Fronteiras da tolerância: etnicidade, gênero e religião

June 3, 2017 | Autor: D. de Campos | Categoria: Gênero, Relações étnico-Raciais, Intolerância, Intolerância Religiosa
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Material didático. Capítulo de livro da disciplina EAD Sociedade e Contemporaneidade da Ulbra. 2016.
Doutor em Ciências da Comunicação. Mestre em História Social. Jornalista. Coordenador do Bacharelado em Jornalismo e do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena da Ulbra.
Hannah Arendt produziu um estudo referencial sobre a tendência de valorização e justificação teórica da violência no período. Para mais detalhes, ler ARENDT, Hannah. Sobre a violência [1969]. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
São desse período as guerras de descolonização dos países africanos, a Revolução Cubana, Revolução Chinesa, Vietnã e países latino-americanos. Neste sentido, surgem movimentos de minorias em países considerados desenvolvidos, como os Panteras Negras, nos EUA, ou o Exército Republicano Irlandes, o IRA, na Inglaterra.
Fronteiras da tolerância: etnicidade, gênero e religião

Deivison Moacir Cezar de Campos

O último século é determinante para se pensar a questão da tolerância. Se por um lado, ocorre neste período a desnaturalização discursiva e social da diferença, principalmente étnico-racial, registrou episódios em que a intolerância foi socialmente acolhida e mesmo prevista é regulada em lei, promovendo um rastro de desigualdade, perseguição e violência. O imperialismo Europeu, os regimes fascistas, a Guerra Fria e o atual conflito cultural, que tem como marca o 11 de setembro, podem ser considerados não somente episódios tópicos, mas a manifestação de um sistema mundo que articula o poder a partir da ideia de opressão da diferença. No cotidiano, essas relações de poder marcam igualmente as dinâmicas sociais, fazendo com que essa lógica igualmente esteja na base das interações pessoais. Desta forma, preconceitos herdados de períodos anteriores e aprofundados neste período histórico mediam as vivências cotidianas, negados sob discursos de igualdade e universalidade.
O processo de expansão do domínio da Europa, a partir das navegações e das ocupações territoriais, denominadas equivocadamente como descobrimentos, demandou a construção de discursos que sustentassem a exploração desses territórios e do outro. Suportado pelo discurso evangelizador, construiu-se o entendimento de que as outras civilizações eram inferiores à Europeia e por isso poderiam e deveriam ser submetidas aos colonizadores. Consequentemente, há uma negação dessas outras culturas e mesmo dos indivíduos diferentes. Neste processo, os indígenas americanos são considerados seres naturais e os africanos tidos como sem alma, ou seja, inumanos, inaugurando um imaginário que será aprofundado durante o período de exploração escravista dessas populações e depois mantidas através do racismo simbólico, estereótipos negativos, e concreto, barreiras sociais que mantém em sua maioria os descendentes indígenas e de africanos à margem social.
Esse imaginário ganhou estatuto de ciência no século XIX, numa perspectiva evolucionista. A justificativa científica da superioridade branca sobre as outras raças teve como representantes principais o inglês Robert Knox, que escreveu Races of Men em 1850, e o francês Arthur de Gobineau, cujo texto Essai sur l'inegalité dês Races humaines foi produzido em 1855). O primeiro criou o mito racial saxão e o segundo, o mito ariano. Defendiam que as raças ocupavam posições diferentes dentro da natureza humana. Segundo Martiniano Silva,

Ambos os mitos tinham uma finalidade ideológica. Knox defendendo a expansão do imperialismo procurava provar que o homem saxão era democrata por natureza e, por isso, o futuro dominador da terra. Gobineau, por outro lado, não gostava da democracia e procurou provar que o seu surgimento e, conseqüentemente, o do imperialismo, era um sinal da morte iminente da 'civilização' (1987, p.29)

