Fronteiras, entre os caminhos da observação e os labirintos da interpretação, In: Eric Gustavo Cardin Silvio Antônio Colognese Organizadores AS CIÊNCIAS SOCIAIS NAS FRONTEIRAS Teorias e metodologias de pesquisa

Share Embed


Descrição do Produto

Eric Gustavo Cardin Silvio Antônio Colognese Organizadores

AS CIÊNCIAS SOCIAIS NAS FRONTEIRAS Teorias e metodologias de pesquisa

Copyright © 2014 dos autores Revisão: Ana Paula Fernandes Abreu e autores Produção Gráfica e impressão: Gráfica JB

Conselho Editorial: Juan Carlos Arriaga-Rodríguez

- Miguel Ângelo Lazzaretti

Antonio Higuera Bonfil

- Paulo Roberto Azevedo

Tania Camal-Cheluja

- Osmir Dombrowski

Paulo Henrique Barbosa Dias

- Gustavo Biasoli Alves

Geraldo Magella Neres Organização: Eric Gustavo Cardin Silvio Antônio Colognese Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) As Ciências Sociais nas fronteiras: teorias e metodologias de pesquisa/ [organização]

Silvio Antonio Colognese, Eric Gustavo Cardin. --

1. ed. -- Cascavel, PR: JB, 2014

Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-67182-04-9

1. Ciências sociais - Metodologia 2. Ciências sociais - Pesquisa 3. Pesquisa - Metodologia I. Colognese, Silvio Antônio. II. Cardin, Eric Gustavo

14-01768

CDD-300.72 Índice para catálogo sistemático:

1. Ciências sociais: Metodologia 2. Ciências sociais: Pesquisa

300.72 300.72

Todos os textos são de responsabilidade exclusiva de seus autores. São permitidsas cópias desse material, para fins educativos, desde que citadas as fontes EDITORA GRÁFICA JB Rua Erechim, 1495 Fone (45) 32232214 CEP 85812-260 - Cascavel - Paraná [email protected]

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...............................................................................5 1. LA CONCEPCIÓN DE LAS FRONTERAS Y LOS LÍMITES TERRITORIALES EN EL PENSAMIENTO GEOGRÁFICO DE JEAN GOTTMANN....................................................................13 Juan Carlos Arriaga-Rodríguez 2. TEORIA DAS FRONTEIRAS E TOTALIDADE ..........................43 Eric Gustavo Cardin 3. FRONTEIRAS: ENTRE OS CAMINHOS DA OBSERVAÇÃO E OS LABIRINTOS DA INTERPRETAÇÃO..............................................61 José Lindomar C. Albuquerque 4. A INFUSÃO ETNOGRÁFICA EM COMUNIDADES NA FRONTEIRA..........................................................................................81 Rodrigo Kummer Silvio Antônio Colognese 5. ETNOGRAFIA NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA, EM CORUMBÁ-MS: POR UMA ANTROPOLOGIA “NAS” FRONTEIRAS...................................................................................107 Gustavo Villela Lima da Costa 6. TEXTUALIZANDO CONDIÇÕES FRONTEIRIÇAS: A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA FICCIONAL PARA O ESTUDO DO CONTRABANDO......................................................................125 Adriana Dorfman

7. ANDAR EL CAMINO, ENCONTRAR EL PROPIO HOGAR: RELATO VITAL DE UN MIGRANTE A LA FRONTERA MÉXICOBELICE..............................................................................................147 Antonio Higuera Bonfil 8. FRONTEIRAS MÚLTIPLAS: NARRATIVAS SOBRE OS SERTÕES DO PARANÁ......................................................................................183 Valdir Gregory 9. RUPTURA HISTORICA E (DES)CONTINUIDADES CULTURAIS NA FRONTEIRA: OS DESAFIOS DO PESQUISADOR.................................................................................215 Erneldo Schallenberger 10. APUNTES SOBRE LOS MÁRGENES: FRONTERAS, FRONTERIZACIONES, ÓRDENES SOCIOTERRITORIALES.......239 María Lois

AS CIÊNCIAS SOCIAIS NAS FRONTEIRAS (a título de introdução)

As ciências sociais e os estudos das fronteiras possuem caminhos de proximidade e distanciamento. Não seria errado afirmar que os limites territoriais nunca corresponderam a um objeto central em suas obras fundamentais. A fronteira aparece como um problema periférico ou no máximo dependente nos estudos realizados entre os séculos XIX e XX. Diferente do que ocorre com a Geografia, que possui em Ratzel um ponto de referência inicial, os clássicos da Sociologia, da Antropologia e da Ciência Política pouco falaram sobre as fronteiras. No entanto, isso não quer dizer que eles não contribuem nas investigações realizadas na contemporaneidade. Embora não coloquem as fronteiras como um problema central, os clássicos das ciências sociais fornecem fundamentos teóricos e metodológicos que se fazem presentes na maioria dos estudos realizados na atualidade. Sem querer fazer um mapeamento exaustivo destas contribuições ou fazer uma espécie de balanço sobre aquilo que já foi escrito, temos o objetivo de indicar brevemente o processo de amadurecimento do diálago entre as ciências sociais e as fronteiras. É possível observar que o inicio das discussões parta de três pontos distintos. Em um primeiro momento, destaca-se um conjunto de estudos de caráter político que visa explorar questões vinculadas a constituição do estado moderno, problematizando sua formação, manutenção e expansão. As fronteiras, mesmo não correspondendo a principal preocupação dos contratualistas, dos liberais ou dos marxistas leninistas, ela se faz presente de forma indireta quando as reflexões buscam explorar questões vinculadas à soberania ou as relações internacionais. Em segundo lugar, constata-se a vasta produção antropológica sobre as comunidades rurais, urbanas e nativas. Os diferentes exercícios de 5

investigação realizados contribuem de inúmeras formas para o desenvolvimento dos estudos empíricos fronteiriços, porém destacaremos apenas duas: a prática de observar as relações entre as diferentes dimensões que compreendem a realidade social e as técnicas de levantamento de dados - principalmente a etnografía - que pode se entendida aqui como uma ferramenta de pesquisa, uma sistematização da análise e uma forma de elaboração textual. Por fim, a Sociologia Clássica, ao se focar no estudo do desenvolvimento socioeconomico e no seu impacto na organização social e na formação humana, também oferece elementos que podem nos auxiliar no entendimento das fronteiras. Os fenômenos migratórios e a ocupação territorial configuram-se como problemas secundários ou no máximo como argumentos para o desenvolvimento de análises sobre o processo de expansão do capitalismo e da racionalização, individualização e socialização do mundo contemporâneo. A reorganização da economia e da política mundial após a Segunda Guerra Mundial atribuiu importância as discussões territoriais e fronteiriças no âmbito acadêmico. A guerra fria, a geopolítica bipolarizada, a descolonização de muitos países africanos, a revolução da social-democracia europeia, a queda do mundo soviético, a crise do “fordismo” e da social-democracia, o fortalecimento do neoliberalismo, dos blocos econômicos, da globalização e o constante questionamento do papel do Estado instigaram direta e indiretamente a produção de inúmeros estudos preocupados com o mundo em que vivemos e com as suas fronteiras físicas e simbólicas. A partir de então, começam a surgir investigações e publicações abordando-as em diferentes escalas. Em síntese, constata-se a existência de três grandes tendências, nitidamente vinculadas aos modos de atuação difundidos pelos clássicos. Destacam-se, em um primeiro momento, as pesquisas interessadas em compreender o funcionamento e a ação do Estado em uma conjuntura internacional de relativa abertura de fronteiras e de estabelecimento de acordos econômicos e políticos bilaterais. Aqui, o surgimento das fronteiras nacionais está relacionado ao esforço de maximizar os recursos naturais e produtivos existentes nos territórios. Neste sentido, a flexibilização das fronteiras - garantindo uma porosidade para a passagem de capitais e trabalhadores - estabelece

6

inovações na forma em que os governos nacionais observam seus limites, o que vem alimentando um conjunto significativo de estudos. Aproximando-se a estas observações, encontra-se uma segunda tendência de pesquisas que possuem como eixo central a análise do processo de expansão do capital. Neste grupo, constata-se a existência de dois movimentos: o primeiro preocupado em vincular o sistema sociometabólico a organização e a intervenção estatal nas fronteiras, enquanto o segundo concentra suas energias em relacionar o sistema sociometabólico com o cotidiano, as experiências, as estratégias, enfim, as práticas dos sujeitos transfronteiriços. A terceira e última tendência corresponde as pesquisas microssociológicas. Aqui predominam os estudos de comunidade, a análise do cotidiano de instituições sociais bem delimitadas, a observação das relações culturais e de seus hibridismos, como também leituras das práticas, trajetórias e experiências de maneira desvinculada de suas relações mais amplas e estruturais. Embora também possam aparecer nas outras tendências, aqui predomina a utilização de histórias de vida e da etnografia, sendo comum a realização de observação participante e de descrições minuciosas. A coletânea de textos que aqui apresentamos transita por estas tendências e aprofunda aspectos teóricos e metodológicos observados e produzidos na relação direta com as fronteiras. São estudos que convergem com as ciências sociais e produzem um rico diálogo sobre a abrangência de nossos interesses e sobre a capacidade e potencialidade de nossos referenciais no esforço de produzir um entendimento relevante nas e das realidades fronteiriças. São dez capítulos, escritos por experientes professores e pesquisadores, que garantem simultaneamente a ampliação do nosso olhar e o aprofundamento de questões essenciais. No primeiro capítulo encontramos as contribuições de Juan Carlos Arriaga-Rodríguez para o entendimento da teoria da participação dos espaços humanos produzida por Jean Gottmann. Segundo este autor, os estudos dos fenômenos geográficos, incluindo os processos de instalação de limites e fronteiras, deve obedecer à dualidade do espaço. Esta dualidade se manifesta em um entorno humano e outro externo. O entorno externo está vinculado ao meio ambiente, enquanto o humano está relacionado a um sistema complexo de elementos históricos, étnicos, 7

sociais, religiosos, culturais e econômicos que condicionam a vida de uma comunidade. No segundo capítulo, observamos a continuação do esforço de elaboração de um entendimento mais amplo e abrangente das fronteiras. Escrito por Eric Gustavo Cardin,”Teoria das Fronteiras e Totalidade” corresponde a uma proposta teórica e metodológica para o estudo das regiões fronteiriças que valorize simultaneamente suas múltiplas dimensões sociais e também sua organicidade. Neste sentido, é problematizada a assimilação do conceito de cultura de contrabando e defendido um projeto mais amplo, onde o contrabando também possa estar inserido no que, de maneira ainda inicial, está sendo definido como cultura de fronteira. O terceiro capítulo, “Fronteiras: entre os caminhos da observação e os labirintos da interpretação”, escrito por José Lindomar Coelho Albuquerque, representa o esforço em construir um diálogo entre as conclusões e experiências obtidas por meio de pesquisas realizadas entre os “brasiguaios” (adotando aqui o termo utilizado pelo próprio autor) e a produção de outros investigadores que, ao longo dos últimos anos, buscam o aprofundamento da compreensão que possuímos das fronteiras. Destaca-se aqui, o objetivo de estabelecer uma leitura mais ampla de tais realidades por meio do encontro de abordagens muitas vezes sustentadas por leituras teóricas e metodológicas particulares. Rodrigo Kummer e Silvio Antônio Colognese escrevem o quarto capítulo, “A infusão etnográfica em comunidades na fronteira”. O texto problematiza dilemas metodológicos à pesquisa em comunidades situadas em ambientes fronteiriços e reflete as incertezas dos pesquisadores em situações de campo, onde são levados a lançar mão de um misto de abordagens e técnicas, muitas vezes não possíveis de serem seguidas conforme previstas. Em um primeiro momento os autores realizam uma análise dos estudos de comunidade produzidos no Brasil e destacam suas contribições para o estudo das realidades fronteiriças. Partindo disso, destacam que a feitura desses estudos precisa seguir a aferição de que não se estudam lugares, mas fenômenos. Para tanto, a etnografia torna-se imprescindível para problematizar o sentido dado às ações dos sujeitos que se movem em comunidades nas fronteiras. Para perceber os processos de representação e os aspectos identitários que

8

aqueles indivíduos manifestam, intencionalmente ou não. Para desvendar as estratégias destes sujeitos no cotidiano nas fronteiras. Enfim, segundo os autores, na análise dos fenômenos em comunidades localizadas nas fronteiras é preciso considerar a importância e os sentidos conferidos pelos sujeitos às suas ações, tanto em termos manifestos quanto velados. Dividindo alguns destes pressupostos, o capítulo seguinte, “Etnografia na fronteira Brasil-Bolívia, em Corumbá-MS: por uma antropologia ‘nas’ fronteiras”, apresenta alguns dos desafios no processo de produção de análises sobre as regiões fronteiriças. Gustavo Villela Lima da Costa destaca que os estudos das fronteiras partem de uma pecularidade - o fluxo do pesquisador em uma realidade nacional diferente da sua -, acrescido do reconhecimento da existência de um processo de classificação social do pesquisador por parte dos próprios entrevistados. O antropólogo fica sempre situado entre duas culturas, sem fazer parte integral de nenhuma delas. Segundo o autor, esta é uma das características da etnografia: a de colocar o pesquisador em uma posição de “fronteira”, que a configura como um método filosófico que possibilita conhecer e transformar a si mesmo, ao conhecer o “outro”. Em um segundo momento do texto, destacam-se algumas observações de caráter mais teórico. Nas fronteiras existem múltiplas dimensões e cada uma delas possibilita um processo particular de construção de identidades. Neste contexto, existe uma situação de “espelhos múltiplos”, em que os indivíduos e grupos de ambos os lados não apenas representam os “outros”, mas são também representados pelo “outro”, pelo estrangeiro do outro lado da fronteira. A fronteira é um espaço dinâmico, movendo-se além das visões das fronteiras baseadas apenas no dogma da soberania dos Estados nacionais, que trabalham necessariamente com a ideia de limite estático e estatal. No sexto capítulo, encontramos uma experiência diferente. Adriana Dorfman nos ajuda a pensar as fronteiras utilizando a literatura como fonte documental. No intuito de interpretar a fronteira em uma escala local, a autora utilizou de diferentes fontes documentais e constatou que “a presença de deslizamentos discursivos entre a ficção e a realidade, e entre as muitas realidades dos contrabandistas na fronteira”. Neste sentido, ela destaca que a literatura de fronteira pode ser reconhecida como um gênero: ao se considerar a origem geográfica dos autores; a 9

tematização da fronteira; e a interpolação de idiomas, como do português, com o espanhol e outros termos locais. A literatura se apresenta como um recurso estratégico para a apreensão do contrabando formiga como prática, destacando os aspectos morais e éticos existentes nas comunidades fronteiriças e estabelecendo meios para a observação das relações entre legal/ilegal, legitimo/ilegitimo, moral/imoral e viável/inviável. Desta forma, Dorfman traz para a universidade um recurso ainda pouco utilizado, mas que é carregado de pontencialidade. Por meio da literatura é possível um mapeamento das representações dos modos de viver dos sujeitos fronteiriços, assim como a visualização de práticas, nem sempre públicas. O sétimo capitulo foi escrito por Antônio Higuera Bonfil. “Andar el camino, encontrar el proprio hogar: relato vital de un migrante a la frontera México-Belice” apresenta e discute a trajetória de um migrante mixteco. O capítulo mostra as condições de vida em Oaxaca e o deslocamento de Luis López Rojas para a fronteira do México com Belice no final da década de 1970. Neste preâmbulo, destaca-se a estreita relação do migrante com o trabalho agrícola e com o capital cultural acumulado por suas relações familiares e religiososas, problematizando, a partir dos relatos e experiências coletadas, o início e o fim dos limites fronteiriços mexicanos. Bonfil, por meio de sua investigação, enfatiza a importância da história oral como método de trabalho, ou seja, como um mecanismo de apreensão da realidade vivida por atores sociais inseridos em meios culturais específicos. As trajetórias individuais, os modos de viver, as experiências cotidianas, aparesentam-se como elementos fundamentais para o entendimento das dinâmicas de fronteiras, pois comportam aspectos diretamente vinculados as relações entre as idiossincrasias da vida particular e os elementos estruturais que formatam os limites das ações. O oitavo capítulo, “Fronteiras múltiplas: narativas sobre os sertões do Paraná” - de autoria do Professor Valdir Gregory -, em um misto de historiografia e memórias pessoais, destaca algumas narrativas sobre o oeste paranaense da primeira metade do Século XX. No geral, o autor relaciona dados e informações originais, abordando questões teóricas e metodológicas que emergem da relação direta com as fontes documentais.

10

O texto contempla discussões em torno da ideia de múltiplas fronteiras na fronteira, ou seja, destaca a concepção de que fronteiras são construídas pelas nas narrativas e por seus leitores. Erneldo Schallenberger é autor do nono capítulo, “Ruptura histórica e (des) continuidades culturais na fronteira: os desafios do pesquisador”. O intuito do texto é iluminar o terreno investigado, salientando os limites e as possibilidades das pesquisas realizadas em regiões de fronteira. Neste sentido, Schallenberger destaca que “a multiplicação de interesses pela pesquisa acerca da temática das fronteiras tem levado muitos estudiosos a enveredar por campos de significação que conferiram ao conceito fronteira um sentido polissêmico. A fronteira, ao mesmo tempo em que aponta para o horizonte do novo e do indefinido, sugere um limite e estabelece uma relação entre estes dois indicadores que são sempre expressão do alcance humano a partir das condições socioculturais histórica e espacialmente construídas”. Partindo disso, o autor apresenta um belo ensaio sobre os processos de aproximação e estranhamento, encontros e desencontros durante o processo de colonização da América, destacando não somente as relações entre os sujeitos envolvidos nas diputas territorias, culturais e políticas que marcam o desenvolvimento histórico, mas também a recepção e a leitura destes processos pelas ciências sociais, com destaque especial ao trabalho cuidadoso e necessário com as fontes cartográficas. Fechando o livro, encontramos a contribuição de Maria Lois, “Apuntes sobre los márgenes: fronteras, fronterizaciones, órdenes, socioterritoriales”. O texto apresenta um conjunto de apontamentos sobre as fronteiras européias, refletindo, ao mesmo tempo, a multiplicidade dos espaços fronteiriços e a sua vocação provinciana. Neste contexto, Lois destaca a necessária abertura conceitual para o entendimento da situação européia, incorporando as políticas de representação, espacialização e socialização, com destaque para as experiências instituicionais de cooperação e regionalização transfronteiriças. Os cruzamentos ou as passagens pelas fronteiras são práticas que transgridem a definição de limite, exigindo a ampliação conceitual para o seu entendimento. “As Ciências Sociais nas Fronteiras” é um livro importante. Ele se apresenta e se coloca entre as poucas publicações brasileiras preocupadas 11

mais diretamente em pensar e propor teorias e métodos para o estudo em realidades fronteiriças. É possível a visualização de um vasto conjunto de pesquisas empíricas produzidas no Brasil durante as últimas décadas. Agora é preciso sintetizá-las, compará-las e avançar no que diz respeito ao desenvolvimento de nossas ferramentas de trabalho. Neste sentido, acreditamos que a presente obra possa contribuir, ao menos um pouco, nesta tarefa que nos cabe atualmente.

Eric Gustavo Cardin Organizador

12

LA CONCEPCIÓN DE LAS FRONTERAS Y LOS LÍMITES TERRITORIALES EN EL PENSAMIENTO GEOGRÁFICO DE JEAN GOTTMANN

Juan Carlos Arriaga-Rodríguez1

INTRODUCCIÓN

Una de las contribuciones para el estudio de las fronteras y los límites territoriales más interesantes fue elaborada por Jean Gottmann (1915-1994). Frecuentemente citado por los estudiosos del tema, sin embargo, la obra de este geógrafo francés de origen húngaro ha despertado curiosidad sólo hasta años recientes. Jean Gottmann fue un intelectual prolijo2. Su impresionante obra escrita aborda una amplia variedad de temas, en diferentes campos de la Geografía Humana. Su pasión fue la Geografía Urbana, y a él se debe el concepto de megalópolis, desarrollado en su obra clásica Megalopolis: The Urbanizad Northeastern Seabord of the United States, publicada en 1961. Como se sabe, este trabajo es un estudio de un área regional y su gente, pero no desde el método descriptivo tradicional de la escuela regional francesa, sino como un análisis de la dinámica de transformación de un espacio urbano y de la concentración de personas y actividades económicas en una amplia región urbana. La teoría de las fronteras de Gottmann, desarrollada a finales de los cuarenta y principio de los cincuenta, ha permanecido inexplorada en su totalidad por los estudiosos del tema. Ello se debe, en gran medida, a que esta teoría no fue sistematizada en un solo libro, como sí ocurrió con los trabajos sintéticos de otros autores. Si bien la base de la 13

argumentación de Gottmann sobre las fronteras se encuentra desarrollada en Le Politique des États et leur Géographie (1952) y en The Significance of Territory (1973), aspectos particulares de su teoría fueron profundizados en diferentes artículos. Autores como Paul Claval, George Prevelakis, Luca Muscarà3, Peter Taylor, John O’Lhoglin, entre otros, han dedicado sus esfuerzos para darle un cuerpo coherente y sintético a todo ese conjunto de trabajos en los que Gottmann proporcionó un enfoque novedoso de las fronteras. En este artículo presentamos el enfoque propuesto por Jean Gottmann para el estudio de las fronteras y los límites territoriales contemporáneos, al cual denominamos “teoría de la partición de los espacios humanos”. Por sus características teóricas y metodológicas, consideramos que esta teoría es distinta a otras que han dominado los estudios en la materia, pues centra su atención en el análisis de las relaciones espacio-sociedad que influyen en el establecimiento y configuración de las fronteras y límites.

CONTEXTO EPISTEMOLÓGICO Y METODOLÓGICO EN EL QUE APARECE EL PENSAMIENTO GEOGRÁFICO DE JEAN GOTTMANN El contexto teórico en el que surgieron las principales tesis geográficas de Jean Gottmann estuvo marcado por el debate entre las escuelas geográficas francesa y alemana, la renovación teórica de la geografía regional y el despegue de la geografía teorética4. El debate entre el regionalismo francés y la geopolítica alemana estuvo centrado en el carácter determinante del espacio sobre las instituciones sociales (determinismo geográfico). Para la escuela alemana, el espacio es determinante para la creación del Estado, las formas de gobierno, la cultura y el carácter de las naciones; para la escuela francesa, la personalidad de la nación y el surgimiento del Estado y sus instituciones de gobierno es producto de la organización social5. En cuanto a la renovación del pensamiento geográfico de la escuela francesa, al finalizar la Segunda Guerra Mundial aparecieron diferentes de trabajos de geógrafos franceses que rompieron con lo que Gottmann 14

llamó: “la costumbre largamente establecida de separar los problemas físicos y humanos en los tratados de Geografía general”.6 Efectivamente, una nueva generación de geógrafos de la escuela regional emprendió la tarea de formular con la mayor precisión posible la relación del hombre con su entorno espacial. A esta generación perteneció Jean Gottmann. A pesar de los intentos de la escuela francesa por renovarse en el plano metodológico, la Geografía Humana pasaba por un período de crisis en la década de los cincuenta. El paradigma clásico de la geografía regional, tanto la francesa como la anglo-estadunidense, tuvo cada vez mayores problemas para interpretar la geografía social del mundo. El sistema económico mundial surgido de la Segunda Guerra Mundial impulsó la rápida urbanización, la explotación intensiva de materias primas y un acelerado desarrollo industrial y tecnológico, entre otros fenómenos espaciales. Las regiones anteriormente identificadas se transformaron o se combinaron con otras, lo cual desveló las carencias de la geografía regional para explicar la naturaleza de esos cambios. El mismo problema se presentaba en el campo de Geografía Política. Con la derrota de Alemania en la Segunda Guerra Mundial, la Geopolítica cayó en una situación de descrédito –ser llamado geopolítico era considerado una ofensa, señala Gottmann7. Junto a ello, la Geografía Política mostraba avances teóricos poco significativos. De esta manera, en la década de 1950 existía la necesidad urgente de renovar la teoría en la Geografía Humana, situación que estimuló el despegue de los estudios cuantitativos, o Geografía teorética, de gran auge a partir de entonces. Sin embargo, la expansión del enfoque teorético tuvo como resultado la declinación y el desprestigio de la Geografía en todo el mundo; poco a poco en las Ciencias Sociales se la consideró, injustamente, una disciplina lejana o definitivamente inútil. La geografía cuantitativa se especializó en los microanálisis, abandonando su objetivo principal que es el estudio global de la geografía del planeta. Sus seguidores pensaban que el uso de categorías generales en la investigación de problemas geográficos locales convertía a la disciplina en una actividad “no-científica”. Para darle el carácter científico, recuperaron el método lógico deductivo y la relación causal entre la geografía física y los fenómenos sociales propuestos por el positivismo lógico. Su fundamento teórico es que las localidades forman 15

parte de un todo funcional y están regidas por un orden; el objetivo de la Geografía, por lo tanto, es descubrir las leyes que rigen el orden de las relaciones en el sistema mediante modelos matemáticos, normativos o probabilísticos8. Fue en ese contexto de reinvención de la Geografía Humana que Jean Gottmann desarrolló su trabajo intelectual. Muchas de sus ideas tuvieron buena acogida en la disciplina, especialmente en el campo de la Geografía Urbana, pues supo integrar de manera armónica todos los procesos espaciales generados por la acción humana. A pesar de lo anterior, en lo que respecta a sus reflexiones sobre las fronteras y los límites territoriales, sus conceptos fueron muy avanzados y sofisticados para su época, sobre todo porque entonces el mundo era pensado exclusivamente en la división de dos sistema económicos y sociales: el comunismo y el capitalismo. Para Gottmann, el estudio fenómenos geográficos, incluidos los procesos de instalación de límites territoriales y fronteras, debe observar la dualidad del espacio geográfico, una perspectiva planteada originalmente por el biólogo teórico Claude Bernard (1813-1878). Esta dualidad se manifiesta en un entorno humano externo y otro interno. El entorno humano externo refiere al medioambiente natural que rodea y con el cual interactúa, en términos físico-químicos, el hombre. Por otra parte, el entorno humano interno —no bien definido a mediados del siglo XX, reconocía Gottmann— es el sistema complejo integrado por elementos históricos, étnicos, sociales, religiosos, culturales y económicos que condicionan la vida de una comunidad.9 En este sentido, según Gottmann, el primer paso para estudiar los fenómenos geográficos es definir el ambiente humano interno e identificar sus elementos permanentes, su fluidez (fluctuaciones políticas, sociales y culturales que la historia registra) y las fuerzas que lo mueven. En segundo lugar, este ambiente humano se materializa en espacios geográficos específicos, los cuales son dinámicos y mantienen una interrelación permanente. Por último, si bien el objetivo de la Geografía Humana es explicar la interrelación entre la geografía del planeta y los grupos humanos, el punto de partida es identificar las diferencias entre tales espacios a partir del ambiente humano interno en el cual se basa la organización del espacio y el uso social de los recursos10.

16

Los tres postulados anteriores forman la base epistemológica del enfoque propuesto por Gottmann para el estudio de las fronteras, al cual denominamos “teoría de la partición de los espacios humanos”. Por sus características teóricas y metodológicas, la propuesta de Gottmann es un enfoque teórico y metodológico de tipo holístico y dialéctico: es holístico porque interpreta a la realidad como una totalidad compleja; y dialéctico porque no intenta explicar fenómenos particulares a partir razonamientos deductivos o inductivos, sino los interpreta a partir de las fuerzas y procesos internos que los guían, los que a su vez siguen a fuerzas y procesos generales11. En el estudio de las fronteras, ciertos enfoques se concentran en el análisis de los factores causales que influyen en la fragmentación y división de los espacios humanos (poder, recursos naturales, riqueza de las naciones, etcétera), mientras que otros se especializan en describir los efectos espaciales de tales factores (conquista, zona de influencia, Hinterland, vordeland, enclaves, zonas de interpenetración, etcétera)12. En muy pocos estudios se presta atención a las relaciones espaciosociedad que influyen en el establecimiento y organización de las fronteras13. El enfoque de Gottmann sobre las fronteras parte de en esta consideración, y el primer concepto que se define es el de partición de los espacios humanos. El concepto espacio humano hace referencia al espacio geográfico ocupado y transformado por las comunidades humanas. Este espacio es limitado, en el sentido de que sólo es accesible en función de la tecnología de que disponen los grupos sociales. El espacio humano extiende sus límites con el desarrollo constante de las capacidades técnicas. El espacio geográfico que no está accesible a los grupos humanos no genera ninguna disputa, pero cuando las sociedades adquieren la tecnología necesaria para llegar a ese espacio, empiezan a dividirlo, dando origen a las disputas y reclamos territoriales que conocemos. Esto explica por qué el concepto de espacio humano está estrechamente relacionado al concepto “espacio político”; ambos son espacios humanos complejos y sintéticos (todos los aspectos de la vida humana están integrados en ellos) en lo físico y cultural, económico y social, militar y diplomático14. El espacio humano está subdividido en territorios ocupados, organizados, diferenciados y dominados por grupos sociales distintos, 17

los cuales dan forma a las comunidades políticas que a su vez presentan formas de organización económica y política diferentes. El proceso histórico de fragmentación, organización y diferenciación de territorios es la partición política del mundo. Se trata de un proceso persistente en las sociedades modernas, y al mismo tiempo es una de las representaciones simbólicas de la humanidad expresada en los mapas. Para Gottmann, el mapa es la representación imaginada de la fragmentación de los espacios humanos.

PARTICIÓN La categoría central en la concepción de las fronteras de Gottmann es el concepto de partición del espacio geográfico. Gottmann lo define como un proceso que consiste en dividir, organizar y diferenciar el espacio geográfico que es accesible a los grupos sociales.15 La partición ocurre cuando las áreas del planeta son ocupadas y transformadas por una comunidad humana, lo cual a su vez sólo es posible cuando esa comunidad posee cierta capacidad técnica y material. Por ejemplo, hasta 1947, la partición de los espacios marinos (mares, lecho y subsuelo marino) no estaba a discusión internacional; pero una vez que ciertas sociedades desarrollaron la tecnología para explotar recursos minerales submarinos, los mares fueron sometidos a un proceso intenso de división y diferenciación (mar territorial, mar patrimonial, mar internacional, etcétera). En 1982, una vez establecidas las reglas jurídicas y geográficas internacionales para fijar los límites marítimos, el proceso de partición se aceleró, transformando a los mares y océanos en una red compleja de compartimentos bajo dominio y jurisdicción exclusiva de los Estados16. El Mar Caribe es un claro ejemplo de ello. Al dividir un espacio, este adquiere singularidad, es único. Tal singularidad viene de los rasgos físicos del espacio dividido (compartimento), su ubicación, el sistema de relaciones que establece con otros compartimentos, y por sus zonas de frontera y áreas limítrofes. El sistema de relaciones entre compartimentos es producto de procesos históricos, por lo tanto las dimensiones de los compartimentos son 18

cambiantes, lo mismo que sus fronteras y límites17. Fragmentar el espacio geográfico no es suficiente para que un grupo social pueda apropiárselo, además se le debe organizar. La organización del espacio se expresa en normas de propiedad y posesión, individual o colectiva, de áreas del territorio. El espacio geográfico se le organiza por sus usos productivos, administrativos, sociales, culturales, recreativos, ambientales, religiosos, habitacionales, militares, etcétera 18. La organización del espacio exige la creación instituciones que aseguren la unidad e indivisibilidad de cada compartimento mediante la reproducción y protección de las estructuras sociales dominantes. Un fragmento del planeta ya dividido y organizado se diferencia de otros circundantes por numerosos factores, en parte geográfico-natural (ambiente humano externo) y en parte sociales (ambiente humano interno). El espacio geográfico ha sido diferenciado, primero, por factores físicos (clima, suelo, hidrografía) y naturales (plantas y animales) del planeta y por el reparto desigual de recursos; segundo, por la división y organización del espacio que le es accesible a los grupos sociales; tercero, por la división y organización política que desarrollan los Estados modernos. El fragmento del planeta que ha sido dividido, organizado y diferenciado por los Estados es el territorio. En palabras de Gottmann, el territorio es “un compartimento del espacio políticamente diferenciado de aquellos que lo rodean”19. Existen otros tipos de compartimentos—creados en otras épocas de la historia y por diferentes grupos sociales— lo mismo que definiciones y concepciones de fronteras para cada uno de esos compartimentos. También es posible encontrar diversas categorías de compartimentos: locales, territoriales, regionales (interiores e internacionales) y continentales. Todos los tipos de compartimentos y sus categorías existentes confirman que el mundo ha sido compartimentado y circundado por límites y fronteras20. La diferenciación de los espacios humanos se establece, en primer lugar, mediante una serie de componentes distintivos que un grupo social dice poseer y que no pertenecen a otros. Esos componentes son, según Gottmann: “el pasado histórico y su interpretación común a los miembros de una comunidad cultural, pero ajena para aquellos más allá de la frontera”; el ambiente humano externo local y, sobre todo, lo que la 19

gente piensa que ve en el medio físico y las condiciones sociales en las que vive; las creencias basadas en la religión, valores sociales o algunos patrones de memorias políticas, o en la combinación de estas tres ideologías. Gottmann denomina “iconografías” a estos componentes, y afirma que en estos se fundamenta la diferenciación de los espacios humanos21. En este marco, el límite es el área que marca el inicio y el fin de la diferencia y la identidad de una comunidad nacional; en tanto que la frontera es un espacio de interacción cultural intensa. Por todo lo anterior, la partición de los espacios humanos es un concepto geográfico-social a la vez que político —aunque en Ciencia Política es prácticamente desconocido. La partición política es una forma de acción sobre la geografía del mundo, un medio de control y dominio de espacios humanos, y una fuerza de unificación de regiones para conformar territorios. La delimitación territorial y la identificación de los límites territoriales sólo son posibles por la partición política del planeta22. Asimismo, la partición no sólo define las divisiones entre territorios nacionales, sino que además influye en las relaciones internacionales entre los Estados. Cambiar límites internacionales tiene consecuencias políticas nacionales e internacionales de gran trascendencia. Por ejemplo, en un proceso de partición, puede ocurrir que comunidades culturales mayoritarias pueden ser convertidas en minoría, y viceversa; o también que el balance de poder internacional sea alterado. Es por esta razón que mucha sangre ha corrido a causa de la modificación de los límites territoriales. La guerra de los Balkanes de la década de los noventa ha ratificado la importancia política de la partición del mundo. El caso de Kosovo sirve como ejemplo. La comunidad de origen albanés fue minoría en la provincia de Kosovo, pero al quedar separada la provincia del de Serbia, los albaneses se convirtieron en mayoría y los serbios en minoría. En términos geopolíticos, la creación del Estado de Kosovo ha incrementado la preocupación de otros Estados europeos de que otros movimientos secesionistas locales tomen fuerza y decidan imitar el ejemplo kosovar. Así pues, si la partición del planeta es un tema de gran importancia para la Geografía Humana, cabe preguntar entonces ¿Por qué la humanidad tiene necesidad de dividir, organizar y diferenciar el pedazo

20

del mundo que habita?¿Cuáles son los factores que conducen a los grupos sociales a fragmentar territorios mediante líneas de separación y a identificar las fronteras? Estas son preguntas fundamentales en el contexto de la globalización, pues existe la idea generalizada de que el mundo vive la homogenización y unificación de sociedades humanas y los territorios y, en consecuencia, los límites y las fronteras están en proceso de desaparición23. Parecería que las fuerzas de la globalización estarían impulsando la creación de una “gran aldea global”, a contra corriente de la partición del mundo. Sin embargo, la teoría de la partición de los espacios humanos sostiene que la geografía del planeta no ha dejado de ser heterogénea, y que las comunidades humanas continúan dividiendo, organizando y diferenciando el espacio que habitan. En consecuencia, las fronteras y los límites territoriales, antes que desaparecer, van adquiriendo nuevos usos con forme cambia la sociedad capitalista.

CIRCULACIÓN El espacio geográfico está caracterizado por la heterogeneidad y la diferenciación. En términos sociales, los espacios son representados según las diferentes culturas, tradiciones y prácticas sociales que ahí ocurren; términos geográficos, se caracterizan por la distribución desigual de recursos naturales, variedad de factores físicos, climas y vida animal y vegetal. Esta variedad de espacios humanos y geográficos se traduce en una amplia diversidad de regiones, todas diferenciadas e interconectadas24. Para Gottmann, el estudio de los fenómenos sociales debe partir de una concepción de la geografía como un sistema de espacios diferenciados e interconectados. Afirma que disciplinas como las Relaciones Internacionales, la Historia Política y la Geografía Política deben tener presente que la evolución de los espacios humanos diferenciados es el fundamento de cualquier investigación en sus campos de estudio respectivos25. Ahora bien, el sistema de espacios diferenciados no significa aislamiento ni separación permanente de grupos humanos, por el 21

contrario, es el terreno en el que se mueve y avanzan las fuerzas de circulación (en el sentido que Vidal de la Blache y Fernand Braudel le dan al concepto). La heterogeneidad espacial hace referencia a la desigual distribución geográfica de factores como recursos naturales, mano de obra, capital y tecnología; la mano de obra y el capital se concentran en ciertas localidades del planeta, igual como ocurre con la concentración de recursos minerales y energéticos. La heterogeneidad espacial es una condición que crea diferencias de potencial humano, lo que a su vez puede generar el flujo de los recursos antes mencionados. Es obvio que las sociedades demandan una gran variedad de productos y materias primas, muchos de los cuales no produce o posee. Esta demanda genera complementariedad de recursos a diferentes niveles, que van de lo local a lo global. Así pues, grandes poblaciones concentradas en pequeñas porciones de territorio, o la ausencia de mano de obra en otros lugares, constituye una diferencia de potencial humano que posteriormente puede dar origen a migraciones. Si todas las diferencias de potencial que existen en el mundo fueran sumadas, el resultado podría ser un gran capital de oportunidades económicas. Sin embargo, estas oportunidades no pueden traer resultados en tanto existan obstáculos, naturales o creados por el hombre, al flujo de recursos. Por lo tanto, para que exista ese flujo, se requieren conexiones. A lo largo de la historia la humanidad ha creado conexiones entre lugares con potencialidades diferentes. Los medios de comunicación y transporte han sido los instrumentos que las comunidades han utilizado para ampliar su campo de movimiento. A mayor movimiento, mayores beneficios económicos y culturales son cosechados, aunque en este proceso muchos grupos sociales han sido despojados de los beneficios. El resultado positivo de la expansión de movimiento y del intercambio a escala global ha creado una fuerza enorme que empuja hacia la vinculación económica regional del mundo. Esa fuerza es denominada circulación por Jean Gottmann26. Gottmann señala que el concepto circulación fue formulado por Vidal de la Blache, aunque no de una manera acabada en el marco de una teoría geográfica general. Agrega que el concepto condujo a Vidal de la Blache a remarcar la importancia de las ciudades como nodos en la

22

relación entre países y como lugares que organizan la vida en sus regiones. De esta manera, el uso del suelo aparece determinado por el sistema de relaciones exteriores que la circulación materializa y no por sus características geológicas, climáticas o biológicas. Gottmann va un poco más adelante y afirma: “El valor del espacio está determinado por sus usos sociales, no por los factores físicos que lo caracterizan”27. A diferencia de Braudel, Gottmann divide la circulación en dos órdenes: uno político, representado por el desplazamiento de personas, ejércitos, trabajadores y el flujo de ideas; el otro, materializado en el intercambio de mercancías, técnicas, capitales y materias primas28. La circulación de hombres, ideas y productos es la gran fuerza dinámica que transforma a los espacios humanos, pues permite organizarlos para producir bienes y recursos, al mismo tiempo que los diferencia de otros circundantes (regiones agrícolas, industriales, mineras, forestales, ganaderas, etcétera). Por ejemplo, las villas españolas en América que prosperaron, fueron sólo aquellas instaladas para cumplir la función de nodos para la circulación de personas y riquezas entre las colonias y la metrópoli. Otros poblados crecieron o “vegetaron” según fueron más o menos favorecidas por las corrientes de circulación que las atravesaban. Se puede señalar, por lo tanto, que las ciudades coloniales en la América española, y por extensión las regiones que dominaban, se desarrollaron o declinaron dependiendo de la apertura o cerrazón que tuvieron a la circulación29. Por otra parte, la circulación es una de las fuerzas que mueve la partición económico-social del mundo, lo cual es más evidente en el ámbito local. El triunfo de la circulación está asociado a la abolición de cualquier forma de obstáculo técnico, geográfico o cultural al libre flujo de factores económicos. Es por eso que en el pensamiento económico, las fronteras y los límites internacionales son el primer obstáculo que debe desaparecer. Gottmann observa que la generalización mundial de la circulación, si llegara a ocurrir algún día, conduciría a la abolición gradual de la heterogeneidad económica y social, pero no suspendería el proceso de partición del planeta. Se trata específicamente, agrega, de la abolición de “la injusticia geográfica y humana” y, con esta, de la mayoría de las causas de la guerra, el conflicto y las desigualdades sociales; la 23

apropiación, explotación y ejercicio del poder sobre los espacios seguiría manifestándose en formas insospechadas. Ahora bien, si las supuestas ventajas deque trae consigo la circulación son evidentes, entonces ¿Por qué ocurre la partición del mundo? Para Gottmann, la respuesta se encuentra en la existencia de una segunda fuerza, paralela a la circulación y la define como “iconografía”30. Circulación e iconografía son las dos fuerzas que mueven la geopolítica del mundo. Cuando la circulación triunfa, un espacio regional se unifica; por el contrario, el fortalecimiento de las iconografías locales conduce a la partición de regiones o al reforzamiento de lasfragmentaciones ya existentes.

ICONOGRAFÍAS El ideal de la unificación de la humanidad no es nuevo en la historia, afirma Gottmann. En ciertos momentos de la historia han surgido intentos de unificación regional, especialmente bajo la conducción de un gobierno imperial (Roma antigua, Imperio Británico, Imperio Mongol, Imperio Español, el imperialismo estadounidense, etcétera). Sin embargo, reconoce que las fuerzas de la circulación no son suficientes para alcanzar la unificación del mundo, pues existe otra aún más poderosa que promueve la partición del mundo, a la cual denomina iconografía. Para ejemplificar el proceso anterior podemos tomar el proceso de unificación-partición del imperio español en América. La mayor parte continente americano estuvo bajo dominio del imperio español. Dada la magnitud del territorio colonial, España lo dividió en diferentes unidades administrativas para poder defenderlo y explotarlo. Al colapsar el imperio español, la mayoría de esas unidades se convirtieron en repúblicas que a su vez lucharon entre sí por ganar o conservar un territorio supuestamente heredado. Cada antigua unidad administrativa reclamaba derechos territoriales, los cuales fueron satisfechos, en parte, a lo largo del siglo XIX mediante guerras y negociaciones diplomáticas, definiendo en gran medida el actual mapa político del continente31. Podemos observar que a los deseos de unificación del imperio español se impuso la fragmentación de la colonia en una realidad 24

heterogénea y compleja de territorios provinciales (distribución de la población, fragmentación y diversidad del medio físico, culturas, tradiciones, ideologías, instituciones políticas y económicas, etcétera). En cada uno de esos territorios, las élites criollas inventaron, recuperaron, desarrollaron y reprodujeron ideas, imágenes, percepciones y descripciones de sus respectivos territorios, las mezclaron con intereses e ideologías políticas y con ello construyeron su propio discurso de diferenciación e identidad territorial. El concepto iconografía en Gottmann debe ser entendido como una fuerza paralela —no necesariamente contraria— a la circulación, que estimula la fragmentación del mundo en diferentes formas de compartimentos, una de las cuales es el territorio. También es una fuerza que mantiene unidos a los sujetos que conforman comunidades culturales o políticas. El uso de iconografías para el análisis de los fenómenos geográficos no es de ninguna manera un método de interpretación de los símbolos sociales, sino que sirve para identificar a los símbolos que tienen un significado y un sentido territorial. Gottmann recurre a la siguiente metáfora para ejemplificar su definición del concepto. Se trata, dice, de un ícono que es el símbolo de una comunidad humana ligeramente diferente de los que caracterizan a otras comunidades; se trata de “un símbolo adornado con cualquier joya o riquezas que la comunidad pudiera abastecer y que se vuelve el orgullo de todos los miembros de esa comunidad”. Esas joyas y riquezas son ideas, objetos, emblemas y muchas otras cosas quetienen un alto valor simbólico para una comunidad. No se trata necesariamente de elementos identificados con la civilización o la cultura, pues para Gottmann estos conceptos tienen una definición muy general y, por lo tanto, son imprecisos para identificar identidades sociales. Por el contrario, el concepto iconografía tiene un contenido específico, no como una mera suma de símbolos, sino como elementos histórico-sociales que tienen una gran influencia en la percepción y concepción de los espacios humanos. En Gottmann, el concepto iconografía está presente en la raíz de la diversidad cultural del mundo. En este contexto, el concepto iconografía de Gottmann se opone al concepto “patrón cultural” de Franz Boas — 25

sobre el cual se apoya la definición de fronteras culturales en los estudios antropológicos de las fronteras— y al concepto histórico “civilización” de Arnold Toynbee —según el cual, el territorio y sus fronteras dependen del grado de desarrollo civilizatorio de las sociedades. Los conceptos patrón cultural y civilización han sido considerados por sus creadores como la base sobre la cual fueron construidos los territorios y, en consecuencia, sirven para definir la característica principal de las fronteras: son espacios de transición entre culturas o civilizaciones. Para Gottmann, las fronteras sólo pueden ser explicadas en el marco de una geografía del poder, entre otras cosas porque los elementos simbólicos incluidos en una civilización y una cultura son definidos, reproducidos y defendidos por las instituciones de poder de una comunidad. Por su parte, el concepto iconografía, como bien lo explica el geógrafo brasileño, Marcio Antonio Cataia, es una acción de autodefensa, una política de valor simbólico establecida en cada lugar, que juega el papel de cimiento entre miembros de una comunidad atada a un territorio32. Las iconografías estimulan la circulación al interior de un territorio, pero la obstaculizan hacia el exterior. Cuando una comunidad local considera que los beneficios obtenidos por la circulación no le son favorables, entonces reclama la secesión del territorio que habita. Este ejemplo nos permite comprender el concepto iconografía introduce la variable cultural en el análisis de las fronteras desde una perspectiva de la geografía del poder. La relación entre iconografías y partición de los espacios humanos se manifiesta de tres formas. Primero las iconografías hacen posible la relación triangular entre individuos, Estado y espacio humano; relación que conduce a la emergencia del territorio. El territorio refuerza los vínculos entre los individuos miembros de una sociedad política y se vuelve parte de sus iconografías. George Prevelakis precisa que “las iconografías no están hechas solamente de representaciones territoriales, aunque la mayoría de sus elementos tienen una relación con la territorialidad, real, imaginada o soñada”33. Religión, lenguaje, historia, tabúes, etcétera, son las iconografías integradas y movilizadas en la construcción de un discurso socio-territorial. Segundo, las iconografías son un elemento muy importante para

26

la identificación de los territorios por parte de las comunidades nacionales que los habitan. La identificación de los territorios nacionales ha sido realizada mediante mapas. Efectivamente, en los últimos dos siglos, la cartografía política ha utilizado la iconografía de la nación para reforzar la idea del territorio como el “cuerpo de la patria”, una práctica muy común en el proceso de partición de América durante los siglos XIX y XX. En los siglos previos al XIX, independientemente del atraso técnico en la cartografía, los mapas coloniales no describían con exactitud las divisiones de las unidades geográfico-administrativas, sino que eran simplemente la representación imaginada del espacio bajo dominio efectivo del monarca. El mapa, explica Alan K. Henrikson, posee un alto valor iconográfico, ya que representa simbólicamente las jerarquías de poder en los espacios geográficos34. Tercero, en las iconografías descansa la interpretación, en términos culturales, de la situación geopolítica del mundo en los diferentes períodos de la historia35. Los sistemas geopolíticos están fundados en iconografías, sin las cuales podrían derrumbarse ante las fuerza de circulación. La secesión y fragmentación territorial se explica precisamente por la confrontación y divorcio entre iconografías locales y la debilidad de la iconografía nacional. Así pues, es a través de este concepto que pueden descubrirse las fallas de la circulación en la unificación del mundo, y permite explicar por qué las comunidades locales se encuentran atadas al territorio y desarrollan diferentes estrategias contra las fuerzas de circulación que afectan sus identidades, incluidas la identidad con el espacio en donde viven. Además de esas tres formas que las vinculan con la partición de los espacios humanos, las iconografías se expresan geográficamente en diferentes niveles: parten de lo local y van subiendo a lo regional, nacional, regional internacional y global. En esta dimensión, las iconografías se observan más dinámicas y cambian al ritmo de las transformaciones sociales. En lo local, las iconografías son una especie de “pegamento” que mantiene unidos a los miembros de una comunidad cultural con el fin de moldear ideológicamente a una comunidad política. Además del pasado histórico, el medio ambiente local y creencias sociales y cosmogonía, las iconografías están integradas de cosas materiales e inmateriales, y su 27

importancia depende del valor simbólico que les otorguen los grupos sociales. Las cosas materiales se refieren a los paisajes sociales, los objetos para ritos religiosos, la comida, los utensilios de trabajo, la vestimenta, entre otros; en tanto que las inmateriales tienen que ver con las ideas, ideologías, costumbres, mitos, valores sociales, etcétera. La combinación infinita de estos elementos produce no una, sino muchas iconografías, aunque es sólo una es la que enraíza en cada grupo social específico y la reclama como parte de su identidad. La categoría de análisis identidad es fundamental para entender el concepto iconografía, pues sirve para explicar cómo son transformadas las mentalidades de los sujetos para convertirlos en ciudadanos de determinada entidad política. En el ámbito nacional, las iconografías se manifiestan en la esfera del poder del Estado. En este caso se conforman de símbolos de tres clases diferentes: valores sociales, acontecimientos históricos que fueron definitivos en la construcción de cada Estado, y la idea de organización social. Los Estados modernos, señala Gottmann, se declaran modelos puros, casi perfectos, de identidad nacional; procuran la estabilidad en el juego de las iconografías locales evitando que alguna de estas rompa con cualquiera de los tres símbolos nacionales mencionados.36 Finalmente, las iconografías globales estarían expresadas por aquellos símbolos que se expresan en términos de cosmografías, según el concepto de Johan Galtung.37 La más poderosa de estas iconografías globales es la llamada “civilización occidental”, la cual no sólo tiene que ver con simples expresiones culturales y de concepción del universo (ciencia), sino también cómo se divide el mundo en términos geopolíticos y geoeconómicos, y el reparto los espacios humanos entre las élites del poder mundial.38 En el caso de América Latina lo podemos ejemplificar con la Doctrina Monroe, que más allá de una simple proclama de política internacional de Estados Unidos, es la identificación de un espacio del planeta (hemisferio occidental) bajo el dominio económico y político de una potencia y en donde debe imperar la forma de organización social del modelo liberal (liberalismo político y liberalismo económico). La manifestación de esas tres dimensiones geográficas no significa que las iconografías sean estables y duraderas, por el contrario, para Gottmann la estabilidad de las identidades no es permanente, como tampoco es homogénea la actitud social hacia el cambio. Asimismo,

28

iconografías de distintas dimensiones pueden coexistir localmente y otras veces chocar entre sí. También puede ocurrir que una iconografía local entre en contradicción con otra exterior, denominada iconografía imperial. Todas las combinaciones posibles coexistencia de iconografías dan por resultado un sistema amplio y diverso de interacción de iconografías, expresado en diferentes dimensiones espaciales. Conflictos o alianzas de iconografías han guiado la historia de amplias regiones del mundo – el Caribe es un excelente ejemplo de ello. En los dos últimos siglos, sin embargo, en Occidente toda esa interacción entre iconografías ha sido sintetizada en una sola, e impuesta sobre todos los individuos que habitan el territorio bajo dominio de un Estado: la iconografía de la nación. Para ejemplificar un sistema de interacción de iconografías en dimensiones geográficas distintas podemos utilizar a la Comunidad de América del Norte. En este caso se observa la manipulación de los gobiernos de Canadá, Estados Unidos y México en favor de la iconografía denominada “América del Norte”, materializada en la Alianza para la Prosperidad de América del Norte. Con esta manipulación a través de los medios de comunicación se persigue reforzar las identidades de ciertos grupos sociales (empresarios), los cuales eventualmente serán los promotores del proceso de integración económica y política regional. La estrategia de los tres gobiernos y sus grupos de apoyo es desvincular del proceso de integración a los grupos inconformes; particularmente de los movimientos y organizaciones sociales que protestan por los efectos negativos en la reorganización de sus territorios, y adoptan una posición crítica desde la identidad local. Por lo tanto, el éxito de la iconografía “América del Norte” depende del control de los grupos disidentes, y del grado de aceptación y adhesión del resto de los miembros de las comunidades locales a las ideologías y valores políticos inherentes a la iconografía de la “comunidad” regional. De regreso al eje del tema, las iconografías son muy importantes para las sociedades modernas por diferentes motivos. Sin embargo, no está muy clara su efectividad para alcanzar objetivos políticos, ni tampoco su “razón de ser” para determinadas políticas de gobierno. Se podría suponer que las iconografías son muy útiles para garantizar la estabilidad política de los gobiernos, pues aparentemente los ciudadanos estarían 29

listos y dispuestos al sacrificio para “defender a la patria” o a las instituciones ante los ataques de enemigos internos o externos. La realidad es distinta, pues existen casos en la historia, particularmente en América Latina, en los que se confirma que el uso de iconografías con fines político-militares ha traído consecuencias inesperadas, incluso contraproducentes; recordemos la guerra de las Malvinas. Otra forma de utilizar a las iconografías con fines políticos es el aislamiento de una comunidad nacional. Esta práctica ha sido realizada por sociedades antiguas como Japón (siglos XVII al XIX) y China, y recientemente países como Albania y Afganistán; en América Latina el caso más representativo ocurrió en el Paraguay a mediados del siglo XIX. En todos estos casos, el aislamiento endureció las iconografías creadas y reproducidas desde el Estado. Asimismo, los gobiernos tienden a recurrir a símbolos negativos para explicar ciertos fenómenos sociales y justificar acciones políticas. Las sociedades, al igual que los individuos, tienen diferentes capacidades para adaptarse a los cambios, aunque algunas estén más amenazadas que otras. Sin embargo, ninguna sociedad puede adaptarse a la circulación plena, en la misma medida en que ninguna persona es capaz de reinventar constantemente su estilo de vida. Por ejemplo, aún hoy las sociedades consideradas más “abiertas” de Occidente sufren el estrés de la inmigración y tienden a restringir el movimiento de personas a través de sus fronteras, generando diferentes tipos de discursos para justificarlo, desde posturas económicas hasta de extremismo racial. Así pues, los gobiernos tienden a fortalecer simultáneamente las iconografías locales y determinadas iconografías regionales. Esta política tiene un impacto profundo en el territorio y en la territorialidad, lo cual se manifiesta en el endurecimiento de la partición política y el establecimiento de fronteras vigiladas y permanentemente protegidas. LA RELACIÓN CIRCULACIÓN-ICONOGRAFÍAS De acuerdo con Jean Gottmann, las iconografías son permanentemente reemplazadas o reinventadas a causa de los retos que les impone la circulación de personas, bienes e ideas. Por otra parte, son un mecanismo ideológico de defensa utilizado para evitar o reducir los 30

costos generados por los impactos negativos de la circulación sobre el Estado y sus instituciones. La circulación produce cambios en los espacios humanos. El comercio modifica los términos de la competencia en una economía regional cuando productos nuevos y baratos son introducidos al mercado nacional, afectando la economía de los productores locales. Nuevas ideas penetran en las sociedades a través de la circulación y produce cambios en los comportamientos de las poblaciones. De esta manera, para las mentes conservadoras, el cambio es equivalente a corrupción. Para evitar lo anterior, lo conveniente es minimizar la circulación recurriendo a las iconografías. Así pues, la circulación es regulada por las iconografías. La partición es un evento político, producto de la interacción entre iconografías, locales y regionales, y la fuerza de circulación entre localidades específicas. Es por esta razón que la partición es dinámica. Los límites territoriales cambian a pesar de los esfuerzos por reducir esos cambios al mínimo y de los deseos por preservar el status quo. Aunque la figura de los territorios permanece inmóvil durante algún tiempo y los gobiernos expresan posturas favorables a la circulación, la partición del mundo continúa desarrollándose de la manera más sutil. Aún en Europa, en donde las fronteras de los países de la Unión parecen debilitarse y dirigirsea su desaparición, las fronteras exteriores existen en lo que se conoce como en “centro europeo” y la “periferia europea”. En las fronteras externas (límites y zonas de frontera) de la Unión Europea aún existen mecanismos de control y vigilancia rigurosa a la circulación, especialmente con Rusia y África. En este sentido, utilizando palabras de Gottmann: la intangibilidad de las fronteras no limita ni frena la partición de los espacios humanos. Esas dos fuerzas, la circulación y las iconografías, no siempre funcionan de manera coordinada en una misma dirección, fragmentar o unificarun espacio geográfico. En ocasiones la circulación es capturada por alguna iconografía y sirve a los propósitos de cierto grupo social. Otras veces, la circulación inventa sus propias iconografías. De esta manera, por ejemplo, el discurso de la integración latinoamericana está basado en el reconocimiento a las diferencias e identidades subregionales y el respeto a la autodeterminación. Reconoce también, la integración económica y la separación política; la creación de áreas comercio 31

subregionales, separadas de las economías de otras subregiones. La identidad latinoamericana ha creado su propia iconografía, el ideal bolivariano, sin embargo no tan efectivo ni tan fuerte como la iconografía imperial, la unión hemisférica (panamericanismo) liderada por Estados Unidos. La iconografía de la integración latinoamericana dio lugar a nuevas regiones como el Mercosur. Esto confirma que la fuerza de las iconografías no siempre obstruye a la fuerza de circulación, por el contrario, la redistribuye y la regula. La relación dialéctica entre las fuerzas de circulación y las fuerzas de las iconografías facilita interpretar la evolución de la geopolítica del mundo en diferentes lugares y momentos. También nos permite observar la historia dinámica de las fronteras, los cambios constantes en el mapa político del mundo. El papel de la circulación es tan importante en la partición política del mundo, como es el de las iconografías.

