebenfalls ein Eigenname ist (...) Es ergibt sich so: mit dem Eigennamen ist etwas verbunden, was von dessen Bedeutung verschieden ist, was auch bei verschiedenen Eigennamen derselben Bedeutung verschieden sein kann, und was wesentlich ist für den Gedankeninhalt des Satzes, der den Eigennamen enthält. Ein eigentlicher Satz, in dem ein Eigenname vorkommt, drückt einen singulären Gedanken aus, und in diesem unterscheiden wir einen abgeschlossenen Teil und einen ungesättigten. Jener entspricht dem Eigennamen, ist aber nicht dessen Bedeutung, sondern dessen Sinn. Auch den ungesättigten Teil des Gedankens fassen wir als einen Sinn auf, nämlich des ausser dem Eigennamen vorhandenen Teils des Satzes. Und es liegt in der Richtung dieser Festsetzungen. dass wir auch den Gedanken selbst als Sinn auffassen, nämlich des Satzes. Wie der Gedanke Sinn des ganzen Satzes ist, ist ein Teil des Gedankens Sinn eines Satzteiles. So erscheint denn der Gedanke als gleichartig dem Sinne eines Eigennamens, aber ganz verschieden von dessen Bedeutung".   72. Cfr. outro exemplo deste género em BW, 128(80): uma montanha é designada por um explorador com o nome de "Afla", e por outro explorador diferente com o nome de "Ateb". As versões dos dois exploradores correm como sendo de

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Se o sentido de um nome próprio fosse a sua própria referência, ou o facto de ter uma referência, seria inexplicável o conteúdo informativo de proposições como "EM é ET", ou "Mont Blanc é a mais alta montanha da Europa", etc.; A minha compreensão da proposição que liga os dois nomes através de um "é" que significa aqui identidade, consistiria apenas na minha associação de cada um deles com o objecto que é o seu referente. Neste caso seríamos incapazes de compreender uma proposição de identidade sem a reconhecer imediatamente como verdadeira ou falsa73. É pela insistência com que Frege isola a noção de sentido do facto de um nome ou proposição ter uma referência, que Dummett pensa poder associar sentido ao conhecimento. Esta conexão torna-se mesmo explícita na passagem que citámos, na qual Frege trata o sentido como uma parte do pensamento. O que significa e que consequências tem esta conexão, em primeiro lugar no caso dos nomes próprios? Empregar um nome próprio implica, não só estabelecer uma relação semântica que associa um signo a um determinado objecto, mas apreender o nome como um modo particular de identificar um objecto como seu referente. Dizer que dois nomes têm a mesma referência, mas sentidos diferentes significa que com os dois nomes se podem associar diferentes modos de reconhecer e identificar o mesmo objecto. O sentido será o correspondente critério de identidade associado a cada nome próprio74. Esta expressão (kennzeichen - critério de identidade na tradução de Austin) é introduzida por Frege nos Gla § 62:                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   montanhas diferentes, até que mais tarde se descobre, que "Afla" e "Ateb" são a mesma montanha. Trata-se de uma descoberta geográfica, depois de uma sistemática exploração da região.   73. Cfr. Dummett, M. - ob. cit., p. 95.   74. Cfr. Dummett, M. - ob. cit., p. 95. Cfr. também Geach, P. - "Names and Identity" in Guttenplan, S. - Mind and Language, Oxford, Clarendon Press, 1975, p. 152. Geach concorda com Dummett na tese segundo a qual um nome próprio contém em si mesmo, como parte do seu sentido, um critério de identidade. No entanto, Geach considera a concepção fregeana de nome próprio demasiado estreita e demasiado lata: estreita, por excluir nomes de géneros ou espécies (como "animal", "cavalo"); demasiado lata, por admitir na categoria de nomes próprios as descrições definidas, constituídas por várias palavras. Geach (tal como Aristóteles, e Wittgenstein) considera que uma característica fundamental do nome próprio é não ser constituído por partes significativas; um nome liga-se directamente com um objecto, não através dos

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"Se pretendermos empregar o signo a para designar um objecto, necessitamos um critério para decidir em cada caso se b é o mesmo que a, mesmo que não esteja sempre em nosso poder aplicar esse critério"75.

Associar um critério de identidade a um nome significa possuir um meio para reconhecer o objecto designado como sendo o mesmo objecto; ou, por outras palavras, saber em que condições qualquer outro termo pode designar o mesmo objecto. Esta peculiaridade dos nomes próprios é detectada por Frege ao observar que no caso de adjectivos como azul, macio, não se pode associar nenhum critério de identidade e essa é a razão pela qual não só não se poderá perguntar pelo "mesmo azul", como este tipo de nomes não permite discernir, e consequentemente contar objectos76. Assimilar o sentido de um nome ao critério de identidade acarreta, no entanto, algumas dificuldades para garantir, como Frege parece pretender, o seu carácter objectivo. O modo ou a via para identificar o objecto designado por um nome próprio pode variar de pessoa para pessoa, ou seja o mesmo objecto pode ser identificado segundo diferentes critérios. O próprio Frege confirma esta pluralidade de critérios possíveis, numa nota de SuB: "Aristóteles pode ser, para uns, identificado como o "discípulo de Platão", para outros como "o mestre de Alexandre", para outros como "o Estagirita", etc. E Frege não opõe nenhuma objecção a estas variações de sentido, desde que a referência permaneça a mesma, embora reconheça que se deverão evitar na estrutura teórica de uma ciência demonstrativa. Uma linguagem estritamente rigorosa não poderá tolerar uma oscilação de sentidos ou de critérios para identificar a referência de um nome77.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  sentidos dos seus componentes. A inclusão de nomes de espécies e de géneros na categoria dos nomes próprios é justificada por Geach pelo facto de estes apresentarem a característica fundamental: fornecem também um critério de identidade.   75. Gla, § 62: "Wenn uns das Zeichen a einen Gegenstand bezeichnen soll, so müssen wir ein Kennzeichen haben, welches überall entscheidet, ob b dasselbe sei wie a, wenn es auch nicht immer in unser Macht steht, dies Kennzeichen anzuwenden".   76. Cfr. Gla, § 54.   77. Cfr. SuB, KS, pp. 144-145 e nota 2.  

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O sentido assim explicado será, no entanto, totalmente subjectivo: será captado, apreendido, como explica Frege, por qualquer pessoa que esteja suficientemente familiarizada com uma linguagem e com a totalidade de designações correspondentes a um determinado nome78. Entendido deste modo, como a via particular através da qual cada um associa um nome a uma referência, o sentido não apresentará aquele carácter permanente, objectivo que Frege lhe pretende atribuir. Será apenas o processo subjectivo, variável de indivíduo para indivíduo, segundo o qual se apreende a utilização correcta de um nome. E sendo assim, o sentido deixaria de pertencer à teoria do significado como uma característica objectiva das expressões linguísticas, mas apresentar-se-ia como uma noção meramente psicológica, expressão da aprendizagem individual do uso dos nomes na linguagem. Neste caso não é possível exigir uma determinação inequívoca do sentido: um mesmo nome próprio poderá ter tantos sentidos quantas versões assumir a sua compreensão e utilização pelos vários indivíduos que o empregam na linguagem natural. Frege conforma-se com esta variação indefinida de sentidos, como o expressa neste mesmo ensaio: "A cada expressão pertencente a uma completa totalidade de signos, deveria corresponder um sentido definido; mas a linguagem natural em geral não satisfaz esta condição, e temos que contentar-nos desde que a mesma palavra tenha o mesmo sentido no mesmo contexto"79.

Sendo assim, como pode Frege manter que o sentido (der Sinn) de um nome próprio pode ser facilmente apreendido por qualquer pessoa? (Der Sinn eines Eigennames wird von jedem erfaßt...) Esta afirmação poder-se-á entender se Frege se refere aqui a um sentido habitual, mais comum. Mas, neste caso, como pode o sentido ser, por um lado, algo que se apreende inequivocamente no uso da linguagem, e por outro lado admitir tantas variações quantos os critérios de identificação do objecto designado,                                                                                                                 78. Cfr. SuB, KS, p. 144.   79. SuB, KS, pp. 144-145: "Gewiß sollte in einem vollkommenen Ganzen von Zeichen jedem Ausdrucke ein bestimmter Sinn entsprechen; aber die Volkssprachen erfüllen diese Forderung vielfach nicht, und man muß zufrieden sein, wenn nur in demselben Zusammenhange dasselbe Wort immer denselben Sinn hat".  

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utilizados pelos diferentes interlocutores? M. Schirn80 denuncia a incompatibilidade destas duas teses enunciadas por Frege: 1. Objectividade do sentido, inequivocamente apreendido por qualquer pessoa que esteja familiarizada com a linguagem; 2. Variabilidade dos sentidos de um nome, associados aos diferentes critérios de identidade de cada interlocutor: "No caso de um nome como por exemplo Aristóteles, as opiniões sobre o seu sentido podem variar..." Este contraste entre o carácter objectivo, inequívoco do sentido e o seu carácter subjectivo, associado ao critério de identificação de cada locutor, já latente no ensaio de 1892, torna-se ainda mais flagrante em Der Gedanke81: Frege considera aqui um caso imaginário segundo o qual Leo Peter associa ao nome "Dr Gustav Lauben" o médico que vive numa certa casa, enquanto Herbert Garner identifica o mesmo G. Lauben com o único indivíduo que nasceu a 13 de Setembro de 1875 em N.N. Num suposto diálogo entre estas duas personagens, L. Peter e H. Garner não sabem que de facto se estão a referir ao mesmo indivíduo, mesmo quando utilizam o mesmo nome, visto que os sentidos que cada um lhe associa são diferentes. No fundo, os dois interlocutores não falariam a mesma linguagem. Esta situação de solipsismo linguístico é a consequência imediata de entender o sentido como o critério subjectivo de identificação do objecto de referência do respectivo nome. Será difícil, segundo esta perspectiva encontrar dois locutores que falem a mesma linguagem, uma vez que cada um terá os seus próprios critérios de identificação dos objectos de referência, critérios que lhes serão ditados pela aprendizagem da língua, ou associações anteriores, por informações que possua, etc. Todo o esforço de Frege por separar a noção de sentido desta carga psicologista das representações internas, associações, imagens, etc., ruirá pela base: a conexão de sentido com o valor cognitivo parece condenada a uma assimilação desta noção - que se pretendia integrar de pleno direito numa teoria do significado - ao processo interno e subjectivo do estímulo-resposta entre um signo na sua realidade                                                                                                                 80. Cfr. Schirn, M. - Identität und Synonimie, p. 94.   81. Cfr. Der Gedanke, KS, p. 349.  

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física, e as alterações e afecções psíquicas que desencadeia no sujeito receptor. Se for correcta esta interpretação do que Frege entende por sentido, é evidente que o puzzle das proposições de identidade apresentado em SuB, que deu origem à introdução da célebre distinção semântica, permanece irresolúvel. M. Schirn, que parece ter em mente apenas esta versão subjectiva, variável, relativista do sentido, mostra com efeito, como o valor cognitivo das proposições de tipo "a=b" é problemático, pois depende do modo como cada um identifica as respectivas referências82. Schirn apresenta os seguintes exemplos: p) "O discípulo de Platão e Mestre de Alexandre o Grande é o Autor da Ética a Nicómaco". Segundo Frege trata-se de uma proposição de identidade verdadeira e de inegável valor informativo, visto que relaciona os sentidos de duas descrições definidas. Neste caso não há dúvida que os dois sentidos expressos serão diferentes. Mas o mesmo não acontece se um dos termos da identidade for um nome próprio.

                                                                                                                82. Schirn, M. - ob. cit., p. 97-98; cfr. Bouveresse, J. - "Identité et signification des Noms Propres", Sigme, n. 3, Montpellier, (1978) pp. 3-18: Bouveresse apresenta a mesma objecção à noção subjectiva de sentido, observando no entanto, logo a seguir, que Frege tolera esta oscilação de sentido na linguagem natural, mas exige na linguagem ideal, formal, que cada signo tenha, não só uma referência, mas também um sentido determinado. Cfr. p. 5: "Si, pour un individu donné, le fait d'être né à Stagire fait partie de la signification du nom propre 'Aristote', l'énoncé 'Aristote était né à Stagire' sera pour lui analytique et dépourvu de valeur informative. En revanche, si 'Aristote' a pour lui la même signification que la description définie 'l'élève de Platon et précepteur d'Alexandre le Grand', l'énoncé 'Aristote était né à Stagire' lui apparaîtra comme synthétique et informatif. Comme Frege était particulièrement soucieux de préserver l'invariance et l'objectivité du sens, par opposition aux fluctuations de la représentation psychologique subjective et ne pouvait certainement pas considérer la détermination du sens d'un mot comme une question d'opinion, il ne lui restait effectivement guère d'autre solution que de considérer comme une imperfection (supportable) de la langue usuelle le fait que le sens d'un nom propre puisse apparemment varier dans des proportions considérables d'un locuteur à un autre".  

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q) "Aristóteles é o Discípulo de Platão e Mestre de Alexandre o Grande". Trata-se também de uma identidade verdadeira, pois a referência de "Aristóteles" e "Discípulo de Platão" e "Mestre de Alexandre o Grande" é a mesma. E parece ter um valor informativo diferente do de "Aristóteles é Aristóteles". Mas, segundo esta concepção de sentido, esse valor informativo variará segundo o modo como o nome "Aristóteles" tiver sido apreendido. Assim por exemplo, se A associar a "Aristóteles" a descrição "discípulo de Platão e Mestre de Alexandre", enquanto B o associa a "o fundador da Escola Peripatética", a proposição q será analítica para A, enquanto sintética para B, e não terá para ambos o mesmo valor informativo. A decisão quanto à analiticidade ou sinteticidade de uma proposição deste tipo, que identifique um nome próprio com uma descrição definida, depende, em última análise dos critérios de identidade que empregarem os diferentes interlocutores na prática linguística. Tudo depende da resposta que, à pergunta "Quem é Aristóteles?", estiver habilitado a dar cada sujeito83. Partindo desta perspectiva, M. Schirn conclui que a teoria fregeana do sentido e referência não explica satisfatoriamente a diferença de valor cognitivo entre proposições do tipo "a=a" e "a=b", mas faz depender esse valor informativo das condições da praxis linguística, ou até, da interpretação psicológica, individual que cada locutor pode dar ao nome próprio utilizado na proposição. A expressão de Frege "com um nome próprio está associado um sentido (uma descrição definida)" implica uma interpretação psicologizante, pragmática, que Searle, apesar das objecções à noção fregeana de sentido, também subscreve parcialmente84.                                                                                                                 83. Cfr. Searle, J. R. - Speech Acts, Cambridge University Press, 1970, p. 85.   84. Cfr. Searle, J. R. - Speech Acts, p. 170-171: Searle propõe uma espécie de compromisso entre Mill e Frege: "Mill was right in thinking that proper names do not entail any particular description, that they do not have definitions, but Frege was correct in assuming that any singular term must have a mode of presentation and hence in a way a sense. His mistake was in taking the identifying description which we can substitute for the name as a definite (...) if both the speaker and the hearer associate some identifying description with the name, then the utterance of the name is sufficient to satisfy the principle of identification, for both the speaker and the hearer are able to subtitute an identifying description".  

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No entanto, esta versão da noção de sentido não parece, em última análise, coadunar-se com a elaboração da teoria semântica de Frege e com a sua reiterada insistência na objectividade da significação, por contraste com certos matizes no modo de expressão, dados pelo "tom", "força", noções, essas sim, totalmente subjectivas, dependentes sobretudo de impressões, ideias, associações, etc. Este mundo de representações e processos internos de associação, re-identificação, etc. é, em princípio incomunicável e utilizar estes elementos subjectivos para a elaboração de uma teoria do significado seria de facto condenar a linguagem a um insuperável solipsismo. Jamais duas pessoas diferentes poderão ter as mesmas representações, as mesmas imagens, os mesmos processos associativos: "Quando duas pessoas representam a mesma coisa, cada uma terá a sua ideia própria"85.