A preocupação surgiu, segundo Barracloug (1976), nas colônias das potências imperialistas. Enquanto a população branca da Europa mantinha índices decrescentes de natalidade, a população não branca no mundo apresentava altos índices de crescimento. As medidas adotadas a partir dessas concepções vão levar à constituição das desigualdades socioculturais e econômicas e produzir um rastro de violência durante todo o século, seja pelo Imperialismo que perdurou até os anos 60 na Ásia e em África e manteve sistemas como o Apartheid, ou pelas grandes Guerras, originadas pela disputa territorial e da hegemonia política do Ocidente, que produziram o holocausto judeu.
Os avanços obtidos após o período de Guerra, principalmente através de documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, não alcançaram a todas as culturas discriminadas e identidades coletivas vítimas de intolerância da mesma maneira. A proposição de universalidade, neste sentido, garante discursivamente a igualdade de direitos e acesso à cidadania plena. Na prática, no entanto, a intolerância às diferenças produz perseguições e impõe violências física e simbólica contra os grupos identificados como diferentes. A questão da tolerância perpassa, portanto, a discussão sobre as identidades étnico-cultuais onde estão guardadas a diferença.

A identidade étnica e a constituição dos movimentos pela diferença

A identidade étnica refere-se a uma forma de pertencimento coletivo que se caracteriza pela partilha de valores culturais e que se identificam e são identificados a partir da diferença de outros grupos étnicos. Desta maneira, a diferença estabelecida pela relação entre "nós e eles" (BARTH, 1998), ao mesmo tempo que identifica essa forma de pertencimento, produz as reações diversas que se materializam de forma negativa como intolerância. Hoje a identificação com grupo socialmente marginalizados tornou-se um ato político, mas por muito tempo foram encobertas pelo silêncio e pela opressão. Mesmo marginalizados a tomada de posição vai coincidir com a ampliação da esfera pública, num primeiro momento, com a inserção da nova classe surgida com a Revolução Industrial – os operários. O processo vai ser aprofundado com um novo tensionamento da esfera pública e a entrada de novos atores organizados quando o projeto da grande revolução se mostra utópico.
Os movimentos pela diferença contemporâneos são marcados em sua origem pelo rompimento com os partidos tradicionais de esquerda - comunistas e socialistas, nos anos 60. Enquanto alguns dissidentes optaram pela justificativa teórica da violência, paralelamente ao recrudescimento da luta armada e da guerrilha em vários lugares do Terceiro Mundo, outros grupos optaram pela reinvindicação de uma democracia direta e participativa, politizando a "valorização do cotidiano, do indivíduo, das relações pessoais, a valorização dos sentimentos e das emoções" (ARAUJO, 2000, p.43).
Até este período, as questões especificas convergiam para a luta pela transformação global da sociedade, a grande Revolução Socialista. A emergência das questões particulares leva ao surgimento de novos sujeitos e à valorização da diferença em detrimento da universalidade durante os anos 70. O movimento feminista foi referencial no processo de reconfiguração política, alertando para a existência de uma identidade feminina e formas de opressão a que somente as mulheres são socialmente submetidas (ARAUJO, 2000).
Tendo como contexto a revolução de costumes e padrões de comportamento, movimentos alternativos, constituídos por grupos que enfatizam a diferença, construirão, a partir de demandas específicas, propostas de democracia participativa, confrontando a diluição e a burocratização promovida pela democracia representativa. Ao mesmo tempo, vão inserir no campo político um novo conceito de esquerda e de representação política. Esses grupos propuseram como postulados a recusa a representação unificadora, o direito a voz, a valorização de especificidades de sua condição minoritária, além da politização dos sentimentos e emoções. Desta maneira, passaram a pensar o mundo, as interações e a política a partir de demandas específicas (ARAUJO, 2000), produzindo novas formas de pertencimento.
Esses pertencimentos possibilitaram a construção de agendas políticas a fim de reivindicar as demandas por direitos e cidadania de maneira específica, mas ao mesmo tempo articulados. Em sentido contrário, o processo de Globalização relegou essas demandas a um segundo plano (BAUMAN, 2005; SANTOS, 2000). Entendida como processo de internacionalização do Capital, a Globalização tem sido potencializada pelas novas condições tecnológicas. A emergência de um mercado global, em que empresas articulam os fluxos econômicos e não há uma esfera real de regulação desse mercado, provoca um estímulo ao consumo, que sobrepõe as questões de pertencimento e principalmente as reivindicações de direito à cidadania plena.
A ideia de identidade contemporânea, caracterizada pela fluidez e pelo movimento, surge dessa crise do pertencimento e do esforço em estabelecer a relação entre o que deve ser e o que é (BAUMAN, 2005). As narrativas resultantes desse processo e em disputa através dos meios técnicos, principalmente hoje as redes sociais, constroem "vínculos que conectam o eu a outras pessoas e um pressuposto de que tais vínculos são fidedignos e gozam de estabilidade com o passar do tempo" (BAUMAN, 2005, p.75). Com isso, produzem sentidos para a relação entre identidade e diferença, colocados em crise por uma organização mundo que busca incluir pelo consumo.