LAS FRONTERAS Y LOS LÍMITES TERRITORIALES EN EL PARADIGMA DE LA PARTICIÓN DEL MUNDO El fin del sistema mundial bipolar llevó consigo la crisis de los paradigmas de análisis de las regiones humanas. Los enfoques economicistas, tanto marxista como liberal, probaron su ineficacia para explicar las guerras y conflictos políticos por reclamos territoriales. Las interpretaciones más extendidas fueron desarrolladas por los enfoques político-jurídicos, en los que la diplomacia, el Derecho Internacional y la política internacional determinaron la delimitación territorial del mundo. A diferencia de los enfoques anteriores, lateoría de la partición de los espacios humanos ofrece una propuesta de interpretación de las fronteras y los límites territoriales más amplia, pues no sólo incluye variables políticas y económicas, sino que además agrega la variable cultural. Asimismo, se distingue de los enfoque culturalistas y antropológicos en que evita usar conceptos ambiguos como cultura y civilización, los cuales reducen la percepción las fronteras a meras zonas contacto. Lasobre-dimensión cultural de las fronteras cae frecuentemente en el 32

exceso de negar o augurar su futura desaparición como lo sostienen las interpretaciones economistas. Por lo tanto, la teoría de la partición de los espacios humanos es una visión holística de las fronteras, pues observa el proceso de construcción de estos espacios desde las perspectivas económica, jurídico-política y cultural. En este sentido coincide con la interpretación de la historia total de Annales. Para Gottmann, el límite territorial es jurídicamente una línealímite, y la frontera es una zona de interacción humana39. Sin embargo, ambos son espacios periféricos, cuyo origen es resultado de la partición de la geografía del planeta y su primera función es la diferenciación de los compartimentos en los que ha sido dividido el mundo, incluidos los territorios. En el proceso de partición, la frontera y el límite son los instrumentos utilizados por los Estados para dividir, marcar y diferenciar sus territorios. Las distintas sociedades históricas han definido las funciones de sus frontera, desde los limes romanos, los pagus de los turcos, la muralla de los chinos, etcétera, hasta las actuales fronteras geopolíticas. Cada una de estas concepciones de la frontera está relacionada, invariablemente, al equilibrio de fuerzas entre la circulación y las iconografías.40 Las distintas concepciones de frontera que han existido en la historia se derivan de los “sistemas de compartimentos”. Como mencionamos anteriormente, un sistema de compartimentos es la división del territorio en circunscripciones —no necesariamente coincidentes con el territorio estatal— que cumplen fines específicos (áreas administrativas, económicas, judiciales, militares, religiosas, etcétera). La definición y extensión de esos compartimentos han variado con el tiempo en las distintas sociedades. En consecuencia, los límites y fronteras han sido reubicados, borrados o redibujados de acuerdo con los cambios definidos por el grupo en el poder en el sistema de compartimentos. Poner atención en el sistema de compartimentos nos permite analizar el enramado de límites y fronteras existentes en un territorio, además de que facilita distinguir a las fronteras en su distintas dimensiones: “fronteras de grandes “bloques de países”, fronteras de imperios, de los Estado nacionales, en regiones al interior de los Estados, de en aglomeraciones urbanas y distritos rurales, etcétera. Como bien 33

observa Gottmann, nuestro mundo está infinitamente “compartimentado” y marcado por límites y fronteras.41 Concentrémonos en el sistema de compartimento de los territorios nacionales. Al respecto, Gottmann señala que la partición de los espacios humanos en territorios ha fluido a lo largo de la historia. En este proceso, la política del Estado ha sido necesaria para mantener la unidad del territorio, especialmente a través de medidas que refuerzan la diferenciación respecto de los otros territorios que lo rodean. El principio de diferenciación del territorio es uno de los elementos que permite comprender las relaciones entre los espacios humanos y la organización que estos soportan; es claramente observable en el campo del Derecho Internacional, donde la historia de la reglamentación internacional sobre usos y soberanía y apropiación de los espacios terrestres, marítimos, submarinos y aéreos se ha realizado con base en la diferenciación.42 Ahora bien, las fronteras y los límites sirven para marcar la diferenciación de los territorios, no sólo mediante medidas políticas, sino sobre todo en las iconografías de las comunidades nacionales. Para Gottmann, las formas más importantes de fronteras están en las mentes de las comunidades nacionales y no en el territorio mismo.43 En este sentido, la idea de fronteras seguras, porosas, peligrosas, móviles, cerradas, abiertas, etcétera, no son atributos inherentes a las fronteras, sino cualidades asignadas por las comunidades culturales que ahí viven. El proceso de partición del planeta en compartimentos territoriales es el que explica el origen permanencia y cambio de los límites y las fronteras.44 Los límites y las fronteras no sólo sirven para que un territorio sea diferenciado de otros circundantes, también para marcar la división y organización de este. En sentido estricto, las fronteras y los límites no aparecen por la búsqueda de la diferenciación del territorio, sino como consecuencia de la partición espacial. Esta concepción nos permite comprender por qué la delimitación territorial es un problema político entre Estados vecinos. En cuanto a las fronteras en su dimensión política, Gottmann explica este asunto con base en el modelo centro periferia. Este modelo está basado en la división territorial establecida por los Estados nacionales centralistas, para los cuales la ciudad capital es el corazón políticoeconómico-administrativo del país. El Estado centralista fue impuesto

34

en la división territorial de América Latina durante el siglo XIX.45 Según dicho el modelo, las zonas de frontera están subordinadas al centro, en términos políticos y económicos. Las fronteras reciben determinadas cualidades estratégicas y de seguridad, tanto militar como comercial, por el gobierno central. En ciertos casos, estos espacios llegan a dominar la estructura de poder nacional, en el sentido de que en ellas descansan supuestas situaciones que amenazan al conjunto del Estado, principalmente a su elemento territorial.46 En Gottmann, el modelo centro periferia es utilizado de dos maneras para estudiar a las fronteras. La primera, para explicar la relación entre espacios simbólicos diferenciados, aunque interdependientes. En esa relación, la frontera es representada como zona periférica en donde ocurre el conflicto, los desencuentros sociales, la aventura, la descarga de agresividad. La frontera circunda al territorio nacional, el cual a su vez representa la seguridad, el reposo, un ambiente propicio para la producción económica, la continuidad de valores, es un espacio sagrado.47 La segunda manera en que Gottmann utiliza el modelo es para descubrir el patrón de relación sistémica entre el centro nacional y las fronteras. En este caso, el centro nacional y la frontera son dos espacios diferenciados en términos políticos, y la relación que mantienen es de dominio (centro) y subordinación (periferia).48 Cabe observar la similitud que guarda el modelo centro-periferia de Gottmann con el modelo de la polaridad centro-periferia en el sistema mundo capitalista de Immanuel Wallerstein. En los estudios de éste último, se explican la emergencia del sistema mundo moderno contrastando las ventajas relativas de los imperios políticos (un sistema de control centralizado del sistema, la propensión del Estado a cerrar y defender sus fronteras, una burocracia jerárquica y un aparato de control de las fronteras) con el sistema económico capitalista (diferenciación de los espacios económicos del planeta en centro, semi-periferia, periferia). En todo caso, el modelo centro-periferia que utiliza Gottmann considera a estos espacios como un sistema funcional a la vez que un sistema simbólico. El modelo esquematiza la relación entre el centronúcleo del poder nacional (capital) y la periferia fronteriza, resaltando la inestabilidad en dicha relación. No se trata de una relación geométrica, expresada en distancias y ubicación, sino en las políticas de organización 35

y reorganización del espacio geográfico, cuyo fin es conservar la relación de domino-subordinación y corregir los factores que provocan la inestabilidad social en la periferia. Al respecto, Owen Lattimore señala que cuando una región periférica protesta al centro su situación de subordinación, estaría buscando compartir las funciones de centralidad o reemplazar la estructura existente para convertirse, a su vez, en centro con su propia periferia;49 esto último es una secesión territorial, en la que ocurre una ruptura entre élites de poder local. Lattimore explica este fenómeno con evidencia empírica para Asia Central, aunque también puede hacerse con los ejemplos de las independencias de las colonias españolas en América y posterior fragmentación en territorios nacionales. En algunos estudios de frontera (Friedrich Ratzel) se acepta como un hecho dado que el surgimiento de las sociedades políticas ocurrió en un área central y posteriormente fue irradiada hacia las periferias, espacios en donde el desarrollo cultural estaba más retardado. En otros estudios se establece que en la periferia fue donde se cultivaron aquellos elementos distintivos de ciertas sociedades nacionales (Frederick Turner y seguidores). La concepción espacial que se observa en estas interpretaciones de la frontera es de una relación geométrica simple entre el centro y la periferia, pues se presupone una situación de equilibrio en la distribución geográfica de factores de circulación y de estabilidad en el proceso de construcción de la identidad nacional. Asimismo, en esa relación geométrica, la frontera es un espacio de avanzada de los factores nacionales de circulación y de la identidad nacional.50 A diferencia de las interpretaciones anteriores, en Gottmann, así como en Owen Lattimore, el punto de partida para el análisis de las fronteras debe ser el proceso de organización y reorganización del centro y la periferia, y los cambios que ese proceso genera en las relaciones de dominio subordinación entre tales polos espaciales. Sólo mediante un análisis de este tipo es posible descubrir cómo determinada organización social permitió o impidió el desarrollo de innovaciones en la periferia fronteriza. Los grupos sociales construyen fronteras (lingüísticas, religiosas, étnicas, etcétera) entre ellos y con el exterior a partir de imágenes, ideas,

36

valores, actitudes, percepciones y expectativas.51 En este esquema, el centro es el lugar sagrado que define la identidad y la seguridad de una comunidad, mientras que la frontera representa al límite exterior de la periferia, es un lugar que marca el inicio de la diferencia del grupo social, a la vez que representa lo desconocido, lo peligroso y salvaje; es un lugar frecuentemente deshabitado. Esta percepción de la frontera está basada en elementos psicológicos y socioculturales, los mismos que han trascendido en nuevos enfoques de las fronteras. Precisamente el debate sobre las percepciones psicológicas y socioculturales de las fronteras podemos encontrarlo en Geografía Política, donde ciertos autores consideran a la frontera como una línea de separación entre comunidades políticas hostiles (Ratzel, Robert Holdich) (función negativa), y los que la definen como zona de encuentro, e intercambio (interpenetración) entre comunidades vecinas (función positiva) (Camille Vallaux, L. W. Lyde). La aproximación que propone Gottmann no considera las funciones de las fronteras en negativas o positiva. Para él, fronteras forman parte de un sistema espacial complejo, el cual abarca todos los niveles del sistema social.52 El carácter funcional de las fronteras tiene que ver con los atributos que las instituciones de poder y las comunidades culturales le asignan a estaos espacios periféricos. Es debido a estos atributos simbólicos que las instituciones conciben y justifican su comportamiento y actitudes respecto a determinados fenómenos que ocurren en los límites de la periferia. La frontera está caracterizada por la representación simbólica de la diferenciación; es un espacio geográfico que corta, divide, separa y diferencia grupos sociales. Para finalizar, el modelo centro-periferia permite expresar dos ideas fundamentales sobre las fronteras. Primero, la frontera se convierte en símbolo de la organización del espacio alrededor del centro-núcleo y del conjunto del espacio habitado por la nación (el territorio). Segundo, en este simbolismo de organización del espacio, el Estado intenta establecer un orden entre la oposición entre capital central y frontera (periferia subordinada), lo cual sugiere que probabilidad de confrontación entre ambos espacios. Es en esta confrontación en donde, eventualmente, germinaría un nuevo proceso de partición de los espacios humanos.53

37

CONCLUSIONES La teoría de las particiones de los espacios humanos es un enfoque a las relaciones espacio sociedad que influyen en el establecimiento y organización de los límites territoriales y las fronteras. En este punto radica la principal diferencia de otras teorías de fronteras, especialmente de las visiones deterministas (histórico-diplomáticas, geopolíticas, culturalistas) que han dominado en este campo. El espacio humano es el espacio geográfico ocupado y transformado por las comunidades humanas. Está subdividido en diferentes compartimentos, uno de los cuales es el territorio.Todos esos compartimentos han sido organizados, diferenciados y dominados por grupos sociales distintos. Tales grupos crean comunidades políticas, las que a su vez presentan modelos de organización política y económica diferentes. Son precisamente las comunidades políticas las encargadas de dirigir el proceso de partición del mundo. El concepto “partición” se entiende como el proceso de división, organización y diferenciación de los espacios geográficos accesibles a los grupos sociales. La partición ocurre cuando las áreas del planeta son ocupadas y transformadas por una comunidad humana, lo cual a su vez sólo es posible si esa comunidad posee cierta capacidad técnica y material. El fragmento del planeta que ha sido dividido, organizado y diferenciado por los Estados es el territorio, aunque existen otros tipos de compartimentos definidos por los diferentes grupos sociales. Para cada uno de esos compartimentos existen definiciones precisas para la frontera y los límites que los circundan. El proceso histórico de partición del mundo es la clave para entender las transformaciones en la concepción de las fronteras, y también para explicar porque aparecen, cambian y se desvanecen. La partición es de los espacios humanos es económica, social, cultural y política. Una de sus formas, la partición política, es la que conduce a la instalación de límites territoriales, e influye en las relaciones internacionales entre los Estados. En este sentido, la partición política 38

es un concepto geopolítico de gran trascendencia en las relaciones de poder mundial. La partición de los espacios humanos es conducida por dos fuerzas, a veces complementarias, aunque casi siempre antagónicas. Por ejemplo, cuando la circulación triunfa y un nuevo espacio regional se unifica, los grupos de poder inventan un discurso de contenido geográfico basado en iconografías. Ese discurso debe ser de tal fuerza simbólica que impida o nulifiqueal reforzamiento de las iconografías que se oponen a la unificación. . La relación entre circulación e iconografías siempre está presente en el proceso de partición de los espacios humanos. La circulación genera cambios en las comunidades locales expuestas al flujo de ideas, mercancías y personas. Ante el temor de los efectos desconocido de esos cambios, los gobiernos recurren a las iconografías para regular o redirigir a la circulación. La relación dialéctica entre las fuerzas de circulación y las fuerzas de las iconografías facilita el estudio de la partición del mundo, en diferentes lugares y momentos. También permite analizar la historia dinámica de las fronteras y los cambios constantes en el mapa político del mundo definido por los límites territoriales. El papel de la circulación es tan importante en la partición política del mundo, como es el de las iconografías. La teoría de la partición de los espacios humanos es una propuesta de interpretación de las fronteras y los límites territoriales holística, pues no sólo incluye variables políticas y económicas, sino que además agrega la variable socio-cultural con el concepto de iconografía.

NOTAS EXPLICATIVAS 1

Dr. en Historia Moderna. Profesor del Departamento de Estudios Internacionales de la Universidad de Quintana Roo, México. E-mail: [email protected] 2

Según datos de Luca Muscará (“Complete”, 2003), Jean Gottmann escribió cerca de 400 títulos, entre artículos, capítulos de libro y libros completos. 3

Luca Muscarà es el traductor de Gottmann al italiano. Véase de este autor: “Gottmann”, 2005;”Complete”, 2003; Strada, 2005. 4

Gottmann, “French”, 1946, p.80.

5

Gottmann, “Background”, 1942, p. 202.

6

Gottmann, “French”, 1946, p.86.

39

7

Gottmann, “Background”, 1942, p. 206.

8

Gottmann, “Geography”, 1951, p. 171; Chicarro, 1987, p. 47.

9

Gottmann, “French”, 1946, p.87; Gottmann, “Méthode”, 1947, p. 8.

10

Gottmann, “French”, 1946, p.87.

11

Galtung, Investigaciones, 1995, p. 34

12

Sobre el método causal en el análisis de la geografía humana véase, Gottmann, “Méthode”, 1947.

13

Gottmann, “Geography”, 1951, p. 154; Gottmann, “Political”, 1952, p. 153.

14

Gottmann, Politique, 1952, p. 4; Gottmann, “Political”, 1952, p. 154.

15

Gottmann, “Political”, 1952, p. 153.

16

Gottmann, “Political”, 1952, p. 512-13.

17

Gottmann, “Political”, 1952, p. 514.

18

Gottmann, Politique, 1952, p. 5.

19

Gottmann, Politique, 1952, p. 70.

20

Gottmann, Politique, 1952, p. 5.

21

Gottmann, “Geography”, 1951, p. 163.

22

Gottman In, “Doctrines”, 1947, pp. 17-18.

23

Strange, Retirada, 2002.

24

Gottmann, Politique, 1952, p. 4-5.

25

Gottmann, “Geography”, 1951, p. 156.

26

Gottmann, Politique, 1952, p. 215.

27

Gottmann, Politique , 1952, p. 49;

Gottmann, “Méthode”, 1947, p. 6-7. 28

Gottmann, Politique, 1952, p. 215.

29

Gottmann, Politique, 1952, p. 215.

30

El concepto iconografía proviene de historia del arte, donde tiene dos acepciones: como símbolos, su significado y su sentido histórico social; y como la búsqueda y análisis de ideas implícitas en un trabajo de arte, colocando éste en su contexto histórico – para esta definición se utiliza también el término iconología. El concepto fue acuñado hacia finales del siglo XVI por Cesare Ripa en Iconología; un manual que ha servido de guía para interpretar los símbolos y alegorías de la cristiandad, y de las culturas griega, romana y renacentista. Fue recuperado por el historiador del arte Abraham Moritz Warburg (conocido también como Aby Warburg, 18661929) en su tesis sobre “transmisión de la iconografía antigua a la cultura europea moderna”. La idea de las iconografías de Gottmann está influenciada, sin duda, por las teorías de Warburg. Sobre el origen del concepto. Véase Cosgrove y Daniels, Iconography, 1989. 31

García, “Estudio”, 2003, p. 73.

32

Cataia, “Geopolitica”, 2006, p. 50.

33

Prevelakis, “Jean”, 2002, p. 7.

34

Henrikson, “America’s”, 1980, p. 75.

35

Muscarà, “On Gottmann”, 2005, p. 1.

36

Muscará, “From Gottmann”, 2003, p. 61.

37

Galtung, Peace, 1996; Galtung, Investigaciones, 1995.

38

Muscará, “From Gottmann”, 2003, p. 61.

39

Gottmann, Politique, 1952, p. 122

40

Gottmann, Politique Social Sciences, realizado en el Institute for the Advancement of the Social

40

Sciences, Universidad de Boston - diciembre 6-7, 2002.STRASSOLDO, Raimondo. Centre-Periphery and System-Boundary: Culturologycal Perspectives, In Jean Gottmann (editor) Centre and Periphery.Spatial variations in politics, Beverly Hills.: Cal, Sage Publications, 1980, 1952, p. 5. 41

Gottmann, Politique, 1952, p. 5.

42

Gottmann, Politique, 1952, p. 6.

43

Gottmann, Politique, 1952, p. 224.

44

Gottmann, “Geography”, 1951, p. 158-59.

45

Jean-Claude Thoening distingue dos modelos de división político administrativa del territorio: el centralista, influenciado por el derecho romano; y el federalista, en el que las relaciones espaciales son de carácter intergubernamental. Véase, Thoening, “Territorial”, 2006, p. 281. 46

Gottmann, “Centre”, 1980, p. 16.

47

Audrey, Territorial, 1969. Galtung, Investigaciones, 1995.

48

Strassoldo, “Centre”, 1980, p. 27-28.

49

Lattimore, “Periphery”, 1980.

50

Gottmann, “Organizing”, 1980, p. 217.

51

Strassoldo, “Centre”, 1980, p. 45.

52

Strassoldo, “Centre”, 1980, p. 44-45.

53

Gottmann, “Centre”, 1980, p. 17, 20.

REFERÊNCIAS AUDREY, Robert. The Territorial Imperative.A Personal Inquiry into the Animal Origins of Property and nations, New York: Kodansha America Inc, 1969. CHICHARRO Fernández, E. Notas sobre la evolución del pensamiento geográfico, In: Anales de Geografía de la Universidad Complutense, 1987, num. 7. COMPAGNA, Francesco; MUSCARA, Calogero. Regionalism and Social Change in Italy. In: Jean Gottmann (editor) Centre and Periphery.Spatial variations in politics, Beverly Hills, Cal, Sage Publications, 1980. COSGROVE, Denis; DANIELS, Stephen. The Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic Representations, design and Use of Past Environments, Cambridge, Mass., Cambridge University Press, 1989. GALTUNG, Johan. Investigaciones Teóricas. Sociedad y cultura contemporáneas, Madrid: Tecnos, 1995. ________________. Peace by Peaceful Means: Peace and Conflict, Development and Civilization, London: Sage, 1996. GOTTMANN, Jean. The Background of Geopolitics, In Military Affaires, Vol. 6. Nº. 4, Society for Military History (Invierno), 1942. _________________. French Geography in Wartime, In Geographical Review, Vol. 36, No. 1 (enero), 1946. _________________. De la méthode d’analyse en Géographie Humaine, en Annales de

41

Géographie, Vol. 56, Núm.301, 1947. _________________. Doctrines géographiques en politique, In Mirkine-Guetzévitch, B. (editor) Les doctrine politiques modernes, New York, Brentano’s Inc, 1947. _________________. Geography and International Relations, In World Politics, Vol. 3, No. 2 (enero), 1951. _________________. The Political Partitioning of Our World: An Attempt at Analysis, In World Politics, Vol. 4, No. 4 (Julio), 1952. _________________. La politique des États et leur géographie, Paris : Librairie Armand Colin, 1952. _________________. Megalopolis: The Urbanization of the Northeastern Seabord of the United States, New York: Twentieth Century Fund, 1961. _________________. The significance of territory, Charlottesville, The University Press of Virginia, 1973. _________________. “Confronting Centre and Perifery”, In Jean Gottmann (editor) Centre and Periphery. Spatial variations in politics, Beverly Hills: Cal, Sage Publications, 1980. _________________. Les frontièrs et les marches cloisonnement et dynamique du monde, In Kishimoto, H. La Géographie et ses frontièrs. Une publication en mémoire de Prof. Dr. Hans Boesch, Berne, Kümmerly-Frey, 1980. _________________. Organizing and reorganizing the space, In Jean Gottmann (editor), Centre and Periphery.Spatial variations in politics, Beverly Hills: Cal, Sage Publications, 1980. HENRIKSON, Alan K., America’s Changing Place in the World: From Periphery to Centre?, In Jean Gottmann (editor) Centre and Periphery. Spatial variations in politics, Beverly Hills,: Cal, Sage Publications, 1980. HOFFMAN, George W. Variations in Centre-Periphery Relations in Southeast Europe, In Jean Gottmann (editor) Centre and Periphery. Spatial variations in politics, Beverly Hills.: Cal, Sage Publications, 1980. MUSCARÁ, Calogero. From Gottmann to Gottmann: Testing a Geographical Theory, In Ekistics, Vol. 70, No. 418/419, enero-abril -2003. MUSCARÀ, Luca, The complete bibliography of Jean Gottmann, In Ekistics, Vol. 70, Núms, 418/419, enero-abril -2003. _______________. A Gottmann Approach, ponenciapresentada en el Taller Internacional Cultures and Civilization for Human Development, Roma, Home of Geography Villa Celimontana, diciembre 12-14 - 2005. _______________. La Strada di Gottmann. Trauniversalismi Della storia e perticolarismi Della geografia, Roma: Nexa, 2005. PREVELAKIS, George. Jean Gottmann’s relevance in today world, artículopresentado en The Earhart Foundation Conference on the State of the

42

TEORIA DAS FRONTEIRAS E TOTALIDADE1

Eric Gustavo Cardin2

Existem múltiplas formas de viver a fronteira, a grande maioria delas ocorre de maneira despercebida pelos próprios moradores das regiões limítrofes. Habituados a cruzar as pontes, os rios e as ruas que separam os diferentes países vizinhos do território brasileiro, a população fronteiriça possui uma relação muito particular com a situação no qual se encontra. Diferente dos visitantes e turistas que pensam e guardam no imaginário o simbolismo de estarem em uma nação diferente da sua, os moradores locais, das “raias” brasileiras, tem tais sensações mais naturalizadas, inserindo as possibilidades fronteiriças cotidianamente em suas experiências e, consequentemente, na organização das estratégias necessárias para o desenvolvimento de suas práticas sociais. Isso não quer dizer que eles não sabem, não percebem ou não consideram à existência de distinções políticas e jurídicas derivadas das respectivas configurações nacionais durante suas trajetórias de vidas e nos seus modos de viver. Para o observador externo ou para o “nativo”, “a fronteira está lá” e “estando lá” ela se faz presente no estoque de conhecimento construído historicamente pelos habitantes das regiões fronteiriças. Em outras palavras, ela é uma variável que se soma as demais dimensões sociais que constituem o ser social. O resultado disso se apresenta de maneira aparentemente muito simples. A fronteira corresponde a um elemento presente e constante na vida e nas estratégias de sobrevivência desenvolvidas pelos sujeitos que vivem na e da fronteira. Indo além de sacoleiros, laranjas, kileros, paseros, mulas e chiveros, colocando em um campo de espera os grupos criminosos que criam complexas redes no intuito de explorar e se beneficiar de maneira 43

sistemática dos antagonismos da fronteira, observa-se que esta é importante, para não dizer determinante, para uma população que escolhe e planeja todos os dias suas ações futuras no interior de um universo caracterizado por possibilidades fornecidas pelas diferenças existentes entre os países (GRIMSON, 2005). Pobres ou ricos, membros de diferentes grupos étnicos e religiosos, torcedores de diferentes times de futebol, sujeitos inseridos nas mais diferentes ocupações, mas, por morarem em regiões fronteiriças, visualizam e utilizam a fronteira como um elemento enriquecedor. Esta afirmação não é restrita aos aspectos econômicos. Os ganhos em “atravessar a fronteira” não possuem apenas este aspecto, embora estes possam ser determinantes. As vantagens econômicas de trabalhar no Paraguai e com as mercadorias disponibilizadas em sua zona livre de impostos são atrativas, como é abastecer o carro na Venezuela ou na Argentina. No entanto, também são significativas as experiências culturais, o lazer, a alimentação e as compras de bens ou de viveres para o consumo diário da casa. Para um morador das fronteiras com a Argentina ou o Uruguai, comprar roupas, cosméticos ou ir ao supermercado no país vizinho não é uma postura popularmente criminalizada e, muito menos, de cunho exclusivamente econômico, embora juridicamente possam ser condenáveis. O que dizer dos inúmeros interlocutores que trabalhavam no circuito sacoleiro e narravam suas experiências de modo a valorizar a liberdade de estarem inseridas em um universo mais frouxo, sem horários e com uma moral extremamente plástica ou de uma família de trabalhadores que mudam de atividade dentro do próprio circuito sacoleiro por motivos religiosos? Indo além, não foram uma ou duas conversas realizadas onde os trabalhadores destacavam a alegria de estar no tumultuado microcentro de Ciudad del Este, com todo caos aparente, mas, ao mesmo tempo, com um sentimento de pertencimento e intimidade. Os laranjas e sacoleiros sustentam e formatam a zona de livre comercio paraguaia, mas, ao mesmo tempo, são moldados pelas relações estabelecidas em sua cotidianidade (CARDIN, 2011b). Mais recentemente, em entrevistas realizadas com trabalhadores envolvidos com o contrabando de cigarros na proximidade de Terra Roxa/ PR, esta situação descrita também foi observada. Entre as características

44

mais marcantes destacadas ao longo dos depoimentos encontram-se um conjunto de elementos vinculados à adrenalina de estar realizando tais atividades, que são constantemente vinculadas ao dinamismo e a oscilação do mercado, a relação com “as autoridades”, enfim, a um conjunto de situações que não são possíveis em ocupações comuns, com horários pré-estabelecidos e rotinas bem definidas. Outra vez, como destacamos em outro momento (CARDIN, 2011b), constata-se que o trabalho nas atividades oriundas das relações comerciais com o Paraguai exige adaptação e flexibilidade a um conjunto de situações fluidas e, para os observadores externos, de aparência caótica. No geral, são práticas sociais que vão lentamente se tornando tradicionais, enquadradas no interior de tantas outras que são feitas muito antes das fronteiras serem demarcadas legalmente pelos Estados Nacionais. Embora os limites jurídicos entre os países se configurem como obstáculos para as normatizações econômicas e políticas de um país, que restringe sua intervenção ao seu território pré-determinado, a circulação de pessoas e capitais simplesmente tende a desconsiderar tais restrições. Em um universo de pouco controle estatal, a fiscalização e a repressão das práticas populares fronteiriças tende a se fortalecer e a se naturalizar em tais ambientes, produzindo gradativamente uma suposta cultura do contrabando (GODINHO, 2009). Godinho (2009, p. 31) destaca que “em toda etnografia acerca de fronteiras se encontram referências ao contrabando, já que as fronteiras delimitadas como linhas a partir do século XIX, se destinam a obstar à passagem de mercadorias duma entidade política para outra”. Neste sentido, são comuns as descrições dos roteiros, dos conflitos entre legalidade e ilegalidade e também das experiências dos sujeitos inseridos nestes circuitos. “O contrabando integra um conjunto de atividades quotidianas que geram solidariedade de grupo e cumplicidade colectivas que protegem face às ameaças exteriores (...). Mantendo um nível microsocial das relações localizadas, os habitantes da fronteira dispuseram de um recurso acrescido para conseguir vantagens na relação com os estados centrais” (GODINHO, 2009, p. 32). Dentro de uma perspectiva semelhante, mas em outro contexto espacial e temporal, lembramos que o processo de povoamento do oeste paranaense foi promovido durante o século XIX por meio de empresas 45

argentinas que, aproveitando-se da falta de fiscalização e controle do governo paraguaio, brasileiro e também argentino, exploravam os recursos naturais abundantes em toda região de fronteira, independente de sua margem e da nacionalidade da força de trabalho empregada (CATTA, 2002). Tais práticas, embora tenham sido interrompidas durante o Estado Novo, deixou de herança caminhos e práticas mantidas até os dias atuais. Ao longo de parte significativa do século XX, as “picadas” e os portos construídos para o transporte de madeira e erva mate começaram a ser utilizados para a passagem do café (LEMES, 2012) e mais recentemente uma estrutura similar é utilizada no contrabando de drogas, armas e mercadorias compradas no Paraguai (BATTISTI, 2009; CARDIN, 2011a). Em resumo, aquilo que entendemos por contrabando constitui-se como um elemento histórico e determinante na formação de uma ampla região, estando presente e arraigado nos hábitos locais e nos modos de viver, permitindo o nascimento de inúmeras investigações sobre a possível existência de uma cultura de contrabando na faixa de fronteira do Brasil com os demais países da América do Sul. Contudo, acreditamos que o problema seja um pouco mais amplo e complexo, exigindo o desenvolvimento de um olhar teórico e metodológico especifico sobre tais conjunturas. Neste sentido, o objetivo deste texto é propor uma abordagem ou uma leitura para as regiões de fronteira que considere sua historicidade e totalidade, contribuindo para a construção de uma matriz capaz de iluminar a realidade e as suas especificidades regionais. As discussões que aqui apresentamos não são conclusões de um estudo empírico em específico, mas reflexões oriundas de uma relação produtiva com o campo de pesquisa, mais especificamente com a fronteira do Brasil com o Paraguai. O intuito é lançar algumas ideias iniciais, que ainda encontra-se em processo de amadurecimento em espaços de construção coletiva, para fundamentar conceitos e abordagens que sejam mais próximos da realidade social que investigamos há quase uma década. Durante todo este período, uma conclusão é possível de ser feita, as práticas sociais dos moradores das regiões fronteiriças são sustentadas pelo sentido atribuído ao outro lado da fronteira e isso, por mais simples que pareça, tem um significado que é mais abrangente do que as restrições jurídicas das ações e dos limites em tais regiões.

46

Sem embargo, considero que o uso do termo cultura de contrabando pode ser inadequado ou incompleto dependendo do olhar atribuído à fronteira ou as fronteiras. Como afirmamos brevemente, o fluxo transfronteiriço ocorria antes da existência do controle legal dos limites e também durante o período em que a lei não é devidamente aplicada, configurando-se como uma prática tradicional. Sendo o termo contrabando de origem essencialmente jurídica, ele sobrepõe práticas anteriormente realizadas e, muitas vezes, as criminaliza. Neste ponto, caberia aqui todo um debate referente aos processos de normatização dos modos de viver durante o processo de construção do Estado Nacional, mas, que devido os objetivos deste texto, não podem ser desenvolvidos adequadamente e com a profundidade que merecem. Autores como Kowarick (1994), Chalhoub (1999) e Carvalho (1998), em seus estudos sobre a formação da força de trabalho assalariada no país, assim como da construção de uma cultura republicana no Brasil, problematizam os conflitos entre os projetos societários das frações de classe dominante e as práticas sociais ou os modos de viver da população nacional durante as tentativas de normatização de condutas e a criação de hábitos supostamente correspondentes a uma nação capitalista. A tentativa de controle dos fluxos transfronteiriços pode ser entendida dentro desta perspectiva, ou seja, como um esforço de disciplinar as posturas socialmente aceitas em um contexto de fronteira. Semelhante às situações descritas pelos autores indicados anteriormente, nas regiões de fronteira visualizam-se o choque entre as práticas tradicionais das comunidades fronteiriças e as regulamentações impostas pelos governos dos respectivos países limítrofes. Deste modo, considero que a cultura do contrabando encontra-se no interior de uma cultura de fronteira, mas sem corresponder imediatamente a ela ou ser diretamente um sinônimo dela, pois esta tende a ser muito mais ampla e envolvente. A cultura de fronteira pode ser entendida como um universo cosmológico produzido pela intersecção de diferentes dimensões sociais existentes e plasmada durante os diversos processos históricos que formatam as conjunturas das fronteiras. Neste sentido, o contrabando ou o descaminho seriam apenas alguns dos elementos resultantes do encontro de um conjunto de variáveis que determinariam as configurações destes espaços. Segundo Godinho: 47

O reconhecimento do contrabando como uma ocupação central dos habitantes raianos permite compreender a forma fluida da noção de espaço econômico nacional que opera nos limites territoriais entre dois Estados. Assim se explica a dupla percepção do contrabando, para os que o fazem e para os que têm por missão controla-lo. Para ser entendido em sua plenitude, o contrabando exige um enquadramento nos modos de vida das povoações da raia e, a um nível microscópico, nas estratégias de sobrevivência dos núcleos domésticos. Compreender o fenômeno é entender as razões que, para os indivíduos inseridos num modo de vida local, explicam o envolvimento numa tão perigosa e desgastante atividade, exigindo uma abordagem das formas econômicas, das relações sociais e das construções culturais aldeãs (Godinho, 2009, p. 44).

Paula Godinho chama atenção para um fator fundamental. Embora o contrabando faça parte da história fronteiriça, estando amarrado as tradições e a própria cultura da fronteira, ele não é suficiente para o entendimento de todo o universo composto pela confluência dos limites internacionais entre os países. Como a autora explicita, para o seu entendimento é preciso inseri-lo no interior dos modos de vida da comunidade estudada e investigar as razões que encorajam os diferentes sujeitos sociais a desenvolvem tais práticas, mesmo carregadas de inúmeras adversidades. Neste sentido, ela salienta a importância de observamos como o contrabando perpassa pelas dimensões da vida social expressas nas relações econômicas, sociais e culturais manifestadas no universo pesquisado. Assim, torna-se importante que a definição das dimensões sociais tenha como intuito dar conta simultaneamente dos dinamismos das fronteiras e dos próprios obstáculos existentes para o desenvolvimento das práticas sociais. De maneira geral, estas são definidas pelas relações dialéticas e constantes entre as experiências acumuladas pelos sujeitos sociais e as diferentes conjunturas onde eles atuam. Deste modo, o entendimento dos contornos que a fronteira vai desenvolvendo durante os processos de expansão do modo de produção é um exercício fundamental quando se tem o objetivo de entender o funcionamento, a

48

estrutura ou o cotidiano de tais realidades, pois são eles que configuram e delimitam o espaço onde as relações sociais são efetivadas. A dimensão social está sendo entendida aqui como uma categoria sociológica construída pelo exercício de suspensão da cotidianidade por parte do pesquisador, visando garantir um afastamento metodológico para uma posterior análise das diversas camadas ou esferas da vida social que compõem a realidade, fomentando a elaboração posterior de tipologias. Em outras palavras, quando observamos os movimentos e as particularidades das fronteiras estamos visualizando de uma maneira amorfa a cultura de fronteira ou, como definiria Kosik (2002), a pseudoconcreticidade. Esta cultura é composta por inúmeras dimensões sociais que não são visualizadas de maneira pura imediatamente, mas contaminadas por suas diversas possibilidades de existência. Segundo Kosik (2002, p. 15), o mundo da pseudoconcreticidade é composto: 1) pelos fenômenos externos que ocorrem na superfície dos processos realmente essenciais; 2) pelo mundo do tráfico e da manipulação, ou seja, da práxis fetichizada dos homens; 3) pelo mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens e, por fim; 4) pelo mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de serem condições naturais e não são imediatamente reconhecíveis como resultados da atividade social dos homens. Em síntese, aquilo que é imediatamente observável corresponde a manifestações de fenômenos sociais, econômicos e políticos mais profundos, que precisam ser apreendidos por uma noção mais aguda de totalidade. Neste sentido, Vázquez (2007) chama a atenção para os cuidados necessários no processo de compreensão da realidade social. Ao longo do desenvolvimento histórico das Ciências Sociais visualiza-se um movimento pendular. Em um primeiro momento existe a tentativa de entender o mundo pela valorização da pseudoconcreticidade, do mundo vivido pelos trabalhadores. Nesta abordagem, a ciência assume o papel de divulgadora das posições de classe. Por outro lado, visando superar esta abordagem empirista, surgem autores idealistas, fundados nos pressupostos de autores como Kant e Hegel. Assim, observa-se a radicalização das discussões para outra situação, estabelecendo o antagonismo entre empiristas e idealistas. O que precisamos fazer é a 49

superação destas duas abordagens por meio do estudo da práxis social. No esforço de desconstruir a realidade social observada de maneira imediata para, em um segundo momento, reconstruí-la mediada por conceitos sociológicos (KOSIK, 2002), o pesquisador precisa promover aquilo que Heller (1991) recomenda como suspensão do cotidiano, o que corresponde ao esforço de se afastar do aparente caos e alienação da realidade vivida na cotidianidade para problematizar de forma mais aprofundada os diferentes elementos ou dimensões, como estamos aqui definindo, que formatam a vida social. Afastados, dentro dos limites sociais e ontológicos existentes, o pesquisador separa, elabora e define as diversas dimensões sociais presentes em uma mesma totalidade, sem negar ou desconsiderar o impacto que suas articulações promovem na definição das fronteiras. Para tanto, este constructo intelectual guarda em si as características de ser: 1) esponjoso ao absorver de modo incontrolável as experiências e os movimentos sociais; 2) sociometabólico por se modificar historicamente e responder aos diferentes elementos que vão sendo englobados durante o seu próprio dinamismo e; 3) flexível, se esticando, alargando e se aproximando das outras dimensões, conforme a conjuntura fronteiriça vai sendo construída historicamente. Tal característica funcional e estética tem o intuito de demonstrar que as aparentes contradições existentes entre pontos supostamente antagônicos, por estarem dentro de uma mesma dimensão fazem parte de uma mesma totalidade. A situação de oposição é espacial e temporal, portanto, histórica. Se fosse possível representar de outra maneira as dimensões sociais do modo que estamos apresentando, poderíamos pensar que elas possuem o formado de “elipses”, tendo, desta forma, pontos extremos que são mais distantes do que outros, estando aparente e momentaneamente em situação de oposição (pontos B e D, por exemplo). Ainda dentro de uma perspectiva metafórica, pensamos que estas “elipses” são constituídas por uma substancia gelatinosa, que pode ser esticada, puxada, entortada, ao mesmo tempo em que ela vai crescendo ao absorver tudo aquilo que está ao seu redor. Este aspecto referente à sua textura e consistência busca expressar a ideia de que ela não é sólida, cristalizada, imutável, mas altamente flexível e com grande capacidade de adaptação e

50

readaptação às transformações sócio históricas que ocorrem no seu entorno.

DIMENSÃO SOCIAL

O desenho da “elipse” exposto acima possui quatro letras que identificam os polos da figura geométrica. Os polos A e C estão mais próximos quando comparados ao B e D, desta forma, estes últimos poderiam sinalizar uma oposição maior quando comparados aos anteriores ou, em outras palavras, eles permitiram denunciar um suposto antagonismo entre elementos existentes dentro de uma mesma dimensão social. Todavia, esta formatação é temporal, se modificando por meio dos conflitos e articulações ocorridos na cultura da fronteira. Em um momento, a distância entre B e D pode ser ampliada, aproximando ainda mais A e C, mas em outro, pode ocorrer o inverso, a aproximação de B e D e o afastamento de A e C. Estas modificações vão ocorrendo durante o processo histórico, conforme a substância que compõem a “elipse” vai absorvendo ou se alimentando das experiências sociais e modificando, flexibilizando seus limites, permitindo, por exemplo, que mesmo mantendo a ordem das letras expostas anteriormente, a “elipse” fique esticada ao ponto de criar um “abismo” entre B e D, mas permitindo que D faça uma curva tão acentuada que o aproxime externamente ao ponto A. Em outro momento, centrados na dimensão econômica tributária da fronteira do Brasil com o Paraguai, observamos que a aduana brasileira funcionava como uma válvula de controle dos fluxos de mercadorias e 51

capitais que entravam no território brasileiro durante a década de 1990 e começo dos anos 2000 (Cardin, 2011b). Neste contexto, as ações orquestradas pela Receita e pela Polícia Federal dependiam diretamente da aproximação do Estado Brasileiro em relação aos outros sujeitos sociais envolvidos com a questão e, consequentemente, do afastamento em relação aos interesses de outros sujeitos. Assim, podemos pensar o Estado como o ponto A, os trabalhadores do circuito sacoleiro como o ponto B, as indústrias brasileiras como o ponto C e o mercado de Ciudad del Este como o ponto D. A aproximação do ponto A (Estado) a outro sujeito inserido na dimensão econômica tributária analisada, afasta os demais polos do controle da questão ao dificultar a articulação entre os mesmos. Neste sentido, quando o governo brasileiro atende os interesses da indústria nacional aumentando o controle na ponte que liga o Brasil ao Paraguai, a elipse aproxima o ponto A do ponto C e afasta na mesma proporção os interesses dos trabalhadores e do mercado paraguaio. Tal movimento é comum próximo às datas festivas (dia dos pais, mães, crianças e natal), quando aumenta de forma significativa as compras em Ciudad del Este. Por outro lado, quando o governo brasileiro não age de maneira ostensiva na fronteira, o ponto A se distância do ponto C, ocorrendo uma aproximação de B e D. Neste contexto, o esforço na construção de políticas públicas é fazer com que a “elipse” adquira o máximo possível o aspecto “circular”, onde a distância entre os pontos se torna equivalente. No entanto, a cultura de fronteira é composta simultaneamente por inúmeras dimensões sociais com este formato elíptico, como “anéis” em movimento que envolve uma única “esfera” ou uma mesma realidade. Cada um dos “anéis” representa uma dimensão da vida social que, para fins analíticos, é separado, suspendido da cotidianidade, e definido como uma tipologia. Porém, não nos atrevemos a defini-lo como um tipo ideal puro no sentido weberiano, pois acreditamos que as dimensões ou os “anéis” só podem ser compreendidos de maneira conjunta e processual. Embora o esforço seja no sentido de separar as diversas dimensões sociais esta tarefa apenas reforça a ideia que a “elipse” se contorce de inúmeras formas, criando infinitos pontos de intersecção entre as diversas dimensões. Embora possamos ter um objeto de pesquisa isolado e

52

metodologicamente bem definido, as pesquisas empíricas, principalmente aquelas de maior caráter antropológico, vêm demonstrando a impossibilidade de se pensar e enxergar as realidades de fronteiras de maneira linear e harmônica. Albuquerque (2010), por exemplo, ao tentar se concentrar no estudo da construção da identidade dos supostos “brasiguaios”, vai lentamente apresentando e discutindo o fato de tal processo histórico não ser exclusivamente cultural ou psicológico, mas um fenômeno que envolve um conjunto de jogos que ocorrem no interior das dimensões políticas e econômicas, dando um caráter vivo às fronteiras (sociometabólico), que ele define como fronteiras em movimento. O estudo realizado por Albuquerque (2010, p. 18) concentra-se “nas disputas de identidades e nas representações nacionais que são construídas pelos imigrantes e pelos paraguaios no contexto dos atuais conflitos pela propriedade da terra, pela defesa do meio ambiente e do território nacional” do Paraguai. Para tanto, ele parte do pressuposto que “as fronteiras são fenômenos sociais, plurais e dinâmicos” e, especificamente no caso da imigração brasileira no Paraguai, “produz uma pluralidade de fronteiras (políticas, jurídicas, econômicas, culturais e simbólicas) em relação à sociedade paraguaia. Essas fronteiras não são estáticas, mas estão em constante movimento de redefinição e negociação” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 42). A prática investigativa revela um conjunto de dimensões sociais que precisam ser mais bem definidas e compreendidas, exigindo a melhoria qualitativa e quantitativa das pesquisas de campo nos universos de interesse de modo constante e interrupto. Os estudos já desenvolvidos pelos pesquisadores que hoje se encontram espalhados por todo território nacional permitem constatarmos a presença das dimensões: a) histórica, onde se encontra as disputas na definição e na preservação da memória; b) política, com os conflitos e articulações para o exercício do poder; c) econômica tributária, com o impacto do mercado e das leis que o regem na definição da vida social; d) jurídica, no esforço de normatização e regulamentação das práticas sociais; e) cultural, envolvendo um amplo universo de tradições e manifestações artísticas; f) religioso, observando o papel dos hibridismos, dos processos de conversão, expansão e institucionalização de novas religiões; g) por fim, a humana, englobando os debates sobre direitos humanos, violência e segurança pública nas 53

regiões de fronteira. Embora possam parecer envolventes e amplas de maneira suficiente a atender as mais diferentes possibilidades investigativas, é evidentemente que estas dimensões não correspondem a todo universo existente. As dimensões são construídas pelo pesquisador atendendo exigências do seu problema de pesquisa e alimentado pelas informações recolhidas durante os estudos de campo. Logo, as dimensões, como a sua própria estrutura elíptica, também podem ser ampliadas e esticadas para atender realidades mais amplas ou mais específicas, conforme as necessidades que a investigação apresenta. O que não podemos deixar de observar é que todas estas dimensões coexistem, girando ao redor de uma mesma realidade, como anéis que envolvem uma esfera, compondo uma totalidade, que seria a cultura de fronteira. Ainda que esta pressuponha a noção de totalidade, pois ela nada mais é que um arranjo das diversas dimensões sociais possíveis em um contexto determinado, os sujeitos sociais não a vivenciam de forma plena ou integral. Eles agem por meio de práticas sociais, que aqui são entendidas ou definidas como pontos ou ações fundamentadas pela intersecção das experiências particulares e a conjuntura social do local onde eles estão inseridos. Sendo as práticas sustentadas por experiências, visualiza-se o predomínio de dimensões sociais especificas que, por diferentes motivos, foram mais determinantes nas trajetórias de vida do sujeito. Contudo, isso não quer dizer que o sujeito ao agir isola as demais dimensões que interferem em suas práticas, ele não as reconhece e as vivenciam de forma desorganizada e obscura, ou, como afirma Heller (1991), de forma alienada. Assim, a cultura de fronteira não se manifesta de forma plena em uma mesma unidade temporal e espacial, mas de maneira confusa e amorfa. Logo, observando as regiões de fronteira, visualiza-se um imenso degrade tingido pelas variações na determinação das cores/trajetórias ou pela falta de hegemonia em determinada dimensão social elíptica. É isto que fornece em alguns contextos de fronteira um aspecto caótico. Neste sentido, a hegemonia, o predomínio ou o domínio de uma dimensão especifica em uma determinada cultura de fronteira pode transmitir uma sensação de ordem, de uniformidade. Neste ponto estamos indo ao encontro das abordagens de Gramsci (2007) e do próprio Bourdieu (2001),

54

principalmente naquilo que se refere à disputa de posições no processo de construção da hegemonia e a importância da acumulação de capital na organização dos campos simbólicos respectivamente. Os pontos de intersecção ou de fronteiras entre as diferentes dimensões sociais correspondem a locais de negociação, de conflito e de acordos. É o momento ou o ponto do choque de interesses e/ou de projetos societários, que é resolvido ou decidido temporariamente pelo capital acumulado pelos sujeitos envolvidos ou, na definição de Bourdieu (2001), dos agentes sociais que disputam posição no interior de um mesmo campo. É neste momento que a hegemonia é definida e os aparelhos estatais e instituições sociais se colocam de forma determinante, garantindo ou tentando garantir a vitória dos projetos defendidos pelas frações da classe dominante. Os grupos sociais possuidores da maior quantia de capital acumulado (econômico, político ou cultural) tendem a estabelecer as melhores e as maiores articulações garantindo o predomínio de suas posições no interior das dimensões sociais que se encontram em disputa. A cultura do contrabando seria um ponto de encontro e conflito de diferentes dimensões sociais, onde a econômica tributária predomina. Como discutimos anteriormente, o fluxo de pessoas e mercadorias nas regiões de fronteira são anteriores ao processo de normatização e regulamentação das práticas de contrabando, por isso elas podem ser consideradas tradicionais e, até mesmo culturais. No entanto, uma prática que poderia ser entendida por meio de um estudo aprofundado da dimensão cultural, fica esfumaçada se desconsiderarmos que a dimensão histórica, ao concentrar as disputas para guardar uma memória oficial sobre as práticas, e a dimensão econômica tributária, presente no esforço estatal em controlar a fuga de divisas e proteger a industrial nacional, são fundamentais no entendimento do fenômeno na contemporaneidade. É notório o processo de criminalização dos processos de circulação de mercadorias na fronteira do Brasil com o Paraguai no começo do Século XXI. Durante muitos anos a economia de toda região de confluência dos limites do Brasil, Argentina e Paraguai dependia diretamente do mercado existente no microcentro de Ciudad del Este. Em outro momento (Cardin, 2011b), destacamos as transformações do circuito sacoleiro de 1970 até os dias atuais e salientamos que parte 55

significativa das mudanças foi derivada das mudanças nos setores produtivos e nas demandas de bens materiais específicos, mas também das configurações adquiridas pelos modelos politico e econômico adotados pelos países, que respingava diretamente na forma que os aparelhos estatais intervinham nas fronteiras. Neste sentido, é possível visualizar a intervenção diferenciada do governo brasileiro durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso em relação às políticas adotadas por Luís Inácio Lula da Silva. A gestão do PSDB, de forte caráter neoliberal, não exercia muito controle aduaneiro, permitindo uma grande circulação de pessoas e mercadorias na Ponte da Amizade durante toda década de 1990 – momento de maior movimentação financeira na região. Por outro lado, a gestão do PT, marcada por uma presença mais intensa do Estado nas diferentes dimensões da vida social, estabeleceu uma politica de controle e fiscalização muito mais rigorosa do que aquela que era adotada até então. No entanto, tal política petista não correspondia a uma única ação, mas a um conjunto de medidas integradas. O fortalecimento e o aumento no controle e na fiscalização nas aduanas – inclusive com a construção de novas estruturas – ocorreu de forma simultânea à aplicação de políticas sociais de renda mínima, de escolarização e de qualificação, que visavam diminuir a vulnerabilidade de uma grande parcela da população que encontrava no circuito sacoleiro possibilidades concretas de subsistência. Não suficiente, acompanhando tais políticas públicas, foram desenvolvidas um conjunto de operações policiais no sentido de desmantelar qualquer tentativa de organização e manutenção da população por meios diferentes daqueles aceitos pelo mercado, onde os grupos diretamente vinculados à compra, transporte e revenda de mercadorias disponibilizadas no Paraguai foram tratados da mesma maneira que traficantes de drogas e armas, rotulados e criminalizados indistintamente. Uma prática tradicional, anterior à presença efetiva do Estado e dos seus mecanismos de controle, desenvolvida durante muito tempo sem nenhum tipo de restrição por “laranjas” brasileiros e paseros paraguaios e argentinos, por homens, mulheres e crianças que, como pequenas formigas, carregavam sobre suas costas pequenas quantidades de mercadorias com intuito de revender e garantir uma renda mínima,

56

foi gradativamente cercada e coibida. Na vida cotidiana a população fronteiriça tenta fugir das rotulações midiáticas e jurídicas ao criar fronteiras para separar aquele que passa contrabando daquele que transporta pequenos valores ou, como os interlocutores falavam durante as conversas que estabelecemos, daqueles que transportam “apenas algumas coisinhas”. As práticas sociais e experiências presentes nos modos de viver tradicionais da população local ou, como definiria Bourdieu, o capital social acumulado pelos moradores das fronteiras que fazem parte da dimensão cultural, gradativamente vai perdendo espaço pelo processo de legitimação de usos e costumes normatizados pelo Estado Nação. Este processo, visualizado em um conjunto de ações políticas indicadas anteriormente, busca fazer com que a dimensão política e a dimensão econômica tributária prevaleçam, moldando as práticas aceitas e limitando as possibilidades de ação dos sujeitos. Em outros termos, o Estado utiliza de seus diversos instrumentos para diminuir os espaços, as brechas, onde os indivíduos poderiam exercer suas individualidades ou reproduzir algumas tradições. No Brasil o processo de interiorização do capitalismo no país ocorre em uma época onde as fronteiras do legal e do ilegal não são claras, da mesma forma que as definições jurídicas de limites. Assim, as dimensões política e humana não são muito consideradas, sendo constantemente violadas devido ao predomínio da dimensão econômica. Desta forma, o momento de ampliação da acumulação de capital por meio da exploração intensiva do meio ambiente e dos próprios trabalhadores é marcado pelo descaso com o homem. Tal situação demonstra a correlação entre as dimensões e demonstra a importância de observarmos os arranjos elaborados no desenvolvimento da cultura de fronteira. As observações feitas por Martins (2009) sobre as frentes pioneiras e as de expansão são exemplares. Em um segundo momento, quando o capitalismo já se encontra inserido em todo território e vivencia seu momento de consolidação, outras dimensões são visualizadas com maior força. Agora, as dimensões política e jurídica predominam, normatizando o funcionamento das demais dimensões no sentido de garantir a manutenção e a expansão do modelo econômico. Em outras palavras, como destacaria Max Weber 57

(2000), o avanço destas áreas sociais representa à cristalização do domínio burocrático, onde o controle sobre o outro não ocorre pela violência física, mas pela delimitação legal do comportamento, com a consequente regulamentação das relações sociais. Para finalizar estas considerações teóricas e metodológicas, no esforço de sistematizar e organizar um olhar que já vem sendo apontando em estudos de caráter mais empírico vale destacar que o predomínio de uma dimensão não exclui a resistência das demais. É preciso observar sempre que as fronteiras são dinâmicas, fluidas, construídas por conflitos e diferenças, estando sempre se adaptando e se formatando a novas situações. Logo, as hegemonias são frequentemente desafiadas, exigindo respostas diretas e indiretas no intuito de manter sua ordem. Por tudo isso, compreender as fronteiras como um todo não é um exercício fácil, mas é aquele que permite a elaboração de conhecimentos mais significativos.

NOTAS EXPLICATIVAS

1

Este capítulo é um aprofundamento das discussões apresentadas no artigo “Para Pensar as Fronteiras: Apontamentos Iniciais para a Construção de Uma Teoria das Fronteiras” apresentado e discutido no III Seminário Nacional de Geografia Política, ocorrido em Manaus/AM em Maio de 2013. 2

Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais

da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Contato: [email protected]

REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, José Lindomar C.. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010. BATTISTI, César. Trajetórias Ocupacionais na Fronteira Brasil/Paraguai. In: SILVA, Michael (org.). Ensaios Historiográficos: Sociabilidade e Identidade na Fronteira. Foz do Iguaçu: UNIAMÉRICA, 2009. P. 56 – 67. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. CARDIN, Eric Gustavo. Trabalho e Organização dos “Barqueiros” na Fronteira do Brasil com o Paraguai. In: BOSI, Antônio de Pádua; VARUSSA, José Rinaldo. Trabalho e Trabalhadores na Contemporaneidade: diálogos historiográficos. Cascavel: EDUNIOESTE, 2011a.