Há uma distinção radical entre a ideia-representação, associação, critério subjectivo ou individual de identificação da referência, e o sentido. O exemplo que Frege apresenta do pintor, cavaleiro e zoólogo que associam ideias diferentes ao nome Bucéfalo, responde aos exemplos que Schirn utiliza na sua crítica. Apesar de um identificar Bucéfalo mediante a descrição "animal fantástico da mitologia", no caso do pintor, outro mediante a descrição "animal que se pode montar" e o último, "animal anatomicamente constituído por cabeça de touro e corpo de cavalo", os três coincidirão de algum modo em captar o sentido do nome, "que pode ser propriedade comum de muitos e portanto não constitui uma parte ou modo da mente individual"86.

Entre a ideia (ou representação, ou critério individual de identificação) que é subjectiva, e o objecto propriamente dito, reside o sentido. Pode admitir-se mesmo o caso em que algum locutor associe a um nome um sentido diferente do que é geralmente associado por todos. Poderá                                                                                                                 85. SuB, KS, p. 146: "Wenn zwei sich dasselbe vorstellen, so hat jeder doch seine eigene Vorstellung".   86. SuB, KS, p. 146: "(...) welcher gemeinsames Eigentum von vielen sein kann und also nicht Teil oder Modus der Einzelseele ist;".  

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então tratar-se de um erro do locutor, ou de uma associação individual, subjectiva, que não conta para a determinação do valor de verdade do discurso. Frege exclui estes aspectos, contemplados pelo que designa de "tom" e "força" das expressões linguísticas que, embora tenham grande relevância no discurso literário e poético, não afectam o seu valor de verdade, e por isso não são tidos em conta na análise lógica da linguagem. Estes elementos subjectivos não constituem parte propriamente dita da teoria do significado, na medida em que, como repete sempre Frege, o sentido é um elemento do significado com relevância para a determinação do valor de verdade das proposições87. Em conclusão, se podemos encontrar em Frege textos ou expressões que permitiriam optar por uma interpretação pragmatista ou mesmo psicologista, subjectiva da noção de sentido, e incorrer nas críticas e objecções apresentadas por M. Schirn, encontramos também dados suficientes para defender o carácter objectivo do sentido. A dificuldade reside mais em conciliar uma versão do sentido como valor cognitivo ou como projecção dos processos e conteúdos epistémicos implicados na actividade linguística, e a perspectiva quase platonizante que postula um terceiro mundo constituído por conteúdos ideais, sentidos e pensamentos que podem ser captados por diferentes sujeitos pensantes. No entanto, esta é uma das lacunas do pensamento de Frege, que tem sido frequentemente preenchida com um vago platonismo idealista. As duas teses, atrás referidas, - 1) de que o sentido está relacionado com o valor cognitivo, e, no caso do nome próprio constitui um determinado critério para reconhecer o objecto designado, 2) de que o sentido de uma expressão é composto pelos sentidos dos seus elementos contituintes, podem conduzir a identificar o sentido de uma proposição com o processo da sua verificação como verdadeira. Com efeito, se, como referimos, para Frege o sentido de um nome é uma parte objectiva do seu significado, que tem relevância para a determinação do valor de verdade das proposições em que ocorre, é natural que o sentido destas últimas, o pensamento, esteja também intimamente associado ao reconhecimento da sua referência, o                                                                                                                 87. Cfr. Ggs, I, § 32.  

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Verdadeiro ou o Falso88. E, sendo assim, não deverá Frege identificar o sentido de uma proposição com a respectiva verificação? Para os lógicos positivistas, o sentido de uma proposição é constituído pelas condições de verificação ou refutação, e deve ser dado em termos meramente sensíveis. Nesta perspectiva o sentido de qualquer afirmação pode traduzir-se pelo conjunto de algumas sequências das experiências sensíveis que constituem a sua verificação, em contraste com um outro conjunto de experiências possíveis que exibiriam a sua falsidade, caso o fosse. Esta é a tese verificacionista geralmente defendida pelos positivistas. No entanto, Frege não subscreveria nunca a identificação de sentido com as condições de verificação ou de refutação de uma proposição, porque essas condições nem sempre estão ao alcance dos nossos processos de verificação, e muito menos de possibilidade de experiências sensíveis. Há ainda outro ponto que põe de relevo a distância entre a tese verificacionista e a fregeana do sentido: na perspectiva positivista, as proposições necessariamente verdadeiras como as verdades lógicas e matemáticas, não têm um sentido propriamente dito, uma vez que não podem ser experimentalmente verificáveis. Utilizando o modelo e terminologia dos mundos possíveis, uma verdade lógica, analítica, é uma verdade que não admite o modelo de condições de verdade pois será verdadeira em qualquer mundo possível. Semelhante tese é totalmente alheia ao pensamento de Frege, para quem, tanto as proposições sintéticas como as analíticas possuem um sentido. Poderíamos até admitir que alguém apreenda o sentido de uma proposição sem saber se é verdadeira ou falsa89.                                                                                                                 88. Cfr. Ggs, I, § 32: "Jeder solche Name eines Wahrheitswerthes drückt einen Sinn, einen Gedanken aus. Durch unsere Festsetzungen ist nämlich bestimmt, unter welchen Bedingungen er das Wahre bedeutet. Der Sinn dieses Namens, der Gedanke ist der, dass diese Bedingungen erfüllt sind".   89. Cfr. Dummett, M. - ob. cit., p. 588: "Such a consequence is quite repugnant to Frege's manner of thinking. For him, the very same notion of sense applies to analytic and to synthetic statements: we might perfectly well know the sense of a sentence without knowing whether it was analytic or synthetic, something we could not possibly do if the word "sense" was equivocal as applied to statements of the two kinds. For a positivist, the analytic equivalence of two sentences or two predicates was a guarantee of their possession of the same sense; for Frege, it was a necessary, but by no means a sufficient condition".  

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Poderíamos apontar duas razões essenciais pelas quais a teoria do significado de Frege, apesar de conectar o sentido de uma proposição com a determinação das suas condições de verdade, não se pode considerar uma teoria verificacionista: em primeiro lugar, porque em certos casos somos capazes de atribuir a expressões um sentido que nos remeteria para processos de reconhecimento e verificação que não poderíamos realizar. Certas proposições da aritmética sobre números transfinitos, por exemplo, estariam nesse caso; em segundo lugar, porque Frege atribui sentidos diferentes a proposições analíticas equivalentes. Se têm sentidos diferentes, deveriam ter também diferentes condições de verdade, mas como são analiticamente equivalentes, o mundo nunca poderia ser constituído de modo que uma fosse verdadeira e a outra falsa. Neste caso, e segundo a teoria verificacionista, como é possível distinguir condições de verdade e portanto sentidos diferentes entre as duas proposições? A noção de sentido revela-se de um carácter paradoxalmente realista e intensional: realista porque o sentido de qualquer expressão se dá independentemente da nossa capacidade de reconhecer a referência ou a verdade/falsidade dessa expressão. Intensional, porque, mesmo no caso de duas proposições analíticas equivalentes (portanto proposições para as quais o conjunto de mundos possíveis nos quais são verdadeiras/ou falsas, é exactamente o mesmo), os sentidos são diferentes. O sentido não coincide afinal nem com a capacidade de reconhecer a referência ou de re-identificar o objecto designado, nem de verificar a verdade ou falsidade de uma frase, nem com a referência propriamente dita, ou com o facto de a expressão ter uma referência (pois não é condição de sentido o possuir realmente uma referência). Se o sentido se identificasse com uma ou outra destas versões, não se resolveria a questão das proposições de identidade enunciada por Frege no início de SuB. No entanto é a noção de sentido - algo que nem coincide com a referência nem se reduz à apreensão subjectiva do processo de conhecer e identificar o objecto designado - que resolve, neste ensaio o estatuto informativo de certas proposições de identidade, por contraste com outras que são nitidamente tautológicas. Portanto, não há dúvida que o sentido está intimamente relacionado com o valor cognitivo das expressões linguísticas.

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É a captação de um novo sentido de um nome próprio, ou de uma expressão, que contribui para um aumento de conhecimento ao enunciar uma identidade. É o sentido que permite admitir a possibilidade de juízos de identidade sintéticos, contingentes, proposições através das quais se pode exprimir um conhecimento novo, e não uma mera enunciação formal de uma verdade necessária e a priori. A caracterização do sentido como noção epistémica, cognitiva, torna-se no entanto problemática visto que Frege não se propõe apresentar nenhum tipo de explicitação nem muito menos uma teoria da aquisição ou justificação do conhecimento. Para Frege a problemática da origem ou fontes do saber, dos processos cognitivos de captação, dedução, prova, está fora dos seus interesses e preocupações filosóficas. Por isso P. Engel90 tem razão ao afirmar que Frege atende tão só ao que é conhecido, isolando-o dos processos individuais ou colectivos do conhecimento. Esta atitude de Frege, correspondente ao seu constante anti-psicologismo, leva-o a delimitar e circunscrever o domínio sobre o qual trabalha - o pensamento e as suas leis - excluindo as implicações epistémicas e psicológicas das actividades subjectivas de pensar, conhecer e falar. Na análise do sentido, o seu anti-psicologismo tem como consequência a concepção de um terceiro mundo, o domínio dos sentidos e dos pensamentos, distinto e autónomo em relação ao dos objectos e da referência. Em Der Gedanke Frege estabelece este terceiro mundo, distinguindo-o do mundo dos objectos reais, externos e do mundo das representações internas91. Os pensamentos e os sentidos não são nem                                                                                                                 90. Engel, P. - Identité et Référence, p. 60: "Frege ne considère ni les antécédents, ni le comment des connaissances; mais seulement ce qui est connu, indépendamment de l'évènement individuel ou collectif de la connaissance. Aussi ne voyait-il dans une théorie de l'acquisition des connaissances qu'une démarche psychologique, et c'est avec mépris qu'il qualifiait celle-ci d'idéalisme de la théorie de la connaissance ('erkenntnistheoritischer Idealismus', Nachgelassene, p. 155)".   91. Cfr. Der Gedanke, KS, p. 353: "Ein drittes Reich muß anerkannt werden. Was zu diesem gehört, stimmt mit den Vorstellungen darin überein, daß es nicht mit den Sinnen wahrgenommen werden kann, mit den Dingen aber darin, daß es keines Trägers bedarf, zu dessen Bewußtseinsinhalte es gehört. So ist z.B. der Gedanke..."  

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objectos nem representações: é necessário, portanto, supor um terceiro domínio, que, tal como o das ideias, não pode ser captado pelos sentidos, e tal como os objectos, não necessita de um suporte (Träger) ao qual pertença como os conteúdos pertencem à consciência. Por exemplo, o teorema de Pitágoras é intemporalmente verdadeiro, independentemente de ser ou não pensado, apreendido por alguém. Frege distingue entre o pensamento (conteúdo) e o acto de pensar (a captação, a apreensão de um pensamento). O acto pressupõe alguém que seja o "possuidor" do pensar; mas o pensamento, esse não pertence ao conteúdo da consciência do pensador, nem pode ser confundido ou assimilado ao acto de pensar92. Deste modo Frege garante a total autonomia dos pensamentos enquanto conteúdos, não da consciência individual, nem mesmo de uma consciência transcendental, mas conteúdos em si mesmos considerados, conteúdos sem continente... A localização do sentido no mesmo mundo do pensamento, tem indiscutivelmente a vantagem de defender a sua objectividade e universalidade: o sentido de uma expressão pode ser apreendido por todos pois não depende do modo de conhecer de cada indivíduo; pode ser expresso e compreendido na comunicação verbal, pois não é constituído pelos próprios actos de fala dos diferentes locutores. No entanto, deixa por explicar o modo como se pode captar o sentido, não apresenta nenhum critério sobre o reconhecimento da identidade de sentidos; a vertente epistémica do sentido, com a qual Frege pretende afinal justificar o estatuto das proposições de identidade do tipo "a=b" permanece totalmente na penumbra nesta versão objectiva, "ontológica" do sentido como uma "entidade" em si, pertencente a um terceiro mundo real. Se o valor informativo de um enunciado do tipo "a=b" reside no re-conhecimento da identidade da referência dos dois sentidos correspondentes aos signos "a" e "b", por que processo ou via, temos acesso à identificação do sentido? Frege não prescinde desta dupla caracterização do sentido: por um lado, algo de objectivo, em si mesmo considerado, não circunscrito nem limitado ao conteúdo da consciência; por outro lado, uma via, ponte que conduz ao referente, e, nesta medida, critério para identificar e re-identificar o objecto de referência. A noção de sentido usufrui assim de uma certa ambiguidade                                                                                                                 92. Cfr. ibidem, pp. 359-360.  

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ou anfibolia que lhe permite satisfazer tanto a exigência de objectividade e universalidade, como a conexão com o processo subjectivo do conhecimento e da significação93. Mas se esta anfibolia pode ser tomada como um sintoma da polivalência da noção de sentido, com incidência na teoria do conhecimento, na teoria do significado e até na própria ontologia, por outro lado dificulta a explicitação clara da sua função no contexto da semântica fregeana, e nomeadamente na teoria da identidade. Não há dúvida porém, apesar destas ambiguidades, que o recurso à noção de sentido como instrumento explicativo das proposições de identidade, retirando-lhes o epíteto de meras tautologias, revela bem como Frege sentiu dificuldade em elaborar uma teoria da identidade satisfatória sem a introdução de um elemento intensional. A questão que se põe agora é a de saber se este recurso ao intensional é compatível com a definição lógica, formal de identidade, a definição de Leibniz, que Frege adoptara                                                                                                                 93. Para evitar esta ambiguidade da noção de sentido, Engel, P. - Identité et Réference, p. 68 propõe duas acepções de sentido: uma correspondente à de sentido como entidade, constituindo um "terceiro mundo", etc.; a outra é a que Frege exprime na passagem de Ggs, I, § 32, p. 50, onde reafirma que qualquer nome de um valor de verdade exprime um sentido, um pensamento. E explicita o que entende por sentido, ou pensamento: pelas nossas estipulações, é determinado sob que condições (unter welchen Bedingungen) o nome refere o Verdadeiro (das Wahre bedeutet). O sentido deste nome - o pensamento - é o pensamento de que estas condições se realizam (Der Sinn dieses Namen, der Gedanke ist der, dass diese Bedingungen erfüllt sind). "Frege semble dire ici - acrescenta P. Engel - que le sens d'une phrase réside dans la réalisation de ses conditions de vérité, c'est-à-dire dans le fait que cette phrase ait les conditions de vérité qu'elle a. Frege soutient ici que, étant donné les stipulations données dans les Grundgesetze concernant l'établissement des dénotations des signes de sa Bs, c'est une condition suffisante pour une phrase S pour qu'elle exprime une pensée p, que ces stipulations déterminent que S est vrai: si et seulement si p..." Estas duas noções de sentido, no entanto, não são senão as duas vertentes da mesma noção: uma objectiva, "real", universal, que permite a apreensão do mesmo sentido por vários indivíduos e explica a comunicação possível através dos signos linguísticos; a outra subjectiva, individual, correspondente ao acto cognoscitivo pelo qual cada indivíduo apreende, fazendo seu o sentido de uma expressão ou de um nome. Estas duas vertentes da noção de sentido podem aproximar-se da distinção husserliana entre noesis/noema.  

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como sua nos Gla94. A própria teoria da identidade, em Frege, acompanha e segue de perto as vicissitudes da noção de sentido.

                                                                                                                94. Deve notar-se que é precisamente o critério de substituibilidade que define e distingue uma linguagem intensional da extensional. Cfr. Küng, G. - Ontology and the Logistic Analysis of Language, Dordrecht-Holland, D. Reidel Publishing Company, 1967, p. 140: "From a formal point of view, the intensionality of a language is reflected in the following distinction: whereas in an extensional language, quantifiable expressions that have the same extension, i.e., subsume the same individuals (such as, e.g., 'human being' and 'featherless biped'), can be substituted for each other without restriction and without altering the truth value of sentences, in an intensional language such substitution can lead from true sentences to false sentences".  