A Globalização e a crise do pertencimento

As identidades étnico-culturais têm sido impactadas e redefinidas na contemporaneidade pelo mercado (CANCLINI, 1998; FURTADO, 1983). O principal elemento é a dicotomia existente entre uma estrutura coordenada a partir de iniciativas nacionais que contrapõe o fluxo econômico transnacional, ou seja, a relação entre Estado e o capital internacional desterritorializado (FURTADO, 1983). Soros (2001) alerta, neste sentido, que o sistema capitalista global não possui uma contrapartida política, esvaziando os debates sobre os grandes temas. O econômico passa a tornar-se central na vida das pessoas e os tributos deslocam-se do capital para os consumidores, restringido a cidadania à lógicas de mercado.
No entanto, essa fluidez desse tempo e as formas de organização impostas pela Globalização fazem com que as pessoas tenham necessidade de identificação coletiva, transcendendo em direção à liberdade e ao direito de ser (SANTOS, 2000). Igualmente as demandas que se referiam exclusivamente ao local agregam questões globais, aumentado a importância dos movimentos sociais que buscam a constituição de uma cidadania que não se restrinja a inclusão econômica. Por outro lado, as incertezas fazem com que a intolerância seja aprofundada e manifestada em diferentes aspectos do social. Segundo Martin-Barbero (2006, p.63), "Os nacionalismos as xenofobias ou os fundamentalismos religiosos não se esgotam no cultural, pois eles remetem, em períodos mais ou menos longos de sua história, a exclusões sociais e políticas, a desigualdades e injustiças acumuladas e sedimentadas".
O 11 de Setembro, como marco de início de novas relações mercado globalizado, problematizou ainda mais essa relação espacial, impactando diretamente nas concepções de cidadania e pertencimento, introduzindo o fundamentalismo da segurança que transformaram as relações de fronteiras e as vias de comunicação (MATIN-BARBERO, 2006). A desconfiança torna-se então método, a violação do direito à privacidade e à liberdade torna-se regra, desencadeando um agravamento dos preconceitos, apartheid e fanatismos (2006). Com isso, muitos dos avanços conquistados nas últimas décadas pelos movimentos sociais, pautados pela Declaração dos Direitos Humanos, sofreram um retrocesso.
No novo sistema mundo, o fechamento das fronteiras, iniciado pelo 11 de setembro, pode ser usado como metáfora para que se observe as fronteiras estabelecidas entre as diferentes identidades nas relações cotidianas. Historicamente reprimidos em suas diferenças, o corpo e manifestações culturais que não atendem aos padrões normatizados pela cultura Ocidental, ao mesmo tempo que não são tolerados, resistem a partir de seu lugar identitários, essa mesma diferença pelo qual são socialmente discriminados. Em relação ao corpo, a identidade étnico-racial negra e a identidade de gênero são questões centrais nesse processo de intolerância. No que se refere às identidades culturais, as religiões são um âmbito em que há pouca e por vezes nenhuma tolerância entre denominações.