58

______. A Expansão do Capital e as Dinâmicas da Fronteira. Tese (Doutorado em Sociologia). Araraquara: UNESP, 2011b.

______. Laranjas e Sacoleiros na Tríplice Fronteira: um estudo da precarização do trabalho no capitalismo contemporâneo. Cascavel: EDUNIOESTE, 2011b. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. São Paulo: Cia das Letras, 1998. CATTA, Luiz Eduardo Pena. O Cotidiano de uma Fronteira: a perversidade da modernidade. Cascavel: EDUNIOESTE, 2002. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril – cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. GODINHO, Paula. Desde a idade de seis anos, fui muito contrabandista – O concelho de Chaves e a Comarca de Verín, entre velhos quotidianos de fronteira e novas modalidades emblematizantes. In: FREIRE, D.; ROVISCO, E.; FONSECA, I. (orgs). Contrabando na Fronteira LusoEspanhola. Lisboa: Edições Nelson de Matos, 2009. GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Torino: Einaudi, 2007. GRIMSON, Alejandro. Cortar puentes, cortar pollos: conflictos económicos y agencias políticas en Uruguayana (Brasil) – Libres (Argentina). In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso; BAINES, Stephen (orgs.). Nacionalidade e Etnicidade em Fronteiras. Brasília: UNB, 2005. HELLER, Ágnes. Sociología de la Vida Cotidiana. Barcelona: Ediciones Península, 1991. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. KOWARICK, Lúcio. Trabalho e Vadiagem – A origem do trabalho livre no Brasil, 2º edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. LEMES, Alessandra Sara. O Contrabando nos Autos Criminais na Comarca de Toledo (1954 – 1980). In: Anais da X Semana Acadêmica de Ciências Sociais da UNIOESTE. Toledo: UNIOESTE, 2012. MARTINS. José de Souza. Fronteira: A Degradação do Outro nos Confins do Humano. São Paulo: Contexto, 2009. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007. WEBER, Max. Economia e Sociedade, vol. 01. Brasília: UNB, 2000.

59

60

FRONTEIRAS: ENTRE OS CAMINHOS DA OBSERVAÇÃO E OS LABIRINTOS DA INTERPRETAÇÃO

José Lindomar C. Albuquerque1

INTRODUÇÃO

As possibilidades de estudos empíricos e os diálogos com diferentes teorias nas zonas fronteiriças são múltiplos. Trata-se de um campo de estudo em formação e que permite uma grande abertura de leituras, pesquisa, imaginação sociológica e criatividade. Gostaria de destacar uma perspectiva de reflexão sobre as fronteiras, um olhar para as pessoas que vivem e transitam entre territórios nacionais e que constroem infínitas situações fronteiriças. Algumas reflexões metodológicas e teóricas, que pretendo desenvolver ao longo do texto, têm como referência os meus estudos específicos sobre os denominados “brasiguaios” (imigrantes e descendentes de brasileiros que vivem ou viveram no Paraguai) (ALBUQUERQUE, 2010a) e o diálogo frutífero com outros pesquisadores que realizaram e realizam trabalhos de campo nas cidades da tríplice fronteira entre o Brasil, Argentina e Paraguai (Puerto Iguazu, Foz do Iguaçu e Ciudad del Este) (MACAGNO; GIMENEZ BÉLIVEAU; MONTENEGRO, 2011). Os territórios entre os limites dos Estados nacionais modernos aguçam a nossa imaginação desde o início de nossos trabalhos de campo nessa região fronteiriça, especialmente para aqueles pesquisadores que

61

vem de outros lugares. A precisão desses limites políticos inscritos na paisagem por meio de marcos, símbolos e linhas divisórias passa a impressão de territórios claramente delimitados e demarcados e, muitas vezes, naturalizados. Especialmente nas denominadas “fronteiras secas” entre os países, podemos facilmente colocar um pé em um país e o outro no Estado nacional vizinho. Em um único passo podemos atravessar os limites entre o cidadão e o estrangeiro ou entre o crime cometido de um lado do limite internacional e a fuga impune do outro lado. O que gostaria inicialmente de destacar é a força do poder jurídico, político e simbólico no traçado dos limites territoriais. A capacidade humana de produzir descontinuidade em um espaço contínuo. Em um texto sobre a fronteira luso-espanhola, há a descrição, com certa ironia e graça, de uma sentada do pesquisador em um marco que divide o território entre Espanha e Portugal: A gente pode simultaneamente por um pé na Espanha e outro em Portugal. A gente pode se sentar, como eu tive a oportunidade de fazer, no marco 695 (…). Neste marco, nós podemos aposentar e repartir simultânea e respeitosamente a bunda entre dois Estados nacionais, duas províncias, um distrito e três limites municipais. Excessivas fronteiras, me parece, para uma mesma sentada (Uriarte, 1994 apud Valcuende, 1998, p. 112)2

O território não é algo natural e neutro. Há muitos traçados e divisões políticas sobre um mesmo território. Território é poder e as fronteiras nacionais representam a história e o poder dos Estados e dos grupos sociais no processo de delimitação dos territórios nacionais. Os limites internacionais são a história inscrita no espaço geográfico, repleta de conflitos, forças, negociações e formas de cooperação (Raffestin, 1986; Foucher, 2009). Dessa forma, todo pesquisador das ciências sociais que se debruça sobre os estudos empíricos nas áreas fronteiriças necessita estar bem atento para desnaturalizar permanentemente as fronteiras, mostrando suas histórias, suas disputas e rasuras questionando as classificações estatais e midiáticas. O que significa, para muitos antropólogos e sociólogos, o movimento permanente e incessante de estranhar o familiar e se familiarizar com o estranho (VELHO, 1978; DA MATTA, 1978;1981). 62

Por um lado, estranhar e problematizar, isto é, por em suspensa nação, a língua nacional, a região, a fronteira, as identidades e todos esses termos facilmente essencializados em nossos discursos cotidianos. Por outro lado, aproximar-se, tornar familiar tudo aquilo que se apresenta a primeira vista como estranho, esquisito, diferente, repugnante, e geralmente localizado do “outro lado da fronteira”: a nação vizinha, suas diferenças regionais, suas línguas nacionais, seus valores e costumes, em suma, a alteridade e o esforço antropológico de abertura hermenêutica para o outro. Esse percurso entre estranhamentos e familiaridades em uma área de fronteira internacional permite construir diálogos com pesquisadores dos países limítrofes, com pessoas que vivem e ganham a vida na fronteira e com nossas próprias experiências pessoais, advindas de viagens, migrações e de (des)encontros com os “outros”. Tudo isso favorece pensar sobre novos caminhos metodológicos e interpretativos para as movediças realidades fronteiriças.

OS CAMINHOS DE OBSERVAÇÃO DA REALIDADE FRONTEIRIÇA A fronteira nacional não é uma realidade homogênea e no singular. É um fenômeno heterogêneo, plural, paradoxal e dinâmico e que exige rigor e sutileza em seu estudo científico. É relevante, portanto, pensarmos em uma perspectiva de abordagem metodológica capaz de aproximarmos simultaneamente de diferentes fronteiras nacionais, sociais e simbólicas, tendo como foco principal as populações que vivem e transitam nesses lugares fronteiriços. Uma abordagem que seja capaz de apreender processos econômicos, políticos e jurídicos, mas que especialmente aprofunde a dimensão social, cultural e simbólica. Nessa perspectiva metodológica, podemos traçar, em forma de esboço, alguns caminhos de observação percorridos e a serem construídos por vários pesquisadores que investigam as fronteiras nacionais entre o Brasil e os países vizinhos. Claro que algumas dessas considerações podem valer também para outras realidades fronteiriças. Esses caminhos, numa perspectiva sociológica, pressupõem algumas aproximações e 63

diálogos metodológicos com a antropologia, a semiótica e a história. Gostaria de destacar primeiramente a importância de um maior diálogo metodológico e teórico entre a sociologia e a antropologia nos estudos das fronteiras nacionais. No campo da antropologia, já há uma razoável discussão sobre a antropologia das fronteiras (TOLOSANA, 2003; DONNAN & WILSON, 1999) e sobre as etnografias realizadas em regiões de fronteiras internacionais (VILA, 2003). A experiência desses trabalhos de campo, situados especialmente na fronteira Estados Unidos-México e entre países europeus, tem destacado a relevância da observação das interações, práticas sociais, experiências individuais e representações coletivas que ocorrem no cotidiano das populações fronteiriças. Essas interações e representações sociais se entrelaçam e entram em tensão com os discursos, ações e imaginários de outros agentes e instituições sociais (empresas nacionais e internacionais, governos centrais, estaduais e municipais, igrejas, imprensa, polícias, sistema educacional, entre outros) que estão situados nessas zonas fronteiriças ou localizados nos centros do poder do Estado nacional. O que considero relevante é a prática da pesquisa etnográfica capaz de pensar o micro e o macro, o local e o global e as múltiplas teias de relações e intersecções sociais que acontecem na prática social dos sujeitos que vivem, cruzam e produzem aproximações, separações e distanciamentos entre os limites das nações. Na observação dessa realidade heterogênea e múltipla, considero relevante a prática da pesquisa por meio das etnografias multissituadas (MARCUS, 1995), realizadas de um lado e outro do limite político e com múltiplos cruzamentos e fluxos de pessoas, coisas, signos e narrativas que possibilitam cruzamentos de dados e de perspectivas de análise. Nas palavras de George Marcus, o etnógrafo pode seguir as pessoas, as coisas, os enredos, as metáforas e os conflitos, priorizando os caminhos, percursos, trajetos, conexões de experiências sociais que acontecem nas regiões fronteiriças. Uma etnografia multissituada pode favorecer a compreensão do entrelaçamento entre as fronteiras visíveis, narradas e experienciadas pelas pessoas que vivem, cruzam e comercializam nas fronteiras territoriais. Essas pesquisas podem ser bastante promissoras se realizadas por

64

equipes de pesquisadores dos países envolvidos, investigadores de outros lugares e com experiências em outras situações fronteiriças, bem como estudiosos dessas regiões fronteiriças, onde aspectos de suas próprias vidas se confundem com essas fronteiras, diluindo distâncias entre sujeitos e objetos da pesquisa. Tudo isso permite novas reflexões metodológicas das relações fronteiriças entre distante e próximo, nacional e estrangeiro, próprio e alheio, insider/outsider, “nós” e “eles” na própria prática da pesquisa de campo (VILA, 2003)3 e na condição fronteiriça dos próprios investigadores. Os caminhos de observação etnográfica das regiões de fronteiras abrem também veredas para uma aproximação do universo dos signos e símbolos que permeiam a vida fronteiriça. Dessa forma, acho salutar um diálogo entre a sociologia, a antropologia e a semiótica. Pensar essa realidade fronteiriça constantemente criada, transformada e transgredida por meio de sinais, símbolos e códigos, é acionar os próprios sentidos de nossa realidade sensorial entrelaçada com nossa imaginação intuitiva e racional. Não se trata de um empirismo ingênuo e de predomínio do sensível sobre o racional, mas de uma mobilização mediadora dos sentidos, buscando compreender os significados multifacetados das fronteiras. Uma abordagem sociológica das fronteiras pressupõe uma sociologia dos sentidos, conforme a digressão feita por Simmel no ensaio O espaço e a sociedade (SIMMEL, 1986). A vista, ouvido, o olfato, o paladar e o tato não são somente sentidos físicos que captam nossa experiência sensorial no mundo, mas também possibilitam as interações sociais, as repulsões e atrações individuais e coletivas e que modificam a nossa sensibilidade ao longo do tempo. Uma breve reflexão sobre os próprios sentidos talvez ajude a compreender as relações entre o pesquisador e os entrevistados no momento da realização da pesquisa de campo e permite observar como as pessoas utilizam seus sentidos para agir no mundo e com o outro. Para Simmel, o olhar é a forma de interação mais pura e mais imediata da vida social, um processo instantâneo que se encerra com o próprio fim do cruzamento de olhares. Olhar e ser olhado, traduzindo as expressões do rosto do outro que guardam marcas de sua experiência de vida, traços físicos de um passado histórico e social. A própria palavra 65

entrevista, que adquiriu um sentido mais técnico em seus múltiplos usos em uma sociedade de ampla divisão do trabalho e do conhecimento, é derivada de uma interação básica da vida humana, entre vistas, entre olhares que se cruzam com palavras ou em silêncio. Em uma grande cidade, por exemplo, uma pessoa pode passar horas frente à outra em um meio de transporte (trem, ônibus etc.) cruzando olhares, desviando os olhos da vista do outro e olhando para outros olhos que se cruzam incessantemente. Por sua vez, o ouvido é um órgão mais unilateral, está no apêndice do rosto, geralmente é entre a fala e a escuta que se processa a interação, mas ordinariamente com muitos ruídos, pois são órgãos independentes e que pressupõem intervalos temporais de escuta e fala. Entretanto, o ouvido tem uma importância fundamental na tradução da experiência do ser humano no tempo. O ouvido permite a abertura para a história do outro, escutar a linguagem do outro e construir uma memória social. Olho e ouvido estão em permanente processo de complementaridade na captação das interações sociais e são, portanto, os órgãos dos sentidos por excelência. Olhar, ouvir e escrever já foram descritas como atividades básicas do trabalho do etnógrafo (OLIVEIRA, 2006). Entretanto, os outros órgãos são também mobilizados nos processos de interação e na construção de fronteiras simbólicas entre “eu/nós” e “ele/eles”, como no caso do olfato. Há vários exemplos de repulsões étnicas e sociais que podem se estabelecer no campo das interações com o outro, tais como “mau cheiro”, “cheiro de negro”, “suor de trabalhador braçal” ou “fedor” de um mendigo (SIMMEL, 1986; WEBER, 1994) e que constroem fronteiras e discriminações sociais. Claro que em muitas situações dos processos de repulsões e atrações sociais, o que temos é a mobilização de alguns sentidos no processo de demarcação de fronteiras na interação social. Nesse sentido, o que propomos é uma observação etnográfica por meio da mobilização de nossos sentidos: olhares cruzados, audição atenta, olfato e paladar apurados e tato sensível na interação que o pesquisador estabelece entre as pessoas pesquisadas e diante dos produtos materiais e simbólicos que estão em trânsito ou fixados na região fronteiriça. Olhares cruzados para os vários lados de uma fronteira específica e para as pessoas que vivem em uma região fronteiriça. O que significa,

66

por exemplo, uma observação cuidadosa das interações sociais entre paraguaios, brasileiros, argentinos, estrangeiros de outras nacionalidades e outros grupos sociais, assim como dos símbolos visíveis, das moedas que circulam, das imagens televisivas e propagandas sempre renovadas nas fronteiras de intenso comércio, como no caso da fronteira entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este4. Nesse contexto, podemos observar o movimento das pessoas e dos bens que identificam origens e destinos, como as sacolas paraguaias listradas e pretas. Os produtos eletrônicos chineses aparecem como made in Paraguay, vistos como sinônimos de falsificação, e as feiras brasileiras de intenso comércio dessas mercadorias passam a ser nomeadas de feiras paraguaias. O que em outros países são reconhecidos como produtos chineses, a rota China-Paraguay-Brasil tem o poder simbólico de transformar, no Brasil, os produtos chineses em mercadorias paraguaias de qualidade duvidosa (MACHADOPINHEIRO, 2008). O lugar de passagem dessas mercadorias se torna em um espaço de origem e de classificação negativa. Por outro lado, é importante estar atento para maneira como são acionados os tradicionais símbolos nacionais, como as cenas de queima da bandeira brasileira nos conflitos de terra no Paraguai ou nos protestos sociais de fechamento da fronteira. Ouvidos atentos para escutar as línguas das fronteiras, os sons das línguas no comércio de Ciudad del Este podem traduzir a zona de transição entre o Brasil e o Paraguai na própria geografia do comércio fronteiriço. Entre a Ponte da Amizade e o primeiro trevo de Ciudad del Este, observamos as misturas da língua portuguesa, espanhola, guarani e árabe ou chinesa em diferentes tonalidades conforme as ruas e lojas comerciais. Há vendedores de lojas em Ciudad del Este que falam espanhol ou guarani com os clientes paraguaios e argentinos, português ou “portunhol” com os brasileiros e árabe com os patrões. Os quatros idiomas podem ser manejados em uma mesma situação de compra e venda de mercadorias. Além da situação linguística no comércio fronteiriço, é importante também pontuar a presença das línguas de fronteira nas cidades e colônias de imigração brasileira no Paraguai, na programação televisiva e nas rádios e suas ondas sonoras na região de fronteiras, além das músicas e festas que atravessam, singularizam, subvertem e reproduzem as relações sociais nessa zona fronteiriça. 67

Olfato e paladar apurados indicam uma atenção etnográfica para os cheiros e sabores das zonas fronteiriças, que podem ser traduzidos culturalmente por meio das repulsões e atrações em relação às pessoas e aquilo que bebem e comem de um lado e outro da linha de fronteira. A alimentação fronteiriça pode ser vista como um forte demarcador de fronteiras culturais e simbólicas que evoca desejos, gostos e memórias. A comida na região de fronteiras pode traduzir as noções de sujeira e limpeza, as conexões entre sabor, cheiro, saúde, limpeza e preconceito. Tato sensível que permita desenvolver uma íntima percepção das fronteiras invisíveis dos sujeitos invisibilizados na fronteira (os “marginais”, “desviantes”, “excluídos” nas margens das nações – “meninos e meninas em situação de risco”, prostitutas, drogados, mendigos, situação de pobreza de algumas comunidades indígenas, entre outros). A dimensão sensível das experiências individuais e constrangimentos diários daqueles que são parados e ameaçados pelas autoridades policiais, a cadeia de exploração de trabalhadores no comércio informal constituindo diversas fronteiras sociais (CARDIN, 2006). A mobilização dos sentidos permite perceber com mais clareza a construção social dos limites políticos em um território demarcado por fronteiras estatais e por tantas outras divisões sociais e simbólicas, traduzindo em diferentes níveis as configurações sociais que constroem polaridades entre “nós” e “eles”, tais como as noções de limpeza e sujeira, beleza e feiura, ordem e desordem. Os sentidos podem acionar imagens, narrativas, sons, cheiros, sabores valorados por “sacoleiros”, turistas, trabalhadores que manifestam as representações de uma cidade suja e descuidada do “outro lado da fronteira” e que contrasta com a organização e limpeza do “lado de cá da fronteira”. Essas imagens e narrativas podem ser contadas de outra forma desde o ponto de vista daqueles que vivem “do outro lado” das fronteiras nacionais do Brasil. Além desse diálogo com a antropologia e a semiótica, uma observação das fronteiras pressupõe uma aproximação profícua entre a sociologia e a história. Afinal de contas, as fronteiras geográficas das nações “são a história inscrita no espaço” (FOUCHER, 2009, p. 27), são ainda histórias, memórias e narrativas recordadas e esquecidas de contextos anteriores.

68

Desse modo, a sociologia e antropologia têm trabalhado com a pesquisa histórica principalmente para a realização: a) da contextualização histórica dos objetos presentes, geralmente a partir de material secundário; b) focando o processo de longa e curta duração em períodos específicos de definição das fronteiras (fronteirização das populações, mercados e Estado) (SAHLINS, 1989; GRIMSON, 2003); c) abordando as temporalidades entrelaçadas nas narrativas presentes de uma determinada fronteira, como no caso das imagens do passado (bandeirantes, Guerra da Tríplice Aliança e Ditadura de Stroessner) nos conflitos do presente na luta pela terra envolvendo imigrantes brasileiros e camponeses paraguaios (ALBUQUERQUE, 2010). Nesses trabalhos que priorizam uma abordagem histórica, os investigadores têm pesquisado principalmente em arquivos públicos, eclesiásticos e em jornais - locais, regionais e centrais e têm utilizado fontes referentes a: a) documentos de época, leis, mapas históricos, registros, jornais de época etc.; b) a produção historiográfica ao longo da história sobre um determinado fato histórico da fronteira (guerra, fundação de cidade, acordo de cooperação etc.), ou seja, narrativas produzidas depois dos acontecimentos por personagens (principais ou marginais) dessa história, por historiadores, escritores e que foram produzidas e significadas em outros contextos históricos; c) As narrativas atuais sobre o fato histórico específico (livros e históricos atuais, artigos, materiais didáticos, mapas etc.)5. Os caminhos metodológicos da observação empírica das fronteiras nacionais são inúmeros, alguns já trabalhados com mais detalhes por investigadores das ciências sociais vizinhas. Outros precisam ser mais bem construídos pela própria sociologia, utilizando e aprimorando para esse objeto específico as várias abordagens metodológicas de cunho qualitativo e quantitativo da tradição sociológica e as técnicas de pesquisa dos questionários, entrevistas, surveys, observação de campo etc. O que apresentei aqui são mais possibilidades de diálogos metodológicos com outras áreas do conhecimento, visando algumas travessias de fronteiras disciplinares e novas formas de avanço do conhecimento nos estudos das fronteiras nacionais.

69

OS LABIRINTOS DA INTERPRETAÇÃO

Se, por um lado, o objetivo desse ensaio é pensar novos e velhos caminhos de observação das áreas fronteiriças, por outro lado, pretendese também, de uma maneira preliminar, levantar e deslocar alguns problemas teóricos na investigação fronteiriça. Nosso objetivo é problematizar algumas tipologias que esquematizam e aprisionam sentidos e o caráter concreto, natural, empírico das fronteiras territoriais. O que propomos é um deslocamento de reflexão das tipologias às situações de fronteiras e das fronteiras territoriais concretas às metáforas fronteiriças. As fronteiras nacionais já foram bastante trabalhadas por meio do uso de tipologias por parte da geografia, história, relações internacionais, direito, ciências sociais. Essas tipologias classificam o mundo social e estabelecem uma ordem de compreensão dessas realidades complexas. Nessa história das classificações tipológicas, podemos recordar a divisão entre fronteiras artificiais e naturais, terrestres, marítimas e aéreas, fechadas e abertas, quentes e frias, políticas (Estado) e sociais (sociedade civil), territoriais e metafóricas, além da classificação que separa por esferas sociais: fronteiras econômicas, políticas, jurídicas, religiosas, militares, sociais, culturais, simbólicas etc. Essas inúmeras classificações fazem parte da história do estudo de fronteiras e ajudam a ordenar a discussão inicial dos estudiosos. Entretanto, considero que o avanço do conhecimento teórico das regiões fronteiriças pressupõe uma atitude crítica diante das tipologias existentes. Muitas dessas classificações tipológicas cristalizam sentidos e dividem o mundo social em polaridades; a rigor não faz sentido uma divisão entre fronteiras naturais e artificiais. Todas as fronteiras nacionais são imaginadas, criadas pelos homens e estes depositam sentidos que um determinado rio ou monte será a “fronteira natural” do Estado. A classificação também entre fronteiras políticas e sociais tem suas imprecisões. A noção de política pode ser pensada para além do Estado nacional, já que o Estado não detém o monopólio do político na complexa sociedade contemporânea. Neste sentido, as fronteiras entre os grupos

70

étnicos podem ser vistas também como fronteiras políticas na interface com outros grupos sociais e com o próprio Estado. A famosa tipologia que divide as fronteiras por esferas sociais (econômicas, políticas, jurídicas, sociais, simbólicas etc.) apresenta imprecisões se entendermos a partir de um realismo sociológico no qual se compreende que, de fato, existem no mundo social essas fronteiras separadas. As fronteiras nacionais talvez possam ser vistas como “fatos sociais totais” (Mauss, 1976), em que as distintas dimensões do social estão entrelaçadas, bem como os aspectos individuais e coletivos daqueles que produzem fronteiras. A separação por esferas, na perspectiva da construção do conhecimento, pode ser pensada a partir de uma abordagem weberiana dos tipos ideais. Para Weber, a realidade social é infinita, inesgotável, caótica e o pesquisador, a partir da relação com os valores de sua cultura, torna relevante e significativo um fragmento dessa realidade a ser investigada. Nessa perspectiva, o conhecimento sociológico é sempre aproximativo, provisório, pois não há uma reprodução da realidade tal qual ela é na construção de um trabalho sociológico. O que o investigador formula são conceitos típicos ideais que possibilitam destacar, ordenar e acentuar determinadas características de uma realidade múltipla e desordenada (Weber, 2001). Nessa perspectiva de análise, na observação de uma determinada fronteira nacional, como a “fronteira política” entre o Brasil e o Paraguai, o pesquisador pode acentuar em sua pesquisa os fatores econômicos, tais como a fiscalização e apreensão de mercadorias, as propinas, os impostos pagos, os salários recebidos pelos agentes policiais, fiscais, alfandegários etc. Outra pesquisa sobre essa mesma “fronteira política” pode acentuar os elementos políticos da dominação e obediência, tais como os tipos de “abordagem” da polícia federal a ônibus coletivos e a ônibus fretados por “sacoleiros”, as hierarquias de poder em um posto de alfândega, as relações entre polícia federal brasileira e polícia paraguaia etc., e assim por diante. O que gostaria de destacar é que na vida social toda “fronteira política” é mais do que uma fronteira política, assim como as fronteiras econômicas (as frentes de expansão), são também fronteiras sociais, políticas, culturais e simbólicas. Cabe ao pesquisador acentuar que tipos de fenômenos ele irá estudar em profundidade nessas áreas de fronteiras e a partir dos dados empíricos formular novas tipologias de 71

fronteiras. O que considero relevante nesse momento dos estudos de fronteiras nacionais na área de sociologia é repensar e aprofundar de maneira crítica o uso das tipologias de fronteiras e, ao mesmo tempo, pensar em situações de fronteiras que ultrapassam as formas de classificação mais rígidas. Essas situações de fronteiras pressupõem o estudo dos eventos singulares em cada contexto fronteiriço por meio de novas pesquisas de campo. O que gostaria de enfatizar são algumas características e situações que têm aparecido em muitos estudos fronteiriços e que permitem ampliar nossos sentidos sobre uma possível conceituação das fronteiras nacionais. Nessa perspectiva, pontuarei as situações de fronteiras como recurso, ritual simbólico e liminaridade. A fronteira política muitas vezes funciona como um recurso e sistema de complementaridade para as populações fronteiriças.Viver na fronteira é também viver da fronteira. As diferenças de preços de alimentos, bebidas, roupas, gasolina fazem com que os fluxos se intensifiquem de um lado a outro da fronteira (VALCUENDE, 1998). Há um pêndulo de deslocamentos conforme a variação dos preços em cada país ao longo do tempo e das mudanças econômicas e políticas que se verificam nas nações vizinhas. Dessa forma, a gasolina mais barata na Venezuela aumenta o fluxo de brasileiros nos postos de gasolina nas cidades fronteiriças, assim como o peso argentino valendo atualmente a metade do real pode atrair uma clientela brasileira nas cidades de fronteira do país vizinho. O que existe aqui é uma espécie de cálculo e diferencial fronteiriço que possibilita uma poupança por meio do deslocamento de compras mais baratas do “outro lado da fronteira”. As diferenças de preços podem estar marcadas pela disparidade da cobrança de impostos sobre as mercadorias pelos respectivos Estados nacionais. Dessa forma, os Estados que cobram menos impostos e têm suas zonas francas de comércio, como no caso do Paraguai, atraem os consumidores brasileiros. Por sua vez, o Estado paraguaio não consegue ter um sistema público de garantias sociais para sua população e muitos paraguaios se deslocam e são atendidos nos sistemas públicos de saúde e educação do “lado brasileiro”. Assim, além de um recurso econômico, a fronteira é um espaço de geração de estratégias e táticas de exercício da cidadania das populações que vivem entre dois Estados nacionais.

72

Nessas zonas fronteiriças, há geralmente migrações fronteiriças, assim como serviços de saúde e educação que são mais presentes de um lado que do outro do limite internacional e atraem as populações do país vizinho. Na fronteira se situa muitos rituais simbólicos, lugar de emblemas, signos de diferenciação e festas que demarcam tanto diferenças como travessias. Bandeiras, placas, hinos, festas que celebram as datas importantes de cada nação e as celebrações que conectam as experiências locais transfronteiriças (HERNANDEZ et al, 1999; VALCUENDE; CARDÍA, 2009). Ritos de passagem no território dividido entre nações que transformam nossa condição de nacional em estrangeiro e, em um instante de travessia (de um rio, uma ponte ou de um cartaz em uma “fronteira seca”), muitas vezes muda o horário, a língua, a moeda, a comida, a bebida, o modo de vestir, os dias festivos etc.. As fronteiras apresentam inúmeras situações liminares. A liminaridade é algo de extraordinário que rompe o sistema social em sua regularidade e aponta para situações limites. Marcam ritos de passagem, de rebelião, de transgressão que transbordam as lógicas nacionais (TURNER, 1974). Os estudos das identidades fronteiriças são fundamentalmente situações de identificações coletivas liminares. Ninguém é somente brasileiro, paraguaio ou “brasiguaio”. Uma única pessoa pode acionar várias formas de identificação conforme os interlocutores e as interseções sociais que estão em jogo no campo das práticas e interações sociais. Por exemplo, ser homem, imigrante brasileiro no Paraguai, paraguaio, “brasiguaio”, brasileiro, gaúcho, descendente de alemão, torcedor do grêmio, entre outras. Imigrantes brasileiros podem se sentirem em casa no Paraguai, mais paraguaios que brasileiros, ou podem se sentirem estranhos, “fora do lugar” tanto de um lado como do outro da linha de fronteira. As situações de identificações fronteiriças são inúmeras e ajudam a afastar qualquer ideia mais cristalizada e permanente das identidades únicas e fixas. As inúmeras situações de fronteiras produzem deslocamentos e dificultam o estabelecimento de determinadas classificações tipológicas desses eventos singulares. A fronteira é um campo inusitado de produção de novos sentidos e de abertura para o uso de várias metáforas. As fronteiras territoriais dos Estados nacionais muitas vezes são 73

definidas como fronteiras mais concretas e reais, diferentes das fronteiras sociais, simbólicas e metafóricas, geralmente reconhecidas como mais dinâmicas, abstratas e presentes em todos os lugares de interação social. A concretude do processo de demarcação dos limites territoriais e todo um conjunto de instituições instaladas nas áreas fronteiriças (alfândegas, polícias de fronteira, receita federal e outras) traduzem a ideia do poder inscrito no território, ou seja, a visibilidade dos limites entre o fim da soberania de um Estado nacional e o começo de outra soberania nacional. A fronteira estatal produz a sensação e imaginação da existência de uma fronteira física, os limites do campo de ação do Estado e suas múltiplas instituições militares, políticas, jurídicas, sociais, administrativas plasmados no território. O que gostaria de destacar é que as fronteiras territoriais dos Estados modernos são, ao mesmo tempo, concretas e metafóricas, reais e simbólicas. No mundo moderno, os limites territoriais são geralmente concretizados por meio do poder visível do Estado e da imaginação compartilhada daqueles que vivenciam a nação, pensada como uma comunidade soberana e delimitada (ANDERSON, 2008). As imagens concretas dos muros, muralhas, cercas, arames, pontes, rios, mares dividem e atravessam as fronteiras territoriais, mas também simbolizam sentidos metafóricos que captam a dupla face das fronteiras em seus fluxos e controles de pessoas, mercadorias, imagens, tecnologias, transportes, moedas e línguas. As fronteiras territoriais foram bastante estudadas desde a perspectiva do pensamento analítico, o qual exige análise, classificação, modelos teóricos a serem testados na realidade, subdivisões, tipologias que permitem entender tipos variados de fronteiras estatais. Mas a análise e os modelos analíticos pode se associar com a abertura analógica e poética das metáforas nos seus múltiplos deslocamentos e criação de sentidos. Pensar as fronteiras é vivenciar a experiência de refletir entre diferentes formas de conhecimento. A relação entre pensamento analítico e metafórico, entre conceito e metáfora pode produzir novas fontes de inspiração e apreensão da experiência social nas zonas de fronteiras. A metáfora não é alheia ao conhecimento analítico, uma vez que o pensamento filosófico e científico ocidental está povoado por inúmeras metáforas. A palavra deriva do grego antigo metaphorein e indica a noção

74

de além, sobre (meta) e mudança, transposição de um lugar a outro (phorein). No sentido semântico, trata-se de uma figura de linguagem que permite transformar o sentido literal de uma palavra em sentido figurado por meio de comparações, produções e transbordamentos de significados para outros contextos de enunciação (RODRIGUES, 2007; SALDANHA, 1996; RICOUER, 2000). Nesse sentido, é possível pensar em metáforas fronteiriças nos estudos empíricos localizados em fronteiras territoriais. Entre os caminhos da observação e os labirintos da interpretação, os usos de metáforas podem possibilitar a compreensão das fronteiras visíveis, narradas e vividas por inúmeras pessoas. Esse caminho interpretativo não é novo e nem seguro. Alguns estudiosos de fronteiras têm recorrido às metáforas do atravessador e reforçador de fronteiras, pontes, portas e muros, a ferida simbólica lembrada em muitas narrativas das mutilações territoriais, como as narrativas existentes do lado mexicano da fronteira entre o México e os Estados Unidos (VILA, 2000; ANZALDÚA, 1997; VALENZUELA, 2003). Nessas construções metafóricas, a fronteira, às vezes, é comparada com a pele sensível de nosso próprio corpo. O corpo ferido, mutilado, contaminado e poluído pode ser traduzido no corpo territorial da nação. As margens do corpo e da nação são sensíveis e permeáveis pelas impurezas, perigo de contaminação de algum elemento exterior e sem possibilidades de controle pelos órgãos internos. Assim a prostituição fronteiriça, tráfico de armas, drogas e pessoas, contaminação por doenças (animais e pessoas) existentes do outro lado da fronteira reforçam a imagem da fronteira como “terra sem lei”, “terra de ninguém”, cidades do vício e da perdição, lugares de transgressão (VILA, 2003). Nessa perspectiva tenho feito uso da imagem da porta, algo que fecha e abre e que demarca um interior e um exterior, especialmente inspirados no ensaio de Simmel (2001), A porta e a ponte (ALBUQUERQUE, 2010b). Outra poderosa imagem usada é a simbologia do Deus Jano, deus de duas cabeças apontadas para direções inversas e que representa ao mesmo tempo o fim e o começo, o passado e o futuro (ALBUQUERQUE, 2011). Em diálogo com o pensamento ensaísta latino-americano, tenho também recorrido às analogias do espelho do próspero de Richard Morse (1988), semeador e ladrilhador em Sérgio Buarque de Holanda (1995) e do próprio o labirinto da solidão de Octávio 75

Paz (1984) para pensar processos de identificação nas zonas de fronteiras e as representações sobre o outro, as noções de ordem e desordem e os próprios labirintos da interpretação das situações de fronteiras, em que os fios de Ariadne são geralmente rompidos e temos que descobrir outras saídas. E entre o concreto e o simbólico, entre o conceito e a metáfora que transbordam sentidos talvez encontremos as ambiguidades do sagrado – inferno e paraíso - traduzidas no profano mundo da experiência fronteiriça. E da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, a janela pela qual tenho pensado as realidades fronteiriças, posso escutar essas múltiplas narrativas da fronteira a partir das metáforas do inferno e do paraíso. Do lado do inferno, o narcotráfico, o terrorismo, a violência, a prostituição e a marginalidade social. Do lado do paraíso, as mais de setenta etnias convivendo harmoniosamente em Foz do Iguaçu/PR, as belezas das Cataratas e as várias atrações do turismo internacional, como aquelas apresentadas em uma propaganda televisiva em 2010. Essa propaganda justamente falava das maravilhas de Foz do Iguaçu/PR e todas as atrações que poderiam ser feitas pelo turista durante sete dias e sete noites, mesmo tempo da criação divina do próprio mundo, conforme a narrativa cristã. Mas, apesar da riqueza de sentidos que podemos imaginar por meio do uso de novas metáforas em nossas pesquisas fronteiriças, as metáforas produzem deslocamento de sentidos, são escorredias, vacilantes e podem ultrapassar o pensamento científico e penetrar nas areias movediças da experiência poética. O que temos proposto é uma espécie de sintonia, aproximação entre o necessário rigor metodológico na busca incessante de novos dados e de novos sujeitos para nossas pesquisas de campo e a abertura radical de nossa imaginação, intuição e criação que as metáforas podem possibilitar. Em suma, trata-se de uma forma de pensar entre o analítico e o metafórico, entre a ciência e a poesia, entre os conceitos sociológicos e toda a riqueza do pensamento de nossos entrevistados, que sempre enriquecem com novos sentidos e novas metáforas as nossas próprias interpretações fronteiriças.

76

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os nossos estudos fronteiriços estão pautados em fortes crenças em um mundo mais igual e justo, na superação e eliminação de tantas fronteiras físicas e simbólicas. Entretanto, sabemos que nas cinzas e ruínas das fronteiras derrubadas, outras serão erguidas, dando continuidade ao movimento paradoxal da porta, aberturas e fechamentos que indicam o processo permanente da própria condição humana e suas armadilhas, seus labirintos e superações individuais e coletivas. Em nome da superação de tantas fronteiras que marcam esse mundo contemporâneo, lembro-me da dimensão poética e paradoxal do próprio muro; essa cerca que barra a passagem de milhões de pessoas, mas que pode também salvar vidas, quando a travessia das barreiras nacionais significa o jogo entre a vida e a morte, como todos aqueles que escaparam da guerra civil espanhola quando ultrapassaram a fronteira do Estado nacional espanhol, ou aqueles que se exilaram no contexto dos regimes ditatoriais da América Latina para além das fronteiras nacionais. Assim, finalizo esse ensaio aproximando-me da simplicidade e delicadeza da poesia de Manoel de Barros, um enviado do bairro fronteiriço do Pantanal que nos apresenta a bela metáfora de duas andorinhas, essas aves migratórias que buscam sempre coletivamente novas paisagens: O MURO O menino contou que o muro da casa dele era Da altura de duas andorinhas. (Havia um pomar do outro lado do muro) Mas o que intrigava mais a nossa atenção Principal Era a altura do muro Que seria de duas andorinhas. Depois o garoto explicou: Se o muro tivesse dois metros de altura Qualquer ladrão pulava Mas da altura de duas andorinhas nenhum ladrão pulava. Isso era. (Barros, 2004)

77

NOTAS EXPLICATIVAS

1

Professor de Sociologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

2

Uno puede tener simultáneamente un pie en España y otro en Portugal. Uno puede sentarse, como yo he tenido oportunidad de hacerlo, en el hito nº 695 (…). En este marco-hito, uno puede aposentar y repartir simultánea y respetuosamente sus glúteos entre dos Estados-naciones, dos provincias, un distrito y tres términos municipales. Excesivas fronteras, se me antoja, para unas mismas posaderas“ (Uriarte, 1994 apud Valcuende, Cardía, 2009, p 01). 3

Quando observamos a realidade específica da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina, Paraguai, observamos a desproporção dos trabalhos de campo realizados em cada um desses territórios nacionais por investigadores dos países vizinhos quando comparado com os trabalhos realizados “do lado de cá da fronteira”. Há também as limitações de financiamentos de agências nacionais e estaduais que dificultam a organizam de equipes de pesquisa internacionais, bem como os graus de desenvolvimento das próprias ciências sociais nesses países e o pouco diálogo entre os diversos pesquisadores argentinos, brasileiros e paraguaios nos estudos específicos das fronteiras internacionais. Dentre as experiências já existentes de parcerias de pesquisas envolvendo investigadores de mais de um país, gostaria de destacar o exemplo do Observatório da Tríplice Fronteira www.observatoriotf.com, formado especialmente por investigadores do Brasil e a Argentina. 4

Em 2011 e 2012, dois cartazes muitos significativos das novas simbologias da sociedade paraguaia já estavam presentes no próprio aeroporto de Foz do Iguaçu. De um da esteira das bagagens, o famoso cartaz presente em vários lugares das cidades brasileiras que fazem fronteira com o Paraguai: Visite o Paraguay, compre na Monalisa, do outro, o templo do consumo: Casa China. Aqui percebemos claramente como os símbolos do universo artístico renascentista e o templo religioso chinês se encontram lado a lado na tradução do Paraguai como símbolo do consumo. 5

O fortalecimento do diálogo entre a sociologia, a antropologia e a geografia nos estudos de fronteiras territoriais pode se constituir em um caminho importante de investigação. A geografia no Brasil já tem uma forte tradição nos estudos das fronteiras nacionais e tem contribuído, de maneira significativa, com as reflexões contemporâneas sobre processos de integração supranacionais. Nossa perspectiva é também nos aproximar de uma abordagem humana e crítica da geografia em trabalhos futuros.

REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, José L. C. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010a. _____. As fronteiras ibero-americanas na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Análise Social. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, vol. XLX, 2º trimestre de 2010b. _____. Pesquisas em zonas de fronteiras: contextos, temas e abordagens interdisciplinares. COSTA, Edgar A.; COSTA, Gustavo Villela; OLIVEIRA, Marco Aurélio (orgs.). Campo Grande: UFMS, 2011. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ANZALDÚA, Gloria. The homeland, Aztlán. El otro México. Borderlands/ La frontera: The

78

new Mestiza. 3ª ed. San Francisco, USA: Aunt Lute Books, 2007. BARROS, Manoel de. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1998. CARDIN, Eric Gustavo. Sacoleiros e “Laranjas” na Tríplice Fronteira: Uma Análise da Precarização do Trabalho no Capitalismo Contemporâneo. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (UNESP), Araraquara, SP, 2006. DA MATTA, Roberto. O oficio de etnólogo, ou como ter anthropological blues. In: NUNES, Edson de Oliveira (organizador). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. p. 23-35 _____. Relativizando, uma introdução a antropologia social. Rio de Janeiro, Petrópolis, 1981. DONNAN, Hastings; WILSON, Thomas M. Borders .Frontiers of Identity Nation and State. UK: Oxford, 1999. FOUCHER, Michel. Obsessão por fronteiras. Tradução de Cecília Lopes. São Paulo: Radical livros, 2009. GRIMSON, Alejandro. La nación en sus límites. Contrabandistas y exiliados en la frontera Argentina-Brasil. Barcelona: Gedisa, 2003. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HERNANDEZ, Elodía et al. Fiesta y frontera: transformacionaciones de las expresiones simbólicas en la franja fronteriza de Huelva. 1999. MACAGNO, Lorenzo; GIMENEZ BELIVEAU, Verônica; MONTENEGRO, Silvia (orgs..) A Tríplice Fronteira: espaços nacionais e dinâmicas locais. Curitiba: UFPR, 2011. MACHADO-PINHEIRO, Rossana. China-Paraguay-Brasil: uma rota para pensar a economia informal. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 23, n. 67, São Paulo, pp. 117-133, jun de 2008. MARCUS, George. Ethnography in/of the World System: The Emergence of Multi-Sited Ethnography. Annual Review of Anthropology. Vol. 24: 95-117 (Volume publication date October 1995). MAUSS, Marcel. O ensaio sobre a dádiva – forma e razão dastrocas nas sociedades arcaicas. In. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974. MORSE, Richard. O espelho do Próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo. São Paulo: UNESP, 2006. PAZ, Octávio. O labirinto da solidão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. RAFFESTIN, Claude. Elements pour une théorie de la frontière. Diogène, 1986, vol. 34, 134, p. 3-21.

RODRIGUES, Léo Peixoto. Analogias, modelos e metáforas na produção do conhecimento em Ciências Sociais. Pensamento Plural, Pelotas, 01, p. 11-28, julho/dezembro de 2007.

79

SAHLINS, Peter. Boundaries: The making of France and Spain in the Pyrenees. United States: University of California Press, 1989. SALDANHA, Nelson. Criatividade e metáforas em Ciências Sociais. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 23, n. 74, p. 387-398, 1996. SIMMEL, Georg. Estudios sobre las formas de socialización. Madrid: Alianza Editorial, 1986. ____. Puente y puerta. In: El individuo y la libertad. Barcelona: Ediciones península, 2001. TOLOSANA, Carmelo Lisón. Antropologia de la frontera. Las máscaras de la identidad: claves antropológicas. Barcelona: Editorial Ariel, 1997. TURNER, Victor. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 1974. VALCUENDE, José M. Fronteiras, territorios e identificaciones colectivas. Sevilla: Fundación Blas Infante, 1998. VALCUENDE, José M; CARDÍA, Lais. Etnografia das fronteiras políticas e sociais na Amazônia legal: Brasil, Peru e Bolívia. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, vol XIII, n. 292, 1 de junio de 2009. VALENZUELA, José Manuel. Centralidade de las fronteras. Procesos socioculturales em la frontera México-EE.UU. HERLINGHAUS, Hermann; MORAÑA, Mabel (orgs. ). Fronteras de la modernidad en América Latina. México: Instituto Internacional de literatura iberomaericana, 2003. VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: NUNES, Edson de Oliveira. A Aventura Sociológica, Rio deJaneiro, Zahar, 1978. VILA, Pablo. Crossing borders, reinforcing borders: social categories, metaphors and narrative identities on the US-México frontier. United States of América: University of Texas Press, 2000. _____. Ethnography at the border. London: University of Minnesota Press, 2003. WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política. Metodologia das Ciências Sociais. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2001. _____. Relações comunitárias étnicas. Economia e Sociedade. Fundamentos de sociologia compreensiva. Brasília: UnB, vol. 1, p. 267-277, 1994.

80

A INFUSÃO ETNOGRÁFICA EM COMUNIDADES NA FRONTEIRA1

Rodrigo Kummer2 Silvio Antônio Colognese3

As transformações em curso em nível mundial, tanto em termos da globalização quanto da formação de blocos regionais, conferem nova centralidade às questões das fronteiras, particularmente em termos das suas expressões locais. São processos contraditórios e conflitivos que, ao mesmo tempo, redefinem territórios e flexibilizam fronteiras para acelerar os fluxos econômicos entre os países, e se fecham e ampliam os empecilhos para os fluxos de pessoas, tanto para retrair as migrações da população pobre para lugares mais ricos, quanto para tentar conter as ações de grupos criminosos, ligados ao contrabando, aos tráficos de drogas, armas e pessoas, e ao terrorismo internacional. São processos intensos, que produzem deslocamentos profundos nos sentidos associados às fronteiras. Estes deixam de ser entendidos principalmente como limites entre territórios e passam a figurar como centros das “oportunidades”, repletos de crescentes conflitos. São exemplares neste sentido as fronteiras Brasil/Paraguai e México/Estados Unidos, embora as expressões locais destas dinâmicas possam ser identificadas em nível mundial. Este trabalho discute dilemas metodológicos para a pesquisa em contextos locais, notadamente em comunidades situadas em ambientes fronteiriços. Reflete as incertezas dos pesquisadores em situações de campo, onde são levados a lançar mão de um misto de abordagens e técnicas, muitas vezes não possíveis de serem seguidas conforme previstas. Estes dilemas metodológicos estão referidos mais especificamente a situações de pesquisa qualitativa enfrentadas em 81

estudos de casos específicos, mais particularmente em procedimentos que implicam a etnografia e o manuseio de dados coletados empiricamente. São investigações que mobilizam um misto de procedimentos de pesquisa, enquanto uma estratégia para o cercamento e a elucidação de problemáticas específicas. De maneira geral se referem aos estudos de casos em comunidades fronteiriças ou não, seguindo em alguma medida a perspectiva dos estudos antropológicos nos quais “o lócus do estudo não é o objeto do estudo. Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias” (GEERTZ, 1989, p. 16). Nesta medida, destoam em muitos aspectos da tradição dos chamados estudos de comunidade, enquanto “estudos fundamentados na observação direta de pequenas cidades ou vilas com as técnicas desenvolvidas pela Etnologia no estudo das sociedades tribais” (MELATTI, 1983, p. 17). Da mesma forma, são investigações orientadas por problemáticas de pesquisa mais heterogêneas nas quais, ao invés da verificação de hipóteses específicas, os resultados dependem da decifração de intrincadas tramas, que se processam através de interações envolvendo um conjunto variado de atores sociais no ambiente das fronteiras. Por isso a sua abordagem é marcadamente qualitativa, no sentido que todos os fenômenos são a priori considerados igualmente importantes e preciosos: a constância das manifestações e a ocasionalidade, a frequência e a interrupção, a fala e o silêncio (CHIZZOTTI, 2003, p. 84). Nestas tramas os significados manifestos se enredam com os que permanecem ocultos. Todos os sujeitos implicados são inicialmente dignos de estudo, embora permaneçam únicos: o culto e o iletrado, o delinquente e o juiz, os que falam e os que se calam, os normais e os anormais. Não são estabelecidos previamente centros rígidos para as análises e as interpretações de pesquisa. Estas opções metodológicas heterogêneas para a aproximação dos objetos empíricos de pesquisa se justificam pela necessidade de manipulação de um conjunto complexo de variáveis implicadas nestas tramas sociais. A amplitude e a complexidade dessas variáveis sugerem a dificuldade prática de padronização dos procedimentos de pesquisa. O pesquisador precisa aproximar-se ao máximo da realidade empírica, a fim de que essas variáveis possam ser mais controladas e dimensionadas,

82

ainda que esta aproximação represente riscos a objetividade e a imparcialidade da análise. Destas modalidades de pesquisa destacamos neste trabalho a etnografia, que ocupa frequentemente lugar de maior destaque nas incursões a campo. A atividade etnográfica, esta referida á análise do cotidiano e das características da vida comunitária dos sujeitos, seus elementos identitários e as suas atividades de sociabilização. É um recurso de pesquisa que pode se revelar extremamente producente em investigações locais em áreas de fronteira. Porém, antes de tratar especificamente da etnografia, discutimos alguns percalços nas investigações em comunidades locais nas fronteiras.

PESQUISANDO NAS COMUNIDADES Os chamados Estudos de Comunidade no Brasil se desenvolveram a partir da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, criada em 1933. A sua influência teórica está referida aos estudos de comunidade realizados nos Estados Unidos desde o ano de 1920, que tinham o objetivo de compreender “comunidades em processo de mudança social” (OLIVEIRA & MAIO, 2011, p. 523). No Brasil estes estudos tiveram um papel preponderante na efetivação das Ciências Sociais, que dessa forma puderam contribuir efetivamente para o chamado “desenvolvimentismo”, especialmente na década de 1950, quando o país vivia uma conjuntura de transformação. Essa transformação seria a passagem de um país “essencial-mente rural e agrário em país urbano e industrial” (OLIVEIRA & MAIO, 2011, p. 522), onde a solução das discrepâncias regionais também eram tematizadas. O papel das Ciências Sociais no processo desenvolvimentista foi garantido, segundo Goldwasser (1974), uma vez que esses estudos serviram para institucionalizar uma consciência científica para a compreensão da realidade brasileira, pautando-se sempre numa intensa carga empírica. Rompiam com as interpretações de discurso longo e demasiadamente abrangentes. Trabalhando com um controle maior das variáveis e categorias em grupos restritos, permitiram análises mais aprofundadas e menos especulativas. Como garantem Oliveira & Maio 83

(2011) os estudos de comunidade buscavam ao máximo a objetividade, se configurando em análises detalhadas e minuciosas, uma vez que isso conferia um caráter de “verdade científica”. Entre os sociólogos que desenvolveram estudos de comunidade no Brasil podem-se destacar: Emílio Willems; Charles Wagley; Kalervo Oberg; Antonio Candido; Maria Isaura Pereira de Queiroz; Albersheim; Oracy Nogueira; Donald Pierson; Doris Meyer; e Ellen Woortman. A formulação dos estudos de comunidade está vinculada aos estudos clássicos da Antropologia Social, no que tange a análise das sociedades primitivas. A análise de caracteres culturais totais em uma sociedade primitiva rendia a interpretação do modo de funcionamento do grupo. Para os estudos de comunidade ocorreu uma transposição metodológica, sendo eles também estudos que pretendiam explicar a totalidade das comunidades (ARENSBERG & KIMBALL, 1973; GOLDWASSER, 1974); (CASTRO, 2001). De acordo com Oliveira & Maio (2011) nesses estudos havia uma interdependência entre a Antropologia e a Sociologia, ao que chamam de “zona interseccional” dado que a base metodológica era ligada a etnografia – método aproximativo e extenso a várias problemáticas – e o foco desta problematização eram as mudanças sociais – engendrando nas questões de estrutura, resistência, desenvolvimento. Os critérios de objetividade e subjetividade foram relativizados e somados as práticas de etnografia. Como descreve Castro (2001, p. 197), “a objetividade científica é construída a partir de uma experiência subjetiva e individual (o estar lá), pelo uso de determinados procedimentos e técnicas “científicas” na coleta de material, e legitimada pela autoridade etnográfica do antropólogo”. Os chamados “estudos de comunidade” representam uma tentativa de apreensão unitária da realidade social. Metodologicamente, refletem uma transposição para o âmbito das sociedades complexas, das técnicas de investigação caracteristicamente desenvolvidas pela Antropologia Clássica no estudo das sociedades ditas primitivas. Do modelo teórico destas sociedades, implícito naquela transferência de abordagem, destacaram-se as dimensões de homogeneidade e isolamento que se assumiam como condições necessárias à aplicação do método antropológico,

84

produzindo-se os primeiros estudos de comunidade preferencialmente sobre pequenos aglomerados rurais relativamente compartimentalizados em suas ligações com a sociedade global. (GOLDWASSER, 1974, p. 69).

Era candente a importância de analisarem-se os espaços em transformação e aqueles que mantinham um grau de manutenção e preservação cultural. Avaliavam-se categorias de passado – do atrasado – e de modernidade – do novo. Consistia numa verificação do nível de desenvolvimento e da natureza das relações tecidas relacionando-se ao que era necessário a sua justaposição ao ritmo do resto da sociedade nacional. Para tal os estudos buscavam “a exploração do comportamento humano em seu aspecto social, cultural e de grupo, in vivo, em seu cenário natural, mais ou menos à semelhança do emprego dos métodos de história natural em biologia e zoologia” (ARENSBERG & KIMBALL, 1973, p. 190). O foco tornava-se o comportamento dos indivíduos que compunham os grupos comunitários. O estudo de comunidade não é o estudo de culturas inteiras, ou de comunidades [...]. É o estudo do comportamento humano em comunidade; isto é, nos contextos naturais, constituídos da vida cooperativa natural e especificamente humana, dos relacionamentos intergeração, e intersexo, da comunidade e transmissão cultural familiar em processo. (ARENSBERG & KIMBALL, 1973, p. 190).

Porém, para pensar esse comportamento específico é preciso definir o caráter do que é ou não comunitário, assim como era necessária a espinhosa tarefa de classificar uma comunidade, de caracterizá-la. Como afirmam Arensberg & Kimball (1973, p. 193), “em nenhuma parte está realmente claro o que seja comunidade, em tamanho, organização, ou outros caracteres, ou como deve ser tratado o relacionamento entre comunidade, cultura e a sociedade mais ampla”. Enfatizam ainda que as comunidades variam em tamanho, em complexidade e na possibilidade de problematizações subjacentes. Como observou Castro (2001), o “local” onde a pesquisa era realizada tinha grande importância nestes trabalhos, e diversos estudos definiam a comunidade a partir do tamanho, 85

lido como número de habitantes. Para tanto a definição de comunidade era associada ao caráter “rural”, demarcada a partir do “tamanho do local”, “grau de isolamento” e de seu “desenvolvimento” (CASTRO, 2001, p. 196). Goldwaser entende que existe um modelo forjado para a análise das comunidades, perdulárias das definições de Conrad Arensberg e que se baseiam inicialmente na “ideia de totalidade” e estabelecem um conjunto de pressupostos classificatórios que imprimem uma expectativa de verificação empírica (GOLDWASSER, 1974, p. 71). [...] em qualquer das dimensões consideradas, menciona-se sempre o caráter unitário da comunidade; os demais atributos se introduzem para caracterizar sua natureza singular em face de outros fenômenos de constituição unitária: territorialidade (a comunidade é localizada, ocupa um espaço físico próprio que lhe fornece a base ecológica), critério demográfico (a comunidade compreende uma população como um dos seus constituintes primários), organização social (as relações sociais na comunidade compõem um sistema integrado cujo padrão pode ser empiricamente determinado) e código cultural (um sistema particular de significados permeia a comunidade, desenvolvendo entre seus membros o sentido de sua participação comum e sinalizando a área de domínio específico da comunidade). (GOLDWASSER, 1974, p. 71).

Grosso modo, os estudos de comunidade podem ser conceituados pela acepção de Comerford (2005, p. 115): “estudo exaustivo de um município, tomado a princípio como ‘comunidade’”. Arensberg & Kimball (1973, p. 170) definem estes estudos como um “método de observação e exploração, comparação e verificação”. Como método não seria o estudo de uma comunidade, nem de várias comunidades ou do próprio conceito de comunidade. Como alertam “seu propósito é antes o de usar a comunidade como um contexto para a exploração, a descoberta ou a verificação de interconexões entre fatos e processos sociais e psicológicos” (1973, p. 171). Portanto, a comunidade cumpria o papel de um lócus privilegiado para a análise de conjunto particular de fenômenos e eventos sociais.