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1.4. SEMÂNTICA DOS NOMES PRÓPRIOS As dificuldades para conciliar os dois aspectos do sentido em Frege um mais ligado às condições subjectivas da apreensão e do conhecimento, outro firmemente enraizado na realidade objectiva - e atribuir-lhe uma função exacta, quer na linguagem, quer na lógica da identidade têm suscitado várias versões e interpretações da semântica fregeana, e objecções, sobretudo à teoria do sentido dos nomes próprios. Atribuir sentido a um nome próprio torna-se problemático se se identifica a distinção sentido/referência com intensional/extensional. Esta interpretação, dada por Carnap em Meaning and Necessity95, foi seguida muito frequentemente, porque a dimensão intensional do sentido inclina naturalmente a essa assimilação: o sentido de uma expressão seria o conceito do objecto designado pela mesma. Segundo Carnap, o sentido de um nome próprio seria o conceito individual do objecto referido. A "intensão" (sentido) de "W. Scott" é o conceito individual de W. Scott, a sua referência, o indivíduo chamado "W. Scott". No entanto, identificar sentido com conceito individual não corresponde de modo nenhum à proposta fregeana. Como sabemos, um conceito na lógica de Frege é sempre uma entidade incompleta, insaturada, radicalmente diferente de um objecto. A própria expressão de conceito individual parece ser bastante problemática: de um indivíduo podemos formar um conceito? Se o conceito - na lógica de Frege é o referente de um predicado, como é possível um conceito de objecto, que por sua vez é sempre o referente de um nome próprio? Um ser individual cai sob vários conceitos, ou pode ser sujeito de vários predicados. Identificar o par sentido/referência a intensional/extensional, equivaleria a identificá-lo também com o par conceito/objecto. Mas Frege rejeita expressamente esta assimilação96.                                                                                                                 95. Cfr. Carnap, R. - Meaning and Necessity, Univ. of Chicago Press, 1956 (2ª ed.), p. 41.   96. Cfr. NS, p. 128: "Ich habe in einem Aufsatz (SuB) zunächst nur bei Eigennamen (...) unterschieden zwischen Sinn und Bedeutung. Derselbe Unterschied kann auch bei Begriffswörten gemacht werden. Es kann nun leicht Unklarheit dadurch entstehen, dass man die Einteilung in Begriffe und Gegenstände mit der Unterscheidung von Sinn und Bedeutung so vermengt,

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No caso da distinção sentido/referência em relação aos predicados, expressões relacionais, etc., a sua identificação com o intensional/ extensional deturpa ainda mais as intenções de Frege: o sentido de um conceito, na versão de Carnap, seria uma propriedade, a sua referência, a classe que constitui a sua extensão97. Nada mais contrário à lógica de Frege que insiste repetidas vezes que a referência de um predicado não é a sua extensão, ou seja a classe dos indivíduos que caem sob esse predicado, mas sim a propriedade, o atributo em si mesmo considerado. Outra interpretação da semântica fregeana dos nomes próprios, assimila-a à de Russell, pelo menos na tese de que um nome próprio é uma espécie de abreviatura de descrições definidas. Foi sobretudo Kripke, com a sua crítica às descrições definidas e a teoria dos nomes próprios como designadores rígidos, quem reuniu numa só as semânticas de Frege e Russell. No entanto, entre estes dois lógicos há grandes afinidades, mas também profundas divergências quanto à teoria do significado e da referência. Como Frege, também Russell é levado a tratar da teoria da denotação, em parte para resolver alguns problemas da identidade, e formula nos Principles of Mathematics98 uma teoria bastante próxima da de Frege, como ele próprio reconhecerá mais tarde99. A primeira questão que põe Russell é também a de saber se a identidade é ou não uma relação: inspirado no                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   dass man Sinn und Begriff einerseits und Bedeutung und Gegenstand andererseits zusammenfliessen lässt".   97. Cfr. Carnap, R. - ob. cit., p. 41.   98. Cfr. cap. V "Denoting", § 64. A semântica dos nomes próprios interessa-nos aqui fundamentalmente pelas repercussões que o tema tem na análise das proposições de identidade. Por isso não trataremos directamente das novas teorias da referência dos termos singulares. Uma boa exposição destas novas teorias pode encontrar-se em Schwartz, S. P. (ed.) - Naming, Necessity and Natural Kinds, Ithaca and London, Cornell University Press, 1977, uma colectânea de ensaios de Donnellan, Kripke, Putnam, Quine, Evans, entre outros.   99. Cfr. "On Denoting", Logic and Knowledge, p.42, n.: "I have discussed this subject in Principles of Mathematics, cap. V, and § 476. The theory there advocated is very nearly the same as Frege's, and is quite different from the theory to be advocated in what follows". Os Principles of Mathematics foram publicados em 1903; "On Denoting", em 1905.  

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mesmo princípio da identidade dos indiscerníveis, admiti-la como relação torna-se problemático, pois, se uma proposição de identidade é realmente verdadeira, não temos senão um termo, e para uma relação são necessários dois; dois termos não podem nunca ser idênticos, e um só termo não chega para estabelecer uma relação. Apresenta-se, portanto, o mesmo puzzle de que parte Frege em SuB. No entanto, não se podem negar as proposições de identidade: o obstáculo está em julgar que são necessários dois termos, quando de facto numa identidade há apenas um referente e um relatum, que não têm que ser diferentes. Qual a utilidade, o interesse (o valor cognitivo, diria Frege) de uma afirmação de identidade? Tal como Frege respondera com o recurso à noção de sentido, Russell vai fazê-lo de um modo muito semelhante, com a "teoria da denotação", recorrendo à noção de "conceito denotativo" (denoting concept). Afirmar que "Eduardo VII é o Rei", é uma proposição de identidade não meramente tautológica ou trivial: temos em primeiro lugar um termo, "Eduardo VII", que no lugar do predicado é substituído por um conceito denotativo, "Rei". Há casos de identidade entre dois conceitos denotativos, como por exemplo "o actual Papa é o último sobrevivente da sua geração". Afirmar apenas a identidade de um termo consigo mesmo não tem qualquer interesse nem utilidade, mas quando são introduzidos conceitos denotativos (denoting concepts), a proposição de identidade torna-se significativa. Como se torna patente o conceito de denotação, que Russell apresenta nos Principles, embora com outra terminologia (denoting concepts) não se afasta muito do pensamento de Frege. Mas dois anos mais tarde, o célebre artigo "On Denoting" apresenta uma teoria completamente nova e uma crítica à distinção fregeana entre sentido e referência. Embora reconhecendo os méritos da distinção de Frege na resolução dos problemas da identidade, no escrito de 1905, Russell abandona a teoria do sentido e referência por considerá-la incapaz de oferecer uma resposta para os casos em que aparentemente não existe referência (denotação, é o termo de Russell). Como se sabe, para Frege a não existência de um objecto real como referente de um nome ou expressão, não levanta problemas: do ponto de vista semântico esses nomes têm como referência, não o objecto ou indivíduo realmente existente, mas sim o sentido, como é o caso dos nomes

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de ficção. E as proposições nas quais ocorram nomes ou expressões sem referência no autêntico sentido da palavra, não são verdadeiras nem falsas; trata-se simplesmente de um discurso sem pretensão de dizer o verdadeiro ou falso, como é o caso do discurso poético, literatura, etc. Russell, não se conforma com esta solução: "o actual Rei de França é calvo" é uma proposição afectada pela ausência de denotação da descrição "o actual Rei de França", e portanto falsa. Segundo Frege "o actual Rei de França", logicamente analisada, refere a classe vazia; mas esta solução, segundo Russell é completamente artificial. Negar a existência, segundo a teoria de Frege, é simplesmente dizer que ao sentido correspondente a determinado nome ou descrição, não corresponde nenhum referente real, portanto que tem por referente o próprio sentido, ou pensamento de quem o imaginou ou exprimiu. Russell propõe outro processo que serve para justificar as proposições de identidade e a negação da existência, sem recorrer à distinção dos dois lados - de sentido e denotação - nas expressões denotativas. O ponto de partida fundamental de Russell é o seguinte: uma expressão denotativa (denoting phrase) não tem nunca significado por si mesma, mas constitui sempre parte de uma frase; todas as proposições nas quais ocorrem expressões denotativas (como "o autor de Waverley", "o actual Rei de França", etc.) devem reduzir-se a formas nas quais não ocorram essas expressões. Assim: qualquer proposição na qual ocorra "o autor de Waverley", como por exemplo "Scott é o autor de Waverley" reduz-se a: "um e só um indivíduo escreveu Waverley e Scott era idêntico com o autor de Waverley". Esta solução evita as dificuldades procedentes da suposição de que todas as expressões denotativas significam (estão em vez de) constituintes genuínos das proposições nas quais ocorrem. Esta suposição levou Meinong a postular os seus "objectos não subsistentes", mas que devem ser considerados objectos: assim "o actual Rei de França", "o círculo quadrado", são objectos genuínos. A teoria de Meinong defende que frases como estas não denotam um indivíduo real, mas denotam de qualquer modo um indivíduo irreal. Na teoria da denotação de Russell, não há indivíduos irreais (como na teoria de Meinong), nem a necessidade de postular uma distinção, em todas as expressões denotativas, entre o seu sentido, o seu

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significado e a sua denotação. A categoria de nome próprio só se dá nos casos em que há uma percepção directa (acquaintance) do objecto designado; as descrições, as expressões denotativas exprimem o nosso conhecimento sobre (knowledge about). A teoria da denotação radica nesta distinção fundamental100. Só se pronuncia um nome próprio quando se tem percepção imediata e directa do objecto, e o simples facto de o nomear, já denota a sua existência. Uma expressão denotativa exprime sempre algum conhecimento sobre, na ausência de um contacto, de acquaintance do objecto ou indivíduo do qual se fala. Daí a incoerência, a falta de sentido de negar a existência, tendo por sujeito da proposição um nome próprio: não se pode primeiro assumir que há um certo objecto (nomeá-lo) e depois negar-lhe a existência, pois o mero facto de nomear, se o nome tiver sentido, pressupõe a existência do objecto. Nos Principia Mathematica (1910), Russell completa a sua teoria sobre as expressões incompletas (incomplete symbols), uma terminologia que não pode deixar de recordar a de expressões insaturadas de Frege. Distingue entre símbolos "incompletos" - um signo que não pode ter significado isoladamente, mas se define só em certos contextos - e nomes próprios101. "Sócrates", por exemplo, denota um determinado homem, e portanto tem um significado por si mesmo, sem necessidade de nenhum contexto. Quando afirmamos "Sócrates é mortal" exprimimos um facto sobre Sócrates, do qual ele mesmo é um constituinte. Noutros casos isto não acontece: por exemplo na proposição "o círculo quadrado não existe", embora seja verdadeira, não se nega a existência de um objecto chamado "círculo quadrado"; neste caso o sujeito gramatical da proposição não é um                                                                                                                 100 . Cfr. "On Denoting", Logic and Knowledge, p. 41: "The subject of denoting is of very great importance, not only in logic and mathematics, but also in theory of knowledge. For example, we know that the centre of mass of the solar system at a definite instant is some definite point, and we can affirm a number of propositions about it; but we have no immediate acquaintance with this point, which is only known to us by description. The distinction between acquaintance and knowledge about is the distinction between the things we have presentation of, and the things we only reach by means of denoting phrases".   101 . Cfr. Russell, B. - Principia Mathematica, Cambridge, At the University Press, 1978, Part I, Section B, § 13, p. 168.  

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nome próprio - que sempre designa um objecto - mas uma expressão que pode ser substituída por "este assim...assim..." (the so-and-so) e a proposição pode ser substituída por: "é falso que exista um objecto x tal que seja simultaneamente redondo e quadrado", cuja forma lógica é: ∼E!(ιx)(ϕx) Aqui o sujeito gramatical é substituído por (ιx)(ϕx), que é o que Russell considera um signo incompleto, "o objecto que tal e tal...". No célebre exemplo russelliano "Scott é o autor de Waverley", poderia pensar-se que "Scott" e "o autor de Waverley" são dois nomes do mesmo indivíduo. Mas se assim fosse, para que esta proposição fosse verdadeira, era necessário que Scott se chamasse "o autor de W."; mas de facto esta expressão não é um nome próprio, pois "o autor de Waverley" traduz-se por "(ιx) (x escreveu Waverley)", e esta proposição exprime uma identidade não trivial porque a expressão "o autor de W." poderia designar outro indivíduo que não Scott. Uma proposição da forma a=(ιx)(ϕx) pode ser verdadeira ou falsa, mas não é nunca meramente trivial, como a=a; se (ιx)(ϕx) fosse um nome próprio, a=(ιx)(ϕx) seria necessariamente ou falsa ou equivalente a a=a, e portanto trivial. Para Russell, como foi dito, um nome próprio designa sempre e necessariamente um objecto determinado, de tal modo que não tem sentido dizer "a existe" ou "a não existe", sendo "a" um nome próprio. O predicado da existência não pode ser atribuído a nomes próprios, mas sim a descrições; neste ponto Russell coincide com Frege e a sua tese da existência como predicado de segundo nível. Só se pode levantar a questão da existência em relação a descrições definidas, e não em relação a nomes próprios. Este princípio é absolutamente válido na semântica dos nomes de Russell, de tal modo que no caso dos nomes de ficção - Rómulo, por exemplo - Russell dirá que, uma vez que nestes casos cabe perguntar pela sua existência ou negá-la, estes nomes não são senão descrições disfarçadas (disguised definite descriptions). Para Russell, proposições que contenham nomes como Rómulo "Rómulo existe", ou "Rómulo não existe" - introduzem uma função proposicional, pois "Rómulo" não é realmente um nome, mas uma descrição

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truncada. Designa a pessoa que corresponde a tal ou tal descrição, que matou Remo, fundou Roma, etc. todas as propriedades que se podem atribuir a Rómulo, das quais "Rómulo" se apresenta como uma espécie de abreviatura. Construímos assim uma proposição funcional - "x tal que x fundou Roma...etc" - e dizer que Rómulo não existe significa que essa proposição funcional nunca é verdadeira, ou seja, que não há nenhum valor x que lhe dê o valor de verdadeiro. Não se fala da existência ou não existência de Rómulo, mas do caso em que a proposição funcional "x tem tal e tal propriedades", que corresponderia a todas as propriedades atribuíveis a um indivíduo, nunca é verdadeira. Conclui Russell que Rómulo não é nunca um nome, mas apenas uma abreviatura para "a pessoa a quem chamamos 'Rómulo' "102. Em "The Philosophy of Logical Atomism"103, Russell, sintetizando e clarifcando a sua teoria da denotação, estabelece claramente as diferenças entre descrições definidas e nomes próprios: As descrições definidas não são nomes próprios porque: 1. São símbolos complexos, enquanto os nomes próprios são símbolos simples, constituídos por uma só palavra (ex: "o autor de Waverley" e "Scott"). 2. Não têm significado por si, isoladamente, mas só no contexto de uma frase.                                                                                                                 102 . Cfr. Russell, B. - "The Philosophy of Logical Atomism", Logic and Knowledge, p. 243: "If (Romulus) were really a name, the question of existence could not arise, because a name has got to name something or it is not a name, and if there is no such a person as Romulus there cannot be a name for that person who is not there, so that this single word 'Romulus' is really a sort of truncated or telescoped description, and if you think of it as a name, you will get into logical errors. When you realize therefore that any proposition about Romulus really introduces the propositional function embodying the description, as (say) "x was called 'Romulus' " that introduces you at once to a propositional function, and when you say 'Romulus did not exist', you mean that this propositional function is not true for one value of x".   103 . "The Philosophy of Logical Atomism" é o texto de um curso de oito conferências proferidas em Londres nos primeiros meses de 1918. Cfr. Logic and Knowledge, pp. 177-281.  

