F[r]icção Doméstica - sobre \"Projeto para ocupação de uma casa\", de João Loureiro

June 8, 2017 | Autor: Guy Amado | Categoria: Escultura Contemporanea, Instalação, Arte Contemporânea Brasileira
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F[R]ICÇÃO

DOMÉSTICA

Durante cerca de um ano, entre 2004 e 2005, um sobrado desocupado em um bairro de classe média na cidade de São Paulo converteu-se em objeto de singular experimento artístico. O imóvel localizado ao nº 1396 da Rua Aimberê abrigou o Projeto para ocupação de uma casa, em que João Loureiro propunha povoar a habitação esvaziada com peças escultóricas-objetuais concebidas especialmente para este fim1. Adotando para tal uma abordagem procedimental

que

equacionava

seu

habitual

repertório

formal

com

as

expectativas ou demandas por certa funcionalidade – como as que o mobiliário de ambiente doméstico supõe – e ainda movido por uma pulsão ficcional em escala até então provavelmente inédita em seu percurso, o artista acaba por ocupar todos os recantos da casa com peças de sua lavra. Assim, desde a sala de estar e cozinha, no piso térreo, passando pela escada até os cômodos do pavimento superior – um deles deliberadamente interdito –, incluindo uma improvável biblioteca, todas as dependências da edificação foram tomadas por objetos especificamente projetados para esta empreitada: sofá, mesa, cadeira, cama, lustre, poltrona, tapete, e por aí vai. Uma vez concluída, a instalação permaneceu aberta a visitação pública por um período de dois meses, antes que fosse desmontada pelo artista. Não seria a primeira vez que o universo doméstico emergia como foco de atenção na obra de Loureiro; longe disso. Pode-se mesmo dizer que sua produção escultórica sempre manteve uma relação próxima com elementos de algum modo àquele associados, como se pode verificar em trabalhos ainda "de formação" como Três pufes (1995), Duas cadeiras (1995) ou, logo mais à frente, Colchão (1999), auto-indicativos deste pendor já nos títulos. Esse interesse ganhará contornos mais marcados poucos anos antes do Projeto

1

Este projeto de Loureiro transcorreu sob os auspícios da extinta Bolsa Vitae, tendo sido

desenvolvido em sua totalidade no decorrer de três anos, de 2003 a 2005.

para ocupação... aqui comentado; é quando despontam em seus trabalhos referências mais explícitas à noção de casa e à arquitetura, agora assumidos como vetores temáticos. Vide, dentre outras, a peça Vila Normanda (2004) e as séries Repertório de arquitetura moderna brasileira (2003) e Casas-sistema (2005), obras que conjugavam um sintético exercício de estilização formal e um elegante comentário paródico a certos postulados canônicos da plataforma modernista.

Vistas de Projeto para Ocupação de Uma Casa. Esq: Sala de estar. Dir.: Carpete verde levando ao quarto trancado no pavimento superior.

Em

geral,

os

trabalhos

criados

por

Loureiro



objetos

imaginados

ou

"reinterpretados" – são dotados de determinada característica conceitual que, indissociada

do

pensamento

plástico,

tende

a

repelir

ou

subverter

as

expectativas que uma lógica pautada na correspondência mimética [despertada por suas criações] ou na noção de funcionalidade poderá sugerir; quase sempre há um elemento desestabilizador em cena, que ora pode refrear o apelo estético das obras, ora conferir certa ambiguidade às peças. Tal característica, menos que um efeito buscado, é inerente às estratégias e aos procedimentos caros à lógica interna que orienta a práxis do artista, na qual

a utilização criteriosa de materiais – e que não exclui a experimentação – desponta como um fator-chave. Mas o ponto que interessa aqui destacar é o modo como o dito referencial doméstico se manifesta em Projeto para ocupação de uma casa. O que à primeira vista poderia ser encarado apenas como uma experiência alargada da prática escultórica de Loureiro – uma espécie de "exercício de campo" em que os trabalhos são desenvolvidos em resposta a um determinado local, um tanto em regime de site-specificity – revela uma outra camada movendo o projeto como um todo: o interesse pela já referida dimensão ficcional que a proposta acabou por impulsionar. Tratava-se de um dado novo na obra do artista, ao menos na medida em que ali se constatava: a partir da premissa de se habitar uma casa vazia com objetos para ali pensados, põe-se em curso uma empreitada onde, em par com o característico rigor formal e conceitual que perpassa a produção de João, sobressai um forte componente fantástico.

Vistas de Projeto para Ocupação de Uma Casa (piso superior). Esq: Quarto trancado / corredor. Dir.: o "Quarto do tronco".