86

Estes estudos, porém, suscitam críticas bastante contundentes, remetendo a um impasse teórico e, por vezes, uma discussão acusatória. Parte-se da definição de estudos de comunidade forjada por Oliveira & Damasceno (2009, p. 253), que expõe a multiplicidade de aspectos abordados por tais estudos, sobrepondo-se aqueles relativos a reconhecer a comunidade como um espaço claramente definido, o que pressupôs tendências a um entendimento de isolamento4com relação aos processos ali vivenciados. De acordo com ARENSBERG & KIMBALL, muitos estudos de comunidade dão a impressão de que tratam o grupo local como se a sociedade mais ampla não existisse, desconsiderando-a (1973, p. 189). Poucos deles mostraram como a sociedade em geral afetava a comunidade em estudo. Possuiriam um caráter descritivo e abrangente, buscando relatar ao máximo a “vida social das comunidades, atrelada a elementos que recompu-sessem o seu desenvolvimento histórico” (OLIVEIRA & MAIO, 2011,p. 527). Os estudos de comunidade tendiam a captar os aspectos de manutenção nos ambientes comunitários rurais. Os fatores de mudança eram apontados, mas dificilmente problematizados nesses locais. As críticas de “ensaísmo” referentes aos estudos de comunidade vinculamse a dificuldade que tinham de prover um entendimento geral do ambiente rural em transformação. Foram considerados “alienados” por não definirem categoricamente sua relação com a estrutura social mais ampla e não subsidiarem de maneira enfática o conhecimento do contexto social nacional (OLIVEIRA & MAIO, 2011). Ponderam ainda Arensberg & Kimball, definindo que este problema é tácito dado à ineficácia de comparação5 e generalização, pois afirmam que “nem os problemas, nem as comunidades são comuns” (1973, p. 193). Ainda neste sentido é importante considerar que o exercício de generalização dos estudos de comunidade, instituído em caráter microssocial, para a noção de totalidade da realidade nacional não convergem de maneira assimétrica. Como adverte Geertz, os ambientes microssociais produzem em primeira instância respostas para si mesmos e não necessariamente ao conjunto social mais amplo.

87

A noção de que se pode encontrar a essência de sociedades nacionais, civilizações, grandes religiões ou o quer que seja, resumida e simplificada nas assim chamadas pequenas cidades e aldeias “típicas” é um absurdo visível. O que se encontra em pequenas cidades e vilas é (por sinal) a vida de pequenas cidades e vilas. Se os estudos localizados, microscópicos, fossem realmente dependentes de tais premissas para sua maior relevância – se pudessem capturar o mundo amplo no pequeno – eles não teriam qualquer relevância. (GEERTZ , 1989, p. 15-16).

Jackson (2009, p. 276) aponta críticas aos estudos de comunidade avaliando a ausência da dimensão histórica como ponto de deficiência, uma vez que não contemplam os “processos mais amplos” aos quais as comunidades foram expostas e que passam despercebidos. A comunidade é entendida como um agregado amorfo e estanque. Da mesma forma afirma Melatti, ao incitar as inconsistências relativas a uma tentativa de generalização teórica a partir de exemplos muito dispersos e desconexos. Entre as críticas que se fizeram aos estudos de comunidade está a de que desdenham a documentação histórica [...]. Outra crítica é a do desprezo pelas relações da comunidade estudada com a sociedade mais ampla, tratando-a artificialmente como uma totalidade isolada, fazendo o pesquisador perder de vista certas conexões fundamentais. [...] Ao que parece, com os estudos de comunidade pretendia-se chegar a uma visão geral da sociedade brasileira, através da soma de muitos exemplos distribuídos pelas diversas regiões do Brasil. Além desse objetivo geral, tais estudos estavam quase sempre voltados para objetivos específicos, como mudança cultural, persistência da vida tradicional, problemas de imigrantes, educação e vários outros. (MELATTI, 1983, p. 18).

Ainda conforme Melatti (1983, p. 30), os estudos não seguiam uma orientação temática, elegendo como problemática de análise “a comunidade” em si mesma, denotando uma pretensão de entendê-la enquanto espaço isolado, o que, segundo ele, não seria pertinente, haja vista a dicotomia implícita em tal pressuposto. Cabe a crítica ao descuido na acepção entre comunidades rurais modernas e aldeias tidas como primitivas. As situações de interação social 88

não podem ser tecidas como igualdade entre ambas. Além disso, parece não ter sido considerado o fato de que as comunidades nas complexas sociedades modernas diferem, em espécie, das comunidades das culturas simples e primitivas (ARENSBERG & KIMBALL, 1973). Em suma as comunidades estudadas pela Escola Livre de Sociologia e Política não eram, salvo exceção, sociedades simples, no sentido que teciam esparsas relações sociais e que não estivessem ligadas à sociedade ampla e global, ainda que de maneira rarefeita. Esse caráter alimentava as manifestações que viam essa modalidade de pesquisa como inválida e limitada (OLIVEIRA & MAIO, 2011). A pretensa “utilidade” dos estudos de comunidade segundo Goldwasser (1974) e Castro (2001) estava no fato de que eles subsidiariam a formulação e implantação de reformas sociais. Os estudos forneceriam além das informações necessárias para medir os investimentos necessários, bem como considerar os melhores métodos de aplicação, revelando os possíveis impasses e dificuldades de sua condução. Para OLIVEIRA & MAIO (2011), os estudos de comunidade representavam os esforços que as Ciências Sociais dispunham no sentido de contribuir no desenvolvimento do país, incitando mudanças sociais. Em seu torno criava-se um corpo “técnico” composto por agrônomos, antropólogos, sociólogos, para “corrigir as reais necessidades das populações interioranas” (2011, p. 536). Essa era uma tendência aos procedimentos que visavam conhecer cientificamente a sociedade para resolver os seus problemas. Contudo, além de pensar as transformações e interporem-se para resolução de problemas os cientistas sociais faziam críticas a determinados modelos de mudança social, preocupando-se em adequálas. Consistia numa “intervenção racional” na realidade. Existe também um problema de representatividade dos estudos de comunidade em relação ao resto do ambiente social, apontados por Castro (2001) e Goldwasser (1974). Afinal de contas a condução rigorosa, o controle absoluto de variáveis a expansão de discussão de “todos” os aspectos de um pequeno grupo social pode servir para o entendimento da sociedade em geral? Em outras palavras, cientificamente os estudos de comunidade foram questionados enquanto sua importância para a compreensão da sociedade. Como contextualiza Goldwasser “a representatividade de um fenômeno é aquilatada em função do 89

atendimento de certos requisitos para comparabilidade” (1974, p. 76). O fechamento e mesmo o isolamento analítico dificultam a possibilidade comparativa, mesmo não a eliminando. Essas críticas, no entanto, são ponderadas por Melatti (1983). Em seu entendimento estariam emergindo novas análises, baseadas em aspectos específicos da realidade comunitária. Exemplifica serem estes estudos baseados, entre outros, na singularidade étnica de certas comunidades rurais e estudos de aculturação de imigrantes, além de estudos de pequenos criadores de gado, agricultores camponeses, garimpeiros etc., sendo produzidos, geralmente em nível de dissertações de mestrado. Denomina tais estudos pelo aspecto de serem estudos “em” comunidade e não mais “de” comunidade. Por outro lado, já existe uma série de estudos sobre temas específicos desenvolvidos sem que estejam ligados a projetos mais amplos, em pequenas comunidades. Porém não se confundem com os antigos “estudos de comunidade”, por não pretenderem estudar totalidades socioculturais, mas apenas um determinado aspecto. Seriam “estudos em comunidades”, passíveis de um tratamento comparativo a posteriori, uma vez que não previsto nos seus projetos individuais. [...] Se os estudos de comunidade do período anterior foram objeto de várias apreciações, tanto por parte de alguns de seus realizadores como daqueles que não os achavam adequados para atingir os objetivos a que se propunham, os estudos regionais e os estudos em comunidades não parecem ter até agora suscitado nenhum comentário crítico (MELATTI, 1983, p. 3031).

A positividade da realização de estudos de comunidade reside, ou residia, portanto, em seu caráter empírico, objetivo e intenso. Além disso, a superação de algumas das inconsistências na visão que se tinha da comunidade e suas relações podiam produzir conhecimentos efetivos para o entendimento social. Como destaca Goldwasser, os estudos que consideram os aspectos conflituais e paradoxais da comunidade, que considerem sua relação com a sociedade mais ampla e que procuram relacionar os dados empíricos com um escopo teórico articulado tem uma relevância destacada. Isto por que, como assegura, a comunidade

90

se mostra como “um lócus privilegiado para observação do comportamento humano, com seus sistemas de representação e categorias de ação” (1974, p. 77). Para um empreendimento teórico válido é premente inquirir estes aspectos nas múltiplas possibilidades, reafirmando que os resultados dessas discussões dependem da relação estabelecida na sua tessitura. Em situações nas fronteiras esta potencialidade pode se revelar ainda mais decisiva. Finalmente, os estudos de comunidade, desenvolvidos pela tradição das Ciências Sociais brasileiras exprimem um escopo de deficiências quando confrontados com a realidade empírica. O fechamento e as ingenuidades que podem suscitar não inviabilizam nem deturpam a importância que tiveram e que ainda têm. A comunidade como elemento social ainda está presente em nossa sociedade e continua sendo um espaço privilegiado de análise. Com as ponderações metodológicas sempre reafirmadas é pertinente considerar a necessidade de se fazerem novos estudos de comunidade. Não de comunidades entendidas em seu suposto isolamento, mas nas suas relações e fluxos sociais. Neste sentido, as comunidades nas fronteiras podem representar um locus através das quais importantes problemáticas de pesquisa sejam encaminhadas. Não na acepção crítica que já teve, mas no sentido de considerar o espaço comunitário nas fronterias na construção de problemas de pesquisa. A feitura desses estudos precisa, talvez, seguir a aferição de que não se estudam lugares, estudam-se fenômenos, isto é, estudar “na” comunidade, “na” fronteira, e não “a” comunidade e “a” fronteira por ela mesma. Enfim, esta configuração para os estudos pode assumir relevância renovada, notadamente “nas” comunidades situadas em áreas “nas” fronteiras. Mesmo por que, muitas problemáticas relacionadas às fronteiras, notadamente aquelas envolvendo os fluxos de pessoas, demandam estudos localizados em determinadas comunidades nas fronteiras. Nestes as metodologias qualitativas de investigação predominam e, dentre elas, a etnografia frequentemente assume a maior importância. Por isso na sequência discutimos alguns dilemas metodológicos para a pesquisa etnográfica ou o que chamamos a infusão etnográfica em comunidades nas fronteiras.

91

A INFUSÃO ETNOGRÁFICA EM COMUNIDADES NA FRONTEIRA

A construção, a feitura, a forja de uma análise social compõem-se de incessantes situações paradoxais. Ao propor deslindar uma dada problemática o pesquisador está envolto em conflitos operacionais, teóricos, conceituais e pessoais. Os mecanismos que lança mão, geralmente cuidadosamente prescritos e justificados, são insuficientes para a compreensão – efetiva – dos fenômenos sob os quais se debruça. Longe de lhe frustrar, esta dura realidade conjuntural o encaminha a rever, repensar e reconstruir intermitentemente caminhos de pesquisa. Essa constatação é comum no desenvolvimento de pesquisas em comunidades nas fronteiras. Mesmo por que, em comunidades nas fronteiras, é comum um estranhamento maior do pesquisador em relação à realidade empírica vivida pelos sujeitos pesquisados, em suas relações com o lado de lá e o lado de cá da mesma. Por este motivo, frequentemente a etnografia que, de início, pode ser concebida como um método de controle dos demais instrumentos de pesquisa (entrevistas, questionários, documentos oficiais etc.), pode passar a ocupar uma posição privilegiada e de intensa contribuição para a compreensão da realidade em estudo. Assim, entre as diferentes estratégias de pesquisa, a etnografia pode tornar-se o mecanismo de depuração dos dados, um instrumento de qualificação de todas as informações colhidas em campo. Algo que se aproxima da acepção de Clifford Geertz quando afirma que “o ecletismo é uma frustração, não porque haja somente uma direção a percorrer com proveito, mas porque há muitas: é necessário escolher” (1989, p. 4). Particularmente, a etnografia (ou o “etnografar”) torna-se imprescindível para problematizar o sentido dado às ações dos sujeitos que se movem em comunidades nas fronteiras. Para perceber os processos de representação e os aspectos identitários que aqueles indivíduos manifestam, intencionalmente ou não. Para desvendar as estratégias destes sujeitos no cotidiano nas fronteiras. Isto por que, como adverte Geertz: “a maior parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um ritual, um costume, uma ideia, ou o que

92

quer que seja está insinuado como informação de fundo antes da coisa em si mesma ser examinada diretamente” (1989, p. 7). Por isso, a discussão precisa avançar no sentido de complexificar o corriqueiro, o óbvio e o naturalizado em questionamentos, em pomo de discórdia analítico, em pesquisa. A etnografia pode assumir neste ambiente influência decisiva, ainda que conduzida de maneira amadorística e em tons de aprendizado. Por isso o pesquisador deve redobrar atenção no campo de pesquisa para avalizar técnicas, formas e modos de conduzir as várias incursões etnográficas a fim de torná-las não só efetivas, mas também rigorosas e válidas. Algumas das obras clássicas6 que tratam do “fazer etnográfico” devem ser consultadas e servem para inferir os pilares mínimos de uma pesquisa etnográfica propriamente dita. Dentre elas destacam-se: as proposições clássicas de Bronislaw Malinowski (1985) na introdução de seu estudo “Os Arnonautas do Pacífico Ocidental”, obra originalmente publicada em 1922, onde imprime modelos, exemplos e advertências deste método de pesquisa; o trabalho de grande lastro de Clifford Geertz (1989), que pressupõe um contributo para estudar os intricados fenômenos culturais; e por fim, dirimem-se algumas críticas considerando as proposições de James Clifford (2011), principalmente no que tange aos percalços da associação/dissociação entre o etnógrafo e a etnografia. Conforme lembra Geertz (1989), é em torno do conceito de cultura que surgiu todo estudo da antropologia e, por conseguinte, o que os antropólogos fazem é etnografia. Sua tese é a de que os fenômenos culturais, dada sua complexidade, prescindem de uma “Teoria Interpretativa”. Essa teorização passa invariavelmente por métodos de pesquisa que fortaleçam e aprofundem os vínculos do pesquisador com os aspectos pesquisados, no sentido que chama de uma etnografia que promova a descrição “densa” em detrimento de uma descrição “superficial”. [...] a etnografia é uma descrição densa. O etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são

93

simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. (GEERTZ, 1989, p. 7).

Por conseguinte, o termo infusão, utilizado nesta construção textual quer significar a entrada, o envolvimento, o mergulho na realidade e nas especificidades da etnografia. A etnografia por seu turno é entendida como um mecanismo privilegiado de aproximar-se e distanciar-se do objeto de pesquisa. Uma condição em que o pesquisador se mantém em espécie de sístole e diástole entre suas acepções teóricas e os elementos que a realidade de campo forma, desforma e reforma. Etnografar em comunidades na fronteira supera a noção de um simples registro do que foi visto. Assume uma posição de compreender pelo vivido, pelas ações de dentro, se possível do âmago do problema. Geertz supõe que essa condição em relação ao etnógrafo lhe conduz também a uma forma de proposição para ação. Pergunta-se: “o que faz o etnógrafo? – ele escreve. [...] ele observa, ele registra, ele analisa – uma espécie de concepção de veni, vidi, vinci do assunto” (1989, p. 14). Dicotomias à parte, etnografar não condiciona, como método e como prática, uma fórmula que alcance respostas definitivas e totalizantes. Ainda seguindo Geertz, entende-se que mesmo não obtendo uma resposta total, vários pontos, fenômenos e situações em comunidades nas fronteiras podem ser analisados, discutidos, explicados e compreendidos à luz do fazer etnográfico. Malinowski defende que a justificativa do fazer-se etnografia está na existência de fenômenos sociais que dada sua importância e complexidade, muitas vezes escapam ao registro de pesquisas quantitativas e observações distanciadas. Para ele estes eventos “têm que ser observados em sua plena realização” (1985, p. 42). São exemplos: as realidades que configuram rotina, como a vida comunitária; as noções de tempo e espaço; as tradições dispostas; as relações de trabalho, de amizade, de agrupamento, de hostilidades; as relações cotidianas nas fronteiras etc. Enfim aqueles eventos que não permitem uma rápida e efetiva definição por serem complexos também entre aqueles que os praticam. Uma descrição densa como defende Geertz não é uma descrição detalhista, mas uma análise aprofundada dos porquês envolvidos nas

94

ações. O etnógrafo não pode ser um espectador que apenas narra fatos, antes deve ser um interlocutor que os problematiza, além inclusive do que os próprios atores compreendem sobre. Como diz, é preciso analisar que vida eles levam e como a explicam; o que fazem e o que lhes acontece ao fazê-lo de tal forma (1989, p.11). Por isso na análise dos fenômenos em comunidades nas fronteiras o pesquisador precisa considerar a importância e os sentidos conferidos pelos sujeitos às suas ações, tanto em termos manifestos quanto velados (GEERTZ, 1989, p.8). O fazer etnografia não determina uma análise, mas constrói uma tentativa de leitura em analogia ao que Geertz convenciona de “um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado” (1989, p. 7). Como experiência pessoal é um exercício de vontade que incide em “situar-se” entre as posições teóricas e a realidade direta vivida em comunidades nas fronteiras. Esse é um exercício bemsucedido apenas parcialmente (GEERTZ, 1989). Seu foco evidencia-se no discurso e no comportamento dos indivíduos sob a leitura, não necessariamente em quem eles são. Deve atentar-se para o comportamento, e com exatidão, pois é através do fluxo do comportamento – ou, mais precisamente, da ação social – que as formas culturais encontram articulação. Elas encontram-na, também, certamente, em várias espécies de artefatos e vários estados de consciência. Todavia, nestes casos o significado emerge do papel que desempenham no padrão de vida decorrente, não de quaisquer relações intrínsecas que mantenham umas e outras. (GEERTZ, 1989, p. 12-13).

A organização e os elementos sociais não se dirimem em torno apenas do que está explicito nos discursos (GEERTZ, 1989). Notadamente no ambiente das fronteiras, as múltiplas condutas não estão necessariamente marcadas a partir de códigos e estes por sua vez não prescindem à publicação oficial. Os códigos são estratagemas que nem sempre determinam condutas, o que exige ao pesquisador tornar visíveis as “curvas do discurso social”, ou fixá-lo de maneira “inspecionável” (GEERTZ, 1989, p. 13). Ao fazê-lo o etnógrafo cria um elemento de 95

entendimento da multiplicidade do fenômeno humano. Inicialmente transforma os acontecimentos em dados, que podem subsidiar as análises e que se institui como informação codificada e permanente, o que permite que os discursos e comportamentos possam ser guardados para consultas a posteriori (GEERTZ, 1989). Na etnografia, ao passar do nível da observação e participação entre os agentes pesquisados para o grafar – para escrever o que desse convívio sobrevém como teorização possível – o etnógrafo se vê em delicada tarefa. Como afiança Geertz, Clifford e mesmo Malinowski, a escrita, o diário de campo, o relatório não são elementos ou “entidades” que possam expressar exatamente o que ocorre entre os atores sociais. O texto etnográfico é também uma versão construída pelo etnógrafo em relação ao que pesquisou. É uma grafia metódica, comprometida com critérios e cientificidade. Porém nunca substituirá ou expressará o fato em si mesmo. Para Paul Ricoeur, conforme contextualiza Geertz (1989, p. 14), é preciso ponderar a amplitude e a aplicação do texto etnográfico. Sendo este constituído gradativamente através de discursos, o que importa em termos de profundidade de compreensão se torna não necessariamente o que o ator social “diz” “ao” falar, mas sim o que foi “dito” “no” falar. Significa complexificar – ainda que nem sempre se possa chegar a conclusões factíveis – o que quis ser dito, como foi dito, o que de fato foi dito, para quê foi dito, além do que não foi dito, silenciado e deturpado e seus porquês subsequentes. Por isso o etnógrafo deve perseguir a “substância” dos sentidos implícitos e explícitos, indo além do que é dito e não dito. A etnografia torna-se assim um instrumento descritivo no sentido da representação dos fenômenos sociais. É uma descrição densa por que é interpretativa no sentido em que expressa o fluxo dos múltiplos discursos manifestos. Esse discurso torna-se permanente uma vez etnografado, pois permanece disponível após a incursão do etnógrafo, inscrito e encrustado no texto. É o que Geertz entende por “fixá-lo em formas pesquisáveis” (1989, p. 15). Um exemplo clássico do trabalho etnográfico provém de Bronislaw Malinowski. Ele foi um antropólogo afeito às pesquisas de campo. Suas incursões entre populações ditas primitivas e tribais na Ásia e Oceania

96

renderam obras seminais. Exemplo mais claro de seu trabalho é o livro “Argonautas do Pacífico Ocidental”. A obra retrata com detalhes o cotidiano, as relações e os rituais entre os habitantes das Ilhas Trobriand, na costa da Nova Guiné. Nela ele registra o ritual do Kula, uma espécie de comércio recíproco e ritualístico entre vários povos dessa região, que permanece disponível para a pesquisa. Malinowski desenvolveu um “estilo” de pesquisa etnográfica alcunhado como “descrição total”. Caberia, segundo ele, ao etnógrafo inserir-se no grupo pesquisado, conviver com ele e discorrer sobre praticamente tudo o que faz, como faz e porque o faz. Não haveria motivo para selecionar aspectos e fenômenos, uma vez que toda e qualquer atitude tomada pelo grupo importaria no sentido de compreendê-lo. Julgava “tolo e míope” aquele que, ao estar diante de uma variedade de fenômenos, ignorasse e desprezasse parte deles por não ver utilização teórica imediata (1985, p. 43). O etnógrafo de campo deve cobrir de modo sério e sóbrio toda a extensão dos fenômenos em cada aspecto da vida tribal, atribuindo tanta importância aos fatos rotineiros e banais quanto aqueles que chamam a atenção por surpreendentes ou estranhos. Deve pesquisar, ao mesmo tempo, toda a cultura tribal, na totalidade de seus aspectos. (MALINOWSKI, 1985, p. 34. Grifos do autor).

Suas acepções consideravam mister organizar o trabalho em termos científicos. Asseverava que o etnógrafo precisava definir e descrever todos os métodos utilizados. Almejava separar “os resultados da observação direta das afirmações e interpretações dos nativos” daquilo que concebia como “inferências do autor, baseadas em seu bom senso e seu discernimento psicológico” (MALINOWSKI, 1985, p. 26). Assim, considerava indispensável que ficasse bem definido o que era discurso do nativo e o que dizia respeito à análise do pesquisador. Preocupava-se com a maneira como o pesquisador conduziria suas análises, de maneira a não permitir que seu texto caísse em descrédito ao suscitar uma “construção” difusa da realidade. Isso o mantinha como perdulário de uma vigília intelectual constante que só se acalentava “através da aplicação paciente e sistemática de um certo número de regras do bom senso e de princípios científicos bem conhecidos e não pela 97

descoberta de qualquer atalho maravilhoso que conduza aos resultados desejados sem esforço ou problemas”(MALINOWSKI, 1985, p. 29). Afirmava ainda a necessidade de o etnógrafo estabelecer-se em base a princípios metodológicos como: orientar-se por objetivos verdadeiramente científicos; criar condições adequadas de trabalho; emanter-se vigilante na aplicação de métodos de coleta, manipulação e registro de dados (MALINOWSKI, 1985). Para ele, o pesquisador deve manter constante ponderação em relação ao peso que a preparação teórica configura em um trabalho etnográfico. Ele não deve ir a campo para lá considerar a importância e a viabilidade de análise dos fenômenos, sob o risco de se desconsiderar fatos e eventos. Da mesma forma não pode propor engessar fatos a teorias preestabelecidas, de modo a preencher com informações do campo uma fôrma teórica que resultará em conclusões de pesquisa. Sugere nesse sentido que ambos, teoria e dados de campo, sejam mantidos numa distância segura que não os funda de inicio e que não impeça sua relação posterior. Destacava neste sentido que estar preparado cientificamente não era o mesmo que sobrecarregar-se de pré-julgamentos ao ir a campo. Para Malinowski o etnógrafo não deve omitir qualquer comportamento, nem o íntimo nem o legal. Cabe ao pesquisador “mostrar os detalhes e o tom do comportamento e não o simples esboço dos acontecimentos” (1985, p. 43). Problematiza nesse sentido que a preocupação com os comportamentos se justifica uma vez que em um grupo social (em sua fala seria mais apropriadamente um grupo primitivo) cada elemento tem uma impressão parcial do todo que forma. Se os discursos e os comportamentos forem tomados como partes isoladas e inflexíveis, a visão do todo será impossibilitada. Para tanto, lança mão de uma prática objetiva. Ao invés de incidir ao indivíduo perguntas que exprimam regras gerais, pode-se interrogar-lhe de que forma resolveria um determinado problema (p. 35), ou seja, buscar compreender como o pesquisado exprime seu próprio comportamento e suas próprias concepções em relação a uma explicação do todo que forma. Todos estes aspectos, todavia, precisam ser questionados em relação à estrutura coletiva na qual se organizam. Em comunidades nas fronteiras podemse encontrar realidades bastante diferentes. Por isso sugere que, o que interessa são ações e manifestações sociais, ainda que analisadas em

98

separado, individualmente. Em primeiro lugar, deve ficar estabelecido que temos que estudar os modos estereotipados de pensar e sentir. Como sociólogos, não nos interessa aquilo que A ou B sentem como indivíduos, no curso acidental de suas próprias experiências pessoais – interessanos apenas aquilo que sentem e pensam como membros de uma dada comunidade. E enquanto membros de uma comunidade, seus estados mentais recebem uma determinada marca, tornam-se estereotipados pelas instituições em que vivem, pela influência da tradição e do folclore, pelo próprio veículo do pensamento, quer dizer, pela linguagem. O ambiente sócio-cultural em que vivem acaba por forçá-los a pensar e a sentir de um modo definido. Assim, um homem que vive em uma comunidade poliândrica não pode experimentar os mesmos sentimentos de ciúmes inerentes aos membros de uma comunidade monogâmica, embora possa possuir alguns elementos dele. (MALINOWSKI, 1985, p. 46).

O proceder da pesquisa etnográfica precisa seguir certos “mandamentos”, como aconselha Malinowski (1985): “participar dos acontecimentos”; compreender as “peculiaridades sutis” e eventos “familiares”; construir um “diário etnográfico”; considerar e diferenciar o que é tido como “normal e típico” em relação aos “desvios” (p. 44). É preciso descobrir “os modos típicos de pensar e sentir correspondentes às instituições e à cultura de uma determinada comunidade” e a partir disso formular os resultados “da maneira mais convincente possível” (p.46). Para tal intento diz ainda que é forçoso “reproduzir literalmente” as declarações que tiverem uma “importância crucial” no entendimento dos dados conjunturais (p. 46). No entanto, mesmo observando estes cuidados, para manter um status de cientificidade e de reconhecimento de validade, o fazer etnográfico sofre críticas. Uma delas é a de que em muitas situações ele seja microscópico. Por seu turno Geertz defende que este não é um limite, mas uma das suas características e especificidades. Ao discutir o problema com que o antropólogo se defronta no fazer etnográfico pondera que esse profissional aborda contiguamente “interpretações mais amplas e análises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de

99

assuntos extremamente pequenos” (1989, p. 15). Suscita que assuntos tidos como “pequenos” constituem em si e em relação aos fenômenos amplos o tecido da vida social que é, em suma, o objeto a que se desnudam os antropólogos. Afirma que em torno da crítica de que “já existem suficientes profundidades no mundo” suscita-se também a obsessão de alguns sociólogos com o tamanho de suas amostras (1989, p. 15). O trabalho etnográfico apregoa a relação de proximidade do pesquisador com os pesquisados. Ainda que menos dogmatizados pelo peso do cartesianismo que impõe uma separação quase metafísica entre sujeito e objeto, esse tipo de pesquisa causa algum desconforto e sucessivas justificações no constructo do texto. Paradoxalmente, a proximidade pode mostrar muitas situações que de longe pareceriam desfocadas e embaçadas. Entretanto ela gera um fluxo de foco que pode normatizar elementos ou não tecê-los em relação a outros fenômenos que levariam a interpretar ligações e interconexões camufladas e sutis. Essa condição engendra no fato de que os textos formatados segundo essas pesquisas geralmente assumem o caráter de ensaios, o que lhes conferem a desnecessidade de serem construídos como tratados teóricos e sistemáticos da área. Até porque como o próprio Geertz alerta, se esses tratados fossem assim escritos, enfastiariam os leitores por não condizerem com as especificidades dos problemas e dúvidas que os geraram. A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos completa. É uma ciência estranha, cujas afirmativas mais marcantes são as que têm a base mais trêmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado é intensificar a suspeita, a sua própria e a dos outros, de que você não o está encarando de maneira correta. Mas essa é que é a vida do etnógrafo, além de perseguir pessoas sutis com questões obtusas. (GEERTZ, 1989, p. 20).

Nestes casos, o pesquisador será impelido a construir representações, a demostrar, expressar fatos e relacioná-los com proposições teóricas que lhes deem sentido interpretativo ou pelo menos problematizá-los. Isso é possível, segundo Geertz (1989, p. 17), quando se assumir a máxima de que a etnografia não deve apenas ser um pensar 100

“sobre” os pesquisados, mas um pensar “com” eles. Assim, confere o caráter inefável de que nessa relação o mais importante é “conversar com eles”. Em suas próprias palavras “aqui a tarefa essencial da construção teórica não é codificar regularidades abstratas, mas tornar possíveis descrições minuciosas; não generalizar através dos casos, mas generalizar dentro deles” (1989, p. 18). Em obra que enfoca o que denomina de “A Experiência Etnográfica”, James Clifford confere uma visão sobre o fazer e o texto etnográfico no século XX. Um dos capítulos direciona-se a uma questão espinhosa da etnografia. Refere-se à autoridade etnográfica, numa acepção que problematiza a validade, a efetividade e cientificidade do texto exposto ao público. O que é tomado como pertinente é repensar de onde emanam os critérios e o reconhecimento destes textos em deslinde de projeções que possam agregá-los a versões desconexas e descompromissadas. Afinal, o que garante criteriosidade a esse tipo de pesquisa, que em última instância está congregado ao relatório final, ao texto? Clifford afirma que essa questão vincula-se a pretensa autoridade que o etnógrafo detém pelo fato de que ele “estava lá” (2011, p. 18), no campo, numa acepção que poderia se parecer com a fé pública manifesta pela natureza de seu trabalho. Essa problemática não carrega a etnografia ao descrédito como pesquisa. Mesmo que esteja envolta num mito de que o trabalho de campo seja um instrumento de revelação, que constitua um conhecimento particular, privilegiado e talvez único. Ao contrário, ela mantém-se, na afirmação de Clifford, com um “certo status exemplar” (2011, p. 20). [...] a etnografia está, do começo ao fim, imersa na escrita. Esta escrita inclui, no mínimo, uma tradução da experiência para a forma textual. O processo é complicado pela ação de múltiplas subjetividades e constrangimentos políticos que estão acima do controle do escritor. Em resposta a estas forças, a escrita etnográfica encena uma estratégia específica de autoridade. Essa estratégia tem classicamente envolvido uma afirmação, não questionada, no sentido de aparecer como a provedora da verdade no texto. (CLIFFORD, 2011, p. 21).

Geertz converge no sentido de alertar para o fato de que, sob os 101

auspícios de promover a valiosa e importante proximidade de pesquisa e tomar os informantes como pessoas e não como objetos, a observação participante assumiu, em alguns casos, condição de instrumento de máfé do antropólogo. Isto por que, sua visão pode se fechar, se enviesar, enquadrando diferencialmente elementos e distribuindo seu interesse de maneira desvirtuada entre fenômenos simples e complexos. Nestas condições, a razão e o ímpeto da pesquisa podem ser minimizados ou superestimados (1989, p. 14). Clifford (2011) chama a atenção para o fato de que ainda resguardada a importância e a necessidade de problematizar aspectos nomeadamente complexos da cultura humana, estes não encontrem um método soberano para garantir fortuitamente a verdade dos elementos apresentados. Considerar o etnógrafo como autoridade antropológica tácita, baseado no peso do fato de “estar lá”, ou em uma suposta “autoridade experimental”, seria distanciar-se de uma condição plausível de criteriosidade científica. Replica que em etnografia o conceito de experiência é imprescindível, porém é um pomo de furtividade já que “assim como ‘intuição’, ela é algo que alguém tem ou não tem, e sua invocação frequentemente cheira a mistificação” (CLIFFORD, 2011, p. 33). As ponderações de Clifford se evidenciam quando destaca o fato de que entre o etnografar como observação e o etnografar como escrita existe um intercurso de tempo e espaço. O texto como relato e construção teórica é sempre escrito após o convívio com os agentes pesquisados e sempre fora do local de pesquisa. Isso gera o que chama de filtragem da realidade: “o processo de pesquisa é separado dos textos que ele gera e do mundo fictício que lhes cabe evocar. A realidade das situações discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada” (2011, p. 40). Sobre essa inquietação também contribui Geertz quando chama a atenção que os textos antropológicos são interpretações acerca de ficções que a própria etnografia configura. Resumindo, os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um “nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura). Trata-se, portanto, de ficções; ficções no

102

sentido de que são “algo construído”, “algo modelado” – o sentido original de fictio – não que sejam falsas, não-factuais ou apenas experimentos de pensamento. (GEERTZ , 1989, p. 11).

A superação destas críticas impõe se defrontar com a compreensão que a etnografia é uma partilha de experiências e não a sucção de uma delas, além da assunção de suas fragilidades, impotências e impertinências. Para imprimir caráter de factibilidade e veracidade aos estudos etnográficos não é necessário tornar-se um nativo, como diz Geertz. No entanto, muito menos será também um relatório com discurso engajado, a pretensa autoridade ou o status do pesquisador. Essa resposta estará na complexidade com que os fenômenos são tratados, na clareza e na fluência do texto quando relaciona o tecido teórico com os aspectos práticos do campo e as cuidadosas, ponderadas e corajosas impressões do etnógrafo. Como adverte Geertz, a efetiva objetividade nestes estudos não será alcançada. Esse fenômeno por seu turno não depõe contra ou infere caráter de inferioridade a pesquisa. Ou como diz: “nunca me impressionei com o argumento de que, como é impossível uma objetividade completa nesses assuntos (o que de fato ocorre), é melhor que os sentimentos levem a melhor” (1989, p. 21). Toda complicação e efetividade da etnografia residem em sua capacidade de articular, informar e problematizar a realidade. E a isso acrescentaríamos ainda que, em nenhum lugar encontra-se escrito que etnografia é uma tarefa simples com resultados milagrosos. A despeito destes limites, defende-se a potencialidade da etnografia como um poderoso recurso de pesquisa, notadamente nos estudos em comunidades nas fronteiras. As problemáticas relativas às fronteiras, particularmente em termos das suas expressões locais e do fluxo de pessoas, podem ser mais equacionadas com o dimensionamento de estudos em unidades de análise particulares e com técnicas de pesquisa adequadas. A infusão etnográfica em comunidades nas fronteiras pode se revelar um importante recurso para o desenvolvimento da pesquisa nestas áreas.

103

NOTAS EXPLICATIVAS 1

O trabalho está baseado na discussão metodológica realizada na dissertação de mestrado defendida por KUMMER (2013), bem como nas experiências de pesquisa dos autores, notadamente em trabalhos relativos à problemática das fronteiras. 2

Mestre em Ciências Sociais pela Unioeste (2013) e docente da Unipar/Campus de Francisco Beltrão-PR.

3

Doutor em Sociologia pela UFRGS (1997) e professor efetivo da Unioeste/Campus de Toledo, onde coordena o Mestrado em Ciências Sociais. Email: [email protected] 4

Pode-se problematizar o conceito de isolamento circunscrito às comunidades nas fronteiras. O fato de que, nas áreas de fronteiras serem as distâncias fatores de isolamento não decompõe as relações de contato social, que podem ser intensas. Por outro lado nos ambientes urbanos de fronteiras, a proximidade social não necessariamente garante a tessitura de relações sociais intensas, muito menos a unidade. 5

Nesse sentido é possível tecer comparações se estas forem estabelecidas entre o próprio grupo, com a análise de comportamentos nas diferentes gerações que o compõe (OLIVEIRA & MAIO, 2011). 6

Não estão compiladas várias obras que tratam do assunto. Pode-se dizer que foram analisadas apenas alguns textos capazes de estabelecer uma breve “noção” acerca da metodologia. Para citar alguns autores não formulados aqui e que tiveram imprescindível contribuição no desenvolvimento das técnicas de etnografia e no pensamento antropológico como um todo, destaca-se: Radcliffe-Brown; Margaret Mead; James Frazer; Marcel Mauss; Claude Lévi-Strauss; Franz Boas; Raymond Firth; Evans-Pritchard; entre outros.

REFERÊNCIAS ARENSBERG, C. M. & KIMBALL, S. T. O método do estudo em comunidade. In: FERNANDES, F. (org.). Comunidade e Sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo: Companhia Editora Nacional/Edusp, 1973. BARTH, F. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Tradução de John Cunha Comerford. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. BOURDIEU, P. O poder simbólico. 14. ed. Tradução Fernando Tomaz. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2006. BRITO, F. As migrações internas no Brasil: um ensaio sobre os desafios teóricos recentes. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2009. CASTELLS, M. O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v.2). São Paulo: Paz e Terra, 1999. CASTRO, E.G. de. Estudos de comunidade: reflexividade e etnografia em Marvin Harris. Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas. Vol. 23(2): 195-210, jul./dez. 2001. CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 2003. CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.

104

COMERFORD, J. Comunidade rural. In: MOTTA, M. (Org.). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. [pp. 112-120]. CUNHA, J. M. P. da. Migração e urbanização no Brasil: alguns desafios metodológicos para análise. São Paulo em perspectiva, v. 19, n. 4, p. 3-20, out./dez. 2005. ELIAS, N. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. FONTENELLE, L. F. R. “A comunidade no Brasil: um estudo tentativo para sua configuração”. Revista de Ciências Sociais, vol. 2, nº 2, Fortaleza, UFC, pp. 5-14. 1971. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. GOLDWASSER, M. J. “Estudos de comunidade: teoria ou método?” Revista de Ciências Sociais, vol. 5, nº 1, Fortaleza, UFC, pp. 69-81, 1974. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro, PP&A, 2006. JACKSON, L. C. Divergências teóricas, divergências políticas: a crítica da USP aos “estudos de comunidades”. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 18, p. 273-280, 2009. KUMMER, R. Juventude Rural entre ficar e partir. Dissertação de Mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unioeste. Orientador: Silvio Antônio Colognese. Toledo, 2013. Pp.310. MALINOWSKI, B. Introdução: o assunto, o método e o objetivo desta investigação (Argonauts of the Western Pacific). In: DURHAM, E. R. Malinowski. São Paulo: Ática, 1985. MELATTI, J. C. A Antropologia no Brasil: Um Roteiro. Série Antropologia, Brasília, n. 38, p. 1-64, 1983. OLIVEIRA, N. S. & MAIO, M. C. Estudos de Comunidade e ciências sociais no Brasil. Revista Sociedade e Estado – Volume 26 Número 3 Setembro/Dezembro 2011. PEIXOTO, J. As Teorias Explicativas das Migrações: Teorias Micro e Macro-Sociológicas. Lisboa: SOCIUS, 2004. SANTOS, B. de S. Modernidade, identidade e a cultura de fronteira. In: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP. São Paulo, 5 (1-2) p.31-52, 1994. SANTOS, M. A. dos. Migração: uma revisão sobre algumas das principais Teorias. Mauro Augusto dos Santos; Alisson Flávio Barbieri; José Alberto Magno de Carvalho; Carla Jorge Machado. - Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2010. SCHALLENBERGER, E. Associativismo cristão e desenvolvimento comunitário: imigração e produção social do espaço colonial no sul do Brasil. Cascavel: EDUNIOESTE, 2009. TÖNNIES, F. Comunidade e sociedade como entidades típico-ideais. In FERNANDES, Florestan (org.). Comunidade e Sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo: Nacional/Edusp, 1973. p. 96-116.

105

106

ETNOGRAFIA NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA, EM CORUMBÁ-MS: POR UMA ANTROPOLOGIA “NAS” FRONTEIRAS

Gustavo Villela Lima Da Costa1

INTRODUÇÃO

As pesquisas etnográficas nas áreas de fronteira oferecem grandes desafios e podem trazer resultados teóricos importantes aos antropólogos que se dedicam a estudar empiricamente a vida social nessas regiões, não apenas para o tema dos estudos fronteiriços, mas para o avanço de questões teóricas da própria antropologia. O trabalho de campo na antropologia, de acordo com Peirano (1995) não se limita a uma simples técnica de coleta de dados, mas é um procedimento com implicações teóricas específicas, no que podemos chamar de dialética entre o processo de produção de dados empíricos e a utilização de conceitos (sempre revistos criticamente a partir da pesquisa de campo). Neste sentido a antropologia, sempre se reinventou enquanto ciência, a partir do diálogo constante entre e teoria e prática, no que Roberto da Matta classifica como “estado de dúvida teórica” (DA MATTA,1981). A etnografia, enquanto método subjetivo e interpretativo, em que não existe uma separação absoluta entre sujeito e objeto, exige uma vivência prolongada do pesquisador junto a seus interlocutores, não apenas para observar, mas para participar, em alguma medida, da vida social. Neste sentido nos consideramos pesquisadores privilegiados por morarmos em Corumbá-MS, na fronteira com a Bolívia, a partir de Puerto 107

Quijarro, o que nos permite um contato direto e prolongado com a vida na fronteira. Esta premissa nos ajuda, em nossos estudos realizados a partir do Mestrado em Estudos Fronteiriços, em primeiro lugar a romper com o preconceito presente nas representações sociais sobre as fronteiras (repetidas em noticiários e construídas nos imaginários nacionais): a de que as fronteiras são áreas da ilegalidade, da anomia e do crime. Entendemos que as fronteiras nacionais, enquanto lugares “liminares”, repletos de ambiguidades, são locais por excelência do estudo das alteridades, assim como dos processos de construção de identidades e das trocas culturais. As fronteiras, enquanto locais dos encontros, são de fato lugares propícios aos negócios, em função do diferencial fronteiriço (diferentes moedas e legislações), e é justamente por esta condição é que se costuma confundi-las, como se as mesmas fossem os lugares por excelência da ilegalidade, sob o efeito de discursos que as caracterizam como “terras sem lei”. Neste sentido, as fronteiras são lugares privilegiados para estudos que procurem romper com as dicotomias do legal e do ilegal, justamente porque estas separações não existem de maneira pura no mundo do comércio e dos negócios. Os antropólogos, (sobretudo em nosso caso, que vivemos em uma cidade de fronteira), ao compreenderem os significados da ação social, podem trazer à tona os pontos de vista nativos dos moradores fronteiriços, restituindo-lhes sua agência sobre suas próprias práticas e representações, o que nos permite escapar da segunda armadilha para olhar as fronteiras: a visão hegemônica e tutelar do Estado. A partir da etnografia, então, a fronteira aparece como uma área rica de experiências humanas, de trocas culturais, assim como de conflitos (com suas ilegalidades particulares) e de trânsito de pessoas, tradições, culturas e de mercadorias (sejam elas legais ou ilegais). As regiões de fronteira, a partir da vida de seus moradores, representam também, o papel de protagonistas na formação dos Estados-nacionais, ainda que as narrativas “oficiais” as considerem como áreas marginais e coadjuvantes neste processo. O trabalho etnográfico tem como desafio dar conta da realidade que o antropólogo pretende estudar, ao mesmo tempo em que seu objeto de estudo é construído de sujeitos que, agem, pensam, sentem, interpretam e explicam a realidade em que vivem. Além das regularidades sociológicas que são observadas pelo pesquisador, a vida social é repleta

108

do que Malinowski (1976) chamou de “imponderáveis da vida real”, que são os acontecimentos mundanos e cotidianos, aparentemente sem importância, mas que são uma “mina de ouro” para o antropólogo. Esta é uma das maiores dificuldades e vantagens do método etnográfico: chegar à compreensão desses comportamentos ordinários, dos pequenos dramas do dia-a-dia que “dizem” muito sobre a vida social em seus aspectos mais amplos. Para chegar até essa compreensão e interpretação dos fatos observados, dentro de contextos culturais específicos, é preciso que o antropólogo passe um tempo prolongado de convivência e participe, em alguma medida, da vida social que pretende estudar, para que os detalhes, antes sem importância, adquiram significado. Por este motivo as pesquisas de “tiro curto” não podem alcançar a densidade que almejamos para o estudo das sociedades e das culturas. Ao longo de minha atuação como antropólogo na fronteira realizei algumas pesquisas que trataram dos seguintes temas: a construção identitária local e o preconceito social em relação aos bolivianos em Corumbá (COSTA, 2010); a compreensão das representações sociais sobre a prática do contrabando de roupas chinesas na fronteira (COSTA, 2010b); o conflito entre taxistas brasileiros e bolivianos e as disputas pelo espaço de “rua” em Corumbá (COSTA 2011) e o comércio de drogas (OLIVEIRA e COSTA, 2011), (esta última a partir da pesquisa de mestrado de meu orientando Giovanni França Oliveira). Todos estes temas envolvem dificuldades específicas, pois como afirma Foote-Whyte (1975), é preciso estar atento aos problemas práticos e éticos relacionados, especialmente, à questão da identificação social do pesquisador pelos sujeitos da pesquisa e o apoio ou proteção que ele pode conseguir de certos indivíduos. Neste sentido, adotamos sempre a tática de nos aproximarmos de algum “informante” privilegiado, que pudesse abrir portas para o universo social que pretendíamos estudar (ver OLIVEIRA e COSTA, 2012). Ao estudar situações de conflito, de preconceito e até mesmo de práticas ilegais, surgem inúmeras dificuldades referentes ao processo de identificação ou classificação social do pesquisador, que pode assumir papéis variados, de diversas identidades sociais (pesquisador, funcionário público, professor, homem, brasileiro, e assim por diante) e que pode ser confundido pelas pessoas que entrevista, como se fosse um policial ou 109

fiscal, por exemplo. É preciso tempo e confiança junto aos atores sociais que estudamos - que muitas vezes vivem nos limites da lei - para que a pesquisa se inicie e se obtenha bons resultados. Neste caso esta é uma dificuldade inerente ao grupo social estudado, que são os vendedores de rua ou comerciantes de drogas, e independe de estarmos em uma zona de fronteira, pois certamente, colegas que estudam camelôs no centro da cidade de São Paulo, ou o mundo do crime em qualquer outra parte do território nacional, passam pelas mesmas dificuldades. Na fronteira, há uma peculiaridade, que pode ser um fator de dificuldade que é o trânsito quase cotidiano do pesquisador em outro país e o contato que precisa estabelecer com estrangeiros (seja individualmente ou com associações, por exemplo). Até mesmo por uma questão ética, que envolve recolher informações em outro país, optamos em diversas ocasiões, por buscar um respaldo oficial junto a autoridades bolivianas e, para isso, foi preciso estabelecer contato com atores sociais privilegiados, por sua posição de status ou poder político. Em Corumbá, destacamos a figura do Cônsul da Bolívia, a partir do consulado deste país existente na cidade, que sempre abriu as portas para que fôssemos apresentados aos seus conterrâneos, tanto a partir de uma permissão oficial quanto informalmente. Ao mesmo tempo, obviamente havia um interesse por parte do consulado em saber que tipo de pesquisas nós estávamos realizando em solo boliviano. Em outras ocasiões os presidentes de associações (Feira Bras-Bol ou 12 de Octubre2) também garantiram uma apresentação mais formalizada, que nos identificasse e nos distinguisse, como professores universitários, de outros funcionários estatais brasileiros como da Polícia Federal ou da Receita Federal, por exemplo. O acesso aos interlocutores da pesquisa, a partir de um funcionário diplomático, que simbolicamente nos “permite entrar em sua casa”, nos faz refletir também no papel quase onipresente dos Estados na vigilância e controle do espaço fronteiriço e a forte simbologia presente no ato de cruzar a fronteira. Além disso, destacamos que para haver um bom andamento da pesquisa, é preciso entender como ocorre o processo de classificação social do pesquisador por parte dos entrevistados. Como o pesquisador é visto pelas pessoas? O pesquisador oferece algum risco para os

110

entrevistados? Qual o significado de seu trabalho para as pessoas que entrevista e convive? Este processo envolve conhecer as regras dos grupos pesquisados e compreender seu código social para poder participar, em alguma medida, de suas atividades, a fim de compreender os processos sociais em jogo. Uma dificuldade a mais que encontramos ao realizar o trabalho etnográfico na fronteira, é a própria barreira da língua ao entrevistar bolivianos (no meu caso, entendo bem o castelhano e falo um “portuñol” que é bem compreendido), seja no lado brasileiro, seja no lado boliviano; e mais ainda, as diferenças culturais (outras fronteiras), que muitas vezes se manifestam em sutilezas de etiqueta, de gestos e da própria postura corporal, por exemplo. Em geral, sobretudo os comerciantes bolivianos oriundos do altiplano possuem um habitus austero, de poucas palavras, que fazem parte de um ethos ascético em relação aos negócios e à vida, em que o trabalho “duro” é um valor ético de máxima grandeza, que abre pouca margem para um “bate-papo”. Soma-se a isto, a desconfiança em relação ao pesquisador e às perguntas que fazemos, por parte de muitos desses comerciantes - que realizam suas atividades nas fronteiras do legal e do ilegal - o que dificulta a aproximação do antropólogo (ainda mais quando este pesquisador é de outro país). Outra questão que emerge a partir daí é a de como romper a visão oficial do grupo, ou imagem pública que o grupo deseja projetar (BERREMAN, 1975). O trabalho do antropólogo procura compreender, de fato, qual o sentido ou significado das falas dos atores sociais, posicionando-os, já que nenhuma fala é neutra e os atores sociais são sujeitos com interesses próprios que, em geral, procuram passar uma impressão de si ou de seu grupo: quem fala, fala de algum lugar para alguém (no caso o pesquisador). Como exemplo, ao entrevistar alguns taxistas brasileiros, a grande maioria dos entrevistados se autorepresentava como se fossem “aqueles que cumprem a lei”, ao contrário dos bolivianos, que estariam “ilegais”. Entretanto, compartilhando uma experiência pessoal, após conversar com alguns taxistas brasileiros, informalmente, os mesmos me disseram que realizavam práticas “fora da lei”, como o transporte de mercadorias não taxadas (descaminho); de outro lado, ao entrevistar comerciantes bolivianos em Corumbá, a maioria dizia ter nota fiscal de suas mercadorias as quais teriam sido adquiridas 111

em São Paulo e não teriam passado pela fronteira (que, de fato, é a rota principal dessas roupas no comércio de Corumbá). Neste sentido retomamos autores clássicos como Malinowski (1976), que foi o primeiro a apontar as diferenças entre o que as pessoas dizem e o que elas fazem e Max Gluckman (1965), que nos alerta que as regras sociais são incoerentes e contraditórias e podem ser manipuladas e redefinidas por indivíduos e grupos. As palavras se tornam então, no trabalho de pesquisa, “categorias nativas” que devem ser interpretadas pelo antropólogo, ou seja, partimos das classificações locais e das interpretações dos próprios sujeitos da pesquisa sobre sua realidade para construir nossas próprias interpretações (GEERTZ, 1978). Roberto da Matta (1981) constata também que o etnógrafo não está num laboratório, ou seja, não pode repetir ou controlar jamais sua experiência. Além disso, em geral, o antropólogo realiza sua pesquisa em “solidão existencial”, em uma imersão profunda em outros universos sociais, ajustando-se a novos valores e culturas, em um processo relativizador das crenças, visões e preconceitos do próprio pesquisador (DA MATTA, 1981). Nesta posição, o antropólogo fica sempre situado entre duas culturas (a sua própria e a do “outro”), sem fazer parte integral de nenhuma delas, em uma situação de “ambivalências de um estado existencial” (Idem). Esta é uma das características da etnografia: a de colocar o pesquisador em uma posição de “fronteira”, que a configura como um método filosófico que possibilita conhecer e transformar a si mesmo, ao conhecer o “outro”. No meu caso particular como pesquisador, houve um duplo movimento em minha trajetória de pesquisa na fronteira: logo ao chegar a Corumbá, no ano de 2009, precisei tornar o “exótico”, familiar. A vida na cidade de fronteira, em que se vai a outro país cotidianamente; nas inúmeras placas de trânsito na cidade de Corumbá onde se lê “Bolívia”; as feirantes bolivianas com suas tranças e o falar e escutar o castelhano nas feiras; as placas de carro da Bolívia nas ruas, enfim, toda esta vida nova tinha algo de fantástico e misterioso para mim, que tinha vindo do Rio de Janeiro. Na medida em que o tempo passou, o cruzar a fronteira se tornou cada vez mais parte do meu cotidiano, as placas de carro da Bolívia se tornaram cada vez mais invisíveis, a feira de rua com suas comerciantes bolivianas se tornou a feira da minha cidade e a Bolívia, a

112

partir da cidade de Puerto Quijarro se tornou praticamente um bairro de uma cidade binacional aonde vivo. Neste momento, a fronteira se tornou familiar e aí precisei fazer um segundo movimento: tornar o que se tornou familiar em exótico novamente, para perceber as idiossincrasias, as nuances e as interações sociais da vida fronteiriça da qual eu faço parte.