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3. É possível captar o sentido de uma descrição definida se se entender a língua - "o autor de Waverley" -, mas não se pode entender o sentido de um nome próprio - "Scott" - sem se saber já quem é Scott. 4. Enquanto um nome próprio tem referência, denota sempre um objecto determinado, uma descrição definida não denota nada - "o autor de Waverley" não denota Scott, pois se assim fosse, dizer "Scott é o autor de Waverley" seria o mesmo que dizer "Scott é Scott" e, portanto, uma tautologia; se denotasse outro indivíduo que não Scott, afirmar "Scott é o autor de Waverley" seria falso. Mas como esta afirmação não é nem falsa nem trivial, é porque a descrição definida não denota nem Scott nem qualquer outro objecto determinado. Esta descrição definida, como todas, não têm denotação isoladamente, não estão por nenhum objecto determinado, porque são de facto símbolos incompletos. Por esta razão a proposição "Scott é o autor de W." exprime uma identidade, mas não afirmando que há duas pessoas, uma que é Scott e outra que é o autor de W., e que neste caso são a mesma pessoa. Isto seria absurdo. O que permite afirmar a identidade "Scott é o autor de W." é simplesmente o facto de a proposição estabelecer uma relação entre um nome próprio e uma descrição definida. Seria também possível estabelecer uma identidade entre duas descrições definidas "O autor de W. é o autor de Marmion"; o que não é possível é estabelecer uma identidade entre dois nomes próprios, que não seja, ou tautológica ou falsa104. Estabeleçamos um breve confronto entre a teoria dos nomes próprios de Russell com a de Frege: Em primeiro lugar, ambos são levados a tratar da semântica dos nomes próprios pelas questões que levantam as proposições de identidade: afirmar uma identidade entre dois nomes próprios, admitido o princípio da identidade dos indiscerníveis, ou é uma tautologia que nada diz de novo, ou uma falsidade. Se não há dois indivíduos idênticos, é evidente que dois                                                                                                                 104 . Cfr. ibidem, p. 245-247.  

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nomes próprios ou referem o mesmo indivíduo, ou referem dois indivíduos diferentes; no primeiro caso trata-se de uma tautologia da forma "a=a", no segundo de uma proposição falsa, porque se a e b são dois nomes realmente próprios, designam dois indivíduos diferentes, entre os quais não se poderá nunca estabelecer uma relação de identidade. A solução de Frege recorre à distinção de sentidos através dos quais se pode referir o mesmo indivíduo: a e b podem deste modo ser dois nomes, que exprimem sentidos diferentes sob os quais se pode conhecer e designar o mesmo indivíduo. Russell, que de início adoptara uma solução semelhante, utilizando a terminologia de conceito denotativo, rejeitará depois a solução fregeana: nome próprio é uma categoria semântica só aplicável aos signos simples, não compostos, com que se faz referência directa a um objecto ou indivíduo, em situação de presença imediata, de percepção directa (acquaintance) desse mesmo objecto; com as expressões denotativas, que para Frege pertencem também à categoria do nome, não se denota realmente nenhum objecto, mas diz-se algo sobre, exprimindo deste modo um conhecimento sobre (knowledge): "o mestre de Platão", descrição definida, na semântica de Russell, não denota Aristóteles, mas diz algo sobre Aristóteles, apresenta uma descrição de um indivíduo. A teoria das descrições definidas de Russell é, sem dúvida a transcrição semântica da tese da existência como predicado de predicados, como predicado de segundo nível, que não se pode atribuir directamente aos objectos, sem ser via conceito, via descrição. Esta tese coincide plenamente com o pensamento fregeano, e, remotamente com a tese de Kant segundo a qual a existência não é um predicado real. Mas Frege não infere deste modo de analisar a existência, consequências tão drásticas como a impossibilidade de negar a existência de um indivíduo, colocando o nome próprio como sujeito dessa proposição, e a eliminação quase total de nomes próprios no uso da linguagem corrente. Admite a possibilidade de um sentido da existência como efectividade (Wirklichkeit), que é a dos indivíduos reais, existentes, dos quais é possível um conhecimento directo, não exclusivamente pela via da percepção sensível. Para solucionar os casos da afirmação ou negação da existência, mantendo-se estritamente fiel à tese kantiana, Russell conclui que muitos

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dos nomes não são verdadeiramente próprios, mas simples descrições truncadas, ou abreviadas. Para Frege o facto de um nome não ter referente, não constitui problema, pois essa falta não significa que não tenha sentido. O exemplo de Frege, "Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Itaca" tem sentido, embora o nome não tenha referente e a proposição careça também de valor de verdade. Os nomes próprios, segundo Frege têm sentido, além de referência, de modo que negar a existência de um singular significa exprimir que ao sentido de um signo determinado, de um nome, não corresponde nenhum referente. Não há nenhuma afirmação explícita na obra de Frege, de que os nomes próprios são abreviaturas de descrições definidas; o sentido de um nome pode ser expresso por uma descrição definida, podendo neste caso substituí-lo na proposição, sem lhe alterar o sentido. Mas seria um erro atribuir a Frege a teoria de que todos os nomes próprios são idênticos a um conjunto de descrições definidas do qual nos apresentam um resumo emblemático. A noção de nome próprio de Frege não coincide com a de Russell, que só considera nesta categoria os signos que denotam directamente um objecto determinado, ao qual temos acesso deíticamente. A relação entre nome próprio e objecto designado, não chega a ser uma relação de significação completa, mas a expressão de uma ostensão, a apresentação de um objecto do qual temos conhecimento directo (acquaintance)105. Frege tem uma noção muito mais lata de nome próprio - "todo o signo ou complexo de signos que refere um objecto". Como a sua noção de objecto é também peculiar, englobando os objectos lógicos, o Verdadeiro e o Falso, etc., na lógica de Frege, tanto pode pertencer à categoria dos nomes próprios                                                                                                                 105 . Cfr. Russell, B. - Logic and Knowledge, p. 201: "A name, in the narrow logical sense of a word whose meaning is a particular, can only be applied to a particular with which the speaker is acquainted, because you cannot name anything you are not acquainted with. You remember, when Adam named the beasts, they came before him one by one, and he became acquainted with them and named them. We are not acquainted with Socrates and therefore cannot name him. When we use the word 'Socrates' we are really using a description. Our thought may be rendered by some such a phrase as "the Master of Plato", or "the philosopher who drank the hemlock" or "the person whom logicians assert to be mortal", but we certainly do not use the name as a name in the proper sense of the word".  

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uma expressão como "o satélite da Terra" (equivalente a uma descrição definida), como uma proposição que refira o verdadeiro ou o falso. A categoria lógica e semântica do nome próprio está perfeitamente definida na teoria de Frege, como qualquer signo (simples ou complexo) que refira um objecto singular; o facto, contingente e extra-linguístico de que exista ou não o objecto designado, não altera o estatuto lógico de uma expressão como nome próprio. Em Russell, pelo contrário, a categoria lógica à qual pertence uma expressão dependerá da existência de algo que satisfaça certas condições, ou seja, a possibilidade de encontrar ou não valores para uma dada função proposicional pode alterar completamente o seu estatuto. Como observa Dummett este é o maior defeito da teoria das descrições, pois a categoria lógica das expressões deveria depender só do tipo de significação que têm, e não da contingência de existir ou não um determinado objecto, portanto de um factor extra-linguístico e extra-lógico. Uma teoria assim "incita à caça do nome logicamente próprio"106. Para que um signo possa ser considerado como um nome logicamente próprio, é necessário averiguar se existe algum objecto correspondente ao seu significado. Virtualmente todas as expressões, em geral consideradas como nomes próprios, poderão vir a ser excluídas desta categoria, para passar à categoria de descrições definidas, uma vez verificada a não existência do seu referente. A posição de Frege é radicalmente diferente: exige que todo o nome próprio da sua Bs tenha um referente, visto que se trata de uma linguagem perfeitamente exacta, científica e nem à ciência nem à lógica interessam os seres de ficção. No entanto, na linguagem natural, a falta de referente de certos nomes e expressões não o induzirá à "caça do nome próprio". Frege não terá necessidade de estabelecer uma sub-classe dos nomes logicamente próprios, segundo se verifique ou não a relação epistémica de acquaintance, condição necessária a esta categoria, segundo Russell. A categorização lógica dos termos em Frege depende unicamente de factores lógicos e da teoria do significado. Apesar de tudo, a explicitação dos sentidos dos nomes próprios é problemática e o próprio Frege tenta uma reconciliação entre descritivismo e                                                                                                                 106 . Dummett, M. - ob. cit., p. 163: "(...) prompted the hunt for the logically proper name". Cfr. também ibidem, pp. 110-112 e 161-168.  

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referencialismo, isto é, elabora uma semântica dos nomes que admita simultâneamente um dizer algo sobre, e um acto de nomear. A conciliação entre estas duas dimensões semânticas, admite variantes que foram exploradas por algumas versões, como as de Wittgenstein, Searle, Strawson. Wittgenstein defende que o sentido de um nome é dado por uma "família" de descrições: numa perspectiva radicalmente diferente da sua teoria pictórica do significado do Tratactus, nas Investigações, Wittgenstein admite claramente que um nome próprio tem sentido: "Quando eu digo 'N morreu', então com o sentido do nome 'N' pode passar-se o seguinte: Eu acredito que viveu um homem, o qual (1) eu vi aqui e ali, o qual (2) tinha este e aquele aspecto, (3) que fez isto e aquilo, e que (4) tinha como nome civil 'N' "107.

O nome não tem um sentido fixo, porque depende em parte do uso, que se vai encarregando de relacionar o nome com uma série de descrições que podem portanto variar. A "fronteira do inessencial" é impossível de determinar. Searle tenta também uma posição conciliadora entre descritivismo e referencialismo puro. À pergunta - os nomes próprios têm sentido? responde: não, se a pergunta se refere ao facto de o nome próprio ser utilizado para descrever ou especificar propriedades de um objecto. Os nomes próprios, afirma Searle taxativamente, não funcionam como descrições, mas como cavilhas (pegs) das quais pendem as descrições. Do ponto de vista pragmático, os nomes próprios usados na nossa linguagem têm a enorme vantagem de referir de facto objectos sem necessidade de chegar a um acordo sobre as características descritivas que constituem exactamente a identidade desse objecto108. Searle considera necessário isolar                                                                                                                 107 . Cfr. Wittgenstein, L. - Investigações Filosóficas, Lisboa, Gulbenkian, 1987, § 79.   108 . Cfr. Searle, J. R. - "Proper Names", Mind, 67 (1958) pp. 166-173: "To put the same point differently we ask: "Why do we have proper names at all?" Obvoiusly, to refer to individuals. "Yes, but descriptions could do that for us". But only at the cost of specifying identity conditions every time reference is made: suppose we agree to drop "Aristotle" and use, say, "the teacher of Alexander", then it is a necessary truth that the man referred to is

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a função referencial da descritiva na linguagem, e os nomes próprios desempenham de um modo privilegiado a função referencial: não funcionam como descrições, mas como "cavilhas" das quais pendem as descrições. No entanto, se a pergunta pelo sentido do nome próprio se refere ao facto de os nomes próprios se relacionarem com alguma ou algumas características do objecto designado, a resposta será sim, em sentido lato. Um indivíduo é necessariamente idêntico à soma lógica, disjunção inclusiva de todas as propriedades que lhe são atribuídas. Mas cada uma dessas propriedades pertence ao indivíduo de um modo contigente: no exemplo apontado por Searle, se decidimos designar Aristóteles como "o Mestre de Alexandre", então será que o homem referido pela expressão tenha esta característica; a necessidade, neste caso é nitidamente uma necessidade de carácter pragmático, para o bom funcionamento da função referencial da linguagem. Portanto, nenhuma propriedade pode desempenhar em exclusivo a função referencial, substituindo-se ao nome próprio, pois todas são igualmente contingentes, não necessárias. Mas são necessárias para indicar algum critério de identificação do objecto designado pelo nome próprio. E, na medida em que um nome próprio deve estar logicamente conectado com as características do objecto, pode considerar-se, que o nome próprio tem sentido. Não tem sentido, na medida em que o nome próprio não é empregue para descrever ou especificar as características do objecto. A solução de Searle concilia um ponto de vista puramente semântico - a da relação referencial pura entre nome-objecto - com um ponto de vista pragmático - as condições necessárias para que se realize de facto, na linguagem o acto de nomear109.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Alexander's teacher - but it is a contingent fact that Aristotle ever went into pedagogy (though I am suggesting it is a necessary fact that Aristotle has the logical sum, inclusive disjonction, of properties commonly attributes to him: any individual not having at least some of these properties could not be Aristotle)".   109 . Cfr. Searle, J. R. - art. cit., p. 173: o autor sintetiza deste modo a sua resposta à questão sobre o sentido dos nomes próprios: "We can now resolve our paradox: does a proper name have a sense? If this asks whether or not proper names are used to describe or specigy characteristics of objects, the answer is "no". But if it asks whether or not proper names are logically connected with characteristics of the object to which they refer, the answer is "yes, in a loose

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Strawson propõe uma teoria da introdução dos nomes de singulares bastante próxima da de Searle: um termo referencial, que designe um objecto singular está necessariamente conectado com algum ou alguns factos relativos a esse objecto. O emprego na linguagem de nomes próprios expressões completas, que podem desempenhar a função de sujeito numa proposição - pressupõe a existência de um só indivíduo referido pelo nome. Ligado a esse nome há um conjunto de proposições sobre esse indivíduo. Não é possível, no entanto, delimitar com precisão esse conjunto de proposições sobre o indivíduo, nem decidir sobre o que constitui um conjunto razoável para introduzir um nome próprio. Qual a relação entre o nome e esse conjunto vago e indefinido de descrições, que na prática linguística podem servir para o introduzir e para reconhecer ou identificar o objecto referido? Uma teoria explicativa global desta relação exigiria uma análise que integrasse as categorias semânticas da referência e descrição e a pragmática linguística. Strawson manifesta o seu cepticismo em relação à possibilidade de uma simples teoria explicativa desta relação. No entanto, a falta desta teoria exaustiva não parece afectar a eficiência referencial dos nomes próprios110. As propostas de semântica dos nomes de Wittgenstein, Searle e mesmo a de Strawson, podem considerar-se em geral como versões um pouco atenuadas da teoria de Russell, tentando reconciliar a vertente referencial com a descritivista, recorrendo a diversas formulações que conjugam semântica pura com pragmática. Nenhuma destas teorias nega explicita e definitivamente que o nome próprio tenha sentido - opondo-se à semântica de Frege - mas tão pouco adoptam a teoria de Russel dos nomes súmulas de descrições definidas. A dificuldade reside em elaborar uma teoria explicativa da relação entre a função da descrição e a eficácia referencial do nome próprio na praxis linguística. Uma explicação integral                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   sort of way". (This shows in part the poverty of a rigid sense-reference, denotation-connotation approach to problems in the theory of meaning.)" Cfr. também Kripke, S. - ob. cit., p. 33.   110. Cfr. Strawson, P. - Individuals, p. 192: "There is, accordingly, no hope of giving a simple general account of the relation between 'complete' term-introducing expressions and the term-distinguishing facts which must be known in order for term-introduction to be effected by their use".  

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desta relação releva de uma teoria epistémica sobre a correlação entre a imediatez, a evidência e a discursividade do conhecimento.

