From Brazil, with no love - O tráfico de travestis para fins de exploração sexual e as lacunas da Convenção de Palermo e de seu Protocolo Adicional

July 5, 2017 | Autor: Helinho Junior | Categoria: Transexuais, Convenção de Palermo, Tráfico de pessoas
Share Embed


Descrição do Produto

FROM BRAZIL, WITH NO LOVE1 O tráfico de travestis para fins de exploração sexual e as lacunas da Convenção de Palermo e de seu Protocolo Adicional

por Helio Mello Vianna Junior (UFRJ/Brasil) Expulsas de casa, sem acesso ao mercado de trabalho, renegadas pela família e às margens da sociedade. Esse é o quadro que melhor ilustra a situação da grande maioria das transexuais femininas no Brasil. Como se não bastasse o custo de vida usual, é caro ser travesti. Silicone no busto, no quadril, nas nádegas, nos lábios, redução de mandíbula, depilação a laser e implante capilar não custam pouco e, alguns destes procedimentos apenas, só são garantidos pelo SUS2 em casos de cirurgias de transgenização – levando status de cirurgias plásticas reparadoras. O fato de a grande maioria, como já foi dito, estar fora do mercado de trabalho implica um baixo poder aquisitivo. Isto é, a maioria dos transexuais não dispõe de verba para adequar o corpo à psiquê. Como a carência por estatísticas referentes a transexuais é grande, pode-se apenas estimar que, uma vez que a identidade de gênero é formada já na infância, quase todas as pessoas nesta situação começam sua “metamorfose” precocemente e passam a enfrentar os problemas sociais supracitados já na adolescência. Daí surge o problema da evasão escolar. Infelizmente, o bullying é um aspecto cultural da infância (e como a cultura é mutável, isso deve ser mudado) e, no Brasil, país cuja laicidade constitui-se apenas no papel, outros fatores tradicionais levam o/a transexual a sofrer discriminação já na fase escolar, fato que irá ser responsável pela baixa formação e pela consequente exclusão profissional. Obviamente essa exclusão não tem origem apenas na baixa qualificação educacional, pois ela é fundamentalmente alimentada pelo preconceito do próprio mercado de trabalho, cujos padrões morais rigoristas estão fundados na heteronormatividade.

1

Alusão à obra literária de Ian Fleming From Russia, with Love, lançada no Brasil sob o título “Moscou contra 007”, à qual se seguiu uma adaptação cinematográfica e a canção-tema do filme, composta por Lionel Bart e gravada por Matt Monro. 2 O Sistema Único de Saúde - SUS - foi criado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelas Leis n.º 8080/90 e nº 8.142/90, Leis Orgânicas da Saúde, com a finalidade de alterar a situação de desigualdade na assistência à Saúde da população, tornando obrigatório o atendimento público a qualquer cidadão, sendo proibidas cobranças de dinheiro sob qualquer pretexto.