VIVENDO NA FRONTEIRA: DEBATES ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA

A partir da vivência e da observação empírica da fronteira entre Brasil-Bolívia, na cidade de Corumbá-MS e do diálogo com outros autores, foi possível estabelecer um constante diálogo entre a teoria e a prática, a partir do qual surgiram as seguintes perguntas e hipóteses que serão debatidas neste artigo: quais as peculiaridades de realizar estudos antropológicos em áreas de fronteira? Existem características universais e estruturais nas regiões de fronteira, apesar da heterogeneidade dessas regiões pelo mundo, que permitem estabelecer pontos em comum de comparação entre as zonas fronteiriças? Quais resultados teóricos podem ser obtidos ao estudar os processos de formação identitário nas fronteiras e que podem ser aplicados a outras situações sociais distintas, em que essas dinâmicas não estão tão claramente demarcadas (realizar uma antropologia “nas” fronteiras e não apenas “das” fronteiras)? Nossas pesquisas se opõem às ideias que tendem a homogeneizar a fronteira, como se houvesse uma única identidade fronteiriça, uma única cultura fronteiriça em um processo de hibridização (VILLA, 2000). O que se observa, de fato, é um processo de constante reapropriação e renegociação das identidades (ou mesmo a adoção de múltiplas identidades), por parte das pessoas que interagem em uma área fronteiriça, como é o caso da cidade de Corumbá-MS. Esta situação específica de Corumbá, como uma cidade que historicamente recebeu migrantes de várias partes do mundo - o rio Paraguai é uma porta para o Oceano Atlântico - aliada à sua condição fronteiriça com a Bolívia, nos leva a pensar de que forma essas diversas tradições se encontraram nesta região, configurando um fenômeno histórico particular. 113

Bons exemplos de reprodução social dessas tradições podem ser percebidos em hábitos oriundos da cultura guarani como tomar o tereré, na culinária com forte influência paraguaia (chipa, sopa paraguaia) e na música (que aí se generaliza por todo o estado do Mato Grosso do Sul), que sofre forte influência da música de origem paraguaia ou platina, em ritmos ternários (polca paraguaia, rasqueado, chamamé). A presença de militares, cujo contingente sempre se renova na cidade também traz práticas, hábitos e estilos de vida de várias regiões do Brasil, com destaque para o grande contingente de cariocas e fluminenses oriundos da Marinha. Destaca-se alguma influência cultural do Rio de Janeiro, a partir do contingente majoritário de soldados e oficiais oriundos deste estado em Corumbá se faz sentir pela forte presença do funk e do pagode, assim como pela torcida pelos times cariocas de futebol. Além disso, nota-se forte presença da cultura “árabe”, como uma comunidade étnica importante historicamente na região (sírios, libaneses e palestinos), não apenas no comércio de rua (nos restaurantes “árabes”) e na influência dessas famílias na política da cidade, mas também através dos muçulmanos que freqüentam a mesquita da cidade, por exemplo. Ao invés de entender a cidade de Corumbá como um mosaíco de culturas estanques a partir de uma visão essencialista do conceito de cultura, o que pressupõe imaginar uma figura de partes separadas que formam um todo, buscamos compreender esta região como um local de interação de tradições - onde essas correntes de conhecimentos se entrelaçam na circulação entre as pessoas - a partir de sua interação social, tornando-se difusas na vida da cidade e distribuídas desigualmente entre os indivíduos. O processo de apreensão individual e coletivo dessas tradições, portanto, não ocorre de forma homogênea entre as pessoas, pois cada um possui sua trajetória, mas está posicionado socialmente e economicamente na sociedade, carregando consigo suas próprias tradições e é socializado a partir de diferentes matrizes culturais e de conhecimento. Esta interação se deu historicamente não apenas a partir de relações comerciais e de trabalho, mas também a partir de matrimônios (com imigrantes, inclusive) e da formação multiétnica das famílias corumbaenses. Nas fronteiras existem múltiplas fronteiras e cada uma delas possibilita um processo particular de construção de identidades. De

114

acordo com Villa (2000), existe uma situação de “espelhos múltiplos” na fronteira, em que os indivíduos e grupos de ambos os lados não apenas representam os “outros”, mas são também representados pelo “outro”, pelo estrangeiro do outro lado da fronteira. Além disso, este jogo de espelhos ocorre também em relação a outras áreas de seus próprios países (em um discurso dicotômico centro/periferia ou centro/fronteira). A título de exemplo, podemos observar as inúmeras reportagens produzidas nos grandes centros urbanos brasileiros que representam a fronteira em seus aspectos mais negativos, como uma área ameaçadora à soberania nacional. Exemplificando esses discursos, posso citar as viagens de férias que faço ao Rio de Janeiro, nas quais converso com taxistas da cidade sobre o lugar em que resido e, invariavelmente, a resposta era parecida com a que me deu um taxista: - “Corumbá? Pô lá é sinistro! Fronteira é brabo... Terra de ninguém” (sic.). Essa situação me leva a pensar também em qual a influência dos processos de “globalização” e “hibridização” na construção de novas identidades e novos significados para os moradores fronteiriços. De acordo com Villa (idem), muitas pessoas não querem atravessar as fronteiras, se “hibridizar”, mas preferem justamente reforçar a existência das fronteiras. Ao longo do tempo, na seção de mensagens eletrônicas dos leitores do jornal “Diário Corumbaense” se lia mensagens que diziam coisas do tipo: “fechem a fronteira e joguem a chave fora” (sic.), as quais demonstram certo grau de conflito e tensão nesta interação. E é o olhar antropológico, mais subjetivo em sua “descrição densa” (GEERTZ, 1978), que pode contribuir para o entendimento desses processos, nem sempre visíveis e declarados. A fronteira oferece uma oportunidade única para olhar aos processos complexos de construção de identidades e seu uso constante de categorias arbitrárias. As pessoas que mudam de país não estão apenas cruzando de um país para outro, mas estão se movendo de um sistema de classificação para outro e mais ainda, convivendo com ambos os sistemas. Como afirma Villa (2000), as pessoas são forçadas a se mover de um sistema de classificação a outro cotidianamente (além das misturas de sistemas para dar conta de perceber o “outro”). Por exemplo, no México, este autor identificou que o sistema classificatório principal seria o de “região”, (norteño, fronterizo ou del sur), já no sistema estadunidense prevaleceria a ideia de “raça e etnicidade” (latino, negro, 115

branco)(Villa, 2000). Na fronteira Brasil-Bolívia, entendemos que o boliviano é representado por uma dupla alteridade pelos corumbaenses, de forma preconceituosa e estigmatizante na maioria das vezes: estrangeiro e índio (“choco” ou “colla”). Além disso, no Brasil, há um misto de classificações étnico-raciais (branco, negro, índio, ou pejorativamente “bugre”) e regionais (paulista, gaúcho, nordestino etc). Na Bolívia, por sua vez, predomina um sistema de classificação étnica, que divide seus habitantes entre Cambas e Collas3, sobretudo no Departamento de Santa Cruz (onde estão localizadas as cidades fronteiriças de Puerto Suarez e Puerto Quijarro). Este caminho epistemológico pressupõe também a ideia de que as fronteiras são lugares onde os limites não imobilizam totalmente as pessoas, mas, que de fato, são constantemente atravessados, consoante com as ideias de “culturas” em fluxo (nas zonas fronteiriças há espaço para a ação no manejo da “cultura” e para a negociação identitária por parte dos atores sociais). A atual instabilidade das fronteiras - que um dia foram consagradas como fixas, como limites monolíticos de distintas entidades nacionais e culturais - revela cada vez mais processos de negociação “cultural” através das fronteiras, e coloca novas questões sobre as relações entre o local e o global, e entre nação e Estado (DONNAN and WILSON, 1994). Os limites, assim, são entendidos como algo através do que se dão os contatos e interações (não marcando “culturas” isoladas, o que corroboraria uma visão essencializante e holística de “cultura”, que dificilmente se sustenta a partir do trabalho empírico)4;ou como afirma Barth (2000) é justamente por cruzarem as fronteiras que as pessoas mantém suas identidades e não evitando o contato. As fronteiras se configuram, enfim, como um locus epistemológico privilegiado para os estudos dos processos de construção identitária, de fenômenos “culturais” e de interação social, que se tornam aí mais visíveis e exacerbados. Como vimos até aqui, é justamente por fazer parte da fronteira, entre dois países, que os moradores dessas regiões podem negociar e manipular a fronteira de acordo com seus interesses. Em função de serem áreas de encontros de diversos sistemas políticos, econômicos e culturais, as áreas de fronteira permitem uma visão única nos modos pelos quais as identidades são construídas (DONNAN & WILSON, 1994). Sendo 116

assim, procuramos investigar como um grupo de pessoas que vivem em uma área de fronteira entre dois países renegociam e manipulam, tanto a fronteira, como os limites culturais e processos contínuos de formação identitária. O processo de construção das identidades nas áreas fronteiriças é, portanto, um fenômeno peculiar e complexo, em que a categoria “fronteira” adquire significados distintos de acordo com o posicionamento social dos atores sociais que vivenciam a experiência de morar nessas regiões. Se for verdade que nos processos migratórios (ainda mais em uma cidade de fronteira que recebeu muitos imigrantes como Corumbá), as pessoas carregam consigo seu passado, suas tradições, também é preciso considerar nas análises, que essas tradições são reatualizadas e ressignificadas a partir da interação com outras correntes de pensamento e de tradições nos processos de “globalização”. As fronteiras são locais em que o próprio sentido de nacionalidade é colocado diariamente à prova e onde se dão as condições para a manipulação, instrumentalização e negociação das identidades e, por outro lado, é neste contexto em que as identidades são vividas e sentidas profundamente pelos atores sociais. As distinções identitárias e “culturais”, portanto, não dependem da ausência de interação social, mas justamente ao contrário. De acordo com Cardoso de Oliveira (1976), existem propriedades estruturais do processo de identificação étnica, e que estendemos a todos os processos identitários: em primeiro lugar, o caráter contrastivo da identidade e seu forte teor de oposição com vistas à afirmação individual e grupal; em segundo lugar, a possibilidade de sua manipulação em situações de ambiguidade, quando se abrem diante do indivíduo ou do grupo alternativas para a escolha (de identidades) à base de critérios de ganhos e perdas na situação de contato. (CARDOSO de OLIVEIRA, 1976: 131). A instrumentalização das identidades se traduz, em muitos casos, em uma visão absolutamente pragmática sobre a nacionalidade, tal como ocorre na prática de registrar os filhos no país mais conveniente. A fronteira se torna um “recurso simbólico” através do qual torna possível a comunicação em contextos extraordinários (VALCUENDE e CARDIA, 2009). Entendemos que, por si só, o tema das fronteiras apresenta uma questão de caráter universal, pois a partir da construção histórica dos estados nacionais, forjaram-se as fronteiras políticas (linhas arbitrárias) 117

e o dogma da soberania nacional em todos os continentes do planeta, no que poderíamos chamar de “invenção das fronteiras”. O estabelecimento de limites soberanos entre unidades administrativas implica, necessariamente, na imposição de um tipo específico de interação social e de construção das identidades a partir da convivência e do trânsito entre os limites políticos nacionais. Não obstante, apesar do papel estratégico que as fronteiras têm para os estados nacionais, não é possível menosprezar a construção local do espaço fronteiriço, a partir de seus moradores. Em primeiro lugar, esta tarefa tem como ponto de partida a compreensão da dupla condição da fronteira: ora como “barreira” (zona fortificada) e limite (alfândegas, passaportes, muros etc.), ora como “passagem” (zona de interação), como área aberta, porosa, permeável e como um local de interação social (trocas simbólicas e econômicas). Sendo assim é preciso estabelecer relações dialéticas entre as duas condições da fronteira, não apenas entendê-las como áreas de livre trânsito onde os limites e força dos Estados são abolidos e nem reduzi-las apenas à dimensão do conflito, da proibição, das disputas de poder. A fronteira é, portanto, um espaço em movimento (um espaço vivo e vivido), movendo-se além das visões das fronteiras baseadas apenas no dogma da soberania dos Estados nacionais, que trabalham necessariamente com a ideia de limite estático e definitivo estatal. Isto nos leva a conceber uma ideia de fronteira como zona “liminar”, representando espaços que ainda estão sendo estruturados e que são vivenciados pelos atores sociais como “zona de interesses mútuos” (LEACH, 1960). As cidades fronteiriças se constituem como um campo de disputas por trabalho, rotas comerciais e pelo espaço da rua (como fonte de recursos econômicos e sociais), onde se dão também os processos de integração formal e informal de grupos sociais. Entender as modalidades de trabalho “ilegal” implica, portanto, em um afastamento de préjulgamentos que inserem este fenômeno apenas nas esferas judicial e criminal. Como percebemos nos estudos de caso, os atores sociais envolvidos na economia “ilegal” não vêem a si mesmos como criminosos, mas como trabalhadores - “que fazem seu ganho”, como empreendedores, inseridos na economia urbana da cidade de Corumbá, inclusive a partir de reinvestimentos feitos a partir da capitalização “ilícita” -. Neste sentido,

118

a etnografia, como método de pesquisa antropológica, fornece as ferramentas para entender o trabalho desses indivíduos a partir do ponto de vista dos mesmos, o que permite, por sua vez, uma melhor compreensão das relações indissociáveis entre o que se convencionou chamar de economia “ilegal” e economia propriamente dita, transpassando os aspectos meramente normativos e legais. O papel preponderante do Estado, entretanto, no cotidiano dos indivíduos não deve ser subestimado, já que o exercício do poder estatal nas fronteiras sempre foi estratégico, seja na defesa de seu território, seja no avanço de suas fronteiras. Apesar de considerar a posição central do Estado como um vetor de forças coercitivas e de controle social, entendemos que os estudos fronteiriços devem estar pautados na vida das pessoas que habitam essas regiões, buscando suas relações com as instâncias de poder. Pesquisadores como Donnan e Wilson afirmam que as fronteiras políticas entre Estados nacionais se tornaram, nos últimos anos, um foco de atenção mundial, mas que, entretanto, a vida das pessoas que vivem e trabalham nessas fronteiras não recebe a mesma atenção dos teóricos. Para estes autores: (...) “as culturas de fronteira são exemplos de relações dialéticas que existem entre uma miríade de grupos sociais e entre eles e níveis maiores e mais poderosos de integração sociopolítica, incluindo o Estado” (DONNAN & WILSON, 1994). Para Grimson, por sua vez: (...) trata-se de ir às fronteiras estatais com uma perspectiva aberta que permita detectar e compreender não apenas a multiplicidade e mistura de identidades, mas também suas distinções e conflitos. Disputas culturais nos confins do poder (GRIMSON, 2000: 1).

É justamente pelo contato com o “outro” - com o estrangeiro fronteiriço - que se forja e reafirma a construção do sentimento de pertencer à nação, por parte dos moradores da fronteira, diferentemente de outras áreas centrais do Estado. Se em diversos momentos os limites do Estado são desafiados e até renegados nas regiões de fronteira, em outros, são reafirmados com uma contundência maior do que em outras partes do país. Sendo assim, se faz necessário compreender em que medida a nacionalidade constitui uma categoria central na vida dos

119

moradores fronteiriços, “que organiza el espacio cotidiano, determina acceso a derechos o define extranjería, y es condición para devenir persona en la vida local” (GRIMSON, 2003, p. 18). Concordamos com o citado autor quando afirma que a distinção de nacionalidades é o modo principal através do qual as pessoas constroem o sentido de lugar na fronteira (a fronteira da nação, sua nação), constituindo um elemento de sentido comum para a população local, (Idem). É preciso, portanto, investigar a construção dos processos históricos através dos quais esses limites e essas identificações foram instituídos na fronteira Brasil-Bolívia, em Corumbá- Puerto Quijarro. Mesmo neste contexto atual de integração e expansão das fronteiras, sobretudo através da expansão do capital, é notório que as políticas de integração econômica e política não buscam beneficiar diretamente as populações fronteiriças, mas principalmente promovem o comércio terrestre entre países atravessando cidades fronteiriças, concebidas como “zonas de serviço”. (GRIMSON, 2000) Assim, se criam importantes facilidades para a circulação de mercadorias de grandes empresas, abrindo as fronteiras ao capital, que tem peculiar interesse nas áreas fronteiriças (seja pela possibilidade de ganho de capital, seja pela possibilidade de sua evasão através de remessas ilegais ao exterior). Por outra parte, o controle das populações fronteiriças, executado pelos Estados parece ter se fortalecido, em relação à circulação, tanto de pessoas, quanto de pequenas mercadorias do chamado “contrabando formiga”; ou seja, quando interessa aos grupos sociais ligados aos governos, sobretudo quando o que está em jogo são as grandes operações comerciais ligadas ao grande capital, os Estados abrem suas fronteiras, todavia, quando se trata das populações fronteiriças - que dependem das condições favoráveis ao comércio na fronteira, e que construíram suas vidas neste cenário comercial específico - observa-se o recrudescimento do controle, que ignora as realidades, histórias e tradições locais. Este ponto nos leva a pensar em outra característica estrutural da vida nas fronteiras, a existência (quase sempre conflituosa) de duas lógicas nas demarcações políticas internacionais nessas áreas: a lógica das populações locais e a lógica do Estado. De acordo com Valcuende e Cardía (2009):

120

(...) “ as populações fronteiriças aprenderam a instrumentalizar a fronteira em função de interesses concretos e, assim, as fronteiras políticas são reafirmadas ou negadas à medida que as fronteiras sociais geradas a partir da interação social, sobrepassam as demarcações estatais” (VALCUENDE e CARDIA 2009: 25).

A fronteira, de acordo com esses autores (Idem), pode ser entendida não apenas como um recurso econômico para seus moradores, mas também como um recurso social a partir do qual se formam redes de solidariedade e parentesco que atravessam os limites nacionais. Esta comunicação ocorre de várias maneiras na fronteira Corumbá/Ladário – Puerto Quijarro/ Puerto Suarez. Os fenômenos religiosos e a socialização decorrente dos cultos religiosos são chaves interessantes para a compreensão dessas formas de interação e trocas simbólicas e merecem um estudo mais aprofundado; como exemplo, podemos citar os seguintes fenômenos: o trabalho de missionários de Igrejas evangélicas brasileiras no lado boliviano (além do barco da Assembléia de Deus de Corumbá, que realiza um trabalho de evangelização de ribeirinhos, nas margens do rio Paraguai, não apenas na Bolívia, mas também do lado paraguaio); as religiões de origem “afro-brasileiras”, como a Umbanda, com forte presença na cidade de Corumbá, que também possuem adeptos no lado boliviano, (“pais-de-santo” de terreiros da cidade atendem no lado boliviano da fronteira); a presença dos “feiticeiros” bolivianos, e os cultos religiosos católicos, padroeiras e santas, que são reatualizados em Corumbá, e cuja devoção tem origem no Paraguai (virgem de Caacupé) e na Bolívia (Virgem de Urkupiña). CONSIDERAÇÕES FINAIS A vida na fronteira, com toda sua complexidade, demanda um olhar aguçado para romper com visões preconceituosas e estabelecidas no senso comum e que emanam principalmente de atores sociais interessados, a partir de discursos hegemônicos ligados ao dogma da soberania estatal. Como romper com as visões preconceituosas que ora tratam as fronteiras como “terras de ninguém”, como lugares desterritorializados e sem uma identidade própria e ora consideram essas regiões como o locus da

121

violência, da ausência de leis e foco de preocupações exclusivas de políticas públicas de segurança nacional? Como romper com a violência simbólica do silêncio e da negação dos discursos oficiais sobre as fronteiras? Para realizar a tarefa de compreender a vida fronteiriça em toda sua densidade, acreditamos que o método etnográfico permita ir além de questionários fechados, de metodologias pré-concebidas, independentemente do campo de pesquisa e da coleta de dados quantitativos que mais obscurecem do que revelam os fatos sociais que precisam ser vivenciados e experimentados pelo pesquisador. Outro aspecto relevante se refere ao fato de que as fronteiras são representadas de diferentes modos pelos atores sociais que as vivenciam, o que revela seu caráter polissêmico. A pesquisa empírica etnográfica junto aos indivíduos e grupos sociais que vivem em áreas fronteiriças é que pode fornecer os elementos para que possamos observar onde se dão as adesões e as reciprocidades, os conflitos e tensões entre as pessoas nas fronteiras, para entendermos como se formam os laços sociais e os mínimos de dependência entre os grupos e por quais processos as identidades se reconfiguram nas áreas liminares de fronteira. Para realizar esta tarefa investigativa, resta saber se estes fenômenos fronteiriços possuem características estruturais que permitem estabelecer pontos em comum para sua comparação com outros contextos de fronteira, para refinar cada vez mais nossas abordagens teóricas e permitir uma melhor compreensão dos fenômenos sociais nessas regiões. A Antropologia propõe um novo olhar para a fronteira e nosso desafio constante é o de estar cada vez mais envolvidos com a realidade empírica da região e com a vida dos moradores fronteiriços, da qual fazemos parte também, que passam a ter uma “voz”, construindo e reinventando novos discursos sobre a fronteira, a partir do ponto de vista de si mesmos (nós mesmos, afinal de contas). Além disso, há um compromisso teórico e metodológico de dar conta das interações formais e informais que ocorrem nas regiões fronteiriças e que podem fornecer as bases, “de baixo para cima”, para a implantação de políticas públicas nessas regiões ainda tuteladas pelo Estado. É preciso enfatizar que os moradores fronteiriços já aprenderam, ao longo da história, a instrumentalizar sua condição e a criar laços através das fronteiras independentemente, e anteriormente à “invenção” dos Estados e essas

122

formas de interação social não podem ser menosprezadas em seu poder, alcance e importância.

NOTAS EXPLICATIVAS

1

Professor Adjunto de Antropologia e Docente do Mestrado em Estudos Fronteiriços da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Campus do Pantanal em Corumbá-MS. 2

Associações de comerciantes na fronteira. A Feira Bras-Bol, espécie de “camelódromo” em Corumbá, é composta em sua maioria por bolivianos, que vivem nos dois lados da fronteira. A Associação 12 de Octubre está situada em Arroyo Concepción, distrito de Puerto Quijarro, na Bolívia. 3

Os Cambas se auto-identificam como os habitantes das terras baixas do oriente boliviano (no Departamento de Santa Cruz) e denominam os habitantes do altiplano de Collas (identidade a princípio negativa, e estigmatizante, de conotação racista, que passa a ser reapropriada pelos mesmos, sendo ressignificada positivamente, com um sentido de orgulho étnico). Este complexo e conflituoso sistema classificatório boliviano não é tema deste artigo e serve aqui apenas como breve ilustração. 4

A partir de leituras de Barth (2000) e Cardoso de Oliveira (1976), entendemos que os grupos e identificações não podem ser compreendidos em si mesmos, mas apenas com relação aos outros, a partir de relações sociais que se dão pelo contato, sobretudo em áreas fronteiriças.

REFERÊNCIAS BARTH, Fredrik. Os Grupos Étnicos e suas Fronteiras in: O Guru e o Iniciador e outras variações antropológicas, Contracapa, Rio de Janeiro, 2000. BERREMAN, Gerald. Por Detrás de Muitas Máscaras, in: Zaluar, Alba, org. Desvendando Máscaras Sociais, Francisco Alves Editora: Rio de Janeiro, 1975. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, Etnia e Estrutura Social. Livraria Pioneira Editora: São Paulo, 1976. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto & BAINES, Stephen (Org.). Nacionalidade Etnicidade em Fronteiras. Brasília: Editora UNB, 2005. COSTA, Gustavo V.L. As Fronteiras da Identidade em Corumbá-MS: Significados, Discursos e Práticas. In: DA COSTA, G.V.L; COSTA E.A; OLIVEIRA M.A.M. (Org.). Estudos Fronteiriços. 1ª ed. Campo Grande: Editora UFMS, 2010, v. 1, p. 69-98. __________. Contrabando Para Quem? Controle e (in)disciplina na fronteira Brasil - Bolívia, em Corumbá-MS. In: Anais do II Congresso Internacional do NUCLEAS, Rio de Janeiro, 2010b. __________. Os Taxistas na Fronteira Brasil-Bolívia: comércios de fronteira, identidades negociadas, in: Anais da IX Reunião de Antropologia do Mercosul, Curitiba, 2011. DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social.Vozes, Petrópolis,

123

1981. DONNAN, H. & Wilson T.M. Border approaches: anthropological perspectives on frontiers. Lanham : University Press of America, 1994. FOOTE-WHYTE, William. Treinando a Observação Participante in: Zaluar, Alba, org. Desvendando Máscaras Sociais, Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 1975. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Zahar: Rio de Janeiro, 1978 GLUCKMAN, Max. Politics, Law and Ritual in Tribal Society. Aldine Publishing Company: Chicago, 1965 GRIMSON, Alejandro. Pensar Fronteras desde las Fronteras. Nueva Sociedad n.170. Noviembre-Deciembre, 2000. ___________. La Nación em SUS Límites. Contrabandistas y exilados em la frontera ArgentinaBrasil. Gedisa Editorial: Barcelona, 2003. LEACH, Edmund. The Frontier of Burma in Comparative Studies in Society and History, Vol III, number 1. Mouton & Co, The Hague, Netherlands, 1960. MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Gunié Melanésia. Editora Abril : São Paulo, 1976. OLIVEIRA, G.F. e COSTA, G.V.L. Redes ilegais e Trabalho Ilícito: comércio de drogas na região de fronteira de Corumbá/Brasil – Puerto Quijarro/Bolívia. Boletim Gaúcho de Geografia, 38, 2011. ________. A cidade e os informantes inserção etnográfica nos pontos de venda de drogas da cidade de Corumbá/Brasil, na fronteira com Puerto Quijarro/Bolívia. Composição: Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, v. 11, p. 4-24, 2012. PEIRANO, Marisa. A favor da etnografia. Relume Dumará: Rio de Janeiro, 1995. RABOSSI, Fernando. Nas Ruas de Ciudad Del Este. Vidas e Vendas num Mercado de Fronteira. Tese de Doutorado apresentada ao PPGAS/ Museu Nacional/ UFRJ, 2004. VALCUENDE DEL RÍO, José Mª; CARDIA, Lais M. Etnografia das fronteiras políticas e sociais na Amazônia Ocidental: Brasil, Peru e Bolívia. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1º de junio de 2009, vol. XIII, núm. 292 . [ISSN: 1138-9788]. VILLA, Pablo. Crossing Borders, Reinfocing Borders. Social categories, metaphors and narrative identities on the U.S.-Mexico Frontier.University of Texas Press, 2000.

124

TEXTUALIZANDO CONDIÇÕES FRONTEIRIÇAS: A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA FICCIONAL PARA O ESTUDO DO CONTRABANDO

Adriana Dorfman1

INTRODUÇÃO

O estudo das fronteiras desafia a pesquisar um objeto espacial geneticamente estatal, mas que só pode ser descrito com atenção às outras escalas geográficas em que sua vida de relações se constrói. A análise escalar permite identificar comunidades com diferentes capacidades discursivas, expressas em formas, suportes, circulação e legitimidade variadas. Reconhecemos a existência de uma política discursiva “na” e “sobre a” fronteira, o que nos permite interpretar o conteúdo dos discursos e suas conexões com as práticas, como performances com duração, que caracterizam cada comunidade. Essa política discursiva se organiza a partir de elementos sociais e espaciais; há grupos cujos discursos alcançarão maiores audiências e terão maiores consequências, outros serão pouco ouvidos. Também existem lugares de onde se lançam representações sociais de ampla difusão e aceitação, que obliterarão as margens geográficas e discursivas. A fronteira – região em que se territorializa o limite do Estado – aciona uma carga simbólica que extrapola os aspectos administrativos da soberania, como o controle dos trânsitos de população e de mercadorias. Daí a importância de atentar aos discursos e à sua 125

performatização; muito se diz e se escreve sobre a fronteira, geralmente lançando mão de simbolismo e normatividade descolados das experiências em condição fronteiriça. Especialmente no âmbito do estudo da (i)legalidade, interessa saber: qual comunidade emite cada enunciado, a partir de que posição política e situação geográfica, com que finalidade e alcance efetivo sobre as práticas. Tenho me defrontado com tais constatações desde a pesquisa para a tese de doutorado sobre os “contrabandistas” que hoje trabalham na fronteira do Brasil com o Uruguai (DORFMAN, 2009). Eu tentava interpretar a fronteira na escala local - descrevendo as práticas dos “contrabandistas” de pequenos volumes -, tendo, para tanto, recorrido a um conjunto de documentos composto por textos muito diferentes, entre os quais se destacaram, num primeiro momento, obras ficcionais – os famosos contos de “contrabando” –, a legislação pertinente de ambos os lados da fronteira, bibliografia acadêmica, notícias e propagandas. O exame desse material permitiu distinguir quais dentre os conteúdos desses discursos era concernente à realização do “contrabando formiga”, e levou, ainda, a observar a presença de deslizamentos discursivos entre a ficção e a realidade, e entre as muitas realidades dos “contrabandistas” na fronteira. Durante os trabalhos de campo, conversei informalmente e realizei várias entrevistas abertas com pessoas com conhecimento de causa, como “contrabandistas”, aduaneiros, advogados, juízes, professores, historiadores e geógrafos, e ao transcrever esse material, pude comparar representações sociais e espaciais textualizadas. Acolhi tudo o que caísse a mão, eis que sobre o “contrabando” paira o sigilo - tanto da parte daquele que o pratica, quanto dos órgãos de segurança e repressão -. Para citar um informante: (...) aqui nós ainda respeitamos os valores das pessoas, entendesse? Ainda hay um certo pudor, ainda não é escancarado. Tu fica na tua, fica quieto e deixa que eles tussam, entende? Não te mete com nada e pronto, essa é a lei, deixa quieto que eles, vai chegar um momento, eles caem. (entrevista com Robles, Santana do Livramento-Rivera, 25/01/2006).

126

Então existia esse problema de “esperar eles tossirem”, e o sigilo se mostrava como uma moeda forte nos discursos sobre delitos e segurança, defendido por “contrabandistas” e policiais por conta do caráter estratégico e reativo de suas operações. Assim, foi através de repetidos trabalhos de campo e da lenta construção da confiança com um informante-chave, de um trickster - pessoa falante, de grande experiência e ótimos relacionamentos nos diferentes campos da segurança em Santana do Livramento-Rivera - que pude aceder aos relatos de “contrabando”, a essas verdades sigilosas. Como se observa em campo, nessa fronteira o contrabando é bastante legítimo, mas isso não quer dizer que possa ser comentado de qualquer forma e em qualquer situação, menos ainda com aqueles que não fazem parte dessa rede comercial de caráter ilegal. Ou seja, a aceitação social do pesquisador pelos agentes territorializados na fronteira é condição para ter acesso à informação sobre o “contrabando” como prática e não como delito. O sigilo só é rompido quando se é aceito no grupo, eis que se instala no limite entre pertencer ao local ou ser visto como extralocal, criando uma geografia metafórica da informação. A dificuldade também estava ligada ao caráter informal das práticas estudadas. Estatísticas sobre o “contrabando”? Em certos casos é possível conseguir balanços de apreensões, mas o “contrabando” bem-sucedido tende à invisibilidade, não entra nas estatísticas. Além disso, a análise estatística é problemática na fronteira - onde os fenômenos se afastam das normas e justapõem-se as bases censitárias geradas a partir de critérios nacionais distintos -. Já a etimologia nos mostra a ligação entre o nexo do Estado e suas estatísticas. Além disso, descrever o “contrabando” como delito – a partir do Estado e de sua legalidade, nada dirá sobre seu caráter de prática legítima na condição fronteiriça. Dada a coexistência de regimes normativos diferentes em cada lugar de enunciação, todo um esforço teórico foi empenhado para permitir o trabalho com esse corpus de representações sociais textualizadas e diversificadas: do “contrabando” romântico característico dos contos de “contrabando”, às notícias na página policial - passando pela lei do Estado e por frases ouvidas em campo -. Essa é a história que pretendo contar aqui: como a literatura foi importante para circunscrever o “contrabando” como prática, evidenciando aspectos morais e éticos 127

correntes na sociedade fronteiriça e estabelecendo os contextos de ilegalidade/ legitimidade/viabilidade do “contrabando”, a partir da textualização da geografia desse lugar. LITERATURA DE FRONTEIRA No Rio Grande do Sul, o emblema literário mais recorrente é o gaúcho/peão. Da mesma forma, a literatura do Rio Grande do Sul é pródiga em verso e prosa ambientados na região da fronteira. João Pinto da Silva, ao escrever a primeira História Literária do Rio Grande do Sul, ainda no ano de 1922, diagnosticava que em “nossas florações literárias, [...] quando reflexos do ambiente rio-grandense, o tom é um só. De facto, o nosso regionalismo é todo de accentuado cunho fronteiriço, ainda quando a acção de contos e novelas se desenvolve longe da linha divisória” (p.129). Críticos contemporâneos reiteram tal diagnóstico: “a palavra ‘fronteira’ vem [sendo] [...] objeto de preocupação para todos aqueles que se voltam ao estudo da literatura sul-rio-grandense – e destacam-se aqui, dentre tantos, os nomes de Guilhermino César, Othelo Rosa, Rubens de Barcellos e Moysés Vellinho” (MASINA, 1994, p. 55).

128

A expressão “literatura de fronteira” tem tido uso corrente em estudos literários no Rio Grande do Sul – vejam-se os trabalhos de Lea Masina (1994, 1995), Nara Rubert (2003) entre outros. O quadro abaixo (figura1) apresenta autores e obras publicados até 2009, sem exaurir a produção dos escritores e certamente omitindo muitos nomes importantes. A literatura de fronteira pode ser reconhecida como um gênero, ao considerarem-se índices como a origem geográfica dos autores, a tematização da fronteira e a interpolação do português, do espanhol e de termos locais, gauchescos, em sua maioria, oriundos das línguas indígenas, por vezes assumindo-se como portuñol. Para a constituição do gênero contribuem ainda as referências recíprocas entre os autores, sejam eles contemporâneos ou precursores, e a existência de editoras e de público-leitor, conformando um sistema literário. O conceito de sistema literário, no qual a relação entre autores, público e um conjunto de editoras formam um sistema, também se aplica à literatura sul-rio-grandense sem descartar a ideia de literatura da fronteira. Sistema refere-se à organicidade da literatura, “do triângulo ‘autor-obra-público’, em interação dinâmica, e de uma certa continuidade da tradição” (CÂNDIDO, 1981, p.16). A literatura de fronteira não aparece apenas no Cone Sul. Internacionalmente, é a fronteira entre o México e os Estados Unidos aquela aceita como paradigmática, e não apenas no campo da literatura (GRIMSON, 2000, p.22). Edward Soja, por exemplo, incluiu em Thirdspace, uma análise da cultura e identidade chicana valorizadas como “formas inovativas de interpretação (terceiro)espacial” (t.a) (“innovative new forms of (Third)spatial interpretation”, 1996, p. 129). Sonia Torres (2001) organiza sua análise da “literatura, etnografia e geografias de resistência” pelo questionamento da hispanização da cultura norte-americana, da busca de uma voz pelos migrantes latinos que não abandonam suas origens, e das resistências geradas no processo. Uma análise preliminar da literatura da fronteira México-EUA revela que apenas os latinos e seus descendentes têm tomado a palavra, ou talvez eles sejam mais valorizados por serem considerados pelos teóricos como os portadores da nova representação. A comparação entre a literatura da fronteira gaúcha e a produzida nas borderlands norte-americanas revela ainda que os conflitos são muito mais claramente expostos no segundo caso, refletindo as distintas realidades que 129

as geram (DORFMAN, 2004).Também na França encontrei obras que falam da fronteira e do contrabando, valorizando a primeira como lugar de memória e o segundo como prática tradicional e marca do lugar (DORFMAN, 2008). Assim, a literatura do Rio Grande do Sul recebe influxos da fonte revelada pelo uruguaio Bartolomé Hidalgo – que, em 1810, escreveu os “Dialogos Patrióticos” – e valorizada por José Hernández (1834-1886), em “El Gaucho Martín Fierro” (1872) e sua continuação “La vuelta de Martín Fierro” (1874). Essas obras são escritas por intelectuais urbanos empenhados em relatar a vida campeira em seus países, seus personagens e paisagens, a entrada da população no corpo pátrio, seja através do discurso ou da guerra (LUDMER, 2002). Essas obras comprometidas com a caracterização das jovens nações latino-americanas são tidas como fundadoras das respectivas literaturas nacionais. Antes de Hernández, José de Alencar escrevera “O gaúcho” (1870), uma entre várias obras regionalistas através das quais pretendia mapear a diversidade da vida e da paisagem brasileiras. O romance de Alencar não foi bem recebido entre os intelectuais do Rio Grande do Sul, por falta de verossimilhança na linguagem e na representação do tipo regional. Como resposta, Apolinário Porto Alegre escreve “O vaqueano” (1872), onde se glorifica a “democracia da estância” (congraçamento entre fazendeiros e peões) (HEIDRICH, 2000, p.136). Note-se que a legitimidade da representação do tipo regional é dada ao argentino Hernández e não ao brasileiro Alencar. A literatura da fronteira insere-se, portanto, na “comarca literária do Pampa” (RAMA, 1982), compartilhada por sul-brasileiros, uruguaios e argentinos (figura 2). Ao observar o mapa das comarcas literárias, a simultânea pertinência do Rio Grande do Sul ao Brasil e ao Pampa pode ser entendida como uma negação da suposta congruência entre cultura e nacionalismo, onde a fronteira nacional delimitaria língua e práticas culturais. No caso gaúcho, a fronteira é o marcador, o símbolo de uma cultura, de uma especificidade em relação ao Brasil. A literatura da fronteira produzida no Rio Grande do Sul carrega a ambiguidade de ser a um só tempo não-nacional, mas transnacional, identificada com o regionalismo tradicionalista, conservador e nacionalista. É recorrente a inclusão de glossários nas obras regionalistas editadas nos centros culturais da nação, posicionando os termos ditos regionais nos marginalia da página e restabelecendo a posição periférica, 130

a condição desviante, deste produto cultural. Por outro lado, o conteúdo dos marginalia é compartilhado entre as obras publicadas em outros países platino. Há, portanto, uma linguagem da margem, incompreensível no centro, mas comunicando transfronteira, fortemente baseada na oralidade, nas origens híbridas da cultura e dos habitantes desse espaço. A língua é uma prática, assim como o “contrabando”. CONTOS DE CONTRABANDO Os contos de contrabando integram um segmento importante na literatura de fronteira. Essas representações textuais sublinham a relevância dos aspectos territoriais para aqueles envolvidos nas passagens ilegais da fronteira. Seus enredos tematizam as práticas dos “bagayeros”, suas relações sociais e as formas de habitar o lugar.

FIGURA 2: América Latina: mapa das comarcas literárias. Fonte: DORFMAN, 2009, p. 127

Ainda que o valor estético ou artístico de alguns contos de “contrabando” possa ser questionado, é evidente a rentabilidade da análise dessas representações situadas – sobre as trocas que a fronteira permite, 131

sobre o confronto de identidades, sobre o regime normativo incidente sobre as práticas – sobre a condição fronteiriça. A fim de estabelecer hipóteses sobre práticas, normas e condição fronteiriça relevantes para contrabandistas de pequena monta em Santana do Livramento-Rivera examino aqui dois contos de autores nascidos na fronteira Brasil-Uruguai, escritos no limite entre texto culto e a narrativa nativa. Esses contos foram pinçados devido a referências mútuas, intertextualidades mais ou menos explícitas, reconhecimento por parte da crítica e circulação entre leitores. O uso de uma linguagem local é um recurso compartilhado pelos textos. Ligia Chiappini (1999, p. 21) cita Dino Preti (1977, p. 42-3, 47) para enumerar estratégias a que um dos autores estudados, Simões Lopes Neto, recorre em seu esforço para transcrever a oralidade: (...) a redundância; a freqüência das expressões de situação (aqui, ali, agora...); o truncamento básico; o ritmo e sonoridade típicos da fala; o papel da pontuação ressaltando a afetividade; a imagem do interlocutor; as interjeições e chamamentos, pelo vocativo; as questões, supostamente dirigidas ao interlocutor e, por meio deste, ao leitor-ouvinte; as comparações dentro do horizonte de Blau; os castelhanismos.

O conto mais antigo e conhecido aqui analisado é Contrabandista. É provável que João Simões Lopes Neto seja o pai dos contos de “contrabando” no Rio Grande do Sul. O título refere-se a Jango Jorge, descrito como um homem de muito valor e habilidade, fortemente arraigado no pago, que se notabilizava pelo conhecimento da região que “nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada”localizando-se pelo faro, pelo ouvido e até pelo gosto característico a cada lugar (LOPES NETO, 1998, p. 91). A história se passa em meados do século XIX, mas remete também ao tempo passado: já velho e afamilhado, Jango Jorge ia casar sua filha. Saiu na véspera da boda para buscar o enxoval do outro lado do rio, e da fronteira. Todos os preparativos estavam concluídos, mas a noiva não podia aparecer na festa enquanto o pai não chegasse com seus atavios. Depois de tensa espera, um movimento no terreiro anuncia Jango Jorge: deixando sua experiência de lado, insistira em enfrentar a guarda de 132

fronteira e fora morto. Além da rica informação factual deliberadamente incluída nessa obra, e em parte transcrita acima, o desejo de registro é tão explícito que se pode afirmar tratar-se de um conto a serviço do documento, aprendese que o “contrabando” é uma prática tradicional na região, e que desde sua origem, anterior a 1800, organizava-se em bandos ou “malocas”, atuando nos banhados do rio Ibirocaí, com qualquer tempo e a qualquer hora do dia (LOPES NETO, 1998, p. 91). Segundo o autor, o contrabando teria nascido porque os estancieiros iam ou mandavam buscar artigos necessários ou supérfluos para seu abastecimento do outro lado da fronteira ainda mal definida. É evidente sua intenção em registrar a gênese e a organização do “contrabando”, apresentando-o como estratégia de sobrevivência da população diante de uma dinâmica histórica desterritorializante, e não como crime ou contravenção. O personagem-título surge com muita humanidade, como um pai dedicado, generoso e conhecedor da terra, e a ele opõem-se os “ordinários” guardas da fronteira. O “contrabando” que leva à morte de Jango Jorge não são armas nem drogas, mas um enxoval, a proteção e a delicadeza legada por um pai a sua filha. O casamento vira funeral, o dia vira noite, por causa do combate entre o “capitãocontrabandista” e o pai da noiva, próximo e familiar, e os ordinários que defendem a lei estatal. É preciso lutar para reaver o corpo do “contrabandista”. O contexto histórico é reforçado pelo escritor-testemunha, ciente de seu papel social (o que é corroborado por sua opção por um personagem de extração social baixa, tal qual os bagayeros) escolhendo registrar a dor desencadeada pela desarticulação de certo mundo rural. A sobreposição dos papéis de autor/testemunha permite o uso desse material na pesquisa geográfica: os textos ecoam um coletivo humano territorializado, sua oralidade, seu regime normativo. Eles representam uma vida de transgressões à norma nacional em condição fronteiriça. O autor contemporâneo Amilcar Bettega-Barbosa (1964) escreveu “Arreglo” – que pode significar arranjo, suborno, reparação ou rendição – em 1996 (BETTEGA-BARBOSA, 2000). Essa história não louva o gaúcho ou sua região, como no começo do século XX. Ela mostra um lugar marginal e violento, “esvaziado de perspectivas”, onde o 133

“contrabando” é uma “alternativa à falta de alternativas” (entrevista, Paris, 23 de março de 2007). O conto se passa numa fronteira marginalizada pela economia e pela geopolítica, entre quartos de cabaré e um parador na Federal, em Rosário do Sul. O posto de serviços da Rodovia Federal, que poderia ser descrito como um não-lugar – não fosse o uso da expressão local – sublinha a presença do nacional e aponta para a articulação supranacional através da estrada para a Argentina. A ação se desenrola na cidade, o entorno rural é descrito como miserável, o rio é só um cenário. Não há menção a cavalos, sequer como ornamentos da masculinidade, mostrando ter-se terminado o tempo dos cavaleiros em tropeadas campo afora. Outras escalas e redes organizam o território. Arreglo inicia com o assassinato do “contrabandista” Vico, por Mendes. Como numa tragédia grega, o narrador é levado pela honra que oprime por inexequível, a vingar essa morte, apesar de querer mudar de vida para casar. Vico, o “contrabandista” morto por Mendes ainda antes do início da narrativa, era “chibeiro pequeno, talvez dos últimos numa época em que o chibo perdia a força e o rio já não passava de uma paisagem d’água irmanando a miséria”. Aparentemente o assassinato tivera motivação passional, uma disputa pela prostituta adolescente Sarita, mas na verdade outra era mulher em questão. A irmã mais moça de Mendes havia sido estuprada por Vico e engravidara. Miséria e a violência atingem a todos. O desfecho é bárbaro: depois de surrar Mendes brutalmente, o narrador solta um cachorro esfomeado e feroz que termina de matá-lo. O corpo é desonrado definitivamente pelos cachorros. Um ódio ao gaúcho mítico, que poderia ser uma projeção do idealizado Jango Jorge, se manifesta no conto, exemplificando o contínuo espelhamento e distorção entre a literatura e a vida: os gaúchos saem da vida para a idealização na literatura (no “Contrabandista”), voltam à literatura expressando a impossibilidade de cumprir com tal destino numa vida transformada, frustrada e empobrecida (em “Arreglo”). A comparação entre as duas histórias mostra uma transformação no lugar, em seus habitantes e em suas representações. A importância estratégica e os tempos heróicos pertencem ao passado da fronteira, tanto no lugar quanto nas histórias que ele inspira. A legitimação do “contrabando” no lugar se mantem associada à esperteza, rebeldia e coragem. O “contrabandista” é portador de verdades

134

locais, associadas à territorialidade fronteiriça, baseadas nos regimes normativos que permitem ao fronteiriço negociar as leis estatais, e grande parte de sua naturalização decorre da frequência aos textos aqui analisados. REGIMES NORMATIVOS: LEIS E NORMAS “O contrabando é ilegal, mas não é ilegítimo”, “contrabando romântico”, contos de “contrabando”, bons bandidos e outros tropos das explicações positivas sobre “contrabando” só ganham sentido se pensarmos que surgem de comunidades que experimentam cotidianos que criam e interpretam as normas e leis, estabelecendo seus próprios entendimentos quanto à adoção destas, definindo as regras justas e aplicáveis na comunidade. O regime normativo é esse conjunto de normas, escritas ou não, válidas para uma comunidade discursiva situada e compartilhando um determinado momento histórico. São definições sobre o que é possível, desejável, verossímil, legítimo e justo. Em sociedades complexas como as nossas, o contrato social é debatido permanentemente, sem ruptura com o estado, a partir de noções locais – mas também de gênero, classe, faixa etária, etnia – sobre justiça, comportamentos e práticas legítimas. A lei é o regime normativo de legitimidade mais abrangente no território nacional. Cabe resgatar aqui a etimologia da palavra: vem do verbo latino ligare, que significa “aquilo que liga”, ou legere, que significa “aquilo que se lê”. Sua redação é um processo lento e controlado, é monopólio do estado (as ditas autoridades competentes). Na prática, comunidades discursivas melhor situadas, em determinados pontos do território, emitem enunciados mais amplamente aceitos, que adquirem força de lei. Por vezes,essas verdades ocultam, reprimem, criminalizam sentidos locais ou desviantes. Enfim, as leis não são meras manifestações da vontade neutra e abstrata do estado, elas expressam a teia de interesses e encruzilhadas público-privadas que buscam usar o aparato público no desenho da economia, da política, da moral, da cultura no espaço/mercado/lugares reconhecidos como território nacional. Muitas vezes, há uma “privatização” da norma, isto é, esta é usada em proveito de grupos de 135

interesse situados (DORFMAN et al., 2012). A produção da lei é relevante, mas é importante também problematizar a capacidade de levar à sua observância. Um aparato muito intrincado é construído para administrar o respeito à lei, personificado em polícias e fiscais, peritos e investigadores, juristas e carcereiros etc. A lei estabelece o que é contrabando, mas a decisão de reprimi-lo cabe, em certa medida, aos diferentes agentes que controlam o território estatal – seja nos limites territoriais,em outros pontos de entrada no território nacional como portos ou aeroportos ou nos lugares em que se realiza o consumo. Dada a impossibilidade de vigiar todas as mercadorias que transitam pelo país, os órgãos de controle estabelecem metas em volume de apreensões e em produtos específicos. A definição dessas metas é, muitas vezes, resultado de um “clamor geral” ou da opinião pública, de um debate que envolve sindicatos de produtores, militantes de direitos sociais e a sociedade em geral, condenando enfaticamente e demandando a repressão a um dado tipo de mercadoria contrabandeada (DORFMAN; REKOWSKY, 2011). Obviamente, a opinião pública é formada pela atualização das verdades através dos debates nos meios de comunicação, cujos conteúdos são primariamente definidos por comunidades discursivas ligadas a grandes interesses econômicos ou a órgãos oficiais. Em outras palavras, as fontes mais recorrentemente acessadas pelos jornalistas representam o alcance do poder de certos grupos, o que está ligado à facilidade e à efetividade da busca de informação por esses profissionais (GRIMBERG; DORFMAN, 2012). A norma legítima é, portanto, um compromisso entre estruturas (o estado, o mercado, a imprensa, o lugar etc.) e agências (de aduaneiros, de empresários, de comerciantes, de contrabandistas etc.). Localmente, contrabandear é representado como um trabalho que implica no desrespeito a algumas regras vigentes nos limites estatais, a partir de um conhecimento do lugar, das práticas possíveis e legítimas nele. Quando enunciado a partir do estado, o contrabando define-se como o transporte ilegal de mercadorias entre estados, elidindo os tributos por estes estabelecidos, através de um limite de permeabilidade seletiva normatizada por agentes políticos e econômicos hegemônicos.

136

LUGARES DE ENUNCIAÇÃO E CULTURA SITUADA E o que são lugares de enunciação? Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov conceituam enunciação como “os elementos pertencentes ao código da língua e cujos sentidos, no entanto, variam de uma enunciação para outra; por exemplo, eu, tu, aqui, agora etc.” (2001). Por lugar de enunciação entende-se o aqui/agora do autor e de seus interlocutores, nas províncias e redes de poder e representação que o contextualizam. Os textos, as representações textuais, expressam a cultura espacialmente situada. O lugar da enunciação influi na representação do espaço formulada por cada agente: o agente é situado e a cultura em circulação no lugar condiciona-o, ao regime normativo e às representações que ele cria. Partindo desse ponto, enfatizo a mudança no significado da lei e do contrabando conforme a situação que informa a representação textual formulada por cada agente considerado. Vou dar uns exemplos de como aparece a lei em textos originados em diferentes lugares de enunciação. Quintana Morales, poeta riverense, escreveu: La ley sobre el contrabando no fue hecha en la campaña es como tela de araña no se si muy bien me explico no sujeta al bicho grande pero enreda al bicho chico

No Código Penal da República Oriental do Uruguai, escrito com a intenção de regular o mercado nacional, o artigo 245 da lei 13318/1964 reza que: Se considera que existe contrabando en toda entrada o salida, importación, exportación o tránsito de mercaderías o efectos que realizada con la complicidad de empleados o sin ella, en forma clandestina o violenta, o sin la documentación correspondiente, esté destinada a traducirse en una perdida de renta fiscal o en violación de los requisitos esenciales para la importación o

137

exportación de determinados artículos que establezcan leyes y reglamentos especiales, aun no aduaneros

Simões Lopes Neto, escritor e publicista gaúcho do inicio do século XX, escreveu, naquele texto fundador dos “contos de contrabando”:

Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões. [1801] Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços; abanava o poncho e vinha a meia rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados. Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do mesmo jeito. Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla, do Haedo... O mais, era várzea! Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e agüentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!... Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos! Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros... Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se explicam.

138

Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim... Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralhos de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas! Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos reinóis... Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!... O tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!... E logo com quem!... Com a gauchada!...(LOPES NETO, 1998, p. 91)

Três formas de apresentar a lei: uma local, uma nacional, uma regional. Existe uma quarta forma, a lei da natureza. Quem traz é o Sergio Faraco “era a mesma lei que reinava em sua vida e na vida de seus conhecidos. Todo mundo se ajudava, claro, mas quando alguém morria os outros iam chegando para a partilha dos deixados” (2000, p.295). A variação no regime normativo reflete a combinação espaçotempo-precursores, da mesma forma como se inscrevem nos textos a situação espacial, o contexto histórico de sua produção e leitura e, finalmente, os precursores eleitos pelos emissores. Sejam os textos legais, teóricos ou artísticos, sejam eles cultos ou populares, expressam a cultura espacialmente situada. O lugar da enunciação influi na representação do espaço formulada por cada grupo: o emissor é situado e a cultura em circulação no lugar condiciona-o e às representações que ele cria. Em última análise, a origem espacial do texto está nele expressa, mesmo que não haja nele representação explícita do espaço. Partindo desse ponto, entende-se a mudança nos conteúdos conforme a situação que informa sua formulação. Situação é um conceito bem

139

explorado na Geografia Urbana, e refere-se à relação entre um lugar e seu entorno, enfatizando conexões e acessibilidade. Cabe lembrar o apelo da feminista americana Donna Haraway por saberes situados, em que a objetividade ganhe corporeidade e se reconheça como construção social (1989). Podemos afirmar que, dependendo do lugar em que se produza o texto, e a quem se dirija o argumento, representações muito diferentes da justiça, da fronteira e da condição fronteiriça vão aparecer.

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Lendo, analisando a fronteira como numa central comutadora, podemos perceber diferentes representações sociais, aqui visitadas a partir dos textos em que elas são grafadas. Representações muito diferentes de fronteira e de contrabando vão aparecer de acordo com o lugar em que se produza o texto, e a quem se dirija o mesmo. Cabe destacar: toda textualização constrói e representa o espaço. A literatura não só representa, mas também é parte da construção dos projetos identitários que se expressam em territórios. Citando Eric Cardin: “a literatura sobre contrabando é um resultado, um reflexo, de um contexto social plasmado na arte. No entanto, ela também difunde posturas, identidades e representações, ajudando a construir o contexto social que ela própria é originada” (comunicação particular, 2013). Já em Durkheim se encontra uma discussão da relação das construções simbólicas com a realidade social, uma sociologia do conhecimento que debate as relações entre grupos socialmente situados, suas ideias e atos. Aqui exploramos algo que se aproxima de uma geografia do conhecimento, uma vez que a referencia é a situação geográfica das representações sociais. Segundo Serge Moscovici, representar é um processo de produção de conhecimento que funciona como que “rolando” sobre estruturas sociais e cognitivas locais (e populares), sendo, portanto, sociovariável.As representações não derivam de uma única sociedade, mas das diversas sociedades que existem no interior da sociedade maior (e, portanto, não podem ultrapassá-la) (2003). Essa sociedade “maior” pode ser analisada a partir de sua

140

territorialização, lembrando da dialética que espelha sociedade e substrato territorial. Na Geografia, isso exige ultrapassar as abordagens focadas só em aspectos materiais do espaço e da cultura. Um desses aspectos é a literatura.

DE VOLTA AO LUGAR DE PARTIDA

Ao fim desse diálogo entre representações textuais, revela-se um continuum entre os contrabandistas de ficção e da realidade, como se fossem refigurações de um mesmo personagem, adaptando-se às transformações do espaço que habitam, dialogando com a tradição da literatura e dos costumes. Sendo a fronteira um objeto geográfico, e havendo uma estreita relação entre os objetos geográficos e a produção de cultura, sabendo que a sociedade se territorializa gerando representações textuais e que essas mesmas representações textuais entram na construção cultural e política dos lugares – pode-se afirmar que a fronteira gera uma cultura específica. O contrabando é, nesse sentido, uma prática cultural conectada com a condição fronteiriça. Há uma sobreposição entre a prática do contrabando e a cultura da fronteira, cujos índices mais reconhecidos são o portuñol, as famílias mistas, a política transfronteiriça, a música e a literatura de fronteira. As obras locais sobre contrabando apelam para o folclore ou para a “contracultura”, fazem o elogio do passado ou da margem. Trata-se de um folclore que imagina um território originalmente isento de fronteiras, criadas por imposição de poderes maiores ou externos, que mutilaram o território original sem, no entanto, extinguir, nos seus habitantes, o nexo pregresso. A contracultura, a poesia da margem, atribui à região fronteiriça valores como liberdade, autenticidade, criatividade, alinhando-se aos pobres para exaltar seu inconformismo. Toda essa legitimação se estende a contrabando de maior monta, com outros propósitos, às vezes bem menos nobres. Por outro lado, a cumplicidade moral leva a uma coesão interna: os níveis de envolvimento com a atividade variam, há os que são cúmplices apenas no sentido de partilharem o sigilo e não condenarem a prática. Esse grupo – a sociedade local – não é uma classe social, nem um 141

grupo profissional, nem uma facção política. Os bandos e seus cúmplices abrangem uma grande parte ou a totalidade da população do lugar. Deve-se acrescentar que o contrabando dá coesão e identidade, mas não de uma forma pacífica, acomodada. Há embates, disputas, mortes, beneficiados e prejudicados. Conflitos, enfim. Podemos concluir que há um saber e uma identidade nessa sociedade, nesse lugar, mas não há justiça. Cabe pontuar que valorizar o contrabando como prática local é problemático em outras escalas: reivindicar o delito conforma uma sociedade fora da norma nacional, dando chance à estigmatização. Correse o risco de representar a fronteira como ameaça à segurança pública, reforçando uma geografia moral em que diferentes lugares do espaço abrigam e estimulam valores como impureza, ameaça e delinquência. A estigmatização da fronteira, pressupondo uma influência moral sobre seus habitantes, é presente em diferentes representações, seja pela mudança legal e territorial, pela situação periférica ou pelo contato/ contágio com o estrangeiro/outro (DORFMAN, 2009; PARK, 1973, p. 66). CONCLUINDO A literatura de fronteira e, especificamente, os contos de contrabando revelam lances e nuances do comércio ilícito internacional e da sociedade em que é praticado. A série de narrativas aqui encadeadas mostra que o tema mantém-se em movimento, integrando-se na corrente de representações textuais em que circulam leitores e autores, contrabandistas fictícios e reais. Como estratégia de aproximação aos sentidos locais do contrabando, a literatura nos forneceu subsídios, que servem como orientação para o trabalho de campo, no levantamento das práticas dos fronteiriços. Alinhando tradição, costumes e práticas, podemos nos aproximar dos hábitos ou costumes que se fazem no espaço social, que trazem em si a ciência do lugar, dos pais e dos precursores, ao mesmo tempo em que necessariamente se territorializam no presente. De forma resumida, vou colocar algumas conclusões desse trabalho, da minha experiência de pesquisa sobre o contrabando e da rentabilidade dos textos literários para esse esforço.

142

Em primeiro lugar, nessa tentativa de organizar os textos segundo as representações sociais e a situação geográfica, coloco alguns pressupostos: - existem diferentes modos para representar o espaço e as práticas que o ativam socialmente. A representação textual assume diferentes gêneros (uma matéria, uma lógica, um suporte) para verbalizar o espaço, com diferentes propósitos: descrição científica, obra ficcional, texto legal e jornalístico, entrevistas, conversas, causos, anedotas, canções... - todo mundo fala, as palavras e seus usos são de domínio geral, em mutação e atualização permanente, mas cada gênero tem características destacadas, leis internas. O texto científico prima pelo diálogo com os precursores; a escrita geográfica também é cartográfica. A representação oral recorre a gestos e entonações, perdidos na passagem para o registro escrito. Cabe examinar o conteúdo local das palavras. Listo como os principais elementos de uma geografia da imaginação cultural: - o lugar do emissor, o ponto de partida da representação, o lugar de enunciação, o aqui e agora subjacente a cada texto. - o lugar de recepção, a quem se dirige o texto,enfim, a situação do texto, sua vinculação com diferentes entidades geográficas, sua posição periférica ou central a outras representações sociais. Esse tipo de análise sublinha ainda a suíte escalar em que circula o texto, por exemplo, o contrabando, e os conflitos gerados na relação entre representações oriundas no lugar, na região e no Estado. Para fazer uma geografia da imaginação cultural precisamos (a) reconhecer a natureza desigual de cada um desses gêneros textuais, (b) aproximá-los, construindo comensurabilidades entre textos de origem, suporte e propósitos distintos, (c) situá-los no lugar (em posições geograficamente coerentes com a situação geográfica e social de quem as produz) e na tradição (que não abordamos aqui), (d) reconhecer seu caráter político na produção de coerências internas por vezes dissonantes em relação a outras escalas e grupos sociais (e) gerando novas representações textuais, como o texto que aqui se encerra.

143

NOTA EXPLICATIVA 1

Dra. em Geografia, professora adjunta do Depto. de Geografia e da Pós-Graduação em Geografia da UFRGS, [email protected].