1.4.1. Kripke e a lógica dos nomes próprios Tendo em conta as divergências de fundo das duas teorias da significação de Frege e Russell, não parece correcto assimilá-las numa teoria comum, "descritivista", como faz Kripke111: a tese básica desta teoria seria a afirmação de que o sentido de um nome é dado por uma descrição definida (ou várias). Kripke afirma no início do seu Naming and Necessity que tanto Frege como Russell, contrariamente a Stuart Mill, consideram que os nomes têm, não só denotação, mas também conotação: um nome próprio, segundo estes dois lógicos, não é senão uma descrição definida abreviada. Frege teria atribuído à descrição a função de dar o sentido do nome112. Descritivistas versus referencialistas: Frege, Russell, Wittgenstein da segunda época, Searle, entre outros, embora com profundas divergências, todos procuram formular uma teoria do sentido do nome próprio, dando uma explicação de como um nome pode ter significado. Em oposição a este conjunto de teorias, a semântica de Stuart Mill afirmara a tese de que os nomes têm denotação, mas não conotação. E é reportando-se a Mill que                                                                                                                 111 . Kripke, S. - Naming and Necessity, p. 27.   112 . Ibidem: "Frege and Russell both thought and seemed to arrive at these conclusions independently of each other, that Mill was wrong (that names have denotation but not connotation) in a very strong sense: really a proper name, properly used, simply was a definite description abbreviated or disguised. Frege specifically said that such a description gave the sense of the name". Para uma discussão global da teoria da referência dos nomes próprios e descrições definidas, cfr. Linsky, L. - Names and Descriptions: Linsky considera compatível a tese do sentido de Frege com a dos designadores rígidos de Kripke: cfr. ibid., p. XVIII e cap. 4.  

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Kripke faz uma viragem radical em relação às teorias mencionadas, ao aplicar o uso das descrições, não à teoria do sentido do nome, mas sim da referência. A questão de Kripke não é a de tentar explicar como é que um nome tem significado através da noção de sentido, mas simplesmente explicar como é que um nome serve para referir algum objecto individual. As descrições ou "família" de descrições, na teoria de Kripke não são sinónimos do nome, nem significam o mesmo que o nome; a sua função não é portanto a de dar o sentido do nome próprio, traduzindo-o por uma expressão semelhante; são antes meios para determinar a sua referência. Kripke distingue claramente entre estes dois processos, o de dar o significado, dar o sentido (give the meaning) e determinar ou fixar a referência (determines the reference), distinção que reforça de certo modo a de Searle entre função referencial e descritiva da linguagem. Mas na semântica de Searle, como nas teorias descritivistas em geral, não há a garantia de que a primeira, a função referencial venha alguma vez a ser plenamente realizada por algum elemento da linguagem, uma vez que se recorre sempre à mediação do sentido, da expressão descritiva para dar o sentido do nome, isto é, os objectos singulares se são designados, é sempre através de algum modo específico de ser, de alguma propriedade, relação, etc. Um signo que desempenhe na linguagem uma função puramente referencial parece estar ausente. A inovação da lógica dos nomes de Kripke consiste precisamente em retomar uma antiga teoria dos nomes, para garantir o carácter puramente referencial de alguns elementos da linguagem. Se um nome significa o mesmo que uma ou várias descrições, não poderá referir o mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis: ao pretender designar um indivíduo através de uma descrição, que traduz alguma das suas propriedades, caberia sempre a possibilidade de algum mundo no qual esse indivíduo não tivesse essa propriedade, portanto algum mundo possível no qual essa mesma descrição não serviria para referir o mesmo indivíduo113.                                                                                                                 113 . Kripke, S. - Naming and Necessity, p. 57: "Suppose the reference of a name is given by a description or a cluster of descriptions. If the name means the same as that description or cluster of descriptions, it will not necessarily designate the same object in all possible worlds, since other objects might have had the given properties in other possible worlds, unless of course we

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Esses elementos cuja função puramente referencial está assegurada pelo simples facto de que nenhuma expressão descritiva poderá ser sinónima do seu significado, são, na semântica de Kripke os "designadores rígidos": um termo é um designador rígido se designa o mesmo objecto individual em qualquer mundo possível. Os nomes próprios correspondem a esta condição; as descrições que podem referir o mesmo objecto, não o referem em qualquer mundo possível, e por isso não podem ser apresentadas como sinónimas do nome. Esta assimilação de nomes a descrições definidas tem as suas consequências na análise das proposições existenciais negativas. Se "Moisés" significa, é sinónimo de uma série de descrições, no caso de ninguém corresponder realmente a essas descrições, significa que "Moisés não existiu". Se, pelo contrário, não considerarmos as descrições como sinónimas do nome próprio, mas como meros estratagemas para fixar a sua referência, o facto de não se encontrar o referente dessas mesmas descrições não permite concluir que Moisés não existiu. A lógica e a semântica dos nomes próprios deixa já entrever os seus pressupostos metafísicos: um indivíduo não se identifica necessariamente nem com uma nem com o conjunto das descrições que o referem através das suas propriedades. Kripke tirará com efeito as conclusões metafísicas da teoria da referência no que respeita às análises das proposições singulares de existência e de identidade, como veremos. A principal crítica que Kripke dirige à semântica fregeana dos nomes próprios é a de englobar equivocamente as duas funções - a de dar o sentido e a de fixar a referência - na mesma noção: Frege - censura Kripke considera o sentido de um designador como sendo o seu significado; e considera-o também como o modo de fixar a sua referência. Ao identificar estas duas funções ou processos, pensa que ambos são dados por descrições definidas. E daí o conceito lato de nome próprio, que em Frege abrange                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   happened to use essential properties in our descriptions. So suppose we say "Aristotle is the greatest man who studied with Plato". If we used that as a definition, the name "Aristotle" is to mean "the greatest man who studied with Plato". Then of course in some other possible world that man might not have studied with Plato and some other man would have been Aristotle. If, on the other hand, we merely use the description to fix the referent then that man will be the referent of "Aristotle" in all possible worlds. The only use of the description will have been to pick out to which man we mean to refer..."  

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também as descrições definidas. Na análise de Kripke estas duas categorias lógico-linguísticas são nitidamente distintas e separadas: um nome próprio não pode ser considerado de forma alguma como sinónimo de uma descrição, embora esta possa ser utilizada para determinar a sua referência114. A teoria da referência de Kripke liberta-se de todas as possíveis imbricações com noções epistémicas e processos cognitivos, ficando assim a salvo da crítica que se poderia dirigir a Frege e a Searle de, na sua lógica dos nomes próprios, amalgamarem elementos e factores semânticos, linguísticos com factores cognitivos115. Mas poder-se-á de facto isolar tão assepticamente o sentido da referência? Ou, por outras palavras, até que ponto é válida e útil uma teoria referencial tão independente de uma teoria do sentido, que dispense toda a interferência do sentido, do factor cognitivo, da dimensão subjectual da linguagem, recorrendo exclusivamente, na sua explicação da relação signo-referente, a elementos extra-linguísticos: em última análise, a uma espécie de "teoria causal" que dê conta da origem dos nomes? Que vantagens poderá trazer uma teoria referencial assim imunizada dos ingredientes cognitivos, subjectuais, concretamente para a justificação das proposições de identidade? Com efeito, é de novo a questão da identidade a grande responsável pela tentativa de construção de uma semântica dos nomes próprios: tal como                                                                                                                 114 . Cfr. Kripke, S. - "Identity and Necessity" in Munitz, M. K. - Identity and Individuation, p. 157: "Even if we fix the reference of such a name as "Cicero" as the man who whrote such and such works, in speaking of counterfactual situations, when we speak of Cicero, we do not then speak of whoever in such counterfactual situations would have written such and such works, but rather of Cicero, whom we have identified by the contingent property that he is the man who in fact, that is, in the actual world, wrote certain works (...) Let us suppose that we do fix the reference of a name by a description. Even if we do so, we do not then make the name synonymous with the description, but instead we use the name rigidly to refer to the object so named even in talking about counterfactual situations where the thing named would not satisfy the description in question".   115 . Crítica dirigida por exemplo por Sluga, H. D. - "Semantic content and Cognitive Sense" in Haaparanta, L. and Hintikka, J. - Frege Synthesized, p. 54.  

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em Frege e em Russell, Kripke propõe-se fundamentalmente resolver o problema do estatuto cognitivo das proposições de identidade. No entanto, veremos que na semântica de Kripke, a questão das proposições de identidade está indissociavelmente ligada à da identidade individual e a teoria proposta por Kripke constitui uma tentativa de conciliar e resolver simultaneamente os dois problemas. A formulação da questão da identidade, no início de "Identity and Necessity"116 revela uma nítida semelhança com o próprio texto de Frege, no início de SuB. A pergunta continua a ser fundamentalmente a mesma: Como são possíveis juízos de identidade não meramente tautológicos? Como são possíveis juízos de identidade com interesse epistémico? Como são possíveis juízos de identidade não analíticos, contingentes? Questões que parafraseiam a de Kant - "Como são possíveis os juízos sintéticos a priori?" Para Kant, o princípio de identidade rege só os juízos analíticos. Trata-se agora de investigar se, contrariamente ao pensamento de Kant, poderá haver proposições de identidade que sejam sintéticas, e portanto que tenham um valor de conhecimento real. Como vimos, para explicar o valor cognitivo de proposições de identidade do tipo "a=b", em que "a" e "b" são dois nomes próprios, Frege recorre à noção de sentido como modo de dar-se e correspondente modo de apreender, de conhecer um objecto: "a" e "b" exprimem sentidos diferentes, mas têm a mesma referência. E assim, Frege poderia concluir que as proposições de identidade entre nomes próprios, entre descrições definidas ou entre um nome próprio e uma descrição, são proposições contingentes, sintéticas e aumentam por isso o nosso conhecimento.                                                                                                                 116 . Kripke, S. - "Identity and Necessity" in Munitz, M. K. - Identity and Individuation, pp. 135-164: "A problem which has arisen frequently in contemporary philosophy is: "How are contingent identity statements possible?" This question is phrased by analogy with the way Kant phrased his question: "How are synthetic a priori judgements possible?" In both cases, it has usually been taken for granted in the one case by Kant that synthetic a priori judgements were possible, and in the other case in contemporary philosophical literature that contingent statements of identity are possible".  

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Podemos representar proposições de identidade117:

esquematicamente

estes

três

tipos

de

1. "a=b" (a e b são nomes próprios) 2. "a=m" ou "n=b" (m e n são descrições definidas) 3. "m=n" Como, para Frege, qualquer expressão (nome singular ou complexo) com uma referência, tem também um sentido, uma proposição do primeiro tipo pode ser informativa: o sentido de um nome determina o modo como o objecto nos é apresentado e para empregar correctamente esse nome, é necessário um processo de re-conhecimento do objecto como o mesmo, para o re-identificar. Este meio de re-conhecer e re-identificar o objecto é fornecido pelo sentido. Uma identidade entre dois nomes próprios com o mesmo referente é informativa, sintética e não trivial, porque mostra dois "modos de ser", ou dois modos de apresentar-se do mesmo objecto. Se é identidade, quer dizer que identifica o objecto através dos dois modos de se apresentar. Uma identidade do segundo tipo pode ser trivial se o nome "a" tiver o mesmo sentido que a expressão "m", mas será igualmente informativa, se os dois sentidos não coincidirem. Uma identidade do terceiro tipo será sempre informativa, pois duas descrições definidas terão sempre sentidos diferentes, ainda que tenham a mesma referência. Esta seria a conclusão de Frege sobre a análise do valor informativo das proposições de identidade, tendo em conta a sua noção de sentido como valor cognitivo, ou modo de re-conhecer e re-identificar o mesmo objecto. A elucidação de Kripke, partindo de uma crítica e rejeição da teoria fregeana do sentido dos nomes próprios, conduz a soluções bem diferentes. Em Naming and Necessity, considera vários casos de proposições de identidade: em primeiro lugar, identidades entre descrições definidas, como por exemplo: "o homem que inventou as lentes bifocais foi o primeiro Director dos Correios dos Estados Unidos"; é evidente que este tipo de                                                                                                                 117 . Cfr. Sluga, H. D. - "Semantic Content and Cognitive Sense" in Haaparanta, L. and Hintikka, J. - Frege Synthesized, p. 51.  

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proposições que empregam descrições - "o x tal que Px e o x tal que Fx são o mesmo" - enunciam um facto totalmente contingente. O segundo caso é o das identidades entre nomes próprios: "Cícero é Túlio" ou "Hesperus é Phosphorus". Kripke ocupar-se-á também dos enunciados científicos em que se identifica por exemplo a luz com a radiação electromagnética entre certos limites de longitude de ondas, ou com um fluxo de fotões, e finalmente da denominada "tese da identidade" que identifica um determinado estado material do corpo com um estado correspondente do cérebro118. Aqui ocupar-nos-emos apenas da análise das proposições de identidade entre nomes próprios, que é o caso mais relevante para a questão de que estamos a tratar. Não só Frege, como Russell e mais recentemente Quine, rejeitaram a atribuição de necessidade às proposições de identidade entre nomes próprios. Quine apresenta dois exemplos clássicos: o planeta Vénus pode ser "etiquetado" ao fim do dia com o nome "Hesperus", e de manhã, antes do nascer do sol, com o nome de "Phosphorus". Quando descobrimos que designámos o mesmo planeta duas vezes, com nomes diferentes, esta descoberta é empírica, apesar de os nomes próprios neste caso não serem descrições definidas abreviadas (como diria Russell). O outro exemplo é semelhante e invoca a possibilidade de "etiquetar" a mesma montanha, com dois nomes diferentes - "Gaurisanker" e "Everest" - segundo é vista do Nepal ou do Tibet. A identificação de Gaurisanker com Everest pode constituir também uma descoberta geográfica. Com base na noção de "designador rígido", Kripke rejeita os dois exemplos, afirmando que tanto "Hesperus" como "Phosphorus", se são utilizados como nomes, são designadores rígidos, o que significa que referem o planeta Vénus em qualquer mundo possível. Portanto, mesmo num mundo possível em que alguém designasse diferentes planetas (ou estrelas) por "Hesperus" e "Phosphorus", o planeta Vénus seria o planeta Vénus, independentemente do modo ou modos como for designado. A relação dos nomes "Hesperus" e "Phosphorus" com os seus referentes é arbitrária, e Kripke não nega que poderia haver um mundo no qual os nomes "Hesperus" e "Phosphorus" fossem dados a outros planetas. Mas, de                                                                                                                 118 . Cfr. Kripke, S. - ibidem, p. 98.  

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qualquer modo o que não pode dar-se em nenhum mundo possível é que o próprio Hesperus deixasse de ser Phosphorus119. Neste tom quase ingénuo, Kripke rejeita peremptoriamente a tese segundo a qual uma proposição de identidade seria sempre uma proposição meta-linguística, versando sobre os signos, os termos da proposição, e não sobre objectos: "x=y" significa que os dois nomes têm o mesmo referente, portanto o sinal de igualdade tem só um alcance semântico, e não real. Se tivesse um alcance real, uma proposição deste tipo afirmaria apenas a "mesmidade" do objecto designado de dois modos diferentes; para Kripke, esta relação de mesmidade, a relação reflexa mínima (the smallest reflexive relation) é justamente a identidade120 no sentido forte. As proposições de identidade nas quais ocorrem dois nomes próprios falam dessa identidade mesma do objecto, e não apenas da coincidência referencial dos respectivos signos. "Hesperus é Phosphorus" não é portanto uma afirmação sobre "Hesperus" e "Phosphorus" enquanto signos de um mesmo planeta, relação débil, contingente e convencional, mas sobre o próprio planeta Vénus por eles designado. E se o modo de o designar pode variar infinitamente, havendo uma infinidade de mundos possíveis em que Vénus pode ser designado de muitos outros modos, ou se pode haver algum mundo possível em que Vénus não exista, o que não há de facto é nenhum mundo possível em que Vénus, se existe, deixe de ser ele mesmo. Por isso "Hesperus é Phosphorus", tratando-se de uma afirmação de identidade de um objecto                                                                                                                 119 . Kripke, S. - ob. cit., p. 109: "Suppose we identify Hesperus as a certain star seen in the evening and Phosphorus as a certain star, or a certainly heavenly body, seen in the morning; then there may be possible worlds in which two different planets would have been seen in just those positions in the evening and morning. However, at least one of them, and maybe both, would not have been Hesperus, and then that would not have been a situation in which Hesperus was not Phosphorus. It might have been a situation in which the planet seen in this position in the evening was not the planet seen in this position in the morning; but that is not a situation in which Hesperus was not Phosphorus. It might also, if people gave the names "Hesperus" and "Phosphorus" to these planets, be a situation in which some planet other than "Hesperus" was called "Hesperus". But even so, it would not be a situation in which Hesperus itself was not Phosphorus".   120 . Kripke, S. - ob. cit., p. 108.  