Intolerância ao negro

A exclusão do negro do projeto de desenvolvimento econômico remonta ao final do século 19. A ideologia do trabalho livre, pensada sob os símbolos da civilização (ordem) e do progresso, numa perspectiva positiva, contribuiu para a marginalização dos negros libertos, que no imaginário herdado do escravismo e das teorias evolucionistas representavam barbárie e primitivismo. Reforçado pelos estereótipos, marcas invisíveis deixadas pela escravidão, a marca visível da cor da pele liga o presente e o passado, demarcando o lugar social relegado ao indivíduo negro na sociedade brasileira.
No Brasil, por exemplo, a mestiçagem, imposta como uma síntese da nacionalidade, "é uma antiga concessão, incorporada no decorrer dos anos pelo senso comum, à presença maciça de não brancos em uma sociedade que valoriza a branquitude" (SOVIK, 2009, p.39). Essa valorização é constitutiva não só da cultura brasileira, mas da modernidade Ocidental e persiste nas culturas contemporâneas. Nesse sentido, Gilroy (2001) aponta que "o estranho prestígio ligado ao valor metafísico da brancura ainda são correntes e circulam bem" (p.52). Referindo Franz Fanon, diz ainda que a "desgraça da dominação racial não é a condição de ser negro, mas de ser negro em relação ao branco" (p.63).
Dessa forma, a necessidade de adequação aos padrões etnocêntricos europeus tornou-se elemento repressor do pertencimento afro, levando a um processo de integração social pela assimilação cultural. Historicamente, no entanto, observam-se estratégias e movimentos de resistência ao projeto unificador de identidade nacional, principalmente através de práticas e vivências comunitárias, culturais e discursivas, geradas inicialmente dentro das comunidades negras. Essa tradição e identidade tem sido permanente presentificada por suas características desterritorializadas. A dissociação entre referências simbólicas e territoriais, provocada pelas diásporas globais, e a condição de ser e não pertencer possibilitou essa condição de contra- modernidade (GILROY, 2001) à negritude.
Neste sentido, a intolerância contra o negro é um dos elementos que estão na base do Ocidente, acabando por ser naturalizados. Com isso, a maioria da população foi relegada à marginalização socioeconômica, à criminalização e em muitos casos à eliminação sistemática do indivíduo negro. Em todo o planeta, mesmo em África, todos os índices sociais reafirmam essa situação. Nas relações cotidianas essas formas de intolerância transformam-se principalmente em violência. A persistência dessa forma de controle e ao mesmo intolerância á diferença pode ser observado através do lugar do jovem negro na sociedade brasileira.
As poucas fotografias de um tumbeiro mostram que os escravizados em África eram predominantemente jovens saudáveis do sexo masculino. Esses mesmos que até o início do século XX eram compulsoriamente enviados às guerras e para servirem na Marinha, que mesmo depois da Abolição manteve a chibata, como forma de controle e racismo. Durante o século 20, os jovens negros foram excluídos do ensino e do mercado de trabalho, frequentemente presos, muitos sem cometer crimes, em função das delegacias de costumes e da lei de vadiagem.
Essa falta de oportunidade levou ao envolvimento de parte dos jovens com a criminalidade, resultando nos altos índices de detenções, prisões e assassinatos registrados nas últimas décadas. Atualmente, em função do controle e pressão dos movimentos sociais, tem-se o acesso aos dados que apontam para o genocídio dos jovens negros no Brasil, o que mobilizou até mesmo a Anistia Internacional e a Organização das Nações Unidas. Aproximadamente 77% dos assassinados tem como vítima negros e maioria jovens. São aproximadamente 150 mortos a cada dia.
As discussões sobre políticas afirmativas também indicam um nível de intolerância quanto a integração dos negros nas esferas de cidadania. O debate público, principalmente a partir dos meios de comunicação, reforça a perspectiva sobre capacidade e meritocracia. As medidas, no entanto, propõem-se a oferecer oportunidades de estudo e inserção no mercado de trabalho a fim de quebrar o ciclo que historicamente mantem a população negra marginalizada conforme referido acima. Observa-se, portanto, nesta discussão uma incoerência entre contexto e discurso. Enquanto socialmente a população negra enfrenta barreiras simbólicas, através de estereótipos, como o da malandragem, da preguiça e da incapacidade de realizar atividades complexas e reflexivas, as medidas adotadas para construir oportunidades e superar essas barreiras são negadas.