Com poucas alternativas restantes, são facilmente aliciadas para a exploração sexual local. A promessa de dinheiro “rápido e fácil” é, de fato, muito atrativa para quem possui poucas perspectivas. Como no caso do objeto desta pesquisa os dados estatísticos são quase inexistentes, as opiniões aqui expressas possuem base empírica – sobretudo devido a conversas, entrevistas e consultas informais com transexuais residentes na região da Baixada Fluminense – e isso me permite afirmar que, das mais de 50 transexuais com quem tive uma conversa ou entrevista filmada sobre o tema, pelo menos 40 afirmaram que já se prostituíam antes de completar a maioridade. E esse tipo de “serviço” inicialmente é oferecido por terceiros, isto é, através da prática de cafetinagem alguém intermedia a relação contratual informal entre a profissional do sexo e o cliente, passando a explorar essa profissional. O avanço da idade – seja para transexuais, seja para homens e mulheres de qualquer orientação sexual – é um problema neste nicho de mercado, cujo cliente costuma ser criterioso quanto à aparência. Isso faz com que muitas pessoas nesta situação se exponham a riscos desnecessários para atingir sua meta de lucro (quantia necessária para poder ter onde morar e como se vestir e se alimentar bem). É, portanto, visando ao maior lucro que criou-se, culturalmente entre a população trans, o mito da prostituição na Europa como um sonho de consumo. Uma vez que, também culturalmente, os espanhóis, franceses e italianos são mais abertos a este tipo de profissional – e, inclusive, bons pagantes, segundo as travestis consultadas – as tentativas de emigração para a Europa tomam início. Cabe lembrar que, enquanto “sonham em rodar bolsinha” na Bois de Boulogne ou na Via Áppia3 (o que, creio de fato, não ser o sonho de ninguém), estão sendo exploradas por um agente local. Geralmente é este aliciador quem oferece o “pacote de viagens” a suas empregadas. E a negociação acontece da seguinte maneira: a travesti costuma trabalhar em carga horária dobrada, sem remuneração extra, durante um número mínimo de semanas ou meses (a combinar) para conseguir seu passaporte; a passagem é custeada pelo agente receptor (a pessoa estrangeira que será a próxima a explorar seu trabalho sexual), a quem a travesti deverá ressarcir o pagamento da passagem mediante trabalho sexual com clientes do receptor. Há casos em que nem essas orientações são oferecidas e as travestis são enganadas com promessas de empregos como dançarinas em casas noturnas, configurando até mesmo um “tráfico interregional” de pessoas, como

3

Áreas tradicionalmente conhecidas como pontos de prostituição, na França e na Itália, respectivamente.

aconteceu com 80 travestis – muitas menores de 18 anos – em um caso que foi veiculado pela imprensa brasileira.4 O trabalho sexual no exterior é, portanto, não-remunerado a fim de saldar uma dívida com o/a agenciador/a estrangeiro/a. Dívida essa que, em vez de terminar, só aumenta, já que diariamente vão sendo embutidas as despesas de acomodação, alimentação e gastos com vestuário e higiene pessoal. Ou seja, mesmo as travestis que embarcam cientes de que serão “traficadas” não se dão conta (até chegar lá) de que a relação de trabalho será escravista. Há na União Europeia cerca de 3.600 grupos criminosos, dos quais aproximadamente 40% funcionam em uma estrutura “em rede”. A maior parte desses grupos não se especializa em apenas um crime, mas atuam como grupos “policriminosos”. Por exemplo, o mesmo grupo que trafica pessoas também vende órgãos humanos, trafica animais e drogas e lava dinheiro. E o funcionamento em rede também implica na troca de “mercadorias” entre eles, como no caso da prostituição, em que há um revezamento dos escravos sexuais a fim de gerar entrada de “novidades” para os clientes dos bordéis. Tais informações são dadas pelo relatório SOCTA5, do Europol (Serviço Europeu de Polícia), que, junto à Interpol (Organização Internacional de Polícia Criminal) representam as instituições que combatem com mais eficácia o tráfico de pessoas e o crime organizado em geral. No Brasil, o tráfico de pessoas continua marcado pela alta migração de brasileiros de baixa renda, vulneráveis ao aliciamento e desinformados sobre seus direitos. Embora o “tráfico de pessoas” não seja reconhecido como crime no direito interno (já que o termo inexiste em nosso Código Penal e os casos de emigração compulsória sejam qualificados como “sequestro”), o Brasil é signatário da Convenção de Palermo (a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional) e de seu Protocolo Adicional, relativo à “Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças”. Infelizmente, o texto ipsis litteris da Convenção de Palermo em momento algum contempla o grupo “transexuais” como pessoas que requerem proteção contra esta prática. O preconceito quanto à orientação sexual e, mais ainda, quanto à identidade de gênero faz com que autoridades menosprezem a condição vulnerável deste grupo, de forma irresponsável e negligente.