REFERÊNCIAS BETTEGA-BARBOSA, Amílcar. Arreglo. In: EQUIPE DA UNIDADE EDITORIAL (Org.). Contos sem fronteiras. Edição bilíngüe em português e espanhol. Porto Alegre: UE/ Sec. Mun. da Cultura, 378 p. p.55-62, [1996] 2000. CÂNDIDO, Antônio. Prefácio da 2ª edição e Introdução. In: ______. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). São Paulo: EdUSP/ Ed. Itatiaia Ltda, [1950] 1981. CHIAPPINI, Ligia. No entretanto dos tempos: literatura e história em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins Fontes, 416 p., 1988. DORFMAN, Adriana. O espaço age sobre o estilo: comparando fronteiras através da literatura de gaúchos, chicanos e europeus. Anais do VI Congresso Brasileiro de Geógrafos. Goiânia: AGB, 12 p., 2004. _______. Pequenas pontes submersas: interpretações geográficas e antropológicas de literaturas de contrabando. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 3, n. 1, p. 93-114, jan.-abr., 2008. _______. Contrabandistas na fronteira gaúcha: escalas geográficas e representações textuais. Tese de doutorado, Florianópolis, 2009. Disponível em http://www.tede.ufsc.br/teses/PGCN0367T.pdf. _______; FRANÇA, Arthur Borba Colen; DURAN, Roberta Corseuil; SOARES, Guilherme de Oliveira. Contrabando e mercado legal de agrotóxicos: articulações a partir da fronteira BrasilUruguai. Anais do IV Seminario da America Platina. Buenos Aires, 2012. _______; REKOWSKY, Carmen J. Geografia do contrabando de agrotóxico na fronteira gaúcha. Revista Geográfica da América Central da Escola de Ciências Geográfica, v. 1, p. xx, 2011. DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 339 p., [1972] 2001. FARACO, Sérgio. Guapear com frangos. In: EQUIPE DA UNIDADE EDITORIAL (Org.). Contos sem fronteiras. Edição bilíngüe em português e espanhol. Porto Alegre: UE/ Sec. Mun. da Cultura, [1986] 2000, 378 p. p.289-295. GRIMBERG, Daniela Seixas; DORFMAN, Adriana. Uma geografia da informação das apreensões de agrotóxicos na região Sul do Brasil. Anais do Encontro Internacional Fronteiras e Identidade. Pelotas, 2012. GRIMSON, Alejandro. Introducción ¿Fronteras políticas versus fronteras culturales? In: ______. (comp.) Fronteras, naciones e identidades: la periferia como centro. Buenos Aires: Ciccus, La Crujía, 348 p. p 9-40., 2000

144

HARAWAY, Donna. Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, Vol. 14, n. 3 (outono, 1988), pp. 575-599 Disponível em http://www.jstor.org/stable/3178066. Acesso em 07 ago 2012. HEIDRICH, Álvaro Luiz. Além do latifúndio: geografia do interesse econômico gaúcho. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 212 p., 2000, LUDMER, Josefina. O gênero gauchesco: um tratado sobre a pátria. Chapecó: Argos, 2002. MASINA, Lea. O contrabando na confluência das culturas. In: CASTÉLLO, I. et al (orgs.). Práticas de integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. p. 165-175, 1995. __________. Percursos de leitura. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro; Movimento, 159p., 1994. MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro: Vozes, 2003. PARK, R. E. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento social no meio urbano. In: VELHO, O. (org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en America Latina. México: Siglo XXI, 1982. RUBERT, Nara Marley Aléssio. O regionalismo de Sérgio Faraco. Uma visão universalista da literatura de fronteira. Dissertação de Pós-Graduação em Letras. Porto Alegre: UFRGS, 135 p., 2003. SILVA, João Pinto da. História literária do Rio Grande do Sul. 2ª ed. P. Alegre: Livraria do Globo, 280 p., 1930. SOJA, Edward W. Thirdspace. Journeys to Los Angeles and other real-and-imagined places.Cambridge, Massachusetts: Blackwell, 334 p., 1996. TORRES, Sonia. Nosotros in USA: literatura, etnografia e geografias de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 186 p., 2001.

145

146

ANDAR EL CAMINO, ENCONTRAR EL PROPIO HOGAR: RELATO VITAL DE UN MIGRANTE A LA FRONTERA MÉXICO–BELICE

Antonio Higuera Bonfil

INTRODUCCIÓN

El estudio de las fronteras en tanto espacios sociales construidos por el ser humano ha sido una prolífica forma de trabajo. La literatura sobre el particular incluye acercamientos desde distintas disciplinas, con enfoques teóricos variados; ríos de tinta han corrido para caracterizar esas zonas del planeta marcadas por la actividad de sociedades y gobiernos como puntos de confluencia y conflicto. México tiene 4,301 kilómetros de fronteras internacionales terrestres, de los que 3,152 corresponden a la vecindad con Estados Unidos y 1,149 a la frontera con Guatemala y Belice (INEGI, 2013), algo más del 10% de esta última -149.5 kilómetros- concierne a la colindancia entre México y Belice (Hidalgo, 2007). Las fronteras oriental y occidental del país son marítimas, comunicándolo con los océanos Atlántico y Pacífico. Este trabajo centra su atención en el relato de vida de un migrante mixteco, muestra sus condiciones de vida en Oaxaca y el periplo que lo llevó en 1979 a su destino final, la frontera México – Belice. Como podrá comprobarse en las siguiente páginas, la experiencia vital de nuestro 147

personaje central está estrechamente relacionada con el trabajo agrícola, las vivencias incluidas en este relato están salpicadas de anécdotas que muestran el perfil cultural de un individuo que durante sus primeros quince años de vida fue monolingüe, que por un periodo igual de tiempo sólo tuvo los rudimentos del español para comunicarse y que adquirió las habilidades de la lectura y la escritura sólo en el contexto del cambio religioso que experimentaron él y su familia nuclear. El mapa 1 muestra tanto el lugar de origen de nuestro personaje central como el de su residencia desde hace más de treinta años. El estado de Oaxaca se localiza en la región sureste de México y tiene acceso al océano Pacífico, el estado de Quintana Roo conforma la parte oriental de la Península de Yucatán, y hace frontera con el Caribe y Centroamérica, siendo la única entidad federativa que tiene colindancia con Guatemala y Belice. Las diferencias entre estas entidades saltan a la vista. Oaxaca tiene una extensión territorial de 93,952 kms2, divididos en 570 municipios (http://www.oaxaca.gob.mx/?page_id=32006); de acuerdo con el Centro de Información Estadística y Documental para el Desarrollo, de Oaxaca, su población asciende a casi 4 millones de habitantes (http:// www.ciedd.oaxaca.gob.mx/sp/?p=1409). La densidad de población es de 37.3 habitantes por kilómetro cuadrado y su jurisdicción es territorio de 18 grupos étnicos. Quintana Roo tiene una extensión territorial de 50,841 kms2, divididos en 10 municipios, de acuerdo con el Consejo Estatal de Población de Quintana Roo, estima en 1,484,746 su población parta 2013. La densidad de población es de 29.2 habitantes por kilómetro cuadrado y en su territorio habitan, además de los mayas originarios, varios grupos étnicos que han protagonizado una migración laboral de cierta importancia. Varias de las partes que conforman este trabajo fueron concebidas como piezas complementarias que buscan mostrar tanto la dimensión individual de nuestro personaje como algunas condiciones sociales en que aquél desarrolló etapas específicas de su vida. El ir y venir de lo particular a lo general permite asomarnos a diversos escenarios de la vida de los actores sociales. El núcleo de este texto es, entonces, la recuperación del relato de vida de don Luis López Rojas, la forma en que creció en Oaxaca y los principales

148

rasgos de su vida en el sur de Quintana Roo, donde reside –literalmente- en la raya en donde termina México y comienza Belice. Mapa 1:

Fuente: http://www.losmejoresdestinos.com/mapa_mexico.gif

QUINTANA ROO, DATOS BÁSICOS

El estado de Quintana Roo se ha caracterizado por ser un lugar de destino de migrantes nacionales y extranjeros. Erigido por el gobierno federal en 1902 como territorio federal, se sitúa en la parte oriental de la Península de Yucatán, haciendo frontera con el Caribe y Centroamérica. Recibió oleadas de trabajadores para la extracción del chicle y el corte de madera en las primeras décadas de su vida, produciéndose la fundación de varias poblaciones en la frontera con Belice. Se debe resaltar que durante los últimos 60 años la colonización dirigida por el Estado mexicano y la atracción generada por polos turísticos como Cancún y Playa del Carmen han movilizado miles de familias hacia esta zona de México. Los trabajadores llegados a Quintana Roo para la actividad forestal, además de los grupos mestizos y mayas ya residentes en esta zona de México, 149

sumaron en 1910 algo más de 9,000 habitantes; hoy el estado tiene prácticamente un millón y medio de habitantes (COESPO, 2012). La condición de frontera agrícola primero y la intervención del Estado mexicano para colonizar esta región del país después, trastocaron la tendencia de lento crecimiento poblacional en la primera mitad del siglo XX. Por ello, a partir de 1950 el número de habitantes tuvo un incremento sostenido, esta situación dio lugar a una tasa de crecimiento sin precedente en los últimos sesenta años (ver tabla 1). Tabla 1 Tasa de crecimiento poblacional. México y Quintana Roo. Período México Quintana Roo 1951 – 1960 3.1 6.4 1961 – 1970 3.4 6.0 1971 – 1980 3.2 9.5 1981 – 1990 2.0 8.3 1991 – 2000 1.9 5.9 2001 – 2010 1.4 4.1 Fuente: INEGI.Censos de Población y Vivienda, 1950-2010

La tabla 1 da cuenta de la elevada tasa de crecimiento poblacional experimentado en Quintana Roo en la segunda mitad del siglo XX y el inicio del XXI. La inmigración es, sin duda, la variable que explica esa tendencia, cuyo valor duplica (1951–1970), triplica (1971–1980, 1991– 2000 y 2001–2010) y cuadruplica (1981–1990) lo ocurrido en el ámbito nacional a lo largo de toda la serie. Una de las múltiples manifestaciones del crecimiento poblacional es la de la diversidad religiosa; Higuera (1992) y Vallarta (2011) han demostrado que en una parte de la frontera internacional la pluralidad religiosa era un hecho consumado ya en 1904. Si nos preguntamos por la evolución de la diversidad de creencias religiosas a lo largo de las últimas seis décadas, encontramos una tendencia en el cambio religioso que apunta hacia el incremento de la disidencia religiosa. Si bien es cierto que la religión católica es hegemónica, resulta interesante comprobar que de 1950 a 2010 el porcentaje de creyentes que profesan una religión diferente a ella creció diez veces, al pasar de 3.5% a 35.47% (ver tabla 2). De hecho, de acuerdo con los datos del XIII Censo General de

150

Población y Vivienda 2010, Quintana Roo es la entidad federativa con mayor cambio religioso en México, al registrar un 8.6% de disminución de los católicos.

Año 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010

Tabla 2 Católicos en Quintana Roo(totales relativos). 1950-2010 Población Católicos Porcentaje 26,967 26,042 96.5 50,169 46.099 91.8 88,150 77,572 88.0 225,985 186,931 82.7 412,868 321,211 77.8 792,990 552,745 73.2 1´325,578 839,219 64.6 Fuente: Elaboración propia, con base en Giménez, 1996: 229-242; INEGI 2002; INEGI 2006; INEGI 2011a.

¿Cómo vive un actor social no sólo el cambio en el lugar de residencia, sino casi simultáneamente el de adscripción religiosa?, ¿estamos frente a un caso en el que el migrante lleva su creencia al lugar de destino ó es la migración la que consolida el cambio religioso? Las siguientes páginas ofrecen un caso de estudio que vincula estas dos experiencias vitales. DISEÑO DE INVESTIGACIÓN El diseño de este trabajo partió del interés de usar la historia oral como método de trabajo, como forma de acercarse a la realidad vivida por actores sociales en medios culturales específicos. Al plantearse el reto de abordar el estudio de la experiencia humana individual como centro general de atención, y buscando no separarla del contexto social, lo que la aislaría quitándole su sentido más profundo, se encontró una reflexión de Marc Augé (2007) de gran utilidad para nuestro propósito. En Casablanca, Augé ofrece un interesante modelo para abordar el estudio de la memoria. Teniendo como punto central su propia experiencia vital, que conecta el amor por el cine, una infancia en la

151

medianía del siglo XX y su profesión en las Ciencias Sociales, explora sus recuerdos sobre el éxodo que la Segunda Guerra Mundial impuso a su familia nuclear, una vez que su padre se incorporó al ejército francés y fuera destacado en diversas regiones del país galo. De ese punto de partida, la obra desmenuza puntos finos de cómo al pensar en el cine se puede pensar en la recuperación de la memoria individual, que de una u otra forma se conecta siempre con el ámbito social y nos permite conocer aspectos específicos de las relaciones sociales. Toda película que nos ha gustado un día comienza a ocupar un lugar en nuestra memoria, junto a otros recuerdos. Es un recuerdo entre otros, sometido como ellos a la amenaza del olvido, a la erosión de la memoria. Incluso sucede que, por una razón u otra, recordemos con mayor o menor precisión el lugar, la fecha y las circunstancias en que vimos la película por primera vez. Pero acordarse de una película también es recordar la película misma, es decir las imágenes, como si la técnica de cine hubiese efectuado, desde el inicio, el trabajo mental que selecciona percepciones para formar recuerdos, como si, de alguna manera, hubiera hecho el trabajo de la memoria. Así, sucede que las imágenes de las películas se nos aparecen en la mente como recuerdos personales, como si formaran parte de nuestra vida misma con, por lo demás, ese mismo grado de incertidumbre que suele afectar a los recuerdo y que a veces se revela cuando uno vuelve a los lugares del pasado o coteja sus recuerdos con los de otra persona. (Augé, 2007: 25)

El epígrafe de la obra abre camino, “Este texto no es una autobiografía; es, más bien, el «montaje» de algunos recuerdos. Es decir, habría podido elegir otros recuerdos u otro montaje”. Esta declaración es desarrollada en Casablanca, que poco a poco, como si se tratara de un film que va mostrando sus protagonistas, la trama, los paisajes y el desenlace, nos da las piezas del gran rompecabezas que constituye su modelo de conocimiento y método de trabajo. El libro teje varios niveles narrativos, que configuran la propuesta del autor. Si sus recuerdos son el pretexto que da origen a la reflexión, los elementos técnicos que constituyen una película, las características de su elaboración y los procesos mentales que colocan al libreto, los

152

actores y los espectadores en lugares precisos, son utilizados por Augé para resaltar la importancia que tiene la historia oral para conocer, entender y explicar una capa sustancial de la vida social. Cuando no tenemos buena memoria (una memoria que registre, feche y clasifique), el pasado, incluso el pasado cercano, se suele presentar como un conjunto de “escenas” dispersas. En el momento de la rememoración tratamos de encontrar el vínculo que las une, el hilo que corre de una a otra, es decir, el hilo mismo de la existencia. La paradoja de la memoria es que, cuanto más antiguo es el pasado, más vívidas, coloridas y presentes parecen las escenas que nos quedan pero, en cambio, más tenue, confuso y pérdido se vuelve el hilo que las une. Necesitamos “montar” nuestros recuerdos, esos rushes de la memoria, para recomponer una continuidad, es decir, para trenzar un relato. (Augé, 2007: 34) Lo que más me gusta de las películas antiguas, sobre todo de las norteamericanas, no son tanto las películas (aunque muchas son excelentes) como los actores. Siempre los encuentros intactos, bellos como dioses y diosas o, en todo caso, expresivos, poderosos encarnando la virtud o el mal, el coraje o la cobardía (…) No tienen una arruga. Siguen siendo iguales que la primera imagen que nos dieron de sí mismos, cuando éramos jóvenes. (…) Cuando estoy en el cine, lo que veo en la pantalla son mayores, mayores que yo, exactamente como los adultos cuando yo era niño. (…) Es cierto, el adulto que va al cine ha crecido, pero su posición de espectador sentado lo coloca más o menos en el mismo nivel que el niño que ha sido. Frente a la pantalla puede someterse, sin demasiado riesgo, a la prueba de la fidelidad de su mirada, al volver a encontrar las imágenes intactas de una película descubierta años antes. (…) (…) un pasado presente, con su propio pasado y su propio futuro. Otra temporalidad se apodera de uno, irresistiblemente, desde el principio: la del relato que uno conoce de memoria, pero que de todos modos se apropia de uno y no lo deja hasta la escena final (…) una película es una suerte de largo flashback. Volver a ver

153

una película es reencontrar un pasado que conserva toda la vivacidad del presente. (Augé, 2007: 65, 66 y 68)

Haciendo el símil entre el cine y la vida, presentando sus vínculos reales e imaginados, el autor discute en varios niveles las formas en que los seres humanos fijan sus recuerdos y los procesan para ser contados como parte de su existencia. Casablanca es un documento en el que Augé reflexiona sobre el arte de recordar los acontecimientos de un época, vinculando la experiencia individual con el escenario de la vida social, la historia y los grandes eventos que marcan el ritmo de vida de las sociedades. Una película es una combinación de tres miradas, la de la cámara, que obedece al director; la del protagonista, con la que la primera se confunde cuando la cámara se vuelve “subjetiva”; y la del espectador, por último, que toma las otras dos, mientras dura la proyección. Paradójicamente, en definitiva, esa última mirada, la mirada del espectador, es tributaria de las otras dos, es decir, la que hace o deshace la película, según se deje guiar o no por la primera y se identifique o no por la segunda. (Augé, 2007: 75) Cuando la historia particular de una persona se entrecruza con la historia en general, en ocasión de un hecho más o menos dramático (guerra, huelga general, revolución…), esa persona empieza a vivir de forma más atenta: cada minuto cuenta, todo es un signo, nada se puede descuidar. Es la paradoja que tienen esos momentos de temor o esperanza: eliminan la morosidad de lo cotidiano, echan por tierra las depresiones y, más tarde, una vez desaparecidas las amenazas o las promesas que parecían acarrear, se inscriben de manera indeleble en la memoria… (Augé, 2007: 87)

El autor no deja de reconocer que el proceso de elaborar un relato vital pasa, ineludiblemente, por la experiencia subjetiva de quien ha vivido. Es éste un primer filtro que el investigador no puede obviar en su trabajo; la posición específica del interlocutor, quien relata su propia historia, determina el “montaje” que se hará para contar una experiencia única, haciendo énfasis en determinadas épocas y circunstancias, fijando su atención en elementos que, en el momento mismo del relato, tienen 154

importancia fundamental. Es el interlocutor el que decide, como el director de la película, cuándo y dónde se hace un paneo, un primer plano o un primerísimo plano, según quiera resaltarse una u otra situación específica de la historia contada. Montaje: este término, que parece tomado de la mecánica, resume un misterio que es el encanto del cine. ¿De qué manera el encadenamiento de una escena con otra previamente seleccionada puede comprender un relato? […] (Al referirse a las series televisivas estadounidenses dice) Las indicaciones de lugar, fecha y hora se inscriben, sin embargo, en la pantalla, pero son a la vez sintácticamente mínimas y narrativamente esenciales, hacen más legible el recorrido narrativo construido por el encadenamiento rápido de las imágenes; es decir, lo balizan. En la vida real, en efecto, los momentos fuertes, los momentos decisivos, son pocos, separados en todo caso por largos períodos en los que fácilmente nos damos cuenta que no hay nada para decir apenas nos ponemos a contar a alguien lo que hemos hecho durante el día o la semana anteriores. Pero la mayoría de las veces esos momentos fuertes y decisivos sólo aparecen retrospectivamente, condenados a no existir más que como recuerdos… (Augé, 2007: 30)

El segundo filtro, tan inevitable como el primero, es el que pone en marcha el propio investigador al seleccionar lo que quedará (inclusive cómo quedará) el “montaje” final. La redacción de la versión a publicarse pasa por la “censura” del investigador, quien decide qué se incorpora y qué no, en el texto final. Suerte de edición cinematográfica, esta labor da la forma definitiva al relato que emerge de la labor investigativa. No deja de ser interesante que el modelo de Augé tenga varios puntos de coincidencia con la posición expresada por Bourdieu (1989), quien reflexiona sobre la aceptación de una sola perspectiva al trabajar la historia oral, en su fórmula de historia de vida: Todo permite suponer que el relato de vida tiende a aproximarse tanto más al modelo oficial de la representación oficial de uno mismo, carnet de identidad, estado civil, curriculum vitae,

155

biografía oficial, y de la filosofía de la identidad que lo sostiene, que se aproxima más a los interrogatorios oficiales de las investigaciones oficiales –cuyo límite es el interrogatorio judicial o policial-, alejándose tanto de los intercambios íntimos entre familiares como de la lógica de la confidencia que transcurre en esos mercados protegidos. Las leyes que rigen la producción de los discursos entre la relación de un hábito y un mercado se aplican a esta forma particular de expresión que es el discurso sobre uno mismo; y el relato de vida variará, tanto en su forma como en su contenido, según la calidad social del mercado en el que será oficial –la misma situación de la entrevista contribuye inevitablemente a determinar el discurso obtenido” (Bourdieu, 1989: 30-31)

Para Bourdieu es condición indispensable de las historias de vida la comprensión de las circunstancias sociales en que se he desarrollado el biografiado, (…) “intentar comprender una vida como una serie única y suficiente en sí misma de acontecimiento sucesivos sin otro nexo que la asociación que la de un nombre es por lo menos tan absurdo como intentar dar razón de un trayecto en el metro sin tomar en cuenta la estructura de la red, es decir, la matriz de las relaciones sociales entre diferentes estaciones.” (Bourdieu, 1989: 31)

NOTA METODOLÓGICA El relato de vida que se presenta en este trabajo es producto de una investigación mayor, realizada en la frontera México – Belice a lo largo de varios años, con el tema central de la diversidad religiosa. La región estudiada es un escenario donde la presencia de diferentes iglesias cristianas es una realidad añeja; si bien es un tema local poco estudiado, ha sido abordado por autores como Villalobos (1989), Higuera (1999, 2012), Canul G. (2000), Canul R. (2005), Poot y Vázquez (2005), Ucán (2005), Rivera (2009), Higuera, Andrade,Caamal y Juárez (2009), Higuera, Crisóstomo y Llerenas. (2012). Como se ha dicho en la introducción de este trabajo, la zona fronteriza que nos interesa forma parte de la entidad federativa con mayor

156

índice de cambio religioso en México (INEGI, 2010), razón que pone en relieve la pertinencia de acercarse al estudio de la (in)migración a través de la lente de la adscripción religiosa. Adicionalmente, debe señalarse que Quintana Roo es el estado más joven de la República Mexicana, habiendo sido erigido como Territorio Federal el 24 de noviembre de 1902 y alcanzado el estatuto de Estado Libre y Soberano el 8 de octubre de 1974 (Careaga, 1980; Careaga e Higuera, 2011). Espacio de colonización a lo largo de varias décadas, Quintana Roo ha experimentado varias oleadas de inmigrantes, en la década de 1970 la colonización dirigida por el Estado Mexicano fomentó la fundación de varios asentamientos humanos en la selva tropical; la creación y desarrollo de un polo turístico de la importancia de Cancún llevó a miles de familias a esta parte caribeña del país, y la migración espontánea, aquella que es opción para quien busca tierra para cultivar ó desea un trabajo agrícola, han contribuido decisivamente al crecimiento demográfico del estado. La investigación sobre el panorama religioso en la frontera México – Belice ha seguido un diseño mixto, combinando trabajo de gabinete y varias temporadas de trabajo de campo. Ha recurrido a diversas fuentes de información, considerando tanto las primarias como las secundarias. La consulta bibliográfica y de ediciones periódicas ha sido de gran utilidad para enmarcar el cambio religioso como una expresión del cambio cultural, en tanto que tienen injerencia directa en las relaciones sociales regionales. El trabajo de campo ha permitido abordar las formas concretas que adopta la migración, el cambio de adscripción religiosa, las modificaciones ocurridas al interior la familia como consecuencia de la pluralidad confesional, bajando a la dimensión de los actores sociales que tiene vínculos particulares con la historia local y regional, documentando las diversas encarnaciones individuales de los procesos sociales. La observación participante se ha concretado en la asistencia a los servicios religiosos de diversas iglesias, colaborando en actividades de la vida cotidiana de los creyentes y conviviendo con ellos en la vida ritual y la seglar. Los encuentros con ancianos, ministros de culto, pastores y encargados de los templos nos han permitido conocer la estructura con la que operan las comunidades de fe y su historia local. Las entrevistas 157

en profundidad con los creyentes se han utilizado sistemáticamente, obteniendo los datos necesarios para construir una serie de historias de vida que dé cuenta de la forma en que se han experimentado individualmente los procesos sociales locales y regionales. Se empleó, además, el método genealógico para entender el contexto inmediato de los actores sociales. Esta forma de trabajo no sólo permite conocer las relaciones de parentesco de una familia extensa; incorporar indicadores socioculturales a las estructuras genealógicas las potencializa como herramienta para la investigación, ya que interrelaciona aspectos concretos de la vida social. Si se piensa como una metáfora, este procedimiento metodológico hace que las imágenes obtenidas en el campo “ganen volumen, puedan ser apreciadas en tres dimensiones”. Ello permiten expresar situaciones sociales complejas que entretejen las diferentes experiencias individuales. En el caso estudiado, la estructura genealógica muestra la adscripción religiosa de los integrantes de la familia López Coronel, así como elementos adicionales, que exponen el tránsito de los actores sociales por la vida religiosa institucional. Quien ha permanecido fiel a los patrones de conducta de la iglesia puede acceder a cargos de responsabilidad dentro de la estructura institucional; si, por el contrario, se ha mostrado desapego por las normas de la congregación pueden ocuparse diversas posiciones, que van desde la no pertenencia a la comunidad de fe, la separación voluntaria de la congregación (denominada desasociación), hasta la expulsión de ella, perdiendo la hermandad simbólica que significa pertenecer a los testigos de Jehová. La separación voluntaria es una decisión personal del individuo, que cuestiona los fundamentos de la religión, la expulsión no es un asunto menor entre estos creyentes, toda vez que significa –en mayor o menor gradola muerte social del expulsado. El relato vital presentado en este texto corresponde a un hombre nacido en el sureño estado de Oaxaca y, como se verá en las siguientes páginas, tiene una historia de migración que lo llevó por diferentes estaciones y condiciones de vida, hasta ubicarlo en la frontera internacional que nos interesa. Prácticamente toda su descendencia nació fuera del lugar de origen paterno y una parte importante de ella es originaria de Quintana Roo. La migración y la adaptación a medios naturales y sociales diversos está impreso en la

158

experiencia de los primeros integrantes de la segunda generación de la familia, no así en el resto, que han tenido un solo lugar de residencia, en las inmediaciones de la frontera México – Belice. Las entrevistas realizadas con López Rojas tuvieron como escenario su propia casa, en un ámbito de convivencia familiar y en las que varios miembros de la familia intervinieron en uno u otro punto de la relación dialógica. Tal condición de investigación significó un enriquecimiento de la visión de conjunto obtenida, pues no sólo refiere la experiencia de un actor social, aportando destellos de la memoria familiar.

RELATO DE VIDA EL CONTEXTO DE ORIGEN Luis López Rojas ha vivido algo más de ocho décadas. Originario de Oaxaca, un estado del sur de México, ha residido en la frontera México – Belice desde 1979. El crecimiento y consolidación de su familia, que ya tiene tres generaciones de descendientes, fue el logro de la perseverancia en una tierra que requería de individuos dispuestos al trabajo y al esfuerzo. Proveniente de una familia mixteca del que es el único sobreviviente, don Luis nació en Santa María Uquilita, Taxiaco, 25 de agosto de 1932. Además de sus padres, su familia de orientación estuvo formada por un hermano mayor, uno menor y tres hermanas; el segundo matrimonio de su padre –ocurrido tras su viudez- sumó dos medios hermanos a la estirpe. Si bien todos alcanzaron el estado adulto, se casaron y tuvieron hijos, todos fallecieron por enfermedades propias de un estado crónico de pobreza y un alcoholismo rampante. En la niñez la situación de carencia económica dejó a todos fuera de la educación escolarizada, manteniéndolos a casi todos en un estado de analfabetismo perenne. La orfandad comenzó cuando tenía 5 años, al fallecer su madre. Siete años después perdería a su padre, lo que significó la atomización de su familia de orientación. Luis regresó a vivir con Plácido, tío paterno que le había dado cobijo cuando su padre aun vivía pero ya se manifestaba una relación complicada con su madrastra; ahí se dedicó a cuidar chivos 159

y borregos del tío. Su padre poseía una pequeña porción de tierra para la agricultura, en la que sembraba maíz de autoconsumo, con ayuda de su hijo. Dado que el oficio paterno era la alfarería, lo transmitió a su hijo, al que incorporó al proceso productivo desde niño: (…) me enseñó a artesanías. Empecé a hacer ollas, platos, cazuelas, jarros, cántaros, empecé a hacer. Él me enseñó… empecé a trabajar, aunque sea chiquito, ¿no? Pero trabajé; empecé a hacer artesanía, y sí con eso después de que crecí vivía yo de eso (…) era barro rojo (…) a veces lo pintaba yo antes de quemar, esa pintura no se borraba, y a veces así nomás, quemaba yo sin pintar. No quemábamos en horno, amontonábamos la olla al piso, al suelo, montaban, encimaban unos con otros, y echaban la leña encima y echaban lumbre, así se quemaba...

Su mamá colaboraba con la economía doméstica, “a veces tejaba1 el rebozo, la nagua, así para vender, cobijas, o algo… se iba a vender a Tlaxiaco, a veces, a la plaza, iba ella y mi papá… sacaban la lana del borrego o compraban; compraban la lana y sacaba el hilo”. Las hermanas también “tejaban rebozo, ahí le dicen la nagua, con lana de borrego, primero hacia hilo y luego ya tejaba eso, usaban un telar de cintura, amarrado a un árbol”. Las artesanías tenían dos vías de comercialización, por un lado los revendedores locales que adquirían las piezas a la casa paterna, comprando al mayoreo para revender en mercados de los pueblos cercanos; por el otro, ofrecer sus productos en las plazas de localidades como Putla ó Chacactongo, a los que llevaban “cargando la olla a vender, en la plaza”. El contexto general en que don Luis vivió su infancia lo formó como un mixteco más, un campesino y artesano monolingüe que no sabía leer ni escribir. (…) “mire, la vida era dura, porque como le digo, mi papá tenía que hacer ollas, hacer lo que sea pa´ llevar y vender y ahí compraba el maíz; llevaba la olla a vender y ahí compraba el maíz, imagínese; cada 8 días, cada 15 días tenía que ir a vender y comprar el maíz, se vivía al día, estaba duro. (...) sí sembraba pero como era poca tierra y a veces no llovía, no se daba, o se daba pero se acababa

160

comiendo elote (…) era su tierra (y cuando falleció) yo quedé como mayor de mis hermanos, y tuve que repartir pedacito a cada uno, nomás a los hermanos. Y me tocó pedacito pero ya que me vengo pa´cá… me tocó como una hectárea, es poquito…

Como sus papás eran mixtecos casi no hablaban español fuera de casa, sólo para comercializar sus productos, “hablaban, pero cuatriado”. Ninguno de sus hermanos fue realmente bilingüe, don Luis es el único que sigue vivo y el único que consiguió tierra. Aprendió español sistemáticamente a partir de los 15 años, cuando “salí a andar a Veracruz, Loma Bonita y allí juí aprendiendo, aunque trabalenguas pero me juí aprendiendo [ríe]”; habló primordialmente mixteco los primeros 30 años de vida, idioma en el que se comunicaba con su esposa, aunque hoy ya no suele hablarlo. Demetrio, su primogénito, es el único de sus hijos que entiende algo de mixteco. “Cuando estaba chamaco, hablaba yo con mi esposa, así platicábamos de mixteco, por eso él aprendió (…) [Doña Alberta, su esposa, era básicamente monolingüe], aprendió español cuando salimos de nuestra casa, yo tenía 23 años, ella como 18, […] ella sí fue a la escuela, como dos años, de niña, aprendió en español porque la escuela de allá llegaban los profesores a enseñar español”. Don Luis afirma que aprendió a escribir en el régimen Cardenista: (…) Faltó un punto creo más importante. Cómo aprendí a leer, ¿verdad?, yo aprendí a leer… Lázaro Cárdenas fue el que hizo un programa de alfabetización por todo el país, sacó un libro que se llama Lengua y alfabetización,2 [vivía con su tío Plácido] y hubo escuelas por los pueblos y ahí fue a donde aproveché, medio empecé a letrear, sí ahí aprendí esa escuela nocturna, tantito empecé a letrear y entonces cuando empecé a salir solito empecé a practicar, a escribir… copiaba yo las palabras. Yo hablaba mixteco y escribía en español, pero no entendía lo que escribía, ya cuando empecé a estudiar la Biblia empecé a leer bien, como cualquier alumno de la escuela, pero antes no podía leer bien […] escribía mi nombre; o cualquiera libro, agarraba y lo copiaba, pero yo no entendía lo que escribía; aprendí a juntar las letras y no podía leer bien, […] [fue más difícil aprender a hacer cuentas] cuando vendía yo mis ollas, ahí donde iba a vender era puro idioma, todo lo vendía; el que iba a mi tierra era revendedor,

161

pero también iba a la plaza, iba yo a Chacatongo, a San Miguel Grande, Tlaxiaco. […] Cuando empecé a estudiar la Biblia, me puse a practicar, a practicar, a practicar, hasta que aprendí… escribo en manoescrita. Cuando empecé a escribir comencé a practicar el número, empezaba yo a sumar, a multiplicar… veía a mis compañeros, sabían leer y ayúdame, a ver...

INICIA LA MIGRACIÓN A partir de los 15 años de edad, soltero, don Luis tuvo que salir de su pueblo, “en verdad casi ahí no había trabajo, ya cuando crecí ahora sí, rranqué a venir a Veracruz”; comenzó a trabajar en el corte de caña de azúcar, en el ingenio Juan Díaz Covarrubias. Como la zafra se extiende unos seis mese del año, al concluir volvía a casa de su tío Plácido, e iniciada la temporada de corte de piña en Loma Bonita, Veracruz, se incorporaba como jornalero de junio a agosto. Era común que entre septiembre y diciembre –cuando no había trabajo agrícola seguro- se dedicara a la elaboración y venta de artesanías de barro. Esta vida de trabajador migrante, soltero y sólo con compromiso con la familia de su tío Plácido, se prolongó alrededor de una década. (…) Cuando regresé en mil noveciento… mil noveciento cincuenta y siete, me casé con ella (...) es que la costumbre de allá era diferente, no como ahora. La costumbre es que el mayor, papá, tío ó tía tenía que buscarle a la mujer, no el muchacho: ahora hay libertad, así era en aquel tiempo. (…) [El tío Plácido le dijo] te vas a casar con julana y… pues ni modo… católico, en el pueblo, para entonces daba poca importancia en el registro civil, la más importante es la iglesia, nada más…

Doña Alberta, su esposa por casi sesenta años, recuerda esa época: “mi mamá y mi tía fue que lo aceptaron el viajador que envió su familia de él (…) estaba yo chamaca todavía, unos 14 años”, don Luis confirma la costumbre: “el viajador, busca a un hombre mayor de edad, para que vaya a pedir”. La descendencia llegó tres años después del matrimonio, el primogénito fue el único que nació en Oaxaca, tres hombres y tres

162

mujeres vieron la luz en Veracruz y las últimas tres mujeres en Quintana Roo, estados de la república mexicana que configuran la ruta migratoria de la familia López Coronel. No habiéndose cumplido un lustro del matrimonio, don Luis salió definitivamente de Oaxaca, iniciando una ruta migratoria que se prolongaría casi dos décadas: (…) Mire, cuando me vine de una vez para no volver ya, 1960; me vine ya para no volver, pero tuve viviendo cerca de Acayucan [Veracruz], en un pueblo que se llama Benito Juárez; estuve viviendo varios años pero de ahí no pude, no pude hacer algo, en tierra nacía puro zacate de clavo, todo, todo… no podía trabajar. Agarro, me salgo de ahí y me juí otra vez a Covarrubias; en Benito Juárez trabajaba la tierra, jornales, sembrando maíz, pero como le digo no es una tierra buena, sembraba maíz entre puro zacate de ese clavo, y necesita tractor, arado, yunta, pero no tenía, estaba yo igual que [cuando] estaba viviendo en Oaxaca, en mi tierra, pues…

Durante ese período don Luis trabajó en el campo veracruzano sin poder reunir un patrimonio para su familia, el abuso en el consumo de alcohol se había vuelto un problema para él y su parentela, ya que había comenzado a tomar bebidas embriagantes casi desde que comenzó a cortar caña, a los 15 años de edad. Los recursos obtenidos por su trabajo a lo largo de muchos años no alcanzaban para alimentar a sus hijos y hacerse de una casa propia. El sueño de poseer un pedazo de tierra se escapaba una y otra vez de sus manos. Estos años son recordados por don Luis como de gran agitación. Viviendo de acuerdo con los patrones culturales de su grupo de origen, la familia López Coronel perdió a tres de sus hijos por enfermedades como la disentería o la infección del ombligo de un recién nacido. Él mismo estuvo a punto de fallecer de disentería pero, según asegura hoy en día, beber agua con cal le salvó la vida, al acabar con la infección estomacal que sufría. LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Tal condición de precariedad no fue obstáculo para moverse en 163

ámbitos extraordinarios; con el tiempo se embarcó en actividades esotéricas, relacionadas con espacios religiosos específicos. Según sus propias palabras era una situación tremenda, echaba suerte con la baraja, leía baraja española, aprendió cuando era soltero, jugaba baraja y dominó, en el corte de caña. Ahí comenzó a practicar a echar la carta, no se acuerda quién le enseñó ese arte, pero sus clientes le pagaban con botellas de licor… Hubo problemas, contenía el demonismo, poco a poquito descubriendo, me fui dando cuenta que eso no es bueno, pero ya cuando empecé a estudiar la Biblia; varios años lo estuve practicando, ya cuando me di totalmente cuenta cuando los hermanos me ayudaron, que eso no, eso es cosa de… demonismo. Era rezandero, rezaba a los muertos, oraba pues, pero eso es después que me casé, ya grande. Aprendí en Oaxaca, mi cuñado [esposo de una de sus hermanas] era cantor, cantaba con el cura, y él me estaba enseñando para quedar en lugar de él, estaba yo aprendiendo latín, porque para entonces no había Biblia español, sólo el sacerdote estudiaba la Biblia pero en latín, nunca le decía a la gente qué significaba, ni él entendía lo que decía; estaba yo aprendiendo, pero ya después que me vine pa´cá y lo dejé, ya no seguí aprendiendo… rezaba en español, por los muertos, las almas del purgatorio, fueron varios años como 20 años, organizaba las novenas. Iba a centro espiritista… hay mucho qué platicar. Yo tenía una enfermedad mental y yo quería ser sano, ¿no?, sanarme, pues, y la ente me mandaba pa´llá, pa´cá, que ídolo julano, que templo julano, pues yo fui hasta el centro espiritista, la última vez que fui, Tehuantepec, ahí me quedé en el templo de esa gente, pero ahí mienta Dios, mienta Cristo, ¡ay señor, si le cuento se va usted a espantar!, me quedé adentro de ese templo y no podía dormir, me tapaba yo mi ojo, y vi un visión, que llegaba murciélago, pero grande murciélago, un montón llegaron, entraron a ese templo y se salieron y se fueron, hasta sonaban las alas, cuando me despierto me levanto ¡no, aquí está el Diablo, aquí no está Dios!, pero mi meta era, como le dije antes, mi pensamiento era encontrar cuál es el Dios verdadero, y dije entre mi, no, aquí no está Dios.

164

Desde entonce lo dejé, pero todavía no estudiaba la Biblia, hasta ahí llegué. Cuando vi eso dije entre mi, no y dejé esa creencia, es cosa mala, el espiritismo, pues es el demonio… La enfermedad era mental porque me revelaban cosas de noche pero feas, feísimas, desde chamaco empezó eso, a saber por qué, yo no comprendía por qué, soñaba cosas feísimas, soñaba todo lo grandísimo, culebra, gatos; […] pensaba que volaba y los animales atrás, y caía yo donde había culebras […] desde que entra la noche hasta que amanece, cansadísimo, un chamaco qué puede hacer porque le haga la gente maldad, así crecí, con esa mentalidad, cuando conocí la verdad se me fue borrando, no de un jalón, entonces quiere decir que el Diablo me tenía bien agarrado, ahí me di cuenta… Jehová tiene más poder.

Se debe señalar que su experiencia religiosa comenzó desde la infancia, en un contexto dominado por la religión católica tradicional, pero como se ha señalado, evolucionó por caminos dispares. Su contacto con los Testigos de Jehová es recordado por don Luis como un resultado directo de su búsqueda de Dios. Mire, este… como le digo que me quedé huérfano, verdad, y mi tía pues me llevaba a la iglesia, ¿no?, y ellos iban besando las imágenes ahí, persignaba y solo, solo vino a pensar mi pensamiento, No, pues éste no es Dios, ¿cómo va a ser Dios?, yo quisiera conocer a Dios. No sabía leer, pues era un niño, ¿no?, no sé cómo me vino ese pensamiento, fíjese, y con esa pregunta crecí. No se me olvidó esa pregunta; así crecí, así me enfermé. Ya cuando me estaba enfermando acá, en la garganta, conocí a un hombre, que se llamaba Villalobo, era mi amigo, vivíamos juntos, cerca ahí, y cayó cáncer acá [la garganta] y… lo llevaron hasta Orizaba, ahí lo operaron, lo metieron un tubo acá y allí le daban la comida… No, pa´qué sirve uno así ya. Entonces cuando me enfermé y me empezó a doler aquí, y el hombre ese no me dejaba dormir, toda la noche me revelaba, y dije entre mí, puesyo creo que hasta aquí llegué; pero la pregunta que le digo del principio, tengo que conocer a Dios, cuál es el Dios verdadero… y garro así por donde sale el sol, allá en Cuatotolapan Estación, y llego donde estaban

165

dos familias, estaban estudiando, pero no sabía qué religión era. Llegué y le di las buenas tardes, Buenas tardes, señor, ¿qué quere usted? Pues mire, le digo, ¿no tiene un libro que estudie por ahí, quiero que me venda uno para estudiar… Salieron, me abrazaron -¡Aquí llegó una oveja perdida!

De inmediato don Luis inició su preparación de la doctrina de los Testigos de Jehová. Hay que recordar que no sabía leer en español, razón por la que en este contexto de aprendizaje religioso nuestro personaje adquiere esa habilidad y mejoró la de la escritura. Su memoria señala que en su acercamiento a esta comunidad de fe fue determinante el libro Verdad que lleva a la vida eterna3, edición con la que se introdujo a la nueva doctrina. La congregación local estaba comenzando y se reunía en una casa alquilada que hacía las veces de salón del reino. Este grupo de creyentes era atendido por hermanos provenientes de San Andrés Tuxtla, Veracruz, quienes llevaban la delantera como cuerpo de ancianos. Con ellos aprendió los primeros elementos de doctrina, en su búsqueda del dios verdadero. Y luego luego empezaron a dar estudio [bíblico], me invitaron a reunión [de congregación] y luego iba a la reunión, luego luego, porque eso era lo que yo quería […], para entonces no había muchos requisitos. Mi matrimonio no estaba legalizado y así, así me la llevaba, así me daba mi discursito de cinco minutos, es como empecé a hablar, poco a poco, así conocí la Verdad, pero mi pregunta, le digo, así era de chiquita… […] esa pregunta tenía yo vivo en el corazón y en mi mente, hasta que llegó el momento, pero no me fui con ninguna religión. Su incorporación a esta congregación fue paulatina, pues su preparación avanzaba lentamente por estar aprendiendo a leer y a escribir. Durante los dos años que estuvo en contacto con ese

166

grupo local de creyentes no se bautizó. Sin embargo sí se produjeron los primeros cambios importantes en su vida Mi maestro de la Biblia cada que me daba estudio me exegía eso. Me exegía eso, -

Se tiene que casar.

Pero yo no entendía luego por qué ¿no? y digo Bueno, y este señor por qué sigue tanto eso, decía yo, no, pero ya estoy casado… Pero ¿dónde te casaste? Por la iglesia católica… No, dice, eso no vale. ¿Entonces a dónde…? El Registro civil, entonces llegó un día de mayo, yo mismo te voy a llevar ¿A dónde me va usted a llevar? Coayapan de Ocampo, allí el 10 de mayo casaba gratis [ríe], ese hermano me trajo allí, en esa fecha, ahí me casé. Como ha sido patente en las páginas precedentes, la condición económica general de la familia López Coronel no experimentó una mejoría evidente. Esta situación se prolongó alrededor de dos décadas. Sin embargo, un acontecimiento casi fortuito cambiaría el escenario de vida al presentarse la posibilidad de migrar al sur de Quintana Roo, la frontera internacional con Belice. Por noticias de uno de sus cuñados que había migrado a esa zona, decidió probar suerte: Estaba yo viviendo ahí en Cuatotolapan, cuando vino mi cuñado pa´cá primero y me mentaba carta, que acá se está poniendo bueno, se está haciendo un ingenio, -

Y vente y bueno…

y no quería venir, pero tanto y tanto llegó él personalmente, -

¿Qué piensa usted se va?, ahí va a estar bueno…

167

Bueno, le digo, vete, dame una dirección, onde vives y… yo voy personalmente… Y me vine yo solito [ríe], a ver el lugar. Y sí llegué. Llegué Chetumal y, como traía la dirección, tú dile al chofer que te baje en Palmar, y así lo hice. Sí lo encontré. Estuve aquí ocho días en Palmar, ya después regresé y le dije a mi esposa, “así está el lugar, no sirve el agua, ¿qué vamos a hacer, vamos o no vamos?”, pero allá donde estábamos viviendo no tenía ni casa pues, alquilando así, pa´llá y pa´cá. Pues estuvimos haciendo unos arreglos y “pues vámonos, total…”, pues allí no tenemos nada, pero sí sentí lejos, sentí lejos, lejos… y ya me vine, estuve viviendo tres años al Palmar, pero Palmar no me quería..un dichoso que se llama Soriano, es juerano4, él era comisariado de ahí y no me quería dar tierra pa´ trabajar y dije entre mí, ¿pues qué hago aquí?, yo vine a trabajar la tierra…

El cambio de residencia, con la mediación de unos 900 kilómetros de distancia, no minó su interés religioso por la doctrina de los Testigos de Jehová. Una vez con la familia en Palmar don Luis trabó relación con la organización local de esa comunidad de fe y pronto comenzó una labor de prédica en la frontera internacional, actividad que se ha extendido hasta el presente. Sin embargo, hubo de ocurrir un cambio de residencia más, en 1980, que amenazó con no ser el último, …me iba a ir para San Pedro Peralta. Entonces deja venir los hermanos de Chetumal, No, hombre, ¿qué estás haciendo aquí solito? Aquí, pero ya me voy… No, no, no te vayas. Quédate y aquí te vamos a ayudar, aquí vamos a hacer una congregación, me dijeron Bueno, si es así, me quedo… Pero caminé otros dos pasos, aquí a Sacxan. Mire, la diferencia de un comisariado juerano a un nativo. Fíjese cómo es la cosa, allá no me quería y acá vine a solicitar; aquí era comisariado un nativo, y ese señor me recibió. -

168

¡Vente acá!, ¿cuánto son ustedes?

-

Somos dos, na´más, yo y mi hijo, le digo ¡No, dijo, si son cincuenta para mí es mejor!

Estaba queriendo gente porque quería agrandar el poblado. Y me vine a quedar aquí. Estaba viviendo yo allá [en Palmar] cuando vine a hacer mi casa acá, en cartón y ya de una vez pasé, y hasta ahorita aquí estoy… hasta aquí terminó la historia.

ECHANDO RAÍCES… A partir de su establecimiento en Sacxan, la vida de don Luis ha tenido dos actividades principales, el trabajo agrícola en el ejido y una vida religiosa hacia el interior de su familia y hacia el exterior, que cristalizó en la formación de una congregación de testigos de Jehová en Palmar y en la predicación su doctrina en la frontera internacional con Belice. En este periodo estableció relación con los Testigos de Jehová de poblaciones localizadas en la carretera Chetumal-Escárcega. Su contacto con los predicadores de Chetumal impulsó su decisión de incorporarse definitivamente a esta religión, bautizándose en 1980. En ese momento sólo operaban tres congregaciones en la zona fronteriza, Sarabia, Butrón y Obregón, por lo que se dio a la tarea de impulsar la creación de una en Palmar con la colaboración de los hermanos de la ciudad. Uno de los primeros estudios bíblicos conducidos por don Luis tuvo en Esteban Chablé a un importante aliado, que aportó un anexo de su casa (una cocinita construida de tasiste y huano, con piso de tierra) para comenzar las reuniones de los pocos interesados locales. Ahí se reunía la congregación los domingos para el estudio de La atalaya y el discurso público. Esteban Chablé no sólo contribuiría con el espacio para las reuniones de la congregación, como cabeza de familia también atraería a la congregación a un importante número de parientes residentes en Palmar, que sumado a la familia de don Luis conformarían la base de la nueva congregación. La predicación fue sumando adeptos y con una membresía que no llegaba a 15 integrantes se cambió el local del salón del reino. A partir de 1982 una construcción de block ubicada en el solar de la familia de don Esteban fungió como el nuevo recinto de la congregación. 169

No obstante que Esteban Chablé se bautizó como testigo de Jehová, no había erradicado el viejo vicio de fumar marihuana. Sabiendo que esa práctica no era aceptada por la congregación, el señor Chablé se escondía para consumirla, siendo expulsado cuando se conoció esta situación. La salida de Don Esteban representó una escisión de la congregación, pues con él se retiraría la mayoría de sus parientes, reduciendo el número de sus integrantes. En consecuencia, el salón del reino tuvo que cambiar su ubicación. La familia Avilés Chablé donó en 1984 parte de su terreno para construir el nuevo local para el salón del reino. En ese momento la localidad de Palmar era parte del territorio asignado a la congregación Sarabia, razón por la que parte de la predicación era realizada por sus integrantes. El nuevo local se haría de block y techo de huano, pero no tenía registro alguno ante las autoridades locales, por ser atendido desde Sarabia. En ese entonces un precursor especial llegó a Palmar. Su asignación era constituir una congregación en Palmar y vino a coordinar los trabajos tendientes a dicha fundación. Una de las contribuciones de Bernabé Martínez fue la edificación del salón del reino. En ese salón que estamos, ahorita no recuerdo, parece que la Sociedad no llevó orden, porque para entonces la autoridad perseguía a nosotros, no podíamos ser una congregación. Porque llegaba […] la autoridad a vernos. Y eso, como quien dice, nos escondíamos pero ya más después ahora sí legalizó la obra, porque antes no estaba legalizada la obra aquí en México. Y cuando legalizó ahora sí, como quien dice, abrió la puerta a construir salones. Antes no cantábamos cántico…

Por ser territorio aislado se constituyó la congregación El Palmar em 1985, cuando logró tener 12 publicadores locales. La congregación contó, entre otros predicadores, con Don Luis López, su esposa Alberta Coronel, don Esteban Chablé, su hija Gloria Chablé y su yerno Celso Avilés, además de don Nicolás Coronel, Jesús Pérez, su esposa y 2 hijas (que vivían en Sabidos). Poco tiempo después los hijos mayores de don Luis se bautizaron, contrayendo matrimonio con mujeres que se habían integrado a la congregación. El territorio de prédica asignado a la nueva congregación incluyó 170

–de norte a sur por la carretera que corre paralela a la frontera internacional con Belice- las poblaciones de Sacxán, Palmar, Ramonal, Allende y Sabidos. Con el correr del tiempo y por el aumento de conversos en la región, la jurisdicción de la congregación El Palmar se modificó, al crearse nuevas congregaciones en la zona. Por ello el territorio de prédica original se redujo a Sacxan, Palmar y Ramonal. Son los residentes de estas localidades los que participan en las reuniones de congregación del núcleo iniciado por don Luis a finales de la década de 1970. Durante un cuarto de siglo la congregación El Palmar tuvo dos centros de culto, primero se reunió en una pequeña construcción (que hoy es la casa habitación) y luego en una galera ubicada en el predio de la familia Avilés Chablé, que hizo las veces de salón del reino; varias modificaciones fueron realizadas a la construcción y el crecimiento de su membresía implicó que dejara de ser un espacio cerrado, dando paso a un lugar abierto con capacidad para 80 personas sentadas. Fotografías 1 y 2. Salón del reino de Palmar (2009)

171

Durante este periodo de consolidación de la congregación El Palmar, todos los integrantes de la familia López Coronel se asociaron a ella. La esposa y los descendientes de Don Luis, 2 hijos y 5 hijas, se bautizaron en esta comunidad de fe entre 1983 y 2001. Al revisar las edades de incorporación de la familia a esta religión se observa una interesante tendencia. La primera generación se bautizaría después de los treinta años – es la generación del cambio religioso-, la segunda lo hizo una vez cumplidos los veinte y antes de los treinta –son individuos cuyos padres les inculcaron la nueva religión a partir de la adolescencia-, mientras que en la tercera generación –compuesta por quienes nacieron en una familia de Testigos de Jehová- la edad de bautizo varía entre los diez y los dieciséis años. Este tendencia muestra con claridad cómo se forma una tradición familiar, producto de una forma de vida guiada por directrices religiosas, que primero es vivida como un proceso de cambio religioso para luego, a lo largo de dos generaciones, convertirse en el estándar de comportamiento de sus integrantes. En octubre de 2010 la congregación había crecido casi cinco veces, contando con 54 bautizados y 10 asistentes. Un año antes, en diciembre de 2009, la sucursal nacional de La torre del vigía informó a los integrantes de esta congregación que se construiría un nuevo salón en la localidad. Esta edificación, conocida como Salón del reino tipo, tiene características arquitectónicas definidas por el departamento encargado de la construcción de estos inmuebles en el ámbito nacional y su distribución interior sigue los criterios institucionales. El costo total del local ascendió a $550,000 y la obra se extendió a lo largo de siete semanas. Los arreglos entre la sucursal nacional y la congregación local incluyen un crédito aportado por la primera cercano al 94% del costo, el plazo de recuperación oscila entre los 15 y los 20 años y por un decreto de la congregación se comprometieron a pagar $2,000 mensuales a la sucursal. El terreno había sido adquirido por dos miembros de la congregación y donado para este fin. Celso Avilés y Nicolás Coronel compraron el terreno de mil doscientos cincuenta metros cuadrados (50 mts. por 25 mts.), ubicado a la orilla de la carretera que atraviesa el poblado y corre paralela a la frontera internacional. El vendedor fue Jorge Luis Chablé, joven miembro de la congregación local que iniciaba su vida en pareja y requería de recursos para su matrimonio. Al terreno se sumó una donación especial de $34,000 que la congregación hizo a la sucursal nacional de La torre del vigía para iniciar la

172

obra. Como el esquema institucional contempla autoconstrucción y autofinanciamiento, las aportaciones de la congregación local durante la obra se hicieron en efectivo, en especie y con trabajo voluntario. Don Luis, quien detentaba entonces el cargo de Anciano presidente, hizo varias donaciones de importancia para esta causa, ya que su condición de productor de caña de azúcar le permitió disponer de efectivo suficiente para este propósito. Este comportamiento fue replicado por varios integrantes del cuerpo de ancianos de la congregación local, quienes son ejidatarios y cañeros. En lo que respecta a la propiedad del terreno y el permiso de construcción, la sucursal envió un apoderado legal que realizó los trámites ante las autoridades estatales y municipales; localmente se avisó a la subdelegación municipal del inminente inicio de la construcción. La edificación del salón del reino tipo inició el 5 de marzo de 2010, para dirigir la construcción del salón del reino la sucursal nacional asignó al grupo de construcción 17, compuesto por siete varones solteros y un matrimonio. Para la construcción la sucursal adquiere y envía un alto porcentaje del material que se requiere en la construcción (varillas, herrería para la estructura, tubería, sillas, puertas, láminas de zinc, equipo de sonido, ventanería, etcétera), comprando localmente elementos tales como block, cemento, arena y cal. Además aporta los recursos para la manutención del grupo de construcción. Como el grupo de construcción es permanente y sus componentes trabajan tiempo completo durante periodos de tres meses, viajan de una población a otra con un tráiler que hace las veces de bodega de herramientas y accesorios, que son usados durante las siguientes semanas. Al llegar a la población en que se edificará el salón en turno la congregación local asegura a los integrantes del grupo de construcción condiciones básicas de vida. Se organizan varios grupos de hombres para trabajar en la obra y dos grupos de mujeres, al primero se le asigna la tarea de cocinar los tres alimentos diarios del grupo de construcción y el segundo de lavar, remedar y planchar su ropa de trabajo y de uso diario. Cada uno de estos conjuntos tiene un coordinador, al que llaman capitán de grupo.

173

Figura ¿? Croquis del Salón del reino tipo de Palmar

Asimismo, los fines de semana es común la llegada de voluntarios externos. Miembros de diversas congregaciones suman varias decenas de trabajadores, hombres y mujeres de todas las edades, que en la medida de sus posibilidades físicas y de sus compromisos ordinarios, trabajan en las diferentes labores propias de cada etapa de construcción. Son en las instancias de coordinación de los circuitos de congregaciones en donde se programa la asistencia de estos voluntarios, estableciéndose un orden progresivo de ayuda. Esta programación incluye la asistencia de trabajadores especializados y semi especializados, albañiles que saben pegar blocks, repellar las paredes, soldar estructuras metálicas, hacer instalaciones hidráulicas y eléctricas, entre otros oficios, llegan a colaborar. El domingo 28 de marzo se registró la mayor asistencia de trabajadores voluntarios durante la construcción del salón de Palmar, llegando a sumar 310 personas en el momento de mayor afluencia. Sabiendo la congregación local que ese día habría una importante participación de voluntarios, asumió espontáneamente el compromiso de dar de comer a todos, razón por la que compró un cerdo en pie, lo benefició y preparó carnitas, invitando a todos los presentes.