As obras que tomaram o sobrado à rua Aimberê apresentam um dado dissonante em relação a trabalhos anteriores do artista. Na Casa aqui comentada este descompasso não se verifica de imediato na fisionomia e características formais das peças, em princípio mantendo-se próximas ao vocabulário usual do artista. A um olhar mais atento, contudo, percebe-se a referida pulsão ficcional ou apelo ao fantástico manifestando-se sobretudo a partir de dois aspectos, que se imiscuem e se sobrepõem. Primeiro,

no

modo

como

diversas

destas

esculturas-de-mobiliário

[e

de

acessórios domésticos] relacionam-se com o espaço da casa, ocupando-o organicamente, esparramando-se como que a querer afirmar fisicamente sua condição de pertencimento – ou as de um hipotético usuário? – àquele lugar por meio de uma morfologia híbrida, a meio caminho entre a suposta funcionalidade e o que se intui como potência narrativa. É o caso da sala de estar, onde surgem integrados em uma única estrutura de ferro um sofá, poltronas, lustre e um gradil para o anexo "jardim de inverno", composto por um tapete de lã. Ou da cozinha, onde a pequena mesa circular tem uma cadeira (com rodízios) a ela atrelada pelo mesmo material – ferro – que a constitui. E, de modo mais evidente, no carpete verde que sobe as escadas e aos poucos ganha ares de conformação vegetal em suave deterioração, até desaparecer algo enigmaticamente por baixo da porta de um quarto ao qual não se tem acesso. Uma vez lá em cima, verifica-se esta, digamos, pulsão orgânica sobretudo nos detalhes: nos "fungos" na colcha do "quarto dos troncos", na discreta torção do lustre, nas estantes personalíssimas da improvável – mas fortemente emblemática da natureza do projeto e, por que não, da Natureza no projeto – biblioteca, no sabonete esculpido no banheiro. A formalização peculiar desenvolvida por Loureiro parece reiterar a todo tempo a presença ubíqua de um "elemento natural" permeando a ocupação como um todo; que por outro lado se assume sempre como falseado, ressaltando a inadequação na relação entre material, sua dita [ou suposta] "funcionalidade" e a citada pulsão narrativa.

Vistas de Projeto para Ocupação de Uma Casa (piso superior). Esq: Biblioteca (com "Quarto do tronco" ao fundo). Dir.: detalhe de peça que abriga a coleção Júlio Verne

E depois, pela presença de certa qualidade de insólito, por vezes com nuances surrealistas, que percebe-se francamente direcionada para a intenção de se evocar a imagem de um possível morador ou habitante da casa por trás daqueles "móveis"; o forte – e peculiar – personalismo a exalar destas peças sugere tal presença, ou antes sua ausência, em toda parte. Este intento atinge provavelmente seu ponto máximo na já citada biblioteca (dependência que de resto não se espera encontrar em uma morada daquele perfil, fato que por sua vez já sinaliza outra razão para sua existência naquele contexto). Ali, naquelas enxutas e intrigantes estantes de livros, tem-se os indícios – ou pistas – que fornecem uma chave de leitura nesta direção: enquanto em uma prateleira estão dispostos parcos volumes científicos sobre botânica, zoologia e mineralogia – sob o título Estante de natureza –, um outro móvel abriga, sob medida, uma coleção quase completa da obra de Júlio Verne. E talvez de modo ainda mais revelador, outra estante (designada como "RC x SF", as iniciais

dos

sugestivos:

livros que o

contém)

intemporal

traz apenas dois

Robinson

Crusoe

de

títulos,

Dafoe

e

mas o

bastante já

nosso

contemporâneo Sexta feira ou os limbos do pacífico de Michel Tournier, espécie de releitura paródica ou parábola do primeiro em tons de crítica ao

dito modelo civilizacional do homem ocidental. Trata-se, como sabido, de autores e/ou obras notórios pela tônica no imaginário de aventuras marítimas, relatos de náufragos, etc. Não por acaso, dentre tantas imagens convocadas por esse repertório, desponta a do homem se havendo com a natureza. Ficção e ciência convivem, portanto, e dão o tom a esta ocupação objetual; mas fica claro que a referência a este seleto conjunto literário não se dá por acaso, afirmando-se como veículo catalizador do projeto e indicando a real vocação do mesmo.

Vistas de Projeto para Ocupação de Uma Casa (piso superior). Esq: detalhe da Biblioteca, estante "RC x SF". Dir.: detalhe do banheiro – sabonete esculpido.

E

é

neste

interstício

entre

realidade

e ficção,

em

uma

atmosfera

de

domesticidade cifrada e ambivalente, que se instala um sentimento de que há um descompasso problemático neste projeto. Buscando conferir corporeidade a uma personagem que ganha contornos apenas pela aproximação hipotética a partir dos indiciais escultóricos, a proposta de Loureiro parece ficar a meio caminho entre a acentuada vocação narrativa e a concretude irregular das peças que

a

veicula.