4

Reportagem do Jornal Nacional (TV Globo) exibida em 03 de fevereiro de 2011, disponível em: http://g1.globo.com/videos/jornal-nacional/t/edicoes/v/policia-descobre-rede-de-prostituicao-masculina-em-saopaulo/1426895/ 5 Europol SOCTA 2013 – European Police Office about Serious and Organised Crime Threat Assessment (SOCTA)

Navi Pillay, Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, alerta em um vídeo6 produzido pelas Nações Unidas para o aumento de crimes de ódio tendo gays, lésbicas e transexuais como vítimas, especialmente no Brasil. O GGB – Grupo Gay da Bahia é um dos poucos no Brasil a levantar dados sobre agressões e assassinatos de pessoas LGBT. O GGB divulgou que, em 2010, ocorreram 260 assassinatos7, referentes a 140 gays, 110 travestis e 10 lésbicas. Este número é muito inferior à realidade, uma vez que nem todo homossexual é declarado e quem faz o boletim de ocorrência é um parente que, muitas vezes, prefere ocultar a sexualidade da vítima, o que reduz essas estatísticas. Mesmo com este número, 110 travestis mortos em 1 ano, equivale a, aproximadamente, 1 assassinato a cada 3 dias. Entre 12 e 19 de abril de 2010 a ONU realizou um workshop no 12º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal. Na ocasião, o encontro ressaltou a urgência de aprovação de uma lei que criminalize a homofobia (e fobias derivadas, como a “lesbofobia” e a “transfobia”). Entretanto, no Legislativo brasileiro prevalece um conservadorismo que viola direitos humanos pelo simples fato de não reconhecer a diferença que requer igualdade e se recusa a respeitar o princípio da isonomia da Constituição Federal, que diz que deve-se “tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”. Com isso esbarra-se em uma questão crucial de reivindicação dos movimentos LGBT em praticamente todos os países em que tal movimento existe: a questão da visibilidade. Quando um governo fecha os olhos para a homo-lesbo-transfobia, ele não só nega a cidadania deste grupo como também reduz os mecanismos de defesa da população LGBT. Quando um governo negligencia essa questão, dando declarações como “nós não temos homossexuais em nosso país”8, ele está retirando a visibilidade dessas pessoas, desconsiderando-as como seres humanos merecedores de qualquer proteção: “Elas não existem. São invisíveis.” A história recente da Rússia mostrou como uma posição do governo pode afetar a segurança – e a vida – de determinados grupos. Quando a lei “antipropaganda gay” foi sancionada, em 2012, houve uma verdadeira “caça às bruxas” naquele país. Não por parte do governo, mas sim pelas mãos da própria população heteronormativa, que se sentiu no direito de tratar os diferentes como não humanos, torturando pessoas LGBT’s e filmando tais ações para divulgar no YouTube9. A 6

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=oYVt2B6safk Relatório Anual do GGB sobre Assassinato de Homossexuais em 2010. 8 “Ahmadinejad é recebido sob protesto nos EUA e diz que no Irã não há gays”, G1/Globo, em 24/09/2007: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL109423-5602,00.html 9 “Gays são torturados na Rússia”, Pragmatismo Político, em 12/08/2013: 7

Índia é outro país que seguiu o mesmo caminho retrógrado, tendo aprovado em dezembro de 2013 a criminalização das relações homoafetivas10. Essa negação da cidadania LGBT representa uma grande lacuna não só na Convenção de Palermo, como também nas legislações nacionais, que devem passar a reconhecer o tráfico de pessoas como crime em seus códigos penais ou legislações equivalentes. E, ainda que a ideia seja utópica a curto ou médio prazo, uma sociedade combativa à transfobia poderia mudar radicalmente as perspectivas dos cidadãos transexuais. Acesso à educação e formas de controle da evasão escolar deste grupo, garantias do respeito a tais cidadãos, inclusão no mercado de trabalho e todos os outros direitos aos quais os cidadãos “cis” (que não são transexuais) têm direito poderiam findar a necessidade e/ou o risco de submeter-se à exploração sexual.

http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/08/gays-sao-torturados-na-russia.html 10 “Índia decide restabelecer lei que criminaliza relação homossexual”, BBC Brasil, em 11/12/2013: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/12/131211_india_suprema_corte_gays_lgb.shtml

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.