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consigo mesmo, e não de uma mera relação de sinonímia, é necessariamente verdadeiro. No entanto, se Kripke pensa que proposições de identidade entre nomes próprios são necessariamente verdadeiras, como justifica que a mesma proposição, substituindo os nomes por descrições definidas com a mesma referência, sejam contingentes? Se um objecto é necessariamente idêntico consigo mesmo, como é possível que a identidade expressa por duas descrições definidas que referem o mesmo objecto seja contingente? A afirmação da necessidade da identidade do mesmo objecto parece determinar a necessidade de todas as proposições de identidade que se refiram a esse objecto. O argumento baseia-se aliás na lei da substituibilidade dos idênticos: se um objecto x for idêntico a um objecto y, se x tiver uma propriedade F, y também a terá: 1. (x)(y)[(x=y)⊃(Fx⊃Fy)] 2. (x)€(x=x) Substituindo F por € em 1, temos: 3. (x)(y)(x=y)⊃[€(x=x)⊃€(x=y)] o que permite concluir que, para qualquer objecto x e y, se x for idêntico a y, x é necessariamente idêntico a y: 4) (x)(y)[(x=y)⊃€(x=y)] Este argumento, citado por Kripke121 tem sido invocado frequentemente em escritos recentes contra a admissão de identidades contingentes, que levaria a anular ou restringir a regra da substituibilidade, pondo em causa a absoluta validade do princípio da identidade dos indiscerníveis122. Intuitivamente, no entanto, verifica-se que existem proposições de identidade contingentes, como por exemplo as que ocorrem entre descrições definidas - "o primeiro Director Geral dos Correios dos E.U. é o mesmo que o inventor das lentes bifocais". Como conciliar 4) com esta última                                                                                                                 121 . Kripke, S. - "Identity and Necessity" in Munitz, M. K. - Identity and Individuation, p. 136.   122 . Por exemplo Wiggins, D. - Sameness and Substance, p. 18-19.  

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afirmação? Kripke, que pretende justamente conciliar a necessidade da identidade entre nomes próprios e a contingência da identidade entre descrições definidas, considera esta aparente dificuldade já resolvida por Russell com a noção de alcance (scope) de uma descrição. De acordo com Russell, pode dizer-se correctamente e sem contradição que "o autor do Hamlet podia não ter sido o autor do Hamlet": a proposição não nega a identidade de um objecto consigo mesmo; o que diz a proposição é que é verdade, em relação a um determinado homem que ele escreveu de facto o Hamlet, mas que esse homem podia não ter escrito o Hamlet. Na análise de Russell, a primeira ocorrência de "o autor do Hamlet" tem longo alcance (large scope), enquanto a segunda tem curto alcance (small scope). O que afirmamos é "o autor do Hamlet tem a seguinte propriedade, a de poder não ter escrito Hamlet. Não afirmamos que o autor do 'Hamlet' não escreveu o 'Hamlet', pois isso não é verdade. No caso do exemplo sugerido por Kripke: afirmamos que há um homem que casualmente inventou as lentes bifocais e acontece que foi também o primeiro Director Geral dos Correios dos E.U.: há um objecto x tal que x inventou as bifocais e acontece que há um indivíduo y que é o primeiro Director Geral... e necessariamente x=y. X e y designam Benjamin Franklin que é necessariamente idêntico a si mesmo, mas não inventou necessariamente as lentes bifocais, nem foi necessariamente Director Geral... As aparentes contradições encontram portanto uma solução lógico-linguística com a distinção dos alcances das descrições, que constitui aliás uma réplica da distinção medieval das modalidades de dicto/de re123. A distinção de Russell permite justificar a contingência das identidades entre descrições definidas. Kripke corrobora esta distinção e reforça-a com a introdução do "designador rígido", prototipo do signo com "longo alcance", por ser puramente referencial, necessariamente referencial, isento de qualquer mediação semântica. Este modo rígido de designar alia-se ao operador modal da necessidade, enquanto o outro modo de designar, através das descrições definidas, de "curto alcance" exprime a possibilidade. A diferença de modalidade entre os dois tipos de proposições de identidade (entre nomes próprios, ou entre descrições definidas) tem a sua raiz no                                                                                                                 123 . Cfr. Kripke, S. - ob. cit., p. 139.  

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distinto comportamento lógico-linguístico entre um designador rígido e um não rígido124. Um designador rígido, sendo um termo que designa o mesmo objecto em todos os mundos possíveis, desencadeia uma relação semântica de re com o próprio objecto designado, isto é, uma relação invariável, independente dos possíveis "estados de coisas" que envolvam esse objecto: Nixon - para utilizar o exemplo de Kripke - podia não ter sido Senador, não ter ganho as eleições, etc... Mas Nixon (ele mesmo) não podia deixar de ser Nixon. Por isso "Nixon" designa rigidamente Nixon, designa-o em todos os mundos possíveis. Mas a descrição "o 37º Presidente dos E.U." é um designador não rígido porque, embora designe Nixon no mundo actual, poderia designar muitos outros indivíduos noutros mundos possíveis, como por exemplo, um mundo em que Nixon tivesse sido vencido nas eleições por Humphrey. Outra distinção cara a Kripke, e indispensável para compreender a sua posição em relação ao estatuto das proposições de identidade, é a que estabelece entre os pares necessário/contingente, a priori/a posteriori; as noções de necessidade e contingência pertencem ao domínio da metafísica, afirmar a necessidade de uma proposição significa que a sua verdade não poderia deixar de o ser; afirmar a contingência significa que poderia ser verdadeira ou falsa. A distinção a priori/a posteriori diz respeito ao nosso modo de conhecer, pertence ao domínio da epistemologia e indica a independência ou dependência de um determinado conhecimento em relação à experiência. Tendo em conta os domínios e alcances respectivos destes dois pares de noções, compreende-se a possibilidade de destrinçar o necessário do a priori e, tendo em conta que o primeiro tem que ver com o mundo actual, o segundo com o nosso modo de o conhecer, cabe perguntar se tudo o que é necessário é conhecido ou cognoscível a priori125.                                                                                                                 124 . É evidente que Frege não poderia considerar esta diferença de modalidade entre proposições com nomes próprios e com descrições definidas, não só porque semanticamente os equiparou numa mesma categoria linguística, mas sobretudo porque, desde a Bs eliminara as noções modais da sua linguagem lógica, remetendo-as para os quantificadores (cfr. § 3). Por isso mesmo a questão das proposições de identidade, no ensaio de Frege SuB não é formulada em termos de necessidade/contingência, mas sim de analítico/ sintético, ou trivial e tautológico/informativo.   125 . Cfr. Kripke, S. - ob. cit., p. 150.  

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Considerando o exemplo da conjectura de Goldbach (de que todo o número par é a soma de dois primos), Kripke considera que se trata de uma proposição necessária, mas não a priori, pois a verificação da conjectura não nos é acessível; portanto, não se pode inferir que toda a verdade necessária seja conhecida a priori. Kripke aplicará esta dilucidação ao caso das identidades entre nomes próprios: "Cícero é Túlio" pode não ser conhecido a priori, mas mediante investigação empírica; mais flagrante ainda é o exemplo "Hesperus é Phosphorus" que pode ter sido o resultado de uma observação sensorial; no entanto, este facto não permite concluir que se trate de proposições contingentes: afirmações de identidade entre nomes, se bem que muitas vezes só sejam conhecidas a posteriori, se forem verdadeiros, são de factos necessárias126. A necessidade radica na rigidez referencial dos nomes próprios dentro da mesma linguagem127. O nome refere incondicionalmente o mesmo objecto em qualquer mundo possível, sem mediações de descrições, de significados determinados, etc. O significado do nome não é outro senão a própria unicidade do objecto que refere. Por isso mesmo, Kripke conclui que, sendo os nomes designadores rígidos, qualquer proposição de identidade entre dois nomes é sempre necessária, porque não há nenhum mundo possível no qual um indivíduo não seja idêntico a si mesmo, não há nenhum mundo possível em que Cícero não seja idêntico a Túlio. A

                                                                                                                126 . Ibidem, p. 153: "(...) certain statements of identity between names, though often known a posteriori, and maybe not knowable a priori, are in fact necessary, if true".   127 . Poderia dar-se o caso de um mundo em que se tivessem convencionado outros termos para designar Hesperus e Phosphorus. As pessoas utilizariam outra linguagem para se referir ao planeta Vénus e poderiam utilizar os termos "Vénus", ou "Phosphorus" ou "Hesperus" para designar outros planetas. No entanto, a relação a que se refere Kripke não é a relação débil, convencional entre um signo e o objecto significado, mas sim a relação ontológica forte de identidade de cada objecto consigo mesmo. E nesses mundos possíveis, de diferentes linguagens, não se daria nunca o caso de que Hesperus (o planeta designado em si mesmo) não fosse Phosphorus. Cfr. Kripke, S. - Naming and Necessity, p. 109 e nota 51.  

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necessidade não radica na relação nome - objecto designado, evidentemente, mas na relação reflexa de cada indivíduo consigo mesmo128. As proposições de identidade nas quais ocorrem nomes próprios são pois necessárias, mas de uma necessidade metafísica, fundada na "mesmidade" de cada ser individual consigo mesmo. A distinção desta noção da noção epistémica de analítico e a priori permitirá a Kripke contornar o problema de justificar o valor cognitivo destas proposições, bem como o das proposições científicas aqui analisadas. O seu carácter de necessidade é de ordem metafísico, diz respeito ao mundo actual, e não de carácter epistémico, e portanto não impede que essas verdades sejam alcançadas a posteriori, como consequência da observação sensível e da investigação experiencial. Tendo em conta esta importante tese de Kripke, da separação dos dois pares de noções - necessário/contingente, a priori/a posteriori - é patente que a questão a resolver em relação à identidade não é a mesma que Frege formula em SuB: para Kripke não se levanta o problema do valor epistémico destas proposições, que não é posto em causa pelo modo como entende a necessidade. Trata-se apenas de averiguar o estatuto "metafísico" da identidade e não de justificar o seu valor cognitivo; para Frege, porém, uma vez que necessário e a priori são sinónimos de trivial, não informativo, a questão a resolver será a de justificar o valor cognitivo de certos enunciados de identidade, provando que são contingentes, e por isso a posteriori, sintéticos, sinónimos de informativos129.                                                                                                                 128 . Kripke, S. - ob. cit., p. 154: "If names are rigid designators, then there can be no question about identities being necessary, because "a" and "b" will be rigid designators of a certain man or thing x. Then even in every possible world, a and b will both refer to this same object x, and to no other and so there will be no situation in which a might not have been b. That would have to be a situation in which the object which we are also now calling "x" would not have been identical with itself. Then one could not possibly have a situation in which Cicero would not have been Tully or Hesperus would not have been Phosphorus".   129 . Cfr. Bouveresse, J. - "Identité et Signification des Noms Propres", Sigme, Montpellier, (1978) p. 15: "Il est clair qu'en fait la théorie de Frege et celle de Kripke n'ont pas été conçues pour résoudre le même type de problème. Frege s'est éfforcé de rendre plausible et acceptable une notion objective et stable de signification qui permettrait de rendre compte, dans le cadre d'une théorie sémantique systématique, incluant le cas des noms propres eux-mêmes, de

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Assim se compreende que Kripke possa prescindir da noção de sentido do nome próprio: não se propõe tratar da relação signo-sujeito locutor, mas sim da relação signo-objecto designado; a primeira relação exigiria a dilucidação do processo de aprendizagem, ou de captação do modo como se utilizam os signos, no fundo uma teoria do sentido; a segunda, exige uma explicação de como o termo consegue de facto referir um objecto ou indivíduo determinado, uma teoria da referência. Kripke elabora esta teoria prescindindo em absoluto dos elementos e factores cognitivos. Frege propusera-se construir uma teoria que abarcasse não só a relação referencial, do signo ao objecto, mas também a relação de sentido, que envolve uma explicação da apreensão, da aprendizagem pelo sujeito do modo de usar os signos; por isso não podia prescindir dos factores cognitivos e daí a "amálgama" (segundo expressão de Sluga) entre semântica e epistemologia. No entanto, esta "amálgama" reflecte talvez melhor a realidade do uso dos nomes próprios na praxis linguística, do que a explicação asséptica, com inegáveis vantagens sobretudo para a elucidação de uma "metafísica" do singular ancorada numa semântica do nome próprio, mas incompleta do ponto de vista pragmático e epistémico. Prescindir da noção de sentido na semântica dos nomes próprios garante, sem dúvida uma relação referencial forte, imediata do signo com o indivíduo designado; mas, eliminadas todas as mediações entre o nome e seu referente, este assume o estatuto de uma "etiqueta", de algo que remete imediatamente para o ser singular, exprimindo e mostrando de um modo emblemático a sua unicidade e irrepetibilidade. Esta explicação da referência apoia-se e confirma a noção intuitiva que temos do ser singular, patenteando a sua auto-identidade. Kripke toma como ponto de partida a necessidade da identidade individual: um indivíduo é esse mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis, e esta identidade, "relação reflexa mínima", só se pode exprimir com um acto simples de nomear, referir com um signo único, directo, imediato. A necessidade que este acto referencial exprime, não é evidentemente a da relação semântica nome-objecto designado, mas sim a                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   notions comme celles de synonymie, analyticité, informativité, etc. Il était, bien entendu, conscient du fait qu'il s'agit d'une idéalisation; mais il n'est pas certain que cette idéalisation soit tellement plus contestable dans le cas des noms propres que dans les autres cas".  

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relação de mesmidade do próprio objecto designado: Nixon poderia não chamar-se "Nixon", mas o próprio Nixon não poderia deixar de ser Nixon. Depurar até este extremo a semântica dos nomes próprios, isolando tão completamente a relação referencial signo-indivíduo, não acarretará outras dificuldades para a explicação do estatuto das proposições de identidade entre nomes próprios? Se estes não têm sentido, mas referem de um modo directo, imediato, se nomear um indivíduo significa seleccionar esse indivíduo único na sua singularidade, apreendê-lo na sua unicidade, será possível conceber que cada indivíduo tenha mais do que um nome próprio? Se é possível, uma proposição de identidade entre nomes próprios será uma afirmação sobre os signos: dizer que "Cícero é Túlio", segundo a semântica de Kripke será também dizer que "Cícero" e "Túlio" são dois nomes próprios do mesmo indivíduo. Neste caso voltamos à primeira situação da teoria de Frege: a identidade versará sobre os signos, não sobre os objectos. O único modo de escapar a esta versão semântica da identidade, será admitir a mediação do sentido. Admitir a variedade de nomes próprios para o mesmo indivíduo não será já deixar imiscuir-se de novo a noção de sentido? Se a um indivíduo, estritamente falando corresponde só um nome próprio, o signo pelo qual o apreendemos, o seleccionamos na sua unicidade, então deixará de ter sentido afirmar a identidade entre dois nomes diferentes; ou melhor, a dois nomes próprios diferentes corresponderão dois indivíduos diferentes, dos quais será falso afirmar a identidade. Deste modo, paradoxalmente a teoria referencial elaborada por Kripke, explorada e levada às suas últimas consequências, implica que a identidade individual, a identidade de cada singular consigo mesmo se deve traduzir apenas através do acto de nomear, pronunciando o respectivo nome próprio: a partir de uma teoria referencial que nega o sentido ao nome próprio, a consequência lógica a tirar parece ser a de Wittgenstein: a identidade do objecto exprime-se pela identidade do signo e não pelo signo de identidade!

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1.4.2. Wittgenstein: a eliminação do sinal de identidade Em carta a Russell de 15.12.1913, Wittgenstein escreve: "A questão sobre a essência da identidade não pode ser resolvida, sem uma explicação prévia da essência da tautologia. Ora, esta questão é o fundamento de toda a Lógica"130.