Intolerância religiosa

A religião tem sido durante a história da humanidade um foco permanente de conflito principalmente em função da dominação de territórios, ou mesmo por transposição espacial, tem sofrido com a intolerância. Pode-se referir a perseguição sofrida pelo Cristianismo no Império Romano, das religiões chamadas pagãs pelo Cristianismo, assim como as Cruzadas, a perseguição aos Reformadores e à Inquisição. Também se registrou o combate às tradições indígenas e africanas no período de colonização. A religião judaica igualmente tem sido vítima de perseguição nas mais diversas partes do Ocidente, tendo sido responsabilizada a partir de argumentos políticos e econômicos, pelos mais diferentes problemas sociais. Recentemente tem-se em pauta o conflito de cunho cultural entre Ocidente e fundamentalistas da religião muçulmana que justificam a partir da religião seus atos políticos.
No Brasil, o número de denúncias sobre intolerância religiosa tem crescido nos últimos anos também pelo surgimento de Canais de denúncia. Mesmo que a Constituição garanta a liberdade religiosa, desde o início do período republicano, as religiões de matriz africana são o principal alvo de intolerância. A perseguição se deu principalmente pela igreja Católica, no período escravista, sob a justificativa de evangelização dos negros que pelo trabalho se redimiriam dos pecados. O Estado foi responsável pela perseguição no início da era Vargas e, atualmente, o embate tem sido travado com algumas novas igrejas evangélicas e se dá politicamente pelo fato de disputarem a atenção e a crença de um mesmo público.
Simbolicamente, as religiões de matriz africana por suas características não cristãs e não dogmáticas acabam muitas vezes em função do desconhecimento, sendo confundidas com magia negra – esta última originária da Europa, e adoração do Diabo, numa referência Cristã que não faz sentido na cosmovisão original. A sacralização de animais e o uso de instrumentos de percussão tem sido permanentemente tensionado pelos detratores e mesmo pelo Estado. São muitas as decisões judiciais que, em função da lei do silencio, principalmente, proíbem o toque de tambores. Cultos indígenas de outras matrizes que não cristãs tem igualmente sofrido perseguição.
De outro lado, observa-se atos de intolerância, principalmente discursivas, contra igrejas evangélicas, principalmente as referenciadas como neopentecostais. A atuação de algumas das igrejas em relação a outras igrejas e outras religiões acabam, por generalização, sendo vistas como intolerantes. Esse processo leva a um fenômeno de intolerância pela acusação de intolerância. O desconhecimento de princípios e dos ritos das outras igrejas/religiões está na base da intolerância religiosa, assim como a falta de alteridade na relação estabelecida a partir dessa forma de pertencimento.