174

Fotografías 3, 4 y 5. Aspectos de la construcción del Salón del reino tipo

Para asegurar que no decaiga la espiritualidad de los integrantes del grupo de construcción, la congregación local hace los ajustes necesarios reprogramando las dos reuniones semanales e incluyéndolos en la prédica y en la lista de discursantes. A finales de abril de 2010 el salón del reino tipo estuvo listo; su aforo es de 111 personas sentadas y hasta 150 de pie. El local pasa a ser propiedad de La torre del vigía y la congregación se hace cargo de los gastos de mantenimiento, conservación y pago de servicios. Por estar ubicado en la zona rural, a pesar de localizarse en el trópico húmedo, el salón del reino de Palmar cuenta con ventiladores de techo para contrarrestar el calor que es característico de la zona. El 5 de julio de 2010 se dedicó el nuevo salón del reino. Esta ocasión, que hace las veces de inauguración, es un momento solemne para los testigos 175

de Jehová, pues es la primera reunión que se verifica en el nuevo local. Su programa incluye invitados especiales que hablan de las orígenes de la congregación local, recuerdan a las personas que contribuyeron significativamente a su fundación y explica el papel que el salón tiene en el culto a dios. En marzo de 2013 la congregación El palmar tiene como su territorio de prédica los poblados de Sacxán, Palmar y Ramonal. Las congregaciones más cercanas a la de Palmar se localizan en las poblaciones de Carlos A. Madrazo y Sabidos. Para atender el actual territorio de prédica de la congregación se han organizado tres grupos, cada uno es coordinado por un anciano de la congregación y se ocupa de una de las localidades referidas en el párrafo anterior, donde se realiza prédica de casa en casa y se conducen estudios bíblicos. Cada grupo tiene días asignados durante la semana para efectuar estas actividades, razón por la que antes de iniciar esta labor sus integrantes se reúnen, organizan las parejas que trabajarán juntas en la jornada, consideran un texto bíblico y hacen oración. Llama la atención, por su significado en el soporte dado a la congregación y su desarrollo, el hecho de que a lo largo de treinta años los cuatro locales que han servido como salones del reino en Palmar han estado en la misma manzana, propiedad de algún miembro de la familia Chablé. Don Luis resume su vida en la frontera México – Belice de la siguiente forma: (…) pues en verdad verdad aquí a donde vine a hacer algo, ¿no?, porque como le cuento mi historia que yo trabajaba corte de caña, trabajaba en el corte de piña, pues así anduve, jornaleando por todos lados, pero aquí es donde llegué a hacer algo. Trabajé un año en ingenio [San Rafael de Pucté], un año fui velador, pero yo pensé mejor en trabajar la tierra, no hacerme esclavo todo el tiempo, y ya vine a quedar totalmente aquí ya; empezamos a hacer grupos, empezamos a sembrar caña, primero 4 hectáreas sembré, pues al año ya vi el billete, ¿no?, y me gustó, bueno, yo creo que aquí sí voy a hacer algo, y así me fui, ampliando, sembrando más y más. Gracias a Jehová, ahora sí que no me quejo, recibo algo de dinero [del ingenio], dos veces o tres veces al año…”

176

ESTRUCTURA GENEALÓGICA LÓPEZ CORONEL

La genealogía López Coronel está conformada por 29 personas, que conforman cuatro generaciones. El proceso migratorio, que llevó a la familia a Quintana Roo en 1979, involucró a la pareja original y a sus primeros cinco hijos. La otra mitad de la segunda generación y los integrantes de la tercera y cuarta nacieron en la frontera México – Belice, en las etapas de arribo y arraigo en esa zona de México. Como puede apreciarse en la distribución por nivel generacional, esta familia extensa (de orientación) se encuentra en pleno desarrollo ya que tanto en el segundo como el tercer escalón sus integrantes han formado familias nucleares (de procreación), favoreciendo el crecimiento del conjunto de parientes. Si bien la migración formó parte de la experiencia de los miembros de más edad de la estructura (que incluye dos niveles generacionales), los más jóvenes han nacido y crecido en la frontera internacional que nos ocupa, desdibujándose así en su memoria muchas situaciones vividas en los años iniciales de la pareja original y sus primeros hijos. La falta de tierra, la inseguridad del trabajo, la falta de alimento, el desplazamiento periódico de una localidad a otra, el contacto frecuente con la parentela oaxaqueña, que son referentes obligados en la vida de don Luis López, son sólo escenas en que habitan los recuerdos familiares más lejanos, pero que no forman parte de la experiencia vital de los integrantes de menor edad. Uno de los elementos económicos que cambiaron definitivamente el perfil de esta familia extensa fue el acceso a la tierra mediante la incorporación, paulatina, de varios hombres al régimen de tenencia ejidal. En efecto A1, B1 y B9 tienen derechos agrarios en el ejido Sacxan, lo que asegura contar con una fuente de trabajo segura que reditúa ganancias desde diferentes opciones, el cultivo de la caña de azúcar, la siembra de la milpa ó la producción de verduras y hortalizas. Como ya se ha dicho en páginas anteriores, hay que notar que las precarias condiciones económicas de la historia inicial de la familia López Coronel repercutieron en la muerte de tres descendientes (B3, B5 y B6), 177

pero el cambio producido en Quintana Roo evitó que tal situación se repitiera. Como es evidente, la adscripción religiosa de sus integrantes es una constante. Resulta especialmente llamativo comprobar que el cambio religioso operó de forma significativa desde la segunda generación. Si bien A1, A2, B1 y B2 (13.79%) se criaron inicialmente como católicos para luego ser testigos de Jehová, el 41.37% del total (12 casos) sólo han pertenecido a esta última comunidad de fe. Los indicadores socioculturales incorporados a la estructura genealógica muestran que se trata de una familia extensa en la que el cambio religioso –operado en la primera generación- se transformó en una condición estable y las siguientes dos generaciones experimentaron ser Testigos de Jehová como una consecuencia de la educación familiar recibida.

CONSIDERACIONES FINALES El relato de vida presentado en este trabajo trató de llamar la atención sobre ciertos aspectos relevantes en la experiencia migratoria de un trabajador agrícola y su familia, cuyo perfil cultural refleja ciertos rasgos propios de un pueblo originario de Oaxaca. Asimismo, muestra cómo el proceso migratorio, que implicó la ruptura de las relaciones sociales previas, asociado al cambio religioso, mitigó las consecuencias negativas del desarraigo y fijó a una familia, cuyo desarrollo definitivo tuvo lugar en el lugar de destino migratorio. La experiencia relatada aquí muestra la sincronía –tal vez fortuitade varios elementos. En primer lugar, la condición general de la frontera México – Belice, zona tradicionalmente poco habitada que fue objeto de una acción colonizadora con múltiples facetas y características; no sólo la colonización dirigida, sino tal vez más importante en sus repercusiones y número, la espontánea, que llevó a miles de familias a Quintana Roo. En segundo lugar, el arribo a esta región fronteriza en el momento en que los trabajadores agrícolas podían obtener ciertos beneficios imposibles de pensar en otras zonas de México. A finales de la década de 1970 el acceso a tierras y créditos, apoyos gubernamentales para la producción y la incorporación a diversas localidades rurales en pleno desarrollo, fueron

178

opciones efectivamente al alcance de los inmigrantes llegados a la frontera internacional. Con el paso del tiempo, tales condiciones se disiparon ya que la etapa de conformación, crecimiento y consolidación de los asentamientos humanos fronterizos fue una realidad. En tercer lugar, el interés del personaje central en su búsqueda de Dios permitió montar un escenario particularmente favorable para el arraigo en la zona fronteriza. Es en ese contexto que ocurre el proceso definitivo de incorporación a una nueva comunidad de fe, al bautizarse como testigo de Jehová en Chetumal (la capital de Quintana Roo, que se sitúa en el sur del estado, en plena frontera internacional). Tal interés coincidió con la etapa de crecimiento y expansión de esta religión en Quintana Roo (Higuera, 1999), lo que propició la creación de nuevas relaciones sociales que soportaron a los inmigrantes y les dio certeza y seguridad en el lugar de destino. Finalmente, posicionarse en una condición extraordinaria, al protagonizar la creación de una congregación local de los testigos de Jehová, colocó a nuestro personaje central y a su familia entera en condiciones de prestigio social que capitalizaron a lo largo de las tres décadas más recientes. Desde luego, lo que aquí se ofrece es una de las vías posibles en el proceso de migración. Una experiencia recordada y presentada bajo la propuesta de Marc Augé, un “montaje” que debe contrastarse con la de otros trabajadores agrícolas que han experimentado avenidas diferentes en la aventura que significa la migración. NOTAS EXPLICATIVAS 1

Tejaban es el término que usa para decir tejían .

2

(1934) La modificación del artículo tercero constitucional permitió, por primera vez establecer de manera oficial, en el texto constitucional, una política de Estado para dar un carácter socialista a la educación y obligar a las escuelas privadas a seguir los programas oficiales. Con la llegada de Lázaro Cárdenas al poder se toma nuevamente la idea de erradicar el analfabetismo en el país mediante el Programa Nacional de Educación, que incluía un proyecto de alfabetización. (1935) El gobierno crea el Instituto Nacional de Educación para Trabajadores, que debía establecer escuelas secundarias, preparatorias y superiores, bibliotecas, museos y editar publicaciones. (1936) Surge la Confederación de Trabajadores de México, a la que se afiliaron gran cantidad de maestros, y que se extendió por casi todo el país, dando origen con esto al Sindicato de Trabajadores de la Enseñanza de la República Mexicana. (1937) Se pone en marcha la Campaña Nacional de Educación Popular. La propaganda de esta campaña tomó tintes de cruzada redentora nacional, y el propio Cárdenas la encabezó como presidente de la República. Al igual que en 1920 se invitó a la sociedad a participar en esta tarea, e

179

incluso se ordenó a otras dependencias y departamentos del gobierno a trabajar en ella, además de que se invitó a “organizaciones políticas, centrales obreras y grupos campesinos” a “establecer centros dealfabetización, imprimir carteles y folletos, [así como a] organizar representaciones y exhibiciones”.Se lanza también otra campaña, la de Pro-educación Popular con la que el gobierno se comprometió a “desanalfabetizar” al país en tres años, además de lograr el “mejoramiento técnico y cultural de los maestros así como la elevación del nivel higiénico de las comunidades y viviendas para obreros”.Cfr.Mirada ferroviaria (2011).“Cronología de la educación y campañas de alfabetización en México”, Revista digital, 3ra.Época, Num. 15, septiembre-diciembre, pp. 43-52. 3 4

Libro publicado en 1968 por la Watch Tower Bible and Tract Society of New York . Término con el que Don Luis se refiere al fuereño.

REFERENCIAS AUGÉ, Marc. Casablanca, Barcelona: Editorial Gedisa, 2007. BOURDIEU, Pierre. La ilusión biográfica, In Historia y fuente oral, Barcelona, Universitat de Barcelona –Ajuntament de Barcelona, Institut Municipal d´Historia, pp. 27-34, 1989. CANUL GÓNGORA, Ever Marcelino. Estudio de la identidad, a partir de las prácticas religiosas de los testigos de Jehová en la comunidad de Corozal, Belice, Chetumal, Tesis de licenciatura en antropologia social, Universidad de Quintana Roo, 74 p, 2000. CANUL ROSADO, Elisa Esther. Los Adventistas del Séptimo Día en Chetumal, Quintana Roo. Las Dorcas como actor social, Chetumal, Tesis de licenciatura en Antropología Social, UQRoo, 2005. CAREAGA VILIESID, Lorena. Lecturas básicas para la historia de Quintana Roo. La creación del territorio y su desarrollo hasta 1974, Chetumal, Fondo de fomento editorial del Gobierno del Estado de Quintana Roo, 146p, 1980 ________, Lorena y Antonio Higuera Bonfil. Quintana Roo. Historia breve, México, El Colegio de México-FCE, 2011. HIDALGO CASTELLANOS, Jorge Luis. La frontera México-Belice: desafíos y oportunidades, en Revista Mexicana de Política Exterior, México, S.R.E., julio-octubre, pp. 157-189, 2007. HIGUERA BONFIL, Antonio. Fronteras y poblamiento en Quintana Roo. El caso de la Subprefectura de Payo Obispo en 1904, In Five Centur of Mexican History – Cinco siglos de Historia de México, México, Instituto Mora – University of California Irvine, pp. 434-445, 1992. _______, Antonio. A Dios las deudas y al alcalde las jaranas. Religión y política en el Caribe mexicano. Universidad de Quintana Roo - Consejo Nacional de Ciencia y tecnología, 311p, 1999. _____, ______; Amayrani Andrade Moreno; Claudia Rubí Caamal Solísy Sandra N. Juárez Velasco. La diversidad religiosa en la frontera México – Belice.Una primera imagen, In Memoria del Tercer Congreso Internacional de Antropología desde la Frontera Sur, Chetumal, UQRoo, 2009. ______, ______. La Sociedad Watch Tower y los testigos de Jehová. Conversión religiosa y

180

organización familiar, México, Tesis doctoral en Antropología Social, ENAH, 484p., 2012. ______, ______; Félix Crisóstomo Cuxin y Verónica Llerenas Trejo. La diversidad religiosa en la Zona Libre de Corozal, Belice. Un primer acercamiento, In Memoria del 3er Congreso Internacional de Ciencias Sociales en el Sureste de México. Cancún, Universidad del Caribe, 2012. INEGI. Panorama de las religiones en México, México, 2010. NIETHAMMER, Lutz. ¿Para qué sirve la Historia Oral?, In Historia y fuente oral, Barcelona, Universitat de Barcelona –Ajuntament de Barcelona, Institut Municipal d´Historia, pp. 3-26, 1989. POOT CAMPOS, Guadalupe Georgina y Vázquez Dzul, Gabriel. La concepción de las relaciones de género desde la perspectiva de dos confesiones religiosas: El adventismo y el pentecostalismo. El caso de la iglesia adventista del Séptimo Día y la iglesia evangélica Pentecostés “Jesucristo es el camino” en Chetumal, Quintana Roo. Universidad de Quintana Roo, Tesis de Licenciatura en Antropología Social, 270 p, 2005. RIVERA FARFÁN, Carolina. Pluralidad confesional en el sureste de México, en Hernández, Alberto y Carolina Rivera (Coords.). Regiones y religiones en México. Estudios de la transformación sociorreligiosa, México, COLEF - CIESASpp. 25-61, 2009. UCÁN Yeladaqui, Ana Laura. Protestantismo y conversión religiosa en Chetumal, Quintana Roo, Universidad de Quintana Roo, Tesis de Licenciatura en Antropología Social, 132 p, 2005. VALLARTA VÉLEZ, Luz del Carmen. Los payobispenses: Identidad, población y cultura en la frontera México- Belice, Chetumal, UQRoo – CONACyT, 2001. VERD, Joan Miquel. La construcción de indicadores biográficos mediante el análisis reticular del discurso. Una aproximación al análisis narrativo-biográfico, In REDES. Revista hispana para el análisis de redes sociales, Vol.10, No.7, Junio. http://revista-redes.rediris.es, 2006. VILLALOBOS GONZÁLEZ, Martha Herminia. Una comunidad adventista en el sur de Quintana Roo, en Cardiel Coronel, Cuauhtémoc y Martha Herminia ______, Religión y sociedad en el sureste de México, México, Casa chata - CIESAS Sureste, 249 p., 1989.

ENTREVISTAS Entrevista con Celso Avilés, Palmar, Quintana Roo, 23 de enero de 2009. Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 14 de enero de 2009. Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 9 de junio de 2009. Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 16 de julio de 2009. Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 6 de agosto de 2009. Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 6 de septiembre de 2010. Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 2 de diciembre de 2010.

181

Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 27 de marzo de 2013.

SITIOS DE INTERNET COESPO. (2012) Nota demográfica enero 2013, consultado en: http://coespo.qroo.gob.mx/ portal/NotasDemograficas/NotaDemograficaEnero2013.pdf INEGI. (2013). Referencias geográficas y extensión territorial de México, consultado en: http:/ / w w w. i n e g i . o r g . m x / i n e g i / s p c / d o c / i n t e r n e t / 1 - G e o g r a f i a D e M e x i c o / man_refgeog_extterr_vs_enero_30_2088.pdf http://www.losmejoresdestinos.com/mapa_mexico.gif

182

FRONTEIRAS MÚLTIPLAS: NARRATIVAS SOBRE OS SERTÕES DO PARANÁ

Valdir Gregory1

INTRODUÇÃO

Este capítulo apresenta algumas reflexões a partir de narrativas sobre os sertões do Paraná. É um caminhar atento por entre registros e relatos de viajantes, de empreendedores, de administradores e de agentes do estado feitos no município de Foz do Iguaçu, caracterizado como sertões do Paraná, durante a primeira metade do século XX. Busca relacionar dados e informações com a gênese, circulação e significações de narrativas. Aborda questões que emergem de registros no âmbito de questões teóricas e históricas no que tange às fronteiras. O texto contempla discussões em torno da ideia de múltiplas fronteiras na fronteira. Ou seja, predomina a concepção de que fronteiras são construídas pelas e nas narrativas e por leitores das mesmas. Inicia tratando dos Sertões do Paraná. Segue com reflexões sobre Narrativas sobre os sertões. Depois traz descrições e interpretações a partir de relatórios de órgãos de segurança em Olhares, registros e segredos nas fronteiras, Pelas lentes da Delegacia de Ordem Política e Social – DOPS, Segredos da fronteira para a Comissão de Estudos da Fronteira. Termina com algumas Considerações.

183

OS SERTÕES DO PARANÁ Parte da historiografia denomina os sertões do Paraná como o oeste deste estado antes da “colonização moderna” dos anos de 1940 e 1950, ocorrida contexto da Marcha para o Oeste dos meados do século XX. O oeste do Paraná é constituído por uma área do estado do Paraná que, grosso modo, abrange o território que fazia parte do município de Foz do Iguaçu, emancipado em 1914. Deste município foram sendo desmembrados os territórios de municípios que foram criados a partir de 1951, como Cascavel, Toledo, Guaíra e Marechal Cândido Rondon e de outros municípios, abrangendo, atualmente, as áreas de 51 municípios. A denominação oeste do Paraná começou a ser usada na década de 1930, no contexto da política da Marcha para o Oeste durante o período do governo Getúlio Vargas, depois adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Portanto, é uma região historicamente construída e, também, concebida para esta pesquisa, enquanto delimitação espacial. Localiza-se numa área fronteiriça internacional, limitando-se com o Paraguai e a Argentina, e numa área fronteiriça nacional, limitandose com o Estado do Mato Grosso do Sul e outras regiões do Estado do Paraná. Na primeira metade do século XX, esta região fazia parte, pois, do que se denominava de sertões do Paraná e era disputada por diversos interesses. Havia disputas por domínios territoriais entre as nações limítrofes desta região. Era um cenário onde atuavam empreendedores e empresas que pretendiam explorar riquezas nativas para destiná-las para os mercados platinos e mercados a ele vinculados. Era um ambiente, no qual as fronteiras entre populações nativas, mestiças e migrantes eram disputadas. Estas discussões estão sendo feitas para um estudo sobre fronteiras e territórios na primeira metade do século XX para evidenciar elementos discursivos referentes à construção de diferenças. Refere-se a uma época em que predominavam explorações denominadas de obrages por parte da historiografia2 da região. Estas, no século XIX e nos primeiros decênios do século XX, eram fazendas com características próprias, existentes no Paraguai, Argentina e Brasil. Tinham, normalmente, acesso aos rios, onde

184

era costume criar infraestrutura de transporte e de portos para os quais eram levadas as riquezas extrativas da erva mate, da madeira e de outras riquezas nativas a fim de serem transportadas para os mercados platinos e além destes. NARRATIVAS SOBRE OS SERTÕES: REFLEXÕES Tenho estudado algumas narrativas e relatos de viajantes e relatos de autoridades ou empreendedores/administradores da primeira metade do século XX3. Para este texto, apresento, sinteticamente, algumas reflexões relacionadas a estas narrativas. Um exemplo destas fontes é uma narrativa de Wilson Sidwel4, engenheiro norte americano, que foi administrador da Companhia Mate Larangeira em Guaíra de 1916 a 1930. Este engenheiro foi responsável pelos projetos e pelas construções do Porto Mendes, localizado no rio Paraná abaixo das Sete Quedas5, da ferrovia deste porto a Guaíra e por parte de construções destas duas localidades. Outro é Correa Filho6 que descreveu a rede de transportes com os locais de origem e de destino da produção, mostrando que Guaíra se tornara o porto receptor da erva mate, produzida pela companhia, para, a partir daí, ser destinada aos mercados platinos. Também, Coelho Junior7, em livro publicado em 1946, relata, em estilo literário, suas andanças pelas selvas e rios do Paraná. Este autor refere-se ao caboclo caluniado pelo “gênero literário”, que faria dele “uma caricatura onde lhe deformamos as linhas exagerando-lhes os defeitos, sem uma única pincelada de seus traços nobres”. Ainda Artur Martins Franco8, engenheiro que exercia a função de Comissário de Terras do estado do Paraná em vários municípios, foi incumbido de participar da execução de serviços de medição e demarcação de terras no oeste do Paraná. Ele teria realizado uma excursão em 1904 e outra em 1913. Fez relatos dessas viagens de trabalho, dando ênfase aos registros do cotidiano. Escreveu esses relatos em 1949, ou seja, 36 anos após a realização da última viagem. Usou fotografias para rememorar. A publicação ocorreu em 1973. Nestas e em outras fontes que foram trabalhadas, há referências com relação a características diversas sobre as populações locais, sobre a ausência de civilização, sobre a natureza e sobre as potencialidades 185

econômicas da região. São adjetivações e conferência de atributos, principalmente no que se refere às pessoas, à exuberância da vegetação, à abundância e à força das águas, dentre outras. Transparece, na documentação mencionada, uma necessidade de serem atribuídas características aos humanos: uma nacionalidade, uma origem étnica, um nível cultural, uma capacidade produtiva, uma religiosidade, condições psico-sociais, dentre outros atributos. Os moradores, por diversas vezes, são denominados de incivilizados, bárbaros, selvagens, atrasados. O espaço é descrito como inóspito, sertão e selvagem. Ocorre recorrentemente o uso de termos dicotômicos, ou pares opostos. Gilmar Arruda9, em texto sobre o oeste paulista, norte do Paraná e Mato Grosso, chama a atenção para tais dicotomias, como “moderno/arcaico, civilizado/ incivilizado, progresso/atraso, cidades/sertões”. Estas caracterizações foram detectadas nas narrativas mencionadas. Percebe-se, na leitura destas fontes, que havia uma necessidade de atribuir, por exemplo, características às pessoas. Parece que se confirma o dizer de Benedict Anderson10 de que “todo mundo deve e pode ‘ter’, e ‘terá’ uma nacionalidade, tanto quanto terá um sexo”. As línguas que sabiam falar, os modos de se vestirem, a alimentação, a dedicação ou não ao trabalho, as habilidades de lidarem com lugares inóspitos dos sertões, enfim, muito do cotidiano da fronteira foi registrado. A construção da nacionalidade tinha implicações “étnico-raciais”. Estes dados proporcionam subsídios para debater fronteiras e territórios nos três países limítrofes: Brasil, Argentina e Paraguai. Foram analisadas, também, construções de paisagens em contextos de fronteiras e territórios nos sertões do Paraná na primeira metade do século XX11. Mostrados conteúdos de narrativas sobre os rios e a função das águas. Discutida a construção de representações sobre a exuberância e as potencialidades da natureza. Apontamentos sobre planos de navegação e de construções de ferrovias foram pinçados dos textos. Foram evidenciados e discutidos registros sobre as possibilidades do uso das águas para navegação e produção de energia elétrica. Evidenciada a construção de elementos justificadores para discursos da Marcha para o Oeste, que teve na região oeste do Paraná, dentre outras regiões, uma forte ação durante o governo Vargas.

186

OLHARES, REGISTROS FRONTEIRAS

E

SEGREDOS

NAS

Em meio a estas pesquisas relacionadas a um projeto que discutia estas questões de fronteiras e territórios, participei de evento realizado na Uniamérica, em Foz do Iguaçu, em outubro de 2011. Fui convidado a coordenar os trabalhos numa secção de comunicações na qual eu iria apresentar resultados de minhas pesquisas. Parte dos trabalhos inscritos e apresentados tinha relação direta com as temáticas dos meus estudos. Aconteceram boas discussões sobre temas ligados a fronteiras e estudos agrários. Anderson Weizennmann, aluno do curso de história da Uniamérica, apresentou trabalho sobre trabalhadores de portos do rio Paraná na fronteira entre Brasil e Paraguai, utilizou fontes de órgãos de segurança estaduais e nacionais, disponibilizou cópias de documentos que chamaram a minha atenção; eram cópias impressas de documentos digitalizados do Arquivo Público do Estado do Paraná. Depois da secção das apresentações e debates, trocamos ideias e documentos, e bem mais: iniciamos um processo e comprometimento de intercâmbio de fontes e de textos; disponibilizei textos meus e recebi dois CDs contendo fontes digitalizadas da pasta Foz do Iguaçu do Arquivo Público do Estado do Paraná; material amplo e rico para estudos sobre a tríplice fronteira - Brasil, Argentina e Paraguai -. Tinha tudo a ver com meus estudos! Iniciei a exploração de parte do referido material. Fui percebendo que se trata de material para pesquisas diversas e para tempo prolongado. São documentos de órgãos de segurança sob diversas denominações: relatórios, levantamentos informativos, “Consulta s/reg/ estrangeiros”, ofícios, editais, correspondências, declarações, telegramas, ordens, cópias/reproduções de notícias etc. Este conjunto de documentos mencionados aqui recebe datas como sendo produzido nos anos de 1941, 1942 e 1943. Na sequência, trago alguns resultados de pesquisa em torno desse material encontrado, na perspectiva de apontar como agentes do estado brasileiro produziam informações destinadas a subsidiar vigilâncias, políticas e ações de Estado. São olhares, registros e segredos da segurança. 187

As reflexões e apontamentos apresentados no início deste texto permeiam as lentes de funcionários do Estado. PELAS LENTES DA DELEGACIA DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL - DOPS Deparei-me com alguns documentos de órgãos de segurança. Um deles foi produzido pela DELEGACIA DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL: RELATORIO – COPIA. É um relatório sobre localidades da fronteira. É cópia de um documento datilografado de quatro páginas paginadas, espaço simples, em papel timbrado com o “brasão”, junto à denominação do Estado do Paraná, da “Tip. Gonçalves”. É identificado, no canto à direita: “A.G. 12-A”. Sobre o texto, há um carimbo “COPIA”. Estes dados e características aparecem em todas as páginas. É encaminhado ao “Ilmo. Sr. Dr. Delegado Regional de Polícia”. Ainda no canto acima e à direita vem escrito, manualmente, “arq. Pasta Foz do Iguaçu”, seguido de assinatura. O documento inicia informando que, “Cumprindo as determinações de V.S., parti desta localidade dia 27 do mês proximo findo, margendo toda costa do Rio Paraná, regressando á 21 do fluente sem novidade” 12. É finalizado com o registro de que, no dia 17, o autor teria estado de regresso a Guaíra; e, ainda, “Dia 21: Nesta localidade sem novidade. Qualter do Destacamento em Fóz do Iguaçú, 22 de dezembro de 1942. Respeitosamente, (a) MANOEL CURSINO DIAS PAREDES – 3º Sargento”. “Nesta localidade” quer dizer Foz do Iguaçu. Ou seja, o 3º Sargento Manoel Cursino Dias Paredes, encaminha texto com registros que fez durante atividades pelo território fronteiriço do município de Foz do Iguaçu ao delegado Gláucio Guiss. Nele constam observações e dados deste agente de segurança e da ordem feitas a partir de observações in loco pelos portos da costa do rio Paraná e suas adjacências. As minhas observações dão conta de que ele estava prestando contas de tarefas que lhe foram atribuidas. Percebo que nas estruturas de estado dos anos 1940 autoridades disseminaram preocupações e atitudes para garantir uma suposta segurança nacional. O “3º Sargento”, o “delegado” e outros fazem parte de uma “rede de estado” com responsabilidades institucionais sob

188

o abrigo de um governo central e estado fortalecidos.13 Há, no mesmo parágrafo, um “DESPACHO: Extraia-se cópia, e encaminhe-se a Secretaria do Interior, Justiça e Segurança Pública. (a) GLAUCIO GUISS – DELEGADO”. Na sequência, informa-se que está de acordo com o original. “O referido é verdade e dou fé. Foz do Iguaçú, 23-12-42. (a) Aracy Albuquerque Neira. Escrivão.” E, finalmente e em destaque: “ CONFERE COM O ORIGINAL. Curitiba Em 13 de abril de 1943.” Segue assinado por Oriente Franco Godoy (nome provável, pois não é datilografado), “agente aux. Da Sec. De Controle.” Busco alguns dados biográficos de autoridades de segurança mencionados no documento. Manoel Cursino Dias Paredes foi vereador em Curitiba, membro de loja maçônica paranaense. Também, o 63º Comandante Geral da Polícia Militar do Paraná de 08 de Novembro de 1960 a 23 de Janeiro de 1961.14 Gláucio Guiss foi Delegado da 9ª Região Policial em Foz de Iguaçu de 24 de setembro de 1942 a 20 de julho de 1943, quando foi transferido para a Delegacia da 12ª Região Policial em Londrina.15 Aracy Albuquerque Neira foi escrivão e teria participado da repressão de colônias alemãs de Foz do Iguaçu e de denúncias contra a Congregação do Verbo Divino16. Para mais informações sobre os agentes do estado nominados na fonte, há textos que abordam aspectos da fronteira deste período, destacando-se as críticas de Aloisio Palmar.17 Eis a “embalagem” do documento. Considero pertinente trazer estas peculiaridades para que o leitor, que não tem a fonte em mãos, possa ampliar percepções sobre a atuação de agentes de estado nas fronteiras, nos sertões, nos rios, nos portos, nas localidades num verão de 1941/42. Enfatizo, além dos registros, os trâmites realizados. Percebe-se que o relatório recebeu despachos e encaminhamentos de cópias. Hoje, cópias digitalizadas estão em arquivos. Documentos receberam tratamento arquivístico; foram organizados e são geridos por uma instituição (Arquivo Público do Estado do Paraná), cujos objetivos são diversos dos agentes do Estado brasileiro e das instituições envolvidas na gênese documental. Uma das finalidades da gestão de tais documentos, realizada na atualidade, é que investigadores, estudiosos, curiosos possam consultá-los e pesquisá-los. 189

As observações que faço são percepções minhas, são leituras provocadas por curiosidades e interesses meus. Outros terão outros olhares, conclusões e/ou reflexões diversas. Voltando para os anos quarenta do século XX, relembro que o Brasil estava sob o governo Getúlio Vargas. Os nacionalismos estavam exacerbados no mundo e nos países desta tríplice fronteira. Os governos se moviam sob os ímãs dos Aliados e do Eixo. A política da Marcha para o Oeste estava em discursos e em práticas. Observo que a “máquina” do Estado brasileiro estava contaminada por ideias protecionistas e voltadas para a tomada e para o controle de espaços de fronteira. Os agentes, os funcionários de Estado atribuíam a si e a eles eram atribuídos papéis e funções voltadas à garantia das fronteiras nacionais. Vejo nas entrelinhas do documento que trabalho, agora, o patriotismo fronteiriço dos que gestaram e encaminharam os registros feitos nas tarefas atribuídas pelos superiores e pela ideologia dominante. É isso que fui percebendo no manuseio, nas leituras e nas informações do relatório, documento este feito por várias mãos e mentes; os matizes e os enfoques são representações de paisagens datadas e localizadas. Estado Novo, fronteiras do Paraná com Paraguai e Argentina, empreendimentos extrativistas da madeira e da erva mate, vínculos econômicos, de poder e de cultura platinos. Homens e mulheres sendo descritos, adjetivados, imaginados, recebendo atributos. São carimbados; nomes, sobrenomes, nacionalidades, idades foram sendo registrados a fim de que as fronteiras fossem caracterizadas em personagens, em estruturas econômicas (portos, estradas, equipamentos...) e de vivências (moradias, distribuição espacial...). A Tríplice Fronteira foi vasculhada. As concepções de fronteiras constantes no documento são mais as concepções dos que registraram do que de quem foi descrito. É a visão de agentes do estado sobre uma paisagem representada18. Foi a construção de uma paisagem ideológica. Enfim, são fronteiras múltiplas mencionadas no título deste texto. O funcionário de estado relata que passou por vários portos a partir do dia 27. Fez seus registros.

190

“Porto Embalse, morador Snr. Cancio Aquino (Paraguaio), porto Bella Vista, morador Snr. Ewaldo Keneg (Argentino) que faz a travessia de passageiros em canôa. Chacara Carvalho, do Snr. Antonio Carvalho (brasileiro). Porto Leonor que fica em frente o porto Curupaiti no Paraguai, morador Snr. Pedro Jeca Kuei (Argentino) com cinco filhos brasileiros. Porto Carola Cuê, morador Amancio Arçamendia (paraguaio), tem uma pequena plantação de milho, arroz, feijão, fumo e etc.; Tem no porto duas canôas, uma de propriedade de Antonio Carvalho e outra de Estefano Ramires. Porto Temoteo Uzuna, morador Snr. Temoteo Uzuna, Brasileiro, tem plantações de milho, feijão, arroz e criação de gado, cabritos, porcos e galinhas. A estrada até este porto é carroçável e boa, podendo entrar caminhões.”

No dia seguinte, continua relatando suas passagens e observações. São paisagens com estabelecimentos, atividades de criação e plantação. Com moradores. “A casa do Snr. Rafael Uzuna, Brasileiro, com grandes plantações de milho, arroz, feijão, mandioca e criação de carneiros e porcos. Porto Ipiranga está abandonado, existindo somente um morador o Snr. Rosario Benitez (paraguaio). Porto Ocuy, morador o Snr. Rosario Benitez (paraguaio), com 67 anos de idade, residente neste porto desde 1.903, é o maior plantador desta zona, com criação de porcos. Neste porto fica o campo de emergência Ocuy, com 550 x 80 metros; quem toma conta da conservação desse campo de pouso é o Snr. Julio Dominhack.”

Os relatos referentes aos dois primeiros dias, 27 e 28 de novembro de 1942, dão a perceber que havia portos nos trajetos percorridos; existiam plantios e criações. Plantações eram cultivadas e animais eram criados. Os registros mostram uma fronteira problemática, há estrada carroçável, campo de emergência. Os moradores receberam nomes, sobrenomes, nacionalidades, idades. Alguns tinham filhos. As mulheres não participam do cenário construído; a fronteira é masculinizada. As lentes focam e desfocam. Atentar para os sobrenomes ajuda a concluir que moravam pessoas de diversas origens étnico-nacionais. Percebo, pelos sobrenomes, 191

que predominavam descendentes de europeus. Havia brasileiros, argentinos, paraguaios. O documento contém demarcação de diferenças, distingue dentre as três nacionalidades contíguas à Tríplice Fronteira; um morador brasileiro não seria um morador argentino, nem paraguaio. A nação estava confusamente povoada na fronteira. Agora, já no dia 29, realidades sobre outras localidades são informadas. “Porto 7 de Setembro abandonado, antigo trabalhador Eugenio Caferata, na exportação de madeiras. Porto Ytacora, onde o snr. Jeronimo Vargas está tirando madeira. O porto está abandonado (sem morador) tendo na planchada cem torras de madeira. Porto Moleda, mora o Snr. Patricio Moleda, brasileiro, está nesse porto desde 1.910 (Colono Militar) é grande conhecedor desta zona.”

O colono militar estaria neste local desde 1910, seria conhecedor da região. Antes, já tinha sido informado que o paraguaio Rosário Benitez de 67 anos viveria no Porto Ocoí, desde 1903 e era grande plantador. Ser paraguaio e grande plantador eram dados a serem considerados. Permitome a acrescentar que creio que as vivências entre essas pessoas configuravam relações de troca de mercadorias, de conversas em que as gramáticas com suas concordâncias e suas regras oficializadas passavam a largo. Fronteiras, acredito, havia, mas, o agente do Estado imprime novas e mais fronteiras, muitas delas nem vislumbradas pelos moradores. Torna-as múltiplas; outras, certamente, existiam, todavia não foram percebidas e registradas. Passada mais uma noite, é o último dia de novembro. O documento começa a trazer dados sobre empreendimentos de maior envergadura, o primeiro porto mencionado estaria em decadência. “Dia 30: Porto Sol de Maio antiga sede da Cia. Esperia, hoje paralizado, em decadência, tem como administrador o Sr. Agenor Silveira, Inspetor de Quarteirão desta D.R., que possue criação de porcos e tem grandes plantações de arroz, milho, feijão e etc., Porto Sol de Maio dará ao município 1.000 sacas de arroz para o ano próximo. Porto Dionisio Chieli, a maior chácara da zona Rio

192

Paraná, com plantações de café, milho, tuna, feijão e cana de assucar.”

Inicia-se o último mês do ano de 1942: governo Vargas, a Grande Guerra se alastrando e a fronteira sendo descrita. “Dia 1º de Dezembro: Sede da Cia. Bartes, Cooperativa “Manoel Ribas”, Cia. Esperia (ramificação), e boa casa comercial pertencente a Valentim Agostini. Cia Bartes, possue nessa localidade grandes paiois cobertos de zinco e também grandes quantidades de ferros velhos. Tem como administrador digo, administrador atualmente o Sr. Pedro Alhana, pois o Sr. Ladialau Viver transferiu sua residência para o Paraguay. Cia. Esperia também possue grande numero de casas abandonadas. Administra também essas propriedades o Sr. Agenor Silveira. Cooperaiva “Manoel Ribas”, não vai adiante, devido a falta de capital, as dividas que contraiu com os colonos, e também devido a concorrência nas vendas com o Sr. Valentim Agostini estabelecido com o negócio. Esta colônia, tem mais ou menos 60 famílias que se dedicam a plantação de arroz, cana de assucar, feijão, milho e criação de porcos, para a exportação da banha. Para o ano entrante esta colônia fornecerá 3.000 sacas de arroz. De Foz do Iguaçu a Santa Helena, a estrada é carroçável podendo passar caminhões, somente durante as secas, pois existem vários rios como Bela Vista, Guaviroba, Passo Cuê e Ocuy, que quando cheios não permitem nem a passagem a pé. As estradas estão necessitando de limpezas, e transito de carroça entre Sol de Maio e Santa Helena, está interrompido devido ter caído a ponte do Rio São Vicente Chico.”

Em 1º de dezembro, foram verificadas instalações e atividades da “Sede da Cia. Bartes, Cooperativa “Manoel Ribas”, Cia. Esperia”. Vislumbra-se que essas companhias e cooperativa teriam potencial para ajudar no abastecimento de Foz do Iguaçu. As condições de transporte deveriam ser melhoradas. A estrada, se melhorada, facilitaria a passagem de caminhões e carroças. As 60 famílias, que ali viviam, repito, “se dedicam a plantação de arroz, cana de assucar, feijão, milho e criação de porcos, para a exportação da banha. Para o ano entrante esta colônia 193

fornecerá 3.000 sacas de arroz”. A Cia. Esperia, na outra localidade, produziria 1.000 sacas de arroz. É interessante atentar para o fato de que a quantificação da produção é em números arredondados em milhares. As famílias são dezenas cheias. Em linguagem coloquial, dir-se-ia que é um “chutômetro”. Isso reforça o caráter e os objetivos subjacentes ao documento, que não foi feito para fins estatísticos ou de registro de dados mais seguros. Vários nomes de personagens, como de estabelecimentos e empreendimentos aparecem com grafias diferentes no próprio documento e, principalmente, em outras fontes. Considero pertinente levar isso em consideração. Um exemplo: Domingos Barthe é argentino, com atividades extrativistas, de navegação e hoteleira em Posadas e outras localidades da Argentina. Teria conquistado poder político na Província de Misiones. Obteve concessões de terras no Paraná.19 Veja-se as grafias deste sobrenome. A Cooperativa “Manoel Ribas” estaria em decadência. Cabe lembrar que Manoel Ribas era o interventor no estado do Paraná de 1932 a 1945. Então, nesta época da decadência da cooperativa que levava o seu nome ele deveria ter seus esforços voltados à administração do estado do Paraná e para atividades políticas. O autor do relatório teria proporcionado um dia de “descanço aos animais”. No dia 3 teria partido para Cascavel pela estrada que ligaria Santa Helena a Cascavel, onde existiria somente “uma picada para cavaleiro ou carroça, com mui dificuldade, em virtude das pontes estarem caídas, como a de São Francisco Falso, com 50 metros de comprimento e 4 de altura (aproximadamente), passando a serra de Boa Vista e Diamante, onde existe um depósito da Cia. Barte”. No dia seguinte, teria ido até Barro-Preto, local de um depósito grande da Cia. Barthe em abandono. E, no dia 5, “rumo a estrada de Guarapuava, picada denominada Benjamim, saí no logar denominado Boa Vista, daí até Cascavel passando por 2 de Maio, ‘Tate Jupi’, Botú e Deposito Central da Cia. Barter”. Em Cascavel, Manoel Cursino Dias Paredes, autor do documento, teria sido informado que “nenhuma irregularidade ocorre nesse distrito, tendo notado que o povo dessa localidade, está conciente do momento atual e a discreta vigilância policial, está sendo mantida de maneira a elogiar”.

194

O “3º sargento teria notado que o povo estaria “conciente do momento atual” e que haveria “discreta vigilância policial”. A consciência e a vigilância em Cascavel são observações registradas durante uma fase aguda da Segunda Grande Guerra e em pleno Estado Novo no Brasil. Estas situações voltarão mais adiante no texto. Depois de dois dias de descanso para os animais, teria rumado para “porto Mendes acompanhando a linha telefônica, passando pelo logar denominado Lepey antigo trabalhado da Cia. Nunes na extração de erva-mate. Morador deste logar é o brasileiro Jorge Maceno, guardalinha.” Mais adiante, em “Barro Preto ou Cruzinha, reside o Sr. Cosme Aquino (Argentino) plantador de milho, fumo, feijão, mandioca e criador de cabritos e porcos.” No dia 10, foi a “Marrecos, onde mora o Sr. José Alves de Carvalho, guarda linha”. Informo que, pelo desenrolar da narrativa, podese perceber que o funcionário estava retornando às proximidades do rio Paraná e dos portos, locais nos quais os empreendimentos de maior envergadura possuíam infraestruturas mais desenvolvidas. A seguir vão surgindo alguns exemplos disso. No dia 11, foi a Rio Branco, onde “a Cia. De Madeira Alto Paraná, atualmente trabalhando na extração de olios cidreira, extraído do capim cedroso. Administrador é o Sr. Henrique Hermer, casado com senhora Suissa, tem 1 filho brasileiro, dedica-se a caça e possue um aparelho radio-receptor.” Seguem dias e localidades registradas. “Porto São Francisco, morador Sr. Francisco Valejo (Paraguaio), casado com mulher brasileira e tem 6 filhos brasileiro. O mesmo é operario. Porto Altasa (Alica), antigo porto de extração e exportação de erva mate, mora aí a viúva do caudilho Argentino Julio Thomas Alica. Porto Francisco Mendes Gonçalves, Cia. Mate Laranjeira. A estrada de rodagem de Cascavel a Mendes Gonçalves está abandonada e com quase todas as pontes caídas, não permitindo mais o transito de carroças.”

Dia 13 teria chegado a Guaíra e descansado até o dia 16. Guaíra era uma subssede da Companhia Mate Laranjeira, contemplada com uma considerável infraestrutura portuária e logística. 195

“Dia 16: Rumo ao Piquiri a cavalo. Porto Thomas Larangeira, chácara do Sr. Thomas Zeballos (Argentino). Chacara do Sr. Gregorio Benitez (Paraguaio). Chacara do Sr. Teleforo Gonçalves (Paraguaio). Chacara do Dr. João Batista, médico de Guaíra. Barra do Piquiri, chácara do Sr. Martins Mertuce (Paraguaio). Daí de canôa, Rio Piquiri acima passando a chacara do professor Miguel Camargo, até a chacara do Sr. João Palma (Italiano). Está tomando conta desta ultima chcara, o Sr. Prudencio Miranda. Todos estes Snrs. Tem grandes plantações de milho, feijão, mandioca, etc. que vendem a Cia. Mate Laranjeira, sendo a chácara melhor organizada a do Sr. Thomas Zeballos, chefe do armazém de Guaira.”

Continuam os argentinos, paraguaios e brasileiros presentes em chácaras e em atividades na fronteira. O médico, o professor e um que toma conta de uma chácara são nominados, sem lhes ser atribuída uma nacionalidade. Vê-se que, no dia 11, aparece, no texto, uma “senhora suissa” e, depois, uma “mulher brasileira”. São as únicas presenças femininas no documento, mesmo que os homens tivessem filhos. Concluo que a atenção e o esforço dos registros não estavam voltados às mulheres presentes nesta fronteira. No dia 17, estaria de regresso a Guaíra e dia 21 em Foz do Iguaçu “Nesta localidade sem novidade”. Perdura uma curiosidade a respeito de detalhes do percurso feito pelo narrador. Não há informações sobre acompanhantes ou não. Nem sobre a(s) forma(s) de locomoção. Sabe-se que houve dias intercalados de descanso para os animais. E só! Além do mais, há uma ausência total de guaranis e de indígenas de outras denominações. Outros documentos, como relatos de viajantes, que descrevem os sertões do oeste do Paraná em períodos próximos, trazem aos cenários números significativos de guaranis “mansos e bravos”.20 Relaciono este aspecto a debates atuais sobre a demarcação de terras indígenas nos quais prevalece a ideia de que quaisquer reivindicações e lutas de povos indígenas são criações ideológicas de órgãos e organismos ligados a questões indígenas, como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e Organismos Não Governamentais (ONGs). Outra observação que cabe sobre esta questão é que os guaranis não

196

tinham importância na geopolítica das fronteiras no período do Estado Novo. As atenções estavam voltadas às populações que “carregavam” nacionalidades envolvidas nos embates da Segunda Grande Guerra. Outro aspecto a ser considerado é que atribuir aos guaranis alguma nacionalidade não traria reforços aos discursos nacionalistas. Os guaranis representavam populações transfronteirças21. A ausência dos guaranis aponta, pois, para um “vazio indígena” à semelhança do “vazio demográfico” apontado por parte da historiografia referente à dinâmica populacional da primeira metade do século XX no Paraná.22 Enfim, os conteúdos deste documento dependem de horizontes institucionais e da ideologia nacionalista da época. Assim, as representações presentes neste escrito pendem mais para o “genitor” do documento, eivado de (pré)conceitos, do que para a realidade que, aparentemente, estaria representada. Aqui as concepções a respeito de memórias23 contribuem para a análise. Os horizontes da criação desta narrativa, bem como as destinações e os circuitos/circulações dos dados pretendidos, foram condicionando escolhas, opções, ênfases, esquecimentos, descartes. SEGREDOS DA FRONTEIRA PARA A COMISSÃO DE ESTUDOS DA FRONTEIRA Passo, agora para outro documento. É o encaminhamento “Ao Exmo. Sr. Presidente da Comissão de Estudos da Faixa de Fronteiras do Conselho de Defesa Nacional, Palácio do Catete”, Rio de Janeiro, de “cópia do levantamento informativo da costa da Região do Iguaçú e da República do Paraguai, nas margens do Rio Paraná”. A primeira folha tem informações, timbres, carimbo e outros dados semelhantes ao documento anterior (DOPS: RELATÓRIO). “G/283 14 dezembro 2” (1942). “SECRETO”. “ERB. Prot. Nº G/865-42.” Do “Cap. Fernando Flores – Secretário”. Não vem assinado. Teria sido feito pela Delegacia Regional de Polícia de Foz do Iguaçu, tendo “a colaboração do Comando da Companhia da Fronteira”. _________________________ (Cap. Fernando Flores) - Secretário –

197

Tem duas partes: uma referente ao lado do Brasil e a outra, ao lado do Paraguai. A segunda folha contém o título: Levantamento informativo completo de todas as localidades da costa do Rio Paraná, pertencentes a 9ª região policial, com sede em Foz do Iguaçú – Brasil.-, seguido de carimbo: DELEGACIA REGIONAL DE POLÍCIA DA FOZ DO IGUASSÚ ESTADO DO PARANA

Algumas palavras do documento só são legíveis com uso de lupa, outras, poucas, não consegui decifrar nem com este equipamento de ampliação. Permanecem secretas! É um texto denso que traz mais descrições do que as que constam no relatório discutido nas páginas anteriores. Várias informações coincidem. Fiz leituras, busquei informações, resumi dados e organizei um quadro do “Levantamento”, para facilitar a visualização e agilizar percepções e comparações. No “Levantamento informativo completo de todas as localidades da costa do Rio Paraná, pertencentes a 9ª região policial, com sede em Foz do Iguaçú – Brasil”, foram “levantadas” 36 localidades. Esta primeira parte referente ao Brasil contém oito folhas datilografadas, quase todas em espaço simples, referindo-se ao território brasileiro. A leitura destes levantamentos ajuda a perceber que por localidades entendem-se áreas ou locais em que havia moradores ou vestígios de moradores recentes merecedores de registros. As toponímias (nomes de lugares) mencionadas são 36 (trinta e seis) e referem-se a 6 (seis) “chácaras”, 2 (duas) “planchadas”, 1 (uma) “quinta”, 1 (uma) “ilha” e 26 (vinte e seis) “portos”. Não há clareza (ou não havia a preocupação!?) quanto aos aspectos legais de tais domínios. Os termos “residência”, “reside(m)”, e “mora(m)” são usados 16 (dezesseis vezes). O de “propriedade” aparece 6 (seis vezes). Também os termos “administra(do)”, “concessão”, “pertencente”, “depósito” constam uma ou duas vezes. Este documento e o trabalhado anteriormente

198

prescindem de informações e precisões quanto aos aspectos jurídicos de acesso à terra nestas fronteiras. Vários estudos acadêmicos apontam para situações confusas e conflitivas no que tange ao uso, ao mercado e ao domínio sobre as terras nas fronteiras a oeste do Estado do Paraná. Alguns processos judiciais chegaram e/ou estão, ainda, por chegar ao Supremo Tribunal Federal para decisão.24 As atenções estão voltadas para os nomes de pessoas seguidos de alguns atributos, para as interferências sobre as paisagens no que se refere à infraestrutura e a cultivos. Na tabela a seguir, organizada por este autor, são atribuidas as categorias moradores/proprietários para proporcionar uma visão geral de uma parte do relatório. Há conteúdos bem mais amplos no que se refere à produção, atividades desenvolvidas, condições de instalações e outros aspectos que não foram incorporados a esta tabela.

199

200

O Porto Guaíra é descrito com destaque em duas páginas, constando tabelas e informações mais detalhadas que as outras localidades. Seria o mais importante porto do “Rio Paraná (alto e médio)” e “Sede da Cia. Mate Laranjeira S.A”, ligando a região “aos Estados de São Paulo e Mato Grosso por meios fluviais e a Porto Mendes por estrada de ferro”. O destaque ainda é voltado a sua infraestrutura e às atividades desenvolvidas nesta Companhia. Guaíra teria “todos os recursos de uma boa cidade e apresenta 201

melhor aspecto que Iguaçu”. Existiria o prédio da Administração, além de: “hotel, farmácia, armazém, depósito de erva, estação de estrada de ferro, hospital, igreja, oficinas, usina, casas de material para os funcionários graduados, grupo escolar, casas de madeira”. Esta infraestrutura e as suas respectivas instalações serviriam “para todas as repartições estaduais e para os funcionários e empregados da Cia.”25. A partir de uma verificação panorâmica desta fonte, fui pinçando algumas ênfases constantes no documento. Aparecem nomes completos (nomes e sobrenomes), vários nomes são incompletos, às vezes os nomes e outras vezes os sobrenomes. É possível que, por ocasião da busca de dados e dos levantamentos, os informantes soubessem e/ou mencionassem alguns nomes completos e outros incompletos. Algumas referências a autoridades, como “vicecônsul paraguaio nesta cidade”, “primeiro suplente desta D.R.”, são enfatizadas. 14 (catorze) nomes são precedidos por “Sr.”, mas a maioria não recebe esta deferência. Verifiquei que a maioria dos nomes é seguida de referências no que tange às suas nacionalidades: (brasileiro), (paraguaio), (argentino) e outros; brasileiro aparece 12 (doze) vezes, paraguaio 15 (quinze) vezes, argentino 7 (sete) vezes. Esporadicamente são encontrados espanhóis, suíços, italianos, alemães, guatemalenses. Em alguns casos, as nacionalidades são atrubuidas coletivamente, principalmente quando se trata de grupos de trabalhadores. Apresento alguns exemplos: “Sr. Francisco Cherloski (brasileiro) negociante e criador”; “Dionizio Chielli, brasileiro, com 48 anos de idade, casado, com 12 filhos, sendo 8 homens, que são reservistas”; “Leopoldo Friedrich (brasileiro) de 46 anos, casado com brasileira”; “Antonio Arsumencia (paraguaio), com 50 anos de idade”; “Rogastiano Barcella (Paraguai), casado com brasileira e tem 4 filhos menores”; “Em Britania 30 pessoas (os tarefeiros de herva são todos paraguaios)”. Aqui posso observar que interessava, também, atentar às idades, ao número de filhos, ao estado civil dos moradores. Além destes atributos, o conhecimento e a prática da língua portuguesa eram observados reiteradamente. Outros exemplos que apontam neste sentido: “Sr. Evaldo Kenig (argentino). Fala o português, é de boa aparência e é esperto”; “Timóteo

202

Ozuna (argentino), com 68 anos, fala bem o português, e é casado com Amélia Ozuna (brasileira)”; “Rogastiano entende muito mal o portugues, e seus filhos falam o português”; “Os Meireles falam mal o português, e residem nesse lugar, para mais de um ano”, “Timóteo Ozuna (argentino), com 68 anos, fala bem o português, e é casado com Amélia Ozuna (brasileira)”.26 Um dos componentes importantes da brasilidade era o domínio da língua portuguesa. Portanto, atentar para tais aspectos e registrá-los era tarefa dos atos de vigiar a fronteira. Patrício Moleda é apresentado como “antigo colono militar brasileiro, com 78 anos, forte e com 22 filhos”. Mora na localidade há “30 anos e tem alguma cultura”. Estaria morando com 6 filhos, sendo que o menor teria 17 anos. “Ensina a todos ler e escrever. Tem 3 filhos argentinos e um paraguaio, que não residem em sua companhia”. Este, então, é um brasileiro de idade avançada, tem numerosa prole, inclusive filhos argentinos e um paraguaio. Observa-se que “Patrício não tem vizinhos e vive num isolamento único”. Na “Cia. Esperia”, o Estado teria interditado a concessão de suas terras, motivado pela “morte do administrador Sr. Bissoli (?) e irregularidades havidas”, sendo que a administração seria exercida pelo “Sr. Agenor Silveira, inspetor policial de quarteirão”. No local haveria duas famílias paraguaias e dez brasileiras. “Há pouco tempo foram desalojados por esta D. R., súditos alemais, solteiros, que lá residiam e que atualmente se encontram em Guarapuava”. Nas proximidades de outro porto, “no perímetro de 10kmts de Santa Helena, residem cerca de 300 pessoas (80 famílias), na maioria brasileiros descendentes de italianos, que falam o português”. Desta localidade, por ação de “esta D.R.” teriam sido retiradas “cerca de 10 famílias italianas, as quais foram encaminhadas à Guarapuava.” A minha leitura deste parágrafo do texto vincula alguns elementos a aspectos geopolíticos relacionados aos Aliados e ao Eixo. O Estado brasileiro requer do seu funcionário que atua na segurança da fronteira a atenção voltada ao registro de indícios de nacionalidades dos moradores e informações de atuações e ações adequadas do órgão da segurança na fronteira. E é recomendável informar aos seus superiores, ao governo e à nação. O “Sr. Bissoli (?)”, falecido, é grafado com interrogação. No 203

entanto, “súditos alemais, solteiros” e “famílias italianas” foram encaminhados para Guarapuava. Chama à atenção o fato de os registros referentes a esses desalojamentos e encaminhamentos a Guarapuava. Entrementes, os descendentes de italianos que “falam o português” residem no referido perímetro. José Augusto Colodel, em livro sobre a história do município de Santa Helena, escreveu sobre a emigração de italianos (descentes?) desta localidade27. Mesmo que a Segunda Guerra (1939-1945) tenha sido realizada em campos de batalha na Europa e em parte da Ásia, os seus reflexos faziam-se sentir na Tríplice Fronteira através da atuação de órgãos de estado. A área de 274.750 hectares de “propriedade da Cia. Madeireira Alto Paraná (Cia. Inglesa)” teria “sede em São Paulo e Buenos Aires”. A sua administração seria exercida por “Henrique Elmer, suíço, com 41 anos de idade”. Este administrador “fala bem o português” e estaria residindo “com sua esposa e filho de 11 anos”. O filho teria nascido na Guatemala. No outro documento, trabalhado em páginas anteriores, o filho de Henrique é brasileiro e apenas a mulher seria suiça. O tal do Henrique Elmer “é homem viajado e de certa cultura.” Em outra localidade, “a família Dionizio dedica-se a lavoura e apresenta ótimo aspecto não só como trabalhadores, como também do ponto de vista social.” O paraguaio Ladislau Vive, casado com paraguaia, “tem 28 anos de idade, e é de ótima aparência e vive em harmonia com os colonos da Cooperativa Manoel Ribas”. Teria participado da guerra do Chaco. “É ex-tenente do exército paraguaio”. Por sua vez, o paraguaio “Rogastiano não tem canoa, é indolente”. Observam-se aspectos ligados a comportamentos, sociabilidade, “cultura”, aparência, indolência etc. O documento apenas registra estes aspectos, não explicita julgamentos de valor de forma aberta, no entanto, há conotações subjacentes neste sentido. Há um conjunto de informações referentes às infraestruturas, às atividades econômicas, aos volumes de produção, às condições de moradia e outras informações bem amplas. Neste trabalho, estas informações não são analisadas. Além dos levantamentos da costa brasileira, a fonte apresenta um “LEVANTAMENTO INFORMATIVO DAS DIVERSAS LOCALIDADES EXISTENTES NA COSTA DO RIO PARANÁ, 204

PERTENCENTES Á REPUBLICA DO PARAGUAY” É a segunda parte do documento referente a localidades do Paraguai. Ela tem a mesma estrutura e característica de registros das localidades da “COSTA DO RIO PARANÁ, PERTENCENTES Á 9ª REGIÃO POLICIAL, COM SEDE EM FÓZ DO IGUAÇÚ – (BRASIL)”. Na costa paraguaia são 18 (dezoito) portos nominados, seguidos de suas descrições: PORTO PRESIDENTE FRANCO, PORTO EMBALSE, PORTO ITACURÚ, CURUPAITY, PORTO LAS PALMAS, PORTO AURORA, PORTO GENERAL DIAS, PORTO VANGUARDIA, PORTO ALEGRE, PORTO DORIELA, PORTO VITÓRIO BOCAY, PORTO CARDONA, PORTO SAENZ PENA, PORTO SANTA TEREZA, PORTO 3 DE JUNHO, PORTO ALICA, PORTO ITAMBEÍ, PORTO ADELIA. Três deles estariam “totalmente abandonados” e três aparecem sem informações sobre moradores ou proprietários. As atribuições de nacionalidades aos moradores e proprietários são as mais recorrentes, seguindo-se dados e registros da primeira parte. A “Industrial Paraguaya” seria “uma Cia. De capital inglês”. A “propriedade dos Ayala” teria um certo conforto, com os moradores atingindo “a 250 pessoas, inclusive 150 peões paraguaios”. O Porto General Dias, pertencente a Leandro Bertoni, teria como “administrador, Carlos Maguez, paraguaio, que aí reside com sua senhora e 40 bugres paraguaios”. No Porto Doriela teria morado “o brasileiro Antonio Carvalho”, outro porto teria sido explorado “por um argentino chamado Vasques”. O “Porto Sta. Tereza pertence à Leandro Bertone. Possui 70 famílias (140 pessoas), todas paraguaias, que trabalham no cultivo da erva (3 km quadrados de plantas), afora a erva nativa. Administra o lugar o Sr. Milciades Schneider, paraguaio, cujos avós são alemães”. Em outro, “reside um comissário paraguaio, Zeferino Acosta, encarregado da guarda da fronteira, nessa zona”. Alguns aspectos merecem ser mencionados. O rio Paraná faz fronteira. Há o “lado de cá e o lado de lá”. No entanto, os levantamentos feitos apontam para mais semelhanças do que para as diferenças. Mesmo que as preocupações se voltem para enfocar a fronteira, as tintas encontram dificuldades e resistências no momento em que as vivências 205

foram sendo registradas. Escritos de Roberto Abinzano28 contribuem para compreender esta aparente contradição. Este autor trabalha com o conceito de transfronteira, mostra que os atores da Tríplice Fronteira diluem nas suas vivências as pretensas fronteiras nacionais. Em texto sobre a Frente extrativista (El frente extractivista), Roberto Carlos Abinzano caracteriza a Província de Misiones, no período de 1865 a 1930, como uma “formación socioeconômica y espacial transfronteiriza”. Para ele, a exploração da madeira e da erva mate impulsionou “epifenómenos complementários” como traçados de vias de comunicação, o desenvolvimento da navegação, a construção de infra-estrutura portuária. Menciona que havia “agricultores de subsistencia, colonos espontâneos (...) especialistas artesanos y El território”. Observa, ainda, que muitas de suas práticas estariam presentes em décadas posteriores nos três países desta transfronteira. Menciona fontes que afirmariam que estas regiões eram frequentadas por “’matreros’ y otros aventureros”, que eram combatidos. “Ya por entonces em Argentina se decia que estos personajes eran brasileños y em Brasil, obviamente, que eran ‘castellanos, argentinos o paraguaios’”29. Mostra, também, a exploração da erva mate em território paraguaio, referindo-se a um lugar conhecido como “Tucuru-Pucu” (formigueiro gigante), localizado no porto Presidente Franco à frente da foz do rio Iguaçu no rio Paraná. Assim, ele aponta aspectos históricos, enfatizanando presenças de empreendedores e trabalhadores oriundos dos três países limítrofes. Alerta que estas atividades desconheciam limites internacionais. “Individuos de varias nacionalidades y Orígenes pasaban las fronteras nacionales en cualquer sentido”, sendo que os controles aduaneiros e os de outra natureza não existiam nos três países. Os ervateiros e obrageiros criaram um mundo quase autônomo. Abinzano menciona regulamentações e legislação que buscavam controlar as fronteiras. Tais tentativas de normatização proporcionaram a presença de funcionários, que, em muitos casos, usaram de espaços de poder para manobras voltadas a seus interesses. “Estas empresas que surgen luego de la venta de lãs tierras y se convierten en grandes empórios estaban montadas y actuaban em los tres países yerbateros ya que habia algunas de ellas que poseían tierras y capitales em más de una jurisdicción.” Por

206

outro lado, a maioria dos trabalhadores rurais nos ervais “fueron índios, mestizos y criollos de los três países”, além da presença de estrangeiros europeus.30 Com relação à população preexistente na região, havia numerosos guaranis, mestiços e imigrantes. Com a Guerra do Paraguai, houve ocupação militar, famílias teriam acompanhado combatentes, além de grande comitiva de comerciantes. Assim, “crearon efecto de repoblamiento de la zona a la que acudieron argentinos de varias províncias, brasileños, uruguayos, españoles, franceses, italianos, alemanes, etcétera, y aventureros o colonizadores de orígenes diversos”. Escreve que se encontram entre escritos de viajantes e informes oficiais qualificativos e descrições de “dos tipos de pobladores: a) agricultores com técnicas muy primitivas de subsistência; b) bandidos o cuatreros dedicados al pillaje, y refugiados de los três países implicados em La región”. Também havia indígenas do grupo tupi31. O interessante é que nomes de empreendedores e suas respectivas obrages circulam em registros do Brasil, do Paraguai e da Argentina. Com relação ao erval Tucurú-Pucú, “la Industrial Paraguaya, um importante ‘holding’ integrado em su gran mayoría por capitales argentinos”, teve, na sua constituição e desenvolvimento , a contribuição de “tenaces hombres”, que foram os “Goicoechea, Aramburu, Bossetti, Luchessi y Paggi”. Eram imigrantes e filhos de imigrantes europeus. Em outra situação o ervateiro Goicoechea informa a Peyret que teve contatos com expedições de reconhecimento dirigidas por estrangeiros. Cita Fender, um suíço, o francês Andrieuz, o italiano Lencisa, Coffin, comerciante norte americano, os ingleses Fair e Davison, o espanhol Vitorio Abente. Dentre os maiores ervateiros, Abinzano menciona “los Arrechea, los Goicoechea, Robet-Blosset, Nuñes, Gibaja, Arrillaga, Barthe, Nosiglia...” Termina o texto com um epílogo afirmando que teria feito uma descrição de uma formação espacial como um processo, onde se constituíram “fronteras socioantropologicas específicas junto a lãs fronteras jurídicas e políticas”32. Eis a Tríplice Fronteira levantada e estuda. Os documentos de órgãos de segurança e o texto de Roberto Abinzano evidenciam, pois, fronteiras múltiplas.