O estatuto das proposições da lógica é uma das questões fundamentais do Tractatus. Nomeadamente, Wittgenstein defende que as proposições da lógica são tautologias, isto é, proposições para as quais não existem condições de verdade, porque são verdadeiras em qualquer caso. Como o critério de sentido, no Tractatus, radica na bipolaridade lógica, na possibilidade de uma proposição ser verdadeira ou falsa, todas as tautologias são frases sem sentido (sinnlos), embora não um contrasenso (unsinnig)131. As afirmações de identidade da forma "a=a" pertencem a este tipo de proposições, a sua verdade é independente de qualquer condição132. Em primeiro lugar, uma proposição como "a=a" não é nenhuma proposição elementar, porque não afirma a existência de nenhum estado de coisas133. Porquê? A resposta é dada no mesmo Tractatus: "Dizer de duas coisas que são idênticas é um sem sentido, dizer de uma só coisa que é idêntica consigo mesma é não dizer nada"134.

Se a proposição de identidade se refere a dois objectos, é incondicionalmente falsa; se se refere a um mesmo objecto, incondicionalmente verdadeira, mas espúrea. Em qualquer dos casos, não                                                                                                                 130 . Wittgenstein, L. - Tagebücher Anhang, III p. 273 - Schriften, I, Frankfurt am. Main, Suhrkamp Verlag, 1980: "Die Frage nach dem Wesen der Identität läßt sich nicht beantworten, ehe das wesen der Tautologie erklärt ist. Die Frage nach diesem aber ist die Grundlage aller Logik".   131 . Cfr. Tractatus, 4.461.   132 . Ibidem, 4.464.   133 . Cfr. ibidem, 4.21.   134 . T. 5.5303: "Von zwei Dingen zu sagen, sie seien identisch, ist ein Unsinn, und von Einem zu sagen, es sei identisch mit sich selbst, sagt gar nichts".  

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refere nenhum estado de coisas (Sachverhalt), não tem portanto nenhuma relação com o mundo real; não determina a realidade, pois lhe deixa todo o espaço lógico135. Expressões como "a=a" não são senão um caso limite das relações entre signos, nomeadamente, a sua própria dissolução, porque a esta combinação de signos não corresponde nenhuma combinação dos seus significados136. Por isso, a tautologia segue-se de todas as proposições, não diz absolutamente nada137, esconde-se dentro de todas as proposições como o seu centro insubstancial (substanzloser Mittelpunkt). Para Wittgenstein todas as proposições da lógica, e nelas se inclui a identidade do tipo "a=a" são tautologias, proposições sem sentido que nada dizem sobre o mundo138. Não constituem nem proposições elementares nem complexas, funções de verdade das elementares. Qual o estatuto de proposições do tipo "a=b"? O "estado de coisas" que esta proposição parece referir é que algo correspondente ao signo "a" é idêntico ou é o mesmo que algo correspondente ao signo "b". No entanto, Wittgenstein afirma em 5.5303: "Falando correntemente: dizer de duas coisas que são idênticas é um contrasenso"139 .

E por isso mesmo, estabelece, em 5.53 que a identidade do objecto se exprime pela identidade do signo, e não pelo signo de identidade. A diferença entre objectos exprime-se pela diferença de signos. Não é necessário escrever "f(a,b).a=b", mas é suficiente "f(a,a)" ou "f(b,b)". Nem é necessário escrever "f(a,b)¬a=b", mas basta "f(a,b)"140.

                                                                                                                135 . T. 4.462: " 'a=a' läßt jede mögliche Sachlage zu". T. 4.463: "Die Tautologie läßt der Wirklichkeit den ganzen - unendlich logischen Raum".   136 . Cfr. T. 4.66.   137 . Cfr. T. 5.142 e 5.143.   138 . T. 5.43 e 6.1.   139 . T. 5.5303: "Beiläugif gesprochen: Von zwei Dingen zu sagen, sie seien identisch, ist ein Unsinn, und von Einem zu sagen, es sei identisch mit sich selbst, sagt gar nichts".   140 . Cfr. T. 5.531.  

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Proposições do tipo "a=b", observa M. Schirn não são proposições da lógica, pois a sua verdade ou falsidade não se deixa conhecer só pela sua forma. Se "a=b" exprimisse uma identidade referente a dois objectos, seria uma contradição, visto que não há dois objectos idênticos141. Por isso "a=b" nunca poderá ser verdadeira, mas incondicionalmente falsa, correspondendo à situação expressa em 4.462 - não permite nenhum possível estado de coisas - e em 4.463 - preenche todo o espaço lógico e não deixa nenhum ponto à realidade142. O resultado deste breve exame da crítica de Wittgenstein à noção de identidade é totalmente negativo: as proposições do tipo "a=a" ou "a=b" exprimem a identidade de um objecto consigo mesmo ou entre dois objectos; o primeiro caso é uma tautologia, o segundo uma contradição, portanto sempre proposições sem sentido, de acordo com o critério do Tractatus. Não podem, por isso, considerar-se nem proposições elementares, nem funções de verdade sobre estas proposições143. Nada dizem sobre a realidade, não passam de proposições aparentes (Scheinsätze). Sendo assim, Wittgenstein propõe a simples eliminação do signo de identidade do simbolismo, já que a identidade ou não identidade de um objecto se traduz pela mera identidade ou diferença de sinais144: o signo de identidade não é um elemento essencial ao simbolismo. Pode servir apenas como regra para a utilização dos signos, e exprimirá a possibilidade de substituição de dois signos com a mesma referência:

                                                                                                                141 . Schirn, M. - ob. cit., p. 126: " 'a=b' ist insofern kein logischer Satz; andernfalls müßte sich seine Wahreit bzw. Falschheit am Symbol allein erkennen lassen, müßten alle Sätze mit derselben Form wahr bzw. falsch sein, was nicht der Fall ist. (...) Wenn 'a=b' ein zwei Gegenstände betreffender Identitätssatz ist, so ist er eine Kontradiktion".   142 . Cfr. T. 4.461.   143 . Cfr. T. 4.243.   144 . Cfr. T. 5.53, 5.532 e 5.533.  

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"Se utilizo dois signos com um só significado, exprimo isso pondo entre ambos o sinal '='. 'a=b' significa portanto que o signo 'a' pode ser substituído por 'b' "145.

Este tipo de expressões não são senão "expedientes", esclarecimentos sobre os próprios signos, mas nada afirmam sobre o seu significado146. A tese aqui defendida por Wittgenstein é a que Frege se atribui a si mesmo na Bs: as proposições de identidade são analisadas como expressões de uma meta-linguagem, com um alcance não realista, referencial, mas auto-referencial. Em "a=b" dá-se a "bifurcação de sentido" a que se referia Frege, os signos designam-se a si mesmos e não a sua referência usual. Na análise de Wittgenstein, a identidade constitui pois uma regra sobre o emprego dos signos, carecendo de qualquer alcance real, e muito menos informativo. Para afirmar a possibilidade de substituição de um signo por outro, tenho que conhecer já qual a sua referência, e ao conhecê-la, saber se dois signos determinados têm ou não o mesmo significado147. Como sabemos, Frege corrigirá esta suposta tese, recorrendo à diversidade de sentido das duas expressões ligadas pelo sinal de identidade; Wittgenstein manter-se-á na perspectiva semântica da identidade, reafirmando que os meros signos mostram essa igualdade de referência: "Frege diz que essas expressões ligadas pelo sinal de igualdade têm a mesma referência, mas diferentes sentidos. Mas o essencial na igualdade é que isso não é necessário para mostrar que as duas expressões ligadas pelo sinal de igualdade têm o mesmo significado, pois isso pode ser percebido pelas próprias expressões"148.                                                                                                                 145 . T. 4.241: "Gebrauch ich zwei Zeichen in ein und derselben Bedeutung so drücke ich dies aus, indem ich zwischen beide das Zeichen '=' setze. 'a=b' heisst also: das Zeichen 'a' ist durch das zeichen 'b' ersetzbar".   146 . Cfr. T. 4.242 e 3.317.   147 . T. 6.2322: "Die Identität der Bedeutung zweier Ausdrücke lässt sich nicht behaupten. Denn um etwas von ihrer Bedeutung behaupten zu können, muss ich ihre Bedeutung kennen: und indem ich ihre Bedeutung kenne, weiss ich, ob sie dasselbe oder verschiedenes bedeuten".   148 . T. 6.232: "Frege sagt, die beiden Ausdrücke haben dieselbe Bedeutung aber verschiedenen Sinn.

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O sinal de identidade torna-se assim duplamente espúreo, podendo sem problemas ser eliminado da simbologia. A sua eliminação é consequência da rejeição por Wittgenstein da definição de "=" proposta por Russell, que não é senão a adopção da definição leibniziana: dois objectos são idênticos se tiverem todos os seus predicados em comum149. "A definição de Russell não é suficiente - escreve Wittgenstein - porque de acordo com ela não se pode dizer que dois objectos têm todas as suas propriedades em comum. (Mesmo que esta proposição não fosse nunca verdadeira, tem no entanto sentido)"150.

Não deixa por isso de ser curioso que o próprio Russell se refira, na Introdução à edição do Tractatus de 1922 a esta mesma crítica de Wittgenstein, parecendo de acordo com ela: a rejeição de uma definição da identidade através da identidade dos indiscerníveis é atribuída ao facto de este princípio não ser de uma necessidade lógica. Se não há dois objectos idênticos em todas as suas propriedades, não é por que seja uma contradição, mas sim por uma característica acidental do mundo; não há nenhuma contradição lógica em admitir a possibilidade de dois objectos exactamente idênticos, em todas as suas propriedades151. A rejeição da identidade por Wittgenstein está também relacionada com a sua negação a falar da totalidade das coisas e a sua concepção de "objecto" como um pseudo-conceito. Também esta observação é feita por Russell na mesma Introdução. Afirmar que "x é um objecto" é não dizer                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Das Wesentliche an der Gleichung ist aber, dass sie nicht notwendig ist, um zu zeigen, dass die beiden Ausdrücke, die das Gleichheitszeichen verbindet, dieselbe Bedeutung haben, da sich dies aus den beiden Ausdrücken selbst ersehen lässt".   149 . Cfr. Principia Mathematica, Part I, Section B, § 13, p. 168.   150 . T. 5.5302: "Russells Definition von '=' genügt nicht; weil man nach ihr nicht sagen kann, dass zwei Gegenstãnde alle Eigenschaften gemeinsam haben. (Selbst wenn dieser Satz nie richtig ist, hat er doch Sinn)".   151 . Cfr. Russell, B. - Introduction to Tractatus, London, Kegan Paul, Trench, Trubner & CoLtd., 1922, p. 17; Cfr. também Grelling, K. - "Identitas indiscernibilium" in Lorenz, K. (Hrsg.) - Identität und Individuation, Band I, Stuttgart, Bad Cannstatt, 1982, p. 58: "Russell selbst hat diese Kritik in der Einleitung zu Wittgensteins Buch als eine vernichtende bezeichnet, von der es anscheinend kein Entrinnen gibt".  

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absolutamente nada. Por isso não podemos fazer afirmações como "há mais do que três objectos no mundo" ou "há um infinito número de objectos no mundo". Os objectos só podem ser mencionados em relação a uma propriedade definida. Poderemos dizer por exemplo: "há mais do que três objectos humanos" ou "há mais do que três objectos vermelhos"; nestes casos a palavra objecto pode ser substituída por uma variável na linguagem lógica, variável que satisfaz a função "x é humano" ou "x é vermelho". No caso da proposição "há mais do que três objectos", é impossível substituir a palavra "objecto" por uma variável e portanto a proposição não tem sentido152. No entanto o sinal de identidade é introduzido na notação da lógica quantificacional, que permite proposições como estas153. A crítica de Wittgenstein ao conceito de identidade, a proposta da eliminação do seu signo e a rejeição da definição de Russell traduzem uma oposição de fundo ao princípio leibniziano da identidade dos indiscerníveis. Nos Principia Mathematica, Whitehead e Russell definem a identidade, na esteira de Frege, utilizando o princípio de Leibniz: x=y.=:(φ):φ!x.⊃.φ!y Df. x e y são idênticos quando toda a função predicativa que seja satisfeita por x, for também satisfeita por y. No entanto, com base na teoria dos tipos e tendo em conta a hierarquia de funções e proposições, Russell evita os círculos viciosos decorrentes de expressões como "todas as propriedades de x" (sendo x um objecto). Para Russell uma função, cujo argumento é um indivíduo e cujo valor uma proposição de primeiro nível, é uma função de primeiro nível. Uma função cujo valor é uma função de 1º nível, ou uma proposição como variável aparente, será uma função de segundo nível, etc. Este princípio e o axioma de redutibilidade permitem legitimar a expressão "todas as propriedades predicativas de x".                                                                                                                 152 . Cfr. Fogelin, R. L. - "Wittgenstein on Identity", Synthese, 56 (1983) p. 142; cfr. T. 4.1272.   153 . Por exemplo, a proposição "há pelo menos dois objectos" é traduzida por Russell: (Ex)(Ey)(Bx&By&x≠y).  

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Para evitar os paradoxos lógicos e os círculos viciosos (como o do Mentiroso, o paradoxo de Grelling, etc.), Russell enuncia o seguinte princípio: "Tudo o que envolve todos (os membros) de uma colecção, não pode pertencer a essa colecção...Se, contanto que uma certa colecção tivesse um total, os seus membros só fossem definíveis em termos desse total, então a dita colecção não teria total"154.

Designa-o de "princípio do círculo vicioso" porque evita os que estão contidos na admissão de totalidades ilegítimas, como por exemplo "todas as proposições verdadeiras ou falsas". Estas totalidades devem ser de algum modo restringidas ou limitadas, para não dar origem às falácias conhecidas. Essa restrição deve constituir uma totalidade legítima, fazendo uma afirmação que, por sua vez, deverá estar excluída dessa totalidade. Este mesmo princípio aplica-se naturalmente às funções proposicionais: uma função só será correctamente definida se os seus valores estiverem já bem definidos. Portanto nenhuma função deverá admitir entre os seus valores nada que pressuponha a própria função155, pois teríamos um caso de círculo vicioso. A totalidade designada pela função, isto é, os seus respectivos valores, não pode conter nenhum membro que implique a função. De acordo com este princípio enunciado por Russell, os valores de uma função não podem conter termos só definíveis mediante a própria função. Dada uma função φx, os seus valores são todas as proposições da forma φx. Não pode haver nenhuma proposição desta forma, na qual x tenha um valor que implique φx; não pode dar-se um valor para φx com o argumento φx. Um símbolo como "φ(φx)" não tem sentido, pois a função φ toma-se a si mesma                                                                                                                 154 . Principia Mathematica, p. 37: "Whatever involves all of a collection must not be one of the collection" (...) "If, provided a certain collection had a total, it would have members only definable in terms of that total, then the said collection has no total".   155 . Ibidem, p. 39: "No function can have among its values anything which pressuposes the function, for, if it had, we could not regard the objects ambiguously denoted by the function as definite until the function was definite, while conversely (...) the function cannot be definite until its values are definite. This is a particular case, but perhaps the most fundamental case of the vicious-circle principle".  