A intolerância de gênero

As normatividades sobre o corpo estão diretamente relacionadas a discussão sobre questão de gênero, entendido como as sociedades definem masculino e feminino. Na perspectiva das Ciências Naturais, principalmente as Biológicas, as características são apontadas como naturais, ou seja, geneticamente codificadas. Nas Ciências Humanas e Sociais, no entanto, pesquisadores defendem que se trata de uma construção social em determinados momentos históricos, sendo este o motivo pela qual as noções tendem a se transformar em diferentes épocas históricas (LOURO, 1997). Vem desta perspectiva a frase Simone de Beauvoir, "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher", utilizada em uma prova do Exame Nacional do Ensino Médio e que tem circulado amplamente na internet.
No entanto, as marcações de gêneros normatizadas a partir da perspectiva biológica fomentam a intolerância a qualquer corpo que não atenda a esses princípios. A discussão sobre o tema ganha cunho político a fim de desconstruir os lugares sociais reservados a masculino e ao feminino e por outro para desconstruir a crença de que existe somente uma maneira de existir socialmente enquanto homem ou mulher. O principal argumento apresentado, principalmente pelos movimentos feministas, é de que existe uma grande diferença entre ser mulher no Brasil e na China, por exemplo, o que reforça que as normas são social e culturalmente construídas.
Desta maneira, a discussão sobre identidade de gênero contém em si a eliminação dos marcadores normativos sobre ser homem e mulher a fim de que as barreiras simbólicas e sociais impostas por essas referências sejam superadas.

A tolerância como devir na contemporaneidade

A tolerância é um dos suportes a partir dos quais as democracias modernas foram constituídas. As características representativas e de universalidade do modelo político estabelecido no Ocidente não se mostraram historicamente inclusivos à diferença, privilegiando um discurso único de matriz europeia. O debate sobre tolerância desta maneira tem que levar em conta as relações de poder social (FORST, 2009). Por isso, o princípio de tolerância tem em si a questão de autoridade de um grupo, que tolera, sobre outro que vir a ser tolerado. São contra essas normatividades que os movimentos sociais têm militado.
A presença negra nas sociedades fora do continente africano originou-se num processo de desumanização. A inserção do corpo negro nos períodos posteriores a exploração escravista manteve as barreiras simbólicas que erigiram as barreiras legais e socioeconômicas ainda mantidas. Esse lugar social construído como projeto, portanto, é a principal fonte de intolerância que afeta a todos que buscam novos espaços, ou simplesmente para a manutenção do controle social. A aceitação da diferença nesse caso desestabiliza o status quo vigente.
A intolerância religiosa acaba por ter um complicador que o campo se organiza a partir da crença. Inserir-se num sistema de crença provoca necessariamente a recusa de outras crenças possíveis. No entanto, a ideia de alteridade está presente em todo sistema de pensamento religioso o que pode acionar se não a aceitação dos princípios de crença da outra igreja/religião a aceitação da diferença.
Da mesma maneira, as normas estabelecidas sobre o que é masculino e feminino tensionam a identidade de gênero no sentido de pressionar os indivíduos a ocuparem papeis previamente estabelecidos. Os avanços nesse sentido têm sido conquistados frente a violências físicas e simbólicas, mas encontram respaldo legal, como a Lei maria da Penha, e na aceitação da diferença.
Apesar da crise do pertencimento aprofundada pela Globalização, é possível observar que algumas muitas das questões ainda demandas apresentadas pelos grupos identitários têm obtido respostas mais imediatas do mercado de consumo do que sócio-políticas. Isso acaba por gerar um dissociamento entre a vivência cotidiana e a cidadania. Os movimentos sociais tomaram para si o projeto de construção da tolerância em relação à diferença e da construção de uma sociedade realmente democrática e cidadã.

REFERÊNCIA

ARAÚJO, Maria Paula do Nascimento. A utopia fragmentada. As novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 70. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

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BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 2ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.

FORST, Rainer. Os limites da tolerância. Trad. Mauro Victoria Soares. Novos Estudos, nº 84. julho, 2009.

FURTADO, Celso. Celso Furtado: Economia. org. Francisco de Oliveira. São Paulo: Ática, 1983.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34. 2001.

LOURO, Guacira. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Tecnicidade, identidades, alteridades: mudanças e opacidades da Comunicação no novo século. In: MORAES, Denis de (org.) Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

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