Naturalmente que o

problema

não

estaria

nesta

"insuficiência" em si, a de [não] se materializar literalmente uma personagem; certamente não é esse o ponto. O deslize estaria antes na convivência por

vezes áspera, ou desigual, das demandas do componente fantástico e dos móveis-esculturas concebidos para impulsionar o mesmo. Neste projeto é o espaço a determinar um procedimento plástico, pelo artista, que se reflete em uma formalização singular, voltada para a ativação da experiência do lugar nos termos já referidos. Se a premissa de "responder ao lugar" não chega a ser inédita no percurso do artista2, a escala desta empreitada o é, bem como a tipologia do local a abrigar as obras [uma casa]. E neste processo, parece estabelecer-se uma dinâmica conflituosa entre o desejo de aderência formal [pelas peças] à grade narrativa que perpassa a proposta e o rigor conceitual que caracteriza a produção de Loureiro.

Em outras palavras, a impressão que

fica é a de que fatores intrínsecos à práxis do artista e sua lógica interna [inteligência

plástica,

parâmetros

conceituais],

que

termina,

como



argutamente apontado, por "[...] gerar trabalhos em certo sentido opacos,

quase como se se tratasse de entidades independentes, seguindo uma regra própria, tributária das qualidades e prescrições dos materiais de que são feitos"3, curiosamente tenha se constituído em um empecilho neste Projeto para ocupação..., com suas premissas quase "temáticas" evocativas de certa domesticidade fantástica.

2

Dentre outros, há um trabalho anterior de Loureiro que logra articular a contento os mesmos motes do ficcional, universo doméstico e as expectativas por certa pseudofuncionalidade que suas peças despertam. Passagem secreta (2003) consistia em um móvel-objeto desenvolvido para uma situação expositiva: um par de armários aparentemente integrados ao ambiente onde estavam dispostos, sendo que um deles facultava o acesso a um espaço além de sua estrutura, um "compartimento secreto" – na verdade uma diminuta sala onde supostamente estaria a obra do artista. No contexto institucional onde estava disposta – Centro Universitário Maria Antonia – , a peça promovia um momento de inesperado encantamento, instalando de modo sutil mas efetivo uma brecha para a ficção. Ver Carlos Eduardo Riccioppo, João Loureiro – A regra absurda. Janeiro de 2011. Texto disponível em http://files.cargocollective.com/539897/A-Regra-Absurda-cAdu-Riccioppo-final.pdf 3

Para além de resultados desiguais na ocupação dos cômodos, há uma outra peculiaridade a ser ressaltada: o registro contido em demasia – e certamente deliberado – de elementos que ativem uma dimensão afetiva, que instaurem o sentido de intimidade que faz com que determinado local passe a ser percebido como espaço doméstico, como casa enquanto lar. Que definam, enfim, o ato de habitar. Isto pode se dever à opção de um entendimento da casa como "abrigo primordial" do homem, como refere Bachelard4, onde este sonha e pode desfrutar a solidão, alinhando-se nesse sentido com a tradição da condição de náufrago que é indicada nos "Robinsons" na biblioteca. O filósofo afirmava ainda que a essência da ideia de casa estava atrelada à presença do homem no espaço. Ela só existiria enquanto espaço efetivo quando habitada; sem a presença do sujeito, a casa se limitaria a ser mero espaço vazio geometricamente circunscrito. De certa forma o que João Loureiro propõe em seu Projeto para... é o oposto: ao invés da afirmação da casa pelo sujeito-habitante, é este a ser constituído – ou invocado – a partir da casa e de seu conteúdo.5 Pesados os fatores em jogo, fica a impressão de que este estudo plástico de uma quase "psicotopografia do ambiente doméstico" promovido por Loureiro, atravessado pela imagem de simbiose entre mobiliário e indivíduo e mediada pela ficção literária, soçobra perante a mesma carga de ficção que o impele. Um pouco como de certa forma também ocorre com este texto.

Guy Amado Dez. 2015 4

5

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.25

A esse propósito, caberia aqui um paralelo um tanto irresponsável com o conhecido mote da "escultura como lugar" ("sculpture as place") de Carl Andre. Abstraindo a óbvia distância estilística e formal entre ambas as produções, detecta-se uma afinidade por contrapontos: o escultor norte-americano tinha como modus operandi uma abordagem [também] orientada pela "resposta ao lugar", mas movido pela tentativa de esvaziar o elemento humano enquanto princípio organizador para a produção artística. Já nesta proposição de Loureiro o lugar é todo reconfigurado de modo a fazer evocar a presença (humana?) por meio de sua enigmática objetificação em registro antropomórfico – algo frontalmente antitético em relação aos preceitos minimalistas.

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