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como um dos seus argumentos. O princípio aqui enunciado tem como consequência a teoria da hierarquia das funções: uma função pressupõe, como parte do seu significado a totalidade dos seus valores, ou seja, dos seus possíveis argumentos. Estes podem ser funções, proposições ou indivíduos. Suponhamos uma função que tem como argumento um indivíduo; esta função pressupõe a totalidade de indivíduos; mas, a não ser que contenha funções como variáveis aparentes, não pressupõe nenhuma totalidade de funções. Se, no entanto, contiver uma função como variável aparente, não pode definir-se até que alguma totalidade de funções tenha sido definida156. De acordo com esta hierarquia não é possível formular uma proposição com sentido sobre "todas as a-funções", nas quais a é um objecto dado. Uma expressão como "todas as funções que são verdadeiras com o argumento a" são expressões sem sentido, pois é necessário distinguir a que ordem pertence a referida função; podemos falar de "todas as propriedades predicativas de a", ou "todas as propriedades de segunda ordem de a", mas não podemos falar de todas as propriedades de a. É necessário determinar sempre o número de proposições e a ordem das funções que atribuem as referidas propriedades, e nunca considerar "todas as propriedades" como uma única proposição que, para lá de "todas as propriedades" atribui uma outra propriedade. Estes casos incorrem na falácia do círculo vicioso e podem ser exemplificados com o caso do mentiroso: "todas as afirmações de A são falsas". Esta afirmação tem que ser decomposta e analisada em várias                                                                                                                 156 . Ibidem, p. 54: "A function (...) pressupposes as part of its meaning the totality of its values, or, what comes to the same thing, the totality of its possible arguments. The arguments to a function may be functions or propositions or individuals. (...) Consider a function whose argument is an individual. This function pressuposes the totality of individuals; but unless it contains functions as apparent variables, it does not pressupose any totality of functions. If, however, it does contain a function as apparent variable, then it cannot be defined until some totality of functions has been defined. It follows that we must first define the totality of those functions that have individuals as arguments and contain no functions as apparent variables. These are the predicative functions of individuals. Generally, a predicative function of a variable argument is one which involves no totality except that of possible values of the argument, and those that are presupposed by any one of the possible arguments".  

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afirmações que se referem a si mesmas em diferentes ordens, atribuindo a cada uma o seu valor de verdade ou falsidade. É para legitimar todos os raciocínios ou inferências que envolvam noções como "todas as propriedades de a" ou "todas as funções-de-a" que Russell e Whitehead formulam o axioma da redutibilidade: "O axioma da redutibilidade é a suposição que, dada qualquer função φx, há uma função predicativa formalmente equivalente, isto é há uma função que é verdadeira quando φx for verdadeira e falsa quando φx for falsa"157.

Russell aplica o axioma à definição leibniziana de identidade dos indiscerníveis: se x e y são idênticos e φx é verdadeiro, φy é também verdadeiro. Esta afirmação é verdadeira para qualquer função. Mas a conversa já não o é: se para todos os valores de φ, φx implica φy, x e y são idênticos. Neste caso a expressão "todos os valores de φ" é inadmissível, pois requer a determinação de uma ordem de funções às quais nos queremos referir: φ deve restringir-se a predicados, ou funções de segunda ou de qualquer outra ordem. Russell conclui daqui uma hierarquia de diferentes graus de identidade, correspondente aos diferentes graus de funções. Poderemos falar de "todos os predicados de x pertencem a y", ou "todas as propriedades de 2ª ordem de x pertencem a y", etc. É evidente que cada uma destas afirmações implica a anterior, na ordem descendente: se todos os predicados de 2ª ordem de x pertencem a y, também todos os predicados de x pertencerão a y, porque ter todos os predicados de x é uma propriedade de 2ª ordem pertencente a x. Mas, inversamente, não podemos deduzir que se todos os predicados de x pertencem a y, também pertencerão todas as propriedades de 2ª, 3ª, nª ordem. Portanto não é legítimo - sem o auxílio do axioma - inferir a identidade de dois objectos da identidade dos seus predicados. Daí a crítica de Russell à noção de "indiscerníveis" de Leibniz, que não pode, como se torna patente, referir-se a dois objectos que coincidem em todas as propriedades, pois uma dessas propriedades de x é ser idêntico a x e portanto esta deveria também pertencer a y. É necessário                                                                                                                 157 . Ibidem, p. 56: The axiom of reducibility is the assumption that, given any function φx, there is a formally equivalent predicative function, i. e. there is a predicative function which is true when φx is true and false when φx is false".  

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estabelecer alguma limitação das propriedades necessárias para que duas coisas sejam indiscerníveis. A identidade dos indiscerníveis afirma que se x e y coincidem em todas as propriedades, são idênticos. Com a aplicação do axioma da redutibilidade, todas as propriedades pertencem à mesma colecção de objectos que é definida pelo predicado. Portanto há algum predicado comum e peculiar dos objectos que são idênticos a x. Este predicado pertence a x, visto que lhe é idêntico; logo pertence a y, visto que y tem todos os predicados de x. Sem o recurso ao axioma da redutibilidade, Russell considera indefinível a noção de identidade, podendo mesmo admitir a possibilidade de dois objectos, apesar de coincidirem em todos os seus predicados, não serem idênticos158. Não me parece, no entanto, que esta afirmação de Russell signifique uma objecção ou uma restrição ao princípio da identidade dos indiscerníveis e à definição leibniziana de identidade, que está na base da de Russell. Com o axioma da redutibilidade e a implícita teoria dos tipos, Russell está simplesmente a complementar a definição e o princípio de Leibniz, defendendo-os das críticas baseadas nos paradoxos lógicos ou no conceito de objecto como "totalidade de predicados", como é o caso da crítica de Wittgenstein ao próprio Russell. O princípio é válido e a definição adequada, tendo em conta o axioma da redutibilidade e a hierarquia das funções. A teoria de Russell constitui portanto o complemento necessário para a compreensão do princípio leibniziano e para a aplicação lógica da sua definição de identidade. Poderia até considerar-se uma "defesa" da definição em face da crítica de Wittgenstein. Mas se é assim, porque refere Russell, na Introdução ao Tractatus esta crítica de Wittgenstein como uma objecção válida, sem apresentar, aparentemente nenhum contra-argumento? Russell neste texto refere-se ao facto de a identidade dos indiscerníveis não ser um princípio logicamente necessário: poderia haver, sem contradição lógica, dois objectos com todas                                                                                                                 158 . Cfr. ibidem, pp. 57-58: "... apart from the axiom of reducibility, or some axiom equivalent in this connection, we should be compelled to regard identity as indefinable, and to admit (what seems impossible) that two objects may agree in all their predicates without being identical".  

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as propriedades em comum. É a esta crítica que Russell não opõe qualquer resistência, aceitando-a como razoável. O que está em causa aqui não é o carácter paradoxal da expressão "todas as propriedades de x" - que Russell, como vimos corrige, de modo a evitar situações paradoxais - mas sim o estatuto estritamente lógico da identidade dos indiscerníveis. A referida crítica do Tractatus ("Nunca podemos dizer que dois objectos têm todas as propriedades em comum") afirmaria portanto, implicitamente a possibilidade lógica de dois objectos existentes com todas as propriedades em comum, possibilidade que na definição de Russell se exclui. O simples facto de se poder considerar essa possibilidade de dois objectos indiscerníveis exclui o princípio do domínio lógico. É talvez perante este carácter ambiguamente lógico-necessário da identidade dos indiscerníveis que Russell aceita a crítica aniquiladora (vernichtende) de Wittgenstein sem apresentar nenhum contra-argumento. Na própria análise que faz deste princípio na obra dedicada à filosofia de Leibniz, Russell traduz a ambiguidade do estatuto modal da identidade dos indiscerníveis159. É a dificuldade em reconhecer o princípio como logicamente necessário que põe em dúvida a sua pertença ao domínio estrito da lógica e permite por isso rejeitar a definição da identidade com base na identidade dos indiscerníveis e a consequente eliminação do signo da simbologia. Ao propor esta eliminação, (porque a=a é sempre tautológico e a=b sempre falso, contraditório), Wittgenstein admite implicitamente que não há dois objectos idênticos (dizer de dois objectos que são idênticos é sempre falso). O que Wittgenstein, no entanto, não admite é que da confirmação (empírica) desta proposição com sentido, uma vez que exprime um estado de coisas (Sachverhalt), se possa inferir a definição adoptada por Russell. A identidade não pode ser senão a relação de um objecto consigo mesmo, relação cuja expressão, para Wittgenstein, "não diz nada"; "não diz nada" porque se mostra, se exibe na própria linguagem, sem necessidade de ser tematizada através de uma definição expressa que introduz um sinal duplamente espúreo: um sinal que pretende transferir para o domínio da linguagem verbal algo que constitui o próprio limite, a própria configuração da linguagem mesma160.                                                                                                                 159 . Russell, B. - The Philosophy of Leibniz, n. 24.   160. Cfr. T. 6.123.  

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De qualquer modo, a atitude de Wittgenstein em relação à noção (não ao signo) da identidade, não deixa muito clara a sua posição perante o princípio de Leibniz. Só fica patente que não o adopta como princípio lógico, como ponto de partida para a definição da identidade, porque não lhe reconhece o carácter de necessidade que devem ter as proposições da lógica. No entanto, a sua concepção do mundo reflecte bem a inspiração monadológica e a indiscernibilidade dos idênticos revela-se como princípio regulador na constituição dos objectos. O estatuto das proposições de identidade levanta várias questões, sumariadas por Frege no início de SuB: são necessárias ou contingentes? Analíticas, não passam de meras tautologias, ou sintéticas, com um autêntico valor cognitivo? Dizem respeito a objectos, a conceitos, ou são proposições metalinguísticas que versam sobre os próprios signos? Para responder a todas estas questões, e sobretudo justificar o valor epistémico da identidade, Frege introduz a noção de sentido, como terceira instância, mediadora entre os objectos e os signos que os designam. A identidade, como relação entre sentidos - nunca entre objectos, nem entre signos - situa-se assim num domínio objectivo, real, o do sentido, do pensamento. No entanto, na teoria fregeana do sentido encontramo-nos perante uma tensão irresolúvel: ou o sentido, para garantir a objectividade e valor informativo das proposições de identidade se apresenta tão descomprometido, tão desvinculado do sujeito, que as aporias da identidade como relação entre objectos, ou de um objecto consigo mesmo ressurgirão neste terceiro mundo dos pensamentos; ou, para explicar o processo de identificação e reidentificação do mesmo objecto, se aproxima tanto dos modos de apreensão cognitivos de cada sujeito, que arrisca a objectividade e universalidade, sugerindo uma leitura totalmente subjectiva e relativista da teoria do sentido; deste modo inviabiliza a justificação da validade das proposições de identidade ("a=b"). As duas alternativas deixarão, portanto, em aberto algumas das questões suscitadas pelas proposições de identidade. Mas se a noção de sentido é problemática, elaborar uma semântica dos nomes próprios eliminando o sentido, origina dificuldades ainda maiores na explicação da identidade. Embora a lógica de Kripke e a sua noção de designador rígido, corresponda e traduza a apreensão intuitiva da ideia de

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indivíduo na sua identidade e unicidade, e sugira por isso alguns pressupostos ontológicos como o do "essencialismo", identidade individual, a teoria da referência dos nomes próprios, destituída do sentido, remete de novo a identidade, ou para uma relação entre signos, ou para uma relação de mesmidade de um só objecto. As consequências paradoxais desta posição, são inferidas por Wittgenstein no Tractatus, que propõe simplesmente a eliminação do signo de identidade, desnecessário numa concepção refigurativa, ou pictórica da linguagem. Na teoria de Wittgenstein é o próprio nome, prescindindo da mediação de sentido, que re-presenta directamente, a sua referência, é o próprio signo, pela força e imediatez da sua relação referencial, que tem a função de mostrar a identidade do objecto que refere. Latente nas várias teorias semânticas alternativas para os nomes próprios, está a rejeição de considerar a identidade como relação entre objectos, uma vez que admitir essa hipótese seria contradizer o princípio leibniziano da identidade dos indiscerníveis: não há dois objectos idênticos. Apesar da divergência dos caminhos percorridos - de Frege a Wittgenstein - a noção da identidade é, em última análise, sempre considerada como uma relação de um objecto consigo mesmo. O princípio da identidade dos indiscerníveis está pressuposto em todas as análises das proposições da identidade examinadas até aqui, incluindo a lógica dos nomes próprios de Kripke. Os termos em que os problemas da identidade são formulados pressupõem a identidade dos indiscerníveis, pelo menos na sua consequência negativa: não há dois objectos idênticos, portanto a identidade não pode ser senão a relação de um objecto consigo mesmo.

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Recapitulando: Para justificar o estatuto das proposições de identidade, várias teorias têm tentado responder a uma série de perguntas cruciais: 1. As proposições de identidade são necessárias ou contingentes? 2. Analíticas ou sintéticas? 3. Possuem um autêntico valor cognitivo, ou não passam de meras tautologias? 4. Dizem respeito a objectos? A conceitos? 5. São proposições metalinguísticas que versam sobre os próprios signos que nelas ocorrem? 6. Pode definir-se a identidade e, no caso afirmativo, qual a definição mais adequada? As cinco primeiras questões são formuladas por Frege nas primeiras linhas de SuB, ensaio no qual tenta justificar o valor cognitivo de algumas proposições de identidade; a sua noção de sentido aponta para uma abordagem mais epistémica do que lógica do problema; de facto, o que Frege se propõe demonstrar é o carácter contingente, sintético das afirmações de identidade, rejeitando tanto uma explicação semântica centrada nas relações de sinonímia, que submeteria toda a identidade à arbitrariedade dos signos, como uma justificação assente exclusivamente na analiticidade destas proposições, que anularia a operacionalidade epistémica da identidade. O recurso à noção de sentido como terceira instância para justificar a relação entre dois signos diferentes, tendo por referente o mesmo objecto, proporciona à identidade um domínio objectivo real, o do sentido, o do pensamento, mas depende fundamentalmente do estatuto desta mesma noção. Na teoria fregeana do sentido encontramo-nos de facto perante uma tensão irresolúvel: 1. ou o sentido se reveste de uma carga e significado objectivo explicando assim o valor informativo de afirmação de uma identidade, mas apresenta-se tão descomprometido, tão desvinculado do sujeito, que as aporias da identidade como relação entre objectos, ou de um objecto consigo mesmo, ressurgirão neste terceiro mundo dos pensamentos;

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2. ou se aproxima do processo cognitivo, pelo qual se identifica e re-identifica o mesmo objecto, justificando assim o seu valor epistémico, mas arriscando uma assimilação do sentido com os actos de apreensão, de re-conhecimento pelo sujeito, e põe em causa a sua objectividade com a sugestão de uma leitura totalmente subjectiva e relativista da teoria do sentido; deste modo inviabiliza a justificação da validade das proposições de identidade ("a=b"). Em ambos os casos permanecerão em aberto algumas das questões suscitadas pelas proposições de identidade. Como alternativa extrema à teoria de Frege sobre o sentido como meio para justificar a validade das proposições de identidade, Wittgenstein propõe a eliminação do signo, por impossibilidade de explicar o sentido, quer de identidades entre o mesmo signo, que seriam meras tautologias, quer entre signos diferentes, que seriam sempre falsas. A identidade e a diferença não necessitam de um signo porque se mostram simplesmente na repetição do mesmo signo, ou no emprego de signos diferentes. Isto não significa que Wittgenstein tenha abolido a noção de identidade, mas apenas que não se pode afirmar a identidade de significado entre duas expressões, uma vez que, para poder afirmar algo sobre o seu significado, teria que conhecer esse significado; e ao conhecer o significado, sei se este é o mesmo ou diferente161. Sendo tautologias, todas as proposições da lógica têm, no entanto, uma função na economia do sistema de Wittgenstein, que é a de determinar o puramente formal, constituindo assim os limites, a armação que sustenta toda a linguagem com sentido. A noção da identidade, como condição de sentido, está presente na linguagem do Tractatus. Mas como condição e limite último da própria linguagem, está fora da zona do dizível. A identidade do objecto consigo mesmo - porque não se pode tratar de outra relação - patenteia-se na própria comparência reiterada do mesmo objecto mediante a ocorrência do mesmo signo. A teoria da referência dos nomes de Wittgenstein, que prescinde da mediação do sentido apresentando o nome como uma seta que aponta directamente para a sua referência, atribui ao                                                                                                                 161. Cfr. T. 6.2322.

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próprio signo, pela força e imediatez da sua relação referrencial, a função de re-presentar, de exibir a identidade na sua própria ocorrência.  

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