207

CONSIDERAÇÕES Considero pertinente observar que os conteúdos dos documentos mencionados e destacados nas páginas anteriores trazem elementos que evidenciam preocupações geopolíticas e disputas na Tríplice Fronteira Brasil, Argentina e Paraguai. Os conflitos platinos estavam mal resolvidos nas primeiras décadas o século XX. Conteúdos de discursos da política da “Marcha para o Oeste” do período Vargas estavam sendo gestados e consolidados nesta época. Justificativas para os planos de colonização e para a criação de empresas madeireiras e colonizadoras, que atuaram no Paraná nas décadas de 1940 e 1950, aparecem nas narrativas trabalhadas, interferindo nas construções ideológicas locais. Em discussões com os colegas Antônio Myskiw e Tarcísio Vanderlinde durante reuniões do grupo de pesquisa Cultura, Fronteiras e Desenvolvimento Regional, foram debatidas e apontadas algumas ideiasa respeito de fronteiras e territórios. Antônio Myskiw33 redigiu textos sobre estes dois verbetes que foram publicados no Dicionário da Terra. Segundo o autor, fronteira costuma significar limites entre duas ou mais situações. Ela pode apontar onde tem início ou fim um determinado território, estabelecendo soberania. Pode servir para assinalar o que pertence e o que não pertence. Há uma diversidade de tipologias de fronteira, dependendo da natureza da discussão a ser realizada, quer na geografia, na sociologia, na antropologia ou na história. Ao mesmo tempo em que fronteira se constituiria num “cenário de intolerância, ambição e morte”. No entender de José de Souza Martins34, seria, também, “lugar da elaboração de uma residual concepção de esperança, atravessada no milenarismo da espera do advento do tempo novo, um tempo de redenção, justiça, alegria e fartura”. Michel de Certeau35, ao problematizar alguns aspectos teóricos e práticos da fronteira, argumentaria que “a fronteira funciona como um terceiro”, isto é, o espaço existente entre o lado de cá e o lado de lá da fronteira. Permito-me considerar que estas discussões sobre fronteiras relacionadas com as narrativas estudadas apontam para fronteiras múltiplas explicitadas nas fontes e apontadas no decorrer do texto.

208

Com o conceito de fronteira se articula o conceito de território. Myskiw, citando Werther Holzer36, aponta que território também pode ser entendido como um conjunto de “itinerários e lugares”. Ele buscaria compreender o território a partir das relações sociais e culturais que determinados grupos humanos (ou animais) mantêm com lugares e itinerários que constituiriam seus territórios. Nessa óptica, a existência do território não depende de delimitação de fronteiras fixas, e sim flexíveis, visto que os limites são dados de acordo com as relações (espontâneas ou não, conflituosas ou não) frente (ou junto) a outros grupos, com a alteridade. O território, suas fronteiras, a população e a paisagem que o compõem têm historicidades. As histórias de lugares são histórias de movimentos, de migrações constantes, de conflitos e de transformações de espaços e de paisagens. Assim como o espaço, o território é produzido (explorado ou utilizado) por formações sociais, com dinâmicas próprias e repletas de contradições e desigualdades. No interior das fronteiras dos territórios, estão presentes as especificidades locais, inerentes à dinâmica geral da sociedade e às peculiaridades de lugares e tempos históricos. A territorialidade é constituída na perspectiva da construção de identidades, principalmente na dimensão simbólica, cultural. Neste aspecto, aparece o externo, a alteridade, a distinção entre nós e os outros. Também a distinção dos outros entre eles. Constrói-se a desigualdade e a diferença. A desigualdade exige um parâmetro comum, de essência comum, de identidade, mas as distinções se dão no âmbito da classificação, da quantidade, culminando em hierarquização. A diferença se dá no sentido da alteridade, do outro, da exclusão, do preconceito. Os encontros com os semelhantes e/ou com os outros, normalmente, levam a comparar: Os “não-nós” podem ser considerados superiores, inferiores, ou iguais.37 Prevalece a concepção de que os outros são inferiores a nós. A pesquisa buscou conceber os autores dos relatos, das narrativas como pretensos nós que procuram caracterizar os outros, os diferentes, conferindo-lhes atributos, hierarquias, valores, etc.38 Nas narrativas, os autores atribuíram características a partir de concepções e de idealizações consideradas adequadas aos moradores dos sertões. As descrições apontavam para modos de ser, para atitudes, para identidades étnico209

nacionais passíveis de interferirem na formação da civilização e da nacionalidade brasileiras. Ocorre uma luta por representações, pelo simbólico. Para Chartier39, as representações possibilitam articular três modalidades da sua relação com o mundo social. Seriam a classificação e a delimitação, produzindo “configurações intelectuais múltiplas”, as práticas, visando “reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo” e as formas institucionais e objetivadas, marcando “a existência do grupo, da classe ou da comunidade”. As narrativas trabalhadas enquadram-se, mais ou menos, nessas modalidades, uma vez que os autores discursam enquanto indivíduos, pertencentes a grupos e tendo vínculos e compromissos institucionais. As representações, também, vão sendo construidas de acordo com configurações e concepções próprias de suas respectivas temporalidades e territorialidades, ou seja, em tempos e espaços historicamente contextualizados. Foram enfocadas descrições e observações sobre homens e mulheres nas “costas” do rio Paraná. Foram trazidos elementos para subsidiar a análise sobre representações e fronteiras múltiplas em contextos de fronteiras e territórios na Tríplice Fronteira. Mostrados conteúdos de narrativas, enfocando características relacionadas a questões étnico-raciais, a elementos culturais e a disputas territoriais. Discutidas identidades no contexto da construção de representações sobre fronteiras culturais, econômicas e nacionais. As fontes são narrativas produzidas na primeira metade do século XX, duais delas nos anos de 1940 a 1945 no interior do DOPS por agentes que atuaram no oeste do Paraná. Refletiu-se sobre estas narrativas, buscando mostrar e compreender representações nelas contidas sobre fronteiras múltiplas. Estas representações são construções de imagens entendidas como consciência do eu em relação ao outro, podendo predominar um esquema cultural mais de quem observa e registra do que de quem é observado. Portanto, fronteiras e territórios são conceitos que permeiam o texto construído.

210

NOTAS EXPLICATIVAS Doutor em História pela UFF/Niterói, Professor Associado da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná e líder do grupo de pesquisa Cultura, fronteiras e desenvolvimento regional. 1

Ver COLODEL, José Augusto. Obrages& companhias colonizadoras: Santa Helena na história do Oeste Paranaense até 1960. Santa Helena: Prefeitura Municipal, 1988. WACHOWICZ, Ruy. Obrageros, Mensus e Colonos: história do Oeste Paranaense. Curitiba: Vicentina, 1982. WESTPHALEN, Cecília Maria. História documental do Paraná: primórdios da colonização moderna na região de Itaipu. Curitiba, UFPR, 1987. 2

Ver GREGORY, Valdir e SCHALLENBERGER, Erneldo. Guaíra: um mundo de águas e histórias. Marechal Cândido Rondon, Editora germânica, 2008. GREGORY, Valdir. Fronteiras e territórios: construções de paisagens nos sertões do Paraná na primeira metade do século XX. Pesquisa desenvolvida durante licença sabática (fevereiro de 3

2011 a janeiro de 2012). Marechal Cândido Rondon/PR, fevereiro de 2012. 4 5 6

SIDWEL, Wilson. A través de los años 1910-1930. (Xerox de texto datilografado, acervo pessoal). Atualmente inundadas pelo Lago da Itaipu Binacional. CORREA FILHO. A Mate Laranjeira. Cuiabá, 1925, pp. 96-97. Coelho Junior. Pelas selvas e rios do Paraná. Curitiba/SP/RJ, Editora Guaíra Limitada, 1946, p. 30.

7 8

Franco, Artur Martins. Relatos de viagem. Curitiba, 1973.

9

ARRUDA, Gilmar. Cidades e Sertões: entre a história e a memória. Bauru, EDUSC, 2000, p. 14. Ver Anderson, Benedict. A nação e consciência nacional. São Paulo, Ed. Ática, 1989, p. 13.

10

Ver GREGORY, Valdir. Fronteiras e territórios: construções de paisagens nos sertões do Paraná na primeira metade do século XX. Marechal Cândido Rondon/PR, fevereiro de 2012. 11

12 Optei por reproduzir partes das fontes mantendo a redação original no que se refere a concordâncias, pontuação e outros componentes. Os textos são bem escritos, mas a pontuação, a acentuação e a grafia diferem da correção gramatical atual. A interferência nestes aspectos, no meu modo de ver, poderia afetar significados e características, bem como descontextualizar conteúdos e dados. Nas próximas páginas estarei utilizando este documento que estou caracterizando sem citá-lo repetidamente. A redação deixa claro que se refere a esta fonte. 13 Cabe mencionar que, naquela época, os nacionalismos estavam assoberbados, com repercussões nesta Tríplice Fronteira. 14 http://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADcia_Militar_do_Estado_do_Paran%C3%A1acessado em 10/02/ 2012.

h t t p : / / d o m i n o . c m c . p r. g o v. b r / p r o p 2 0 0 5 . n s f / f 9 b 2 6 0 f b 1 d e 0 6 c 4 b 0 5 2 5 6 9 b a 0 0 5 c 7 5 a d / 3122df4bc6063a2c0325716f006a3e7d?OpenDocument, acessado em 10/02/2012. 15

16

Fonte:http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/840276, acessado em 02/06/2013.

Ver SILVA, Micael Alvino. Vigilância aos súditos do Eixo na parte brasileira da Tríplice Fronteira (194243). 2010. 222p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Maringá. Ver também BLOGUE DO ALUIZIO PALMAR: Histórias do porão, acessado em 10/02/2013. Ver também http:// www.recantodasletras.com.br/cronicas/840276, acessado em 02/06/2013. 17

18

Ver CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990.

19

Ver ABINZANO, Roberto Carlos. Cuadernos de la Frontera. Año I, Num. II – Posadas, marzo de 2004.

Ver GREGORY, Valdir e SCHALLENBERGER, Erneldo. Guaíra: um mundo de águas e histórias. Marechal Cândido Rondon, Editora germânica, 2008.

20

21

Este conceito tem o sentido de vivências além e independente destas fronteiras nacionais. Sobre este

211

conceito, ver o estudo de ABINZANO, Roberto sobre as frentes extrativistas em Misiones na Argentina. Ver MOTA, Lúcio Tadeu ; NOELLI, Francisco Silva. Exploração e guerra de conquista dos territórios indígenas nos vales do Tibagi, Ivaí, e Piquiri. In: DIAS, Reginaldo B. ; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Maringá e o Norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá EDUEM, 1999. 22

Ver POLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, RJ, vol2, nº 3, 1989, p. 315. Ver Também TEDESCO, João Carlos. Passado e presente em interfaces: introdução a uma análise sócio-histórica da memória. Passo Fundo. , UPF Editora, 2011. 23

24

Ver MYSKIW, COLOMBO, GREGORY, WESTPHALEN e outros.

A Companhia Mate Laranjeira foi objeto de estudos meus nos últimos anos. Considero pertinente mencionar, aqui, que esta obrage atuava na Argentina, no Paraguai e no Brasil na exploração, beneficiamento e comercialização da erva mate. Só em território brasileiro atraiu mais de três Mil trabalhadores (os Mensus). Dentre os seus proprietários (acionistas) destacam-se Mendes Gonçalves (argentino), Thomaz Laranjeira (brasileiro) os Murtinho (brasileiros matogrossenses). Ver ARRUDA, Gilmar. 25

Como já mencionei em nota anterior, optei por manter a grafia original. Portanto, as incorreções gramaticais constam no original. 26

Ver COLODEL, José Augusto. Obrages & companhias colonizadoras : Santa Helena na história do Oeste Paranaense até 1960. Santa Helena : Prefeitura Municipal, 1988. 27

28

ABINZANO, Roberto Carlos. Cuadernos de la Frontera. Año I, Num. II – Posadas, marzo de 2004.

29

Ver ABINZANO, p. 2 e 7.

30

ABINZANO, p. 10, 15 e 17.

31

ABINZANO, p. 22.

32

ABINZANO, p. 24, 33, 36 e 37.

33

DICIONÁRIO DA TERRA. Márcia Motta (org.). RJ, Civilização Brasileira, 2005.

34

MARTINS, 1997:11, apud DICIONÁRIO DA TERRA.

35

CERTEAU, 2000: 213, apud

DICIONÁRIO DA TERRA. 36

HOLZER, 1997:83, apud,

DICIONÁRIO DA TERRA. Ver HAESBAERT, Rogério. Des-territorialização e Identidade: a rede gaúcha no Nordeste. Niterói: EdUFF, 1997, p 42-44.

37

Ver TODOROV TODOROV, Teodor. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. RJ: J. Zahar, 1993. 38

Ver CHARTIER, Roger.A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990, p. 23 a 27. 39

REFERÊNCIAS

ABINZANO, Roberto Carlos. Cuadernos de la Frontera. Año I, Num. II – Posadas, marzo de 2004. ANDERSON, Benedict. A nação e consciência nacional. São Paulo, Ed. Ática, 1989. ARRUDA, Gilmar. Cidades e Sertões: entre a história e a memória. Bauru, EDUSC, 2000.

212

BARTH, Fredrik. “Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFFFENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. SP: Ed. UNESP, 1997. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, Papirus, 2001. ________. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990. _______. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000. COELHO JUNIOR. Pelas selvas e rios do Paraná. Curitiba/SP/RJ, Editora Guaíra Limitada, 1946. COLODEL, José Augusto. Obrages & companhias colonizadoras: Santa Helena na história do Oeste Paranaense até 1960. Santa Helena: Prefeitura Municipal, 1988. DICIONÁRIO DA TERRA. Márcia Motta (org.). RJ, Civilização Brasileira, 2005. DOMINGOS NASCIMENTO. Pela fronteira. 1903. GREGORY, Valdir e SCHALLENBERGER, Erneldo. Guaíra: um mundo de águas e histórias. Marechal Cândido Rondon, Editora Germânica, 2008. ___________. Os eurobrasileiros e o espaço colonial: migrações no Oeste do Paraná. Cascavel: Edunioeste, 2002. __________. Fronteiras e territórios: construções de paisagens nos sertões do Paraná na primeira metade do século XX. Pesquisa desenvolvida durante licença sabática (fevereiro de 2011 a janeiro de 2012). Marechal Cândido Rondon/PR, fevereiro de 2012. GUIMARÃES, Ekiane Silva e MOTTA, Márcia Maria Menendes (org). Campos em disputa: história agrária e companhia. SP, Annablume, Núcleo de Referência Agrária, 2007. HAESBAERT, Rogério. Des-territorialização e Identidade: a rede gaúcha no Nordeste. Niterói: EdUFF, 1997. HOLZER, Werther. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar, território e meio ambiente. In: Território. N.º 3, jul/dez 1997. HUNT, Lynn. A nova história cultural. SP, Martins Fontes, 1992. JULIO NOGUEIRA. Do rio Iguassu e ao Guayra. Rio de Janeiro, Editora Carioca, 1920. MARTINEZ, Cesar. Sertões do Iguassú. SP, Cia. Gráphico-Editora Monteiro Lobato, 1925. 193p. MARTINS, José de Souza. Fronteira:A degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: HUCITEC, 1997. MONTOREANU, Hortência Zeballos. Guayrá guaíra. São Paulo: Arte Imprensa. N. 1992. MOTA, Lúcio Tadeu; NOELLI, Francisco Silva. Exploração e guerra de conquista dos territórios indígenas nos vales do Tibagi, Ivaí, e Piquiri. In: DIAS, Reginaldo B.; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Maringá e o Norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá EDUEM, 1999. _______; _________. Exploração e guerra de conquista dos territórios indígenas nos vales

213

dos rios Tibagi, Ivaí e Piqueri. In: DIAS, Reginaldo B. e GONÇALVES, José Henrique. Maringá e o Norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá, EDUEM, 1999. MYSKIW, Antonio Marcos. O Oeste do Paraná, à sombra dos livros: História e historiografia (mímeo, 2008). POLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos históricos, RJ, vol2, nº 3, 1989, p. 3-15. POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. SP: Ed. UNESP, 1997. SCHALLENBERGER, Erneldo (org.). Cultura e memória social: territórios em construção. Cascavel: Coluna do Saber, 2006. SIDWEL, Wilson. A través de los años 1910-1930. (Texto datilografado, acervo pessoal). SILVEIRA NETO, (1872-1942). Do Guairá aos Saltos do Iguaçu. Curitiba, Fundação Cultural, 1995. TEDESCO, João Carlos. Passado e presente em interfaces: introdução a uma análise sóciohistórica da memória. Passo Fundo, Editora da UPF, 2011. TODOROV, Teodor. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. RJ: J. Zahar, 1993. WACHOWICZ, Ruy. Obrageros, Mensus e Colonos: história do Oeste Paranaense. Curitiba: Vicentina, 1982. WESTPHALEN, Cecília et al. Nota prévia ao estudo da ocupação da terra no Estado do Paraná. Boletim da Universidade Federal do Paraná, n.7, p. 1-52, 1968. __________. História documental do Paraná: primórdios da colonização moderna na região de Itaipu. Curitiba : UFPR, 1987.

214

RUPTURA HISTORICA E (DES)CONTINUIDADES CULTURAIS NA FRONTEIRA: OS DESAFIOS DO PESQUISADOR

Erneldo Schallenberger1

A multiplicação de interesses pela pesquisa acerca da temática das fronteiras tem levado muitos estudiosos a enveredar por campos de significação que conferiram ao conceito fronteira um sentido polissêmico. A fronteira, ao mesmo tempo em que aponta para o horizonte do novo e do indefinido, sugere um limite e estabelece uma relação entre estes dois indicadores que são sempre expressão do alcance humano a partir das condições socioculturais histórica e espacialmente construídas. Os diferentes sujeitos sociais constroem seus referenciais de fronteira a partir do lugar em que se movimentam, do seu mundo de significados e símbolos e das representações que têm de si e dos outros. Numa perspectiva holística e abordagem interdisciplinar, os campos de investigação não se encontram tão distintos nas representações e vivências da fronteira. Eles remetem o pesquisador aos processos históricos marcados por encontros e desencontros, às relações de poder, a conflitos, acordos e negociações. As relações culturais na fronteira começam a ter expressão na medida em que se estabelecem formas de contato entre povos ou grupos étnicos que passam a interagir espacialmente, produzindo processos de diferenciação. No encontro de povos com mundos de significação e representação diferentes, o espaço passa a se configurar como um palco simbólico onde se travam relações de poder, maiormente marcadas por um campo de forças desigual em virtude da diferença dos tempos sociais 215

vividos e acumulados pelos sujeitos em contato. Essa diferença pode ser encontrada, pelo pesquisador atento, no conjunto dos referentes da cultura que orientam a vida em sociedade e que e se materializam através de bens sociais com significados simbólicos. A cultura enquanto expressão e manifestação dos símbolos e representações social e historicamente produzidos e espacialmente vividos envolve os sujeitos em uma “teia de significados”, na acepção de Clifford Geertz (1978), através da qual se identificam, apreendem e conferem sentidos, são significados e geram comunicação. Deriva dessa asserção que os “(...) espaços culturais são criados por atos de significação com caráter intencional e interacional” (FEIBER, 2013, p.23). Ao cientista social cabe observar que as diferentes culturas são portadoras de signos, que expressam, a um só tempo, a unidade de sentido entre o abstrato e o real nas representações e ações humanas. A par desses signos, os fenômenos comunicativos traduzem, enquanto linguagem e representação, o imaginário coletivo como força social que produz a unidade de sentido e a sociabilidade. Assim, os sujeitos coletivos constroem o seu mundo real e espiritual como unidade de referência e fronteira cultural em relação a outros mundos culturais. Embora o real possa ser entendido, a partir de Cassirer (2001), como o mundo das ações e dos seus efeitos que ultrapassam as meras representações, as formas simbólicas conferem significado aos processos culturais, na medida em que são entendidos a partir da perspectiva histórica de uma sociedade em movimento e se constituem em princípios estruturais da atividade humana. Travadas em espaços e períodos específicos, as relações intersubjetivas geram distinções que fazem aflorar o imaginário e traduzem a atmosfera cultural dos grupos humanos em contato. No caso específico da conquista e colonização da América, o encontro de diferentes mundos culturais colocou frente a frente sociedades com sistemas simbólicos distintos, marcadas pelo pensamento mágico e pelo pensamento racional. Mito e logos sustentam maneiras de pensar, percepções e sensibilidades próprias que diferenciam a relação homemnatureza e conduzem a formas específicas de interpretar os fenômenos e de organizar seus esquemas mentais de compreensão e apropriação dos espaços de vivência e convivência social. Se para os agentes da conquista

216

e da colonização da América pensar a realidade implicava conceber a dualidade entre homem e natureza, ou seja, separar a razão do mundo natural que os rodeava, para as culturas primitivas o mundo se apresentava como uma unidade plena onde os mitos explicam como funcionam e interagem todas as forças dessa enigmática realidade (CARDOZO, 2006). O imaginário indígena não foi identificado a partir de registros próprios e reporta à memória, à tradição e às narrativas colhidas pelos primeiros cronistas e epistológrafos que, sem conhecer a sociodiversidade nativa das sociedades tribais, destacam aspectos ausentes ou desviantes do mundo da cultura racionalizada. Os sentidos emanados dos conceitos de sociedade, da(s) divindade(s) e de poder, entre outros, eram interpretados e vividos de forma muito particular pelas sociedades indígenas e pela sociedade da conquista. A experiência mística indígena e a explicação mítica dos fenômenos naturais e humanos não tinham lugar nos cânones civis e religiosos dos sujeitos da conquista. A missão de trazer aos primitivos habitantes da América a civilização e a salvação envolve e justifica, na esfera do racional, um campo de interesses que instiga o pesquisador a buscar historicamente a atmosfera do período específico no qual se configurou o modo de ser e de pensar dos atores sociais da conquista e da colonização da América. Interesses que podem ser observados a partir da convergência de ideologias com axiologias que se refletiram, de certa forma, na ética e na estética da apropriação e da organização espacial. Entendida como um conjunto orgânico de ideias apreendidas a partir das suas inversões (MAFFESOLI, 2001, p. 76), a ideologia da conquista definia campos de interesse que, de modo geral, reduziram a diversidade sociocultural dos povos nativos. Negava-lhes a natureza de sua cultura, reduzindo-os a uma unidade de referência exterior aos protótipos de homem e de sociedade por ela veiculados, para explicar, justificar e argumentar em seu favor a superioridade cultural. Selvagem, bárbaro, indigente, “sem-Deus”, “sem-Rei” e “sem-lei” são atributos que derivam de formulações ideológicas que desqualificam a alteridade antropológica a partir de uma racionalidade que situa no sobrenatural e no estado civil instituído os pressupostos dos ideais éticos e políticos. O imenso mundo da América abrigava inúmeros povos nativos, com culturas distintas que devem ser associadas aos territórios por onde 217

circulavam, às extensas famílias que cultivavam suas tradições, aos espaços vividos, às relações com a natureza, de cujos fenômenos e mistérios emanaram os mitos, as divindades e as formas de prover a subsistência. Tudo isto era, inicialmente, desconhecido pela sociedade da conquista. A ideologia que moveu a conquista espiritual e política, além de desconhecer de modo geral a realidade multicultural, fez com que muitas sociedades tribais, sobretudo as que ofereceram resistência, desaparecessem do mapa etnográfico das Américas. Entretanto, fragmentos contidos nos relatos de viajantes que percorreram a região do Rio da Prata revelam uma tentativa de entendimento de uma diversidade cultural (SCHMIDEL, 1903; NÚÑEZ CABEZA DE VACA, 1995). De modo particular, conseguiram identificar, de certa forma, a cultura dos Guaranis, distinguindo-a dos demais grupos étnicos, muito mais em função dos interesses imediatos que os impulsionaram. A maior contribuição para o conhecimento da diversidade cultural da América deve-se aos jesuítas. Nas suas incursões pelo interior do continente identificaram sociedades tribais e territorialidades por onde circulavam, conferindo-lhes características socioespaciais, lingüísticas e políticas. Usaram para tanto o método cartográfico (BARCELLOS, 2000). A cartografia jesuítica representa um verdadeiro mapeamento da etnodiversidade da América latina. Por ela é possível identificar as territorialidades e as culturas contidas neste universo até então desconhecido pela sociedade da conquista. Ela rompe, em parte, com a ideia do desconhecido, que se confundia com o ilimitado. Fatores geográficos relacionados com o meio ambiente, como pântanos, florestas e rios, contribuíram para definir o modo como essas sociedades se relacionaram com o seu ambiente natural. Ao pesquisador menos atento pode passar despercebido que houve uma geografia cultural não mapeada até então. O mapeamento desencadeado, sobretudo pelos jesuítas, além de situar espacialmente os diferentes povos nativos, conferiu-lhes certa identidade pelo registro de como viviam, de suas crenças, de suas formas de comunicação e de seus aspectos físicos. Assim, o mundo desconhecido e a fronteira ilimitada começaram a ter contornos através de uma carta etnográfica que estabelecia, de certa forma, fronteiras culturais. O conhecimento da geografia cultural se tornou um elemento de

218

fundamental importância para os agentes da conquista e da colonização. Não raras vezes serviu de referência para o desencadeamento de ações de subjugação ou de aliança. Detentores desse conhecimento, os jesuítas conseguiram estabelecer relações horizontais com alguns povos nativos, o que lhes conferiu um papel mediador entre as culturas em contato. As fricções interétnicas resultantes do avanço das frentes do colonialismo interno, que no espaço platino foram fortemente marcadas pelo bandeirantismo e pela expansão do sistema de encomiendas, fizeram com que a mediação dos jesuítas fosse requisitada pelas autoridades coloniais constituídas para recuperar a sinergia entre os indivíduos e seu espaço e trazer uma solução para os conflitos interétnicos. O bandeirantismo, que transbordou a fronteira imaginária do Tratado de Tordesilhas, foi sem dúvida um fenômeno de expansão interna do colonialismo luso, sem precedente na história das nações pela observação de Affonso E. Taunay (1946), que aguçou a questão das fronteiras entre os impérios coloniais ibero-americanos. Afetou o sistema de fixação da colonização espanhola através das encomiendas, promovendo certa instabilidade no próprio sistema colonial, mais precisamente em relação à integração da força de trabalho indígena. No período da unificação das coroas da Espanha e de Portugal (1580-1640), se a questão das fronteiras em torno da fixação de limites territoriais se diluiu, acentuou-se, no entanto, a mobilidade dos diferentes grupos de conquistadores e colonizadores que visavam à ocupação de espaços produtivos ou das riquezas naturais neles contidos. Esse movimento expansionista desencadeou embates culturais que, vistos sob a perspectiva dialética dos interesses e dos conflitos, afetou a subjetividade dos povos nativos. Para além das esferas político-institucionais e ideológicas a questão fronteiriça se configurou na América Meridional como um problema humano que expôs os limites do próprio sistema colonial. Sob o regime do padroado, as autoridades coloniais se renderam ao poder coercitivo da religião, dando lugar às ordens religiosas, mormente de natureza transnacional e com um carisma contra reformista, para persuadir e converter as culturas nativas ao catolicismo. Soldados de Cristo, os jesuítas, conhecedores da geografia cultural, passaram a se apropriar de elementos significativos da cultura, a exemplo da linguagem, o que lhes 219

favoreceu a comunicação e o estabelecimento de relações intersubjetivas horizontais. Nas fraldas dos espaços vulnerados pelo avanço das frentes internas do colonialismo, buscaram a transformação da subjetividade e a reterritorialização dos povos nativos, a exemplo dos Guaranis, dos Chiquitos e dos Moxos. Das relações intersubjetivas resultou certo sincretismo cultural, possível de ser verificado na ordenação do espaço, na arte e na arquitetura, presentes na memória escrita e nos momentos que alimentam a história da experiência societária das reduções jesuíticoguaranis. Estes elementos simbólicos e materiais possibilitam ao pesquisador identificar uma nova ordem social, marcada pela aproximação de duas culturas, integrando os atores sociais em torno de um campo simbólico, onde discursos e representações caracterizaram o conjunto das relações materiais e imateriais refletidas no espaço vivenciado no cotidiano. O novo poder que os jesuítas controlavam através do conhecimento antropológico e da comunicação lhes conferiu a possibilidade da construção de um espaço cultural com características próprias e distintas da sociedade colonizadora e das demais sociedades tribais na fronteira colonial da região platina. Nessas circunstâncias específicas cabe o raciocínio de Bhabha (2010, p. 27) quando afirma que:”o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte de um continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural”. Pela estratégia da segregação étnica, a identidade coletiva construída no espaço fronteiriço jesuítico-guarani resultou em grande medida dos conteúdos simbólicos dessa identidade e de seu significado para os atores sociais que a constituíram ou dela se excluíram. O novo modelo societário, fundado em padrões éticos e estéticos resultantes da comunicação de duas matrizes culturais promoveu inquietudes e foi transformando o espaço cultural missioneiro numa fronteira indesejada tanto para a vertente espanhola quanto para a portuguesa do colonialismo. A partir daí a dinâmica das relações culturais na região platina assume uma nova configuração. Com a restauração da monarquia portuguesa (1640) a busca da consolidação das fronteiras nas possessões americanas se tornou mais intensa. Além do estabelecimento de fortalezas e sítios para simbolizar e

220

garantir os limites no Novo Mundo, batalhas e movimentações militares passaram a caracterizar o conjunto de operações nos espaços fronteiriços. O nordeste e o norte comportavam a presença dos holandeses, desde 1630, o que ameaçava os domínios territoriais de Portugal na América; o sul, sobretudo a região do entorno do estuário do Prata, era a zona das maiores disputas, muito em virtude da intensificação das atividades comerciais e de “contrabando”. Essas atividades ensejaram o estabelecimento de novas estruturas de poder e atraíram novos atores sociais, que, por sua vez, promoveram um processo de intensa comunicação cultural e interação social. Buenos Aires e Colônia do Sacramento, estabelecida pelos portugueses em 1680 na margem setentrional do rio da Prata, se constituíram em importantes centros de projeção política das metrópoles e de interesses econômicos plantados em torno do comércio platino. A Colônia do Sacramento foi alvo permanente dos espanhóis desde a sua fundação, tanto assim que a tomaram em 1704, a devolveram por força do Congresso de Utrech (1715) e a negociaram com o território dos Sete Povos das missões jesuítico-guaranis da margem oriental do rio Uruguai, por ocasião do Tratado de Madrid (1750). Fatores conjunturais como a Guerra da Sucessão Espanhola (1702-1714), que resultou da disputa de poder pelo trono da Espanha entre os Bourbons e os Habsburgos, e a mudança da política externa portuguesa, que se valeu da estratégia da guerra para defender seus territórios, afetaram toda a Europa e, por conseguinte, as relações entre as metrópoles e suas colônias. O impacto imediato dessa mudança de relação talvez fosse a maior presença de milícias e de agenciadores do comércio e do “contrabando” de outras nacionalidades na região platina. Por outro lado, as condições locais proporcionadas pela atividade pecuária, grandemente fomentada pelas estâncias missioneiras e pelas vacarias, fizeram com que o manejo, a preação e o contrabando do gado fossem partilhados por sujeitos sociais de diferentes matrizes culturais, fazendo com que elementos da cultura material, símbolos, hábitos e práticas culturais se tornassem costumes em comum. Preconceituoso seria concordar com Capistrano de Abreu (1976, p. 176/177) quando se refere à Colônia do Sacramento insinuando que: “Este ninho antes de contrabandistas que de soldados, foi talvez o berço de uma prole sinistra, os gaúchos, os gaudérios, originários da 221

margem esquerda do Prata, famosos durante longas décadas e ainda não assimilados de todo à civilização”. O olhar atento do pesquisador observará que nessa realidade complexa os contatos e as interações de diferentes atores sociais em torno das atividades econômicas e das lutas de fronteira foram forjando uma cultura regional, onde índios, portugueses, espanhóis, negros, entre outras culturas étnicas e nacionais foram progressivamente interagindo num espaço cultural onde elementos simbólicos e práticas culturais se cruzaram e definiram uma fronteira multicultural. Essa fronteira carregou as marcas da transgressão e a luta por espaços de livre movimentação. Nesses espaços as relações socioculturais se sobrepunham às questões dos limites territoriais. Além do mais, a presença das missões jesuítico-guaranis, que representaram um espaço cultural com unidade de referência ética e estética e com uma modelação social e política definida, se afigurava como uma fronteira cultural que se contrapunha aos interesses dominantes dos impérios coloniais. O processo de renegociação das fronteiras luso-espanholas culminou em 1750 com o estabelecimento do Tratado de Madrid (FURTADO, 2011). Esse Tratado eliminou o de Tordesilhas, fixou os novos limites entre os domínios portugueses e espanhóis na América e teve a finalidade de apaziguar as relações conflituosas existentes. Com a sua celebração, as pretensões portuguesas sobre a extensão territorial da Amazônia e da região Centro-Oeste, desbravadas por seus colonizadores, foram contempladas. O interesse espanhol esteve centrado na Colônia do Sacramento, sem descurar, no entanto, dos territórios das missões jesuítico-guaranis do Guairá, do Tape, do Itatim e dos Chiquitos. Na campanha do Uruguai, nos arredores da Colônia do Sacramento, os portugueses haviam expandido a pecuária sob o consentimento do governo espanhol. Essa indústria comportava, no entanto, restrições dos povoados missioneiros (CORTESÃO, 1951). O Tratado de 1750 motivou a constituição de comissões de demarcação para o estabelecimento dos limites territoriais. O princípio do Uti Possedetis, ou seja, da posse por quem primeiro se fixou nos territórios, desencadeou operações de campo, elaborações cartográficas e descrições etnográficas. Na região amazônica o avanço português se fez notável. Persistiam, entretanto, polêmicas em torno dos limites do

222

centro-oeste e do sul, onde os portugueses praticavam intenso comércio através da navegação dos rios Paraguai e Paraná. Essa atividade não caracterizava uma ocupação efetiva do território, razão pela qual os espanhóis se empenharam em demonstrar a existência de espaços com populações estabelecidas ou contatadas por eles. Inúmeras correspondências recolhidas por Pedro de Angelis (1836) dão conta da existência dessas populações. Relatos como os de D. Manuel A. de Flores ao Marquês de Valdelírios, comissário geral para a execução do Tratado de 1750, descrevem as distâncias entre os povos de uma e outra parte do rio da Prata, o ambiente natural, o clima, o número e a espécie de seus habitantes, suas chácaras e os frutos que produzem, além de indicar as formas da sua comercialização (ANGELIS, 1836). Ele observa que ao longo dos rios que deságuam no Paraguai e no Paraná existem por toda a fronteira sítios de povoamento por meio dos quais os portugueses sustentam a sua navegação e comércio e exploram madeiras para o fabrico de suas embarcações. Questiona os embaraços e as desvantagens que o comércio português poderia trazer à província do Paraguai, onde “(...) viven sus naturales con nuestros primeros padres, entre quienes el uso del oro y la plata era desconocido; no tienen metales algunos ni piedras preciosas, y aun la moneda que de otras partes se pudiera llevar no tiene curso.” A descrição da fronteira de Félix de Azara apontaem sua Correspondência oficial e inédita sobre a demarcação dos limites entre o Paraguai e o Brasil, de 12 de abril de 1784 (ANGELIS, 1836), para a existência de diferentes grupos de populações nativas e, ao referir-se aos Mbyas e suas terras, evidencia interesses contraditórios entre portugueses e espanhóis a seu respeito. Os portugueses alegavam a neutralidade de tais espaços ocupados, enquanto os espanhóis sustentavam tratar-se de domínios concedidos aos jesuítas pelas autoridades hispânicas para converter os índios e torna-los súditos da Espanha. Para los portugueses, el Paraguay era parte integrante de la misma expresión geográfica, el Brasil. La más antigua cartografía portuguesa - Lope Homen (1519), Diego Ribeiro (1525 y 1527), Joao Alfonso (1528 - 1543), André Homen - objetivó la idea de que el Brasil era una gran isla, flanqueada por las cuencas de los

223

ríos Madeira, Amazonas y del Plata con sus principales afluentes el Paraná y el Paraguay. Ese mito de la Isla-Brasil gravitó fuertemente sobre la imaginación de los gobernantes lusitanos y fue estímulo poderoso para oponer a la letra del tratado de Tordesillas la razón geográfica de Estado que iba a presidir la formación territorial de Brasil, y que le llevaría incansablemente a buscar el señorío del Paraguay (CARDOZO, 1961, p.35-36).

As correspondências e os escritos sobre as fronteiras instigam o pesquisador ao questionamento dos interesses, projetos e ambições em jogo, fazendo com que os diferentes modos de disputa e negociação transformassem a fronteira num espaço móvel de contínua redefinição de territórios. Nesta mobilidade da fronteira, diferentes grupos, situados em temporalidades diversas, se descobrem, convivem e interagem, promovendo relações culturais que transcendem os limites que se lhes pretendia interpor. Nesse tempo de fronteiras a ideologia política do ultraabsolutismo combateu de forma sistemática a ideologia políticoeclesiástica – ultramontanismo -, visando o fim do domínio do poder da Igreja e a limitação dos privilégios eclesiásticos. O alvo principal eram os jesuítas, acusados de asfixiar a maçonaria e de promover o obscurantismo (FRANCO; RITA, 2004). A metodologia usada pelos jesuítas de estabelecer relações de intercomunicação cultural e de promover a reordenação sócio-espacial é vista como um fator de instabilidade do sistema colonial. Para José de Carvalho e Melo - marquês de Pombal - “A única fonte de progresso e de fidelidade para o povo era a vontade real” (FRANCO; RITA, 2004, p. 34). Nesse clima, antijesuítico e secularizante, se deu a expulsão dos jesuítas da América, a fragmentação do território missioneiro e do seu espaço cultural. Com a expulsão dos jesuítas o território das missões (1767) passou a ser ocupado pelos colonos castelhanos, ficando a margem esquerda do rio Uruguai, entretanto, exposta às incursões dos portugueses, que disputavam o caminho que levava de São Paulo a Colônia do Sacramento. A revisão do Tratado de Madrid através do de Santo Ildefonso (1777) promoveu embates que tiveram repercussões sobre as populações

224

fronteiriças. A maior tensão se projetou sobre as regiões do Iguatemi, de onde os portugueses foram desalojados, e da Colônia, onde havia significativas inversões e resistências à fixação da fronteira em função da grande mobilidade social e das intensas atividades econômicas desenvolvidas por grupos de diferentes origens étnico-culturais e nacionais. Assim, o tempo da fronteira que se estende do período da definição das possessões coloniais ao da delimitação dos territórios dos Estados nacionais emergentes é marcado por negociações e por intensos contatos sociais. Contatos que, observados a partir da perspectiva do encontro de diferentes mundos culturais, promoveram, em circunstâncias dadas, conflitos e fricções interétnicas, comunicação e negociação cultural, hibridismo e sincretismo cultural e, enfim, relações intersubjetivas onde as relações de poder sempre se fizerem presentes. É um período em que desconhecido e o ilimitado são desconstituídos e se decompõem a parte ilusória da fronteira. Na medida em que houve o recrudescimento da influência do ultra-absolutismo sobre as colônias e, consequentemente, a ascendência dos interesses do liberalismo, grupos nativos ou associados, sobretudo ao imperialismo inglês, buscavam a hegemonia local. Esses grupos começaram a construir de diferentes formas um sistema de referência cultural traduzido em uma comunidade imaginada, representada a partir dos seus interesses expressos em um discurso que buscou unificar as diferenças étnicas, de raça, de classe e de gênero em torno de uma identidade nacional. Assim, os referentes éticos e ideológicos veiculados pelo próprio sistema colonial são reinterpretados e unificados pelas sociedades colonizadas em torno de uma nova entidade política e identidade cultural, constitutivas de um novo poder, capaz de remover os limites impostos à liberdade individual e coletiva herdados dos colonizadores (QUEVEDO, 2006). Os sentidos produzidos a partir dos discursos de nação e da construção de uma condição política autônoma merecem a atenção do investigador no sentido de verificar a partir de que matrizes sociais e culturais eles são produzidos. No caso específico das nações e estados emergentes da bacia do Prata, diferentes motivações e ideologias alimentavam os conteúdos discursivos e repercutiram sobre os processos 225

de constituição de entidades políticas e da emancipação política. Processos que, aliás, não se traduziram na construção de uma identidade nacional, enquanto forma ampla e unificada da identidade cultural. Talvez seja possível buscar no horizonte do crioulismo paraguaio e no sentimento da pertença a uma grande família guarani as matrizes históricas e culturais de unidade nacional. Essa vertente autóctone da construção da unidade nacional certamente foi uma das razões do reconhecimento tardio da independência do Paraguai por parte de estados, como a Argentina, que construiu seu discurso de unidade nacional a partir de matrizes culturais européias. As expressões regionais da cultura, portadoras de símbolos, representações e práticas que emergiram historicamente de ambientes de interação e de tensão, constituem fortalezas que resistem aos processos unificadores das culturas. A pluralidade dos coletivos, historicamente constituídos em contextos regionais multiculturais, pode ser uma das razões explicativas do dificultoso caminho do reconhecimento e da construção de uma identidade nacional no Brasil. Assim, as manifestações e as revoltas regionais apresentaram-se como formas de resistência e expressão da singularidade sociocultural em meio à tentativa da redução da pluralidade à unidade discursiva de um ente nacional. A unidade e a identidade nacional na fronteira sul foram forjadas num contexto de conflitos de fronteira, onde atores de diferentes origens étnicas, culturais e sociais se movimentaram num espaço partilhado a partir de relações horizontais que os aproximou em torno de símbolos, representações e práticas culturais construídas em comum, porém na diferença. Esses elementos da identidade historicamente constituídos a partir da horizontalidade das relações socioculturais se transformam em forças que potencializaram a ação em busca do reconhecimento. Nesse contexto, emergiu um tipo sociocultural simbolizado em torno da figura do gaúcho, portador dos ideais da bravura, da liberdade e de hábitos e costumes ligados à vida do campo. Constituiu-se, dessa forma, uma fronteira cultural em territórios transfronteiriços que não se reduziu e nem se fragmentou diante dos interesses interpostos verticalmente no processo da constituição das fronteiras nacionais. Na luta pelo reconhecimento dos novos entes nacionais e dos seus respectivos territórios os movimentos impulsionados pelos discursos da

226

unidade nacional não conseguiram criar, pela acepção de Benedict Anderson (2008), uma comunidade política imaginada que fosse capaz de nos despertar diferentes grupos culturais um sentido de pertencimento comum. Em alguns casos, como assevera Charles Quevedo (2006, p. 239), estes grupos: (...) somente tem substituído uma elite dominante por outra; em outros, a luta entre grupos étnicos diversos pela hegemonia e o controle dos estados pós coloniais emergentes, deu lugar a posteriores divisões fragmentações e segregações, quando não a verdadeiras guerras ou massacres.

O tardio reconhecimento da independência da República do Paraguai reflete as posturas das elites nacionais, a exemplo dos estados emergentes do Brasil e da Argentina, impondo condições que resguardavam interesses plantados ainda no período colonial, sobretudo os relativos à navegação dos rios Paraná e Paraguai. A Argentina somente reconheceu a independência paraguaia e a livre navegação dos rios em 17 de julho de 1852 em troca da renúncia do território de Missiones pelo Paraguai (CARDOZO, 1987). Assim, a luta pelo reconhecimento das fronteiras em espaços culturais de grande mobilidade e comunicação cultural entre grupos de diferentes origens étnicas e sociais promoveu rupturas não só em relação às formas de apropriação e de organização dos territórios, mas, também, nos modos de representação e da recriação da cultura. Os ajustes negociados na década de 1850 por plenipotenciários para estabelecer a línea divisória entre o Império brasileiro e a República do Paraguai evidenciam posições divergentes acerca do reconhecimento da fronteira a partir dos espaços culturais socialmente apropriados. Enquanto a posição dos representantes paraguaios, liderados por José Borges, assegurava o respeito aos agrupamentos humanos que haviam se estabelecido por primeiro, a dos brasileiros, sob a liderança de José Maria da Silva Paranhos, alegava que o direito que regulava as relações internacionais (uti posseditis) deveria levar em consideração duas exceções fundamentais: os tratados celebrados entre as coroas de Portugal e Espanha, que reconhecia como

227

vigentes e que só poderiam ser revogados mediante novo tratado. O Paraguai mantinha posição marcante em defesa do principio do uti posedetis e não reconhecia os tratados celebrados entre os impérios coloniais. “Se nulos, não há possessão definitiva”, alegava o representante paraguaio José Borges (QUESADA, 1920, p. 175). Resulta, enfim, que o Acordo assinado em 1856, precedido de uma série de conferências, inibia as relações interétnicas e culturais numa fronteira até então viva, uma vez que em seu artigo 22 definia que: Fica conveniado que mesmo não se chegue a estabelecer definitivamente o acordo de limites, os governos do Brasil e do Paraguai não fixarão e nem consentirão que seus súditos façam nada que se pareça ao estabelecimento, ocupação ou posse do terreno litigioso na margem esquerda do Paraguai, nem na direita do Paraná (QUESADA, 1920, p. 169).

Referenciou-se, dessa forma, uma fronteira embaraçada, com uma área litigiosa, que considerava o curso do rio Paraná como marco divisório e que respeitava os espaços apropriados das populações já estabelecidas, mas firmava que ambas as partes respeitariam e fariam respeitar o uti possidetis em vigor. As divergências persistentes em torno das fronteiras definidas em base ao conceito geopolítico de território nacional encontraram na variável espaço cultural um dos seus fundamentos. A posição do Império sustentava, ao contrário da República paraguaia: (...) onde não há posse efetiva, que regra jurídica servirá de critério para o delinde? (...) Não há território res nullis. (...) Para decidir a controvérsia entre o domínio da República e o do Império, convém remontar-se a origem deste domínio, toda a vez que as últimas populações ou estabelecimento de uma nação não se puseram em contato com os da outra, e estão separados por terrenos ainda despovoados, por sua natureza, por falta de população ou por outras causas que é desnecessário enumerar (QUESADA, 1920 .p. 178).

Essa discussão se alastrou por décadas até que, depois da Grande

228

Guerra2, os limites territoriais foram fixados em dissonância com os acordos anteriormente negociados. O primeiro Tratado foi firmado em 09 de janeiro de 1871 com o Brasil, através do qual: (...) o Paraguai perdia 62.325 km2 de ervais situados entre o rio Blanco e o rio Apa, permanecendo este rio como limite norte do Paraguai. Aceitava o pagamento de indenizações ao Brasil pelos prejuízos derivados dos gastos da guerra e dos danos causados aos seus súditos (GONZALES, 193 apud NÚNEZ GOMES, 2011, p. 121).

As fronteiras entre o Paraguai e a Argentina tiveram longa negociação, uma vez que afetaram visivelmente populações já estabelecidas nos territórios em litígio. As condições impostas pela Argentina ao Paraguai se materializaram no tratado firmado em 09 de fevereiro de 1876. Resultou desse tratado que a República do Paraguai, além do pagamento da dívida de guerra, tivesse que ceder à Argentina 94.090 km2 que integram os atuais territórios das províncias de Formosa e Misiones (NÚNEZ GOMES, 2011). Impostos os limites territoriais ao Paraguai, persistiram pendências entre o Brasil e a Argentina acerca da definição da fronteira do Território das Missões. As negociações bilaterais envolveram a intervenção arbitral do governo dos Estados Unidos que, em 1895, se posicionou favorável ao Brasil. Os embaraços da fronteira, com suas negociações e seus deslocamentos, tiveram repercussões sobre os atores sociais que se movimentaram na fronteira e sobre relações culturais derivadas dos seus contatos. A fronteira, enquanto espaço negociado e território duvidoso não apropriado em definitivo -, atraiu sujeitos de diferentes origens étnicas e culturais, como caboclos, descendentes de indígenas, crioulos e paraguaios, que haviam se estabelecido antes da Guerra da Tríplice Aliança. Tornou-se um espaço multicultural e, de certa forma, híbrido, não alinhado com a ideologia dos segmentos sociais e políticos que produziram o discurso das identidades nacionais. Com a intensificação do comércio pelos rios Paraná e Paraguai, fortemente impulsionado pela associação com o capital estrangeiro,

229

maiormente inglês e alemão, com os empresários argentinos, sobretudo para e exploração de madeira e erva mate, os contingentes humanos da fronteira foram incorporados como mão de obra nas empresas extrativistas. Instituiu-se, dessa forma, um regime de intensa exploração da força de trabalho, caracterizado pela instabilidade e pela grande mobilidade social. As empresas (obrages) recrutavam os seus trabalhadores (mensus) de diferentes lugares e os mantinham sob o seu controle, numa relação de dependência que limitava ao máximo as suas possibilidades e sua vontade de querer (WACHOWICZ, 1987). Insurgências, conflitos e perseguições criaram um ambiente de conflito nas fronteiras. Forjou-se, neste contexto, um espaço vivo de relações horizontais de transgressão e de resistência que deu origem a uma formação social transfronteiriça, não identificada com os marcos e a simbologia da fronteira. Neste sentido, pode se afirmar com Peter Burke (2010, p. 72) que o “(...) local que favorece a troca e a hibridação é a fronteira.” No final do século XIX e início do século XX os governos argentino e brasileiro passaram a intensificar as estratégias de ocupação territorial através da construção de estradas de ferro no sentido nortesul, que servissem de aporte logístico para promover a integração econômica e o povoamento, sobretudo das terras indígenas e dos espaços vulneráveis da fronteira. A questão era a de: “(...) buscar um sistema de organização conveniente para obter o povoamento de seus desertos, como populações capazes de indústria e de liberdade para educar seus povos (...)”. (ALBERDI, 1994, p. 189). Em 1887, o Ministro da Guerra da Argentina enviou um memorial ao Congresso Nacional enfatizando que: “O poder executivo nada espera das expedições aos toldos dos selvagens para queimá-los e arrebatar suas famílias, como eles queimam as populações cristãs (...)” (ALSINA, 1877, p. 38). Importava, segundo o ministro, povoar os desertos e não destruir o índio. A ocupação dos espaços vazios, sobretudo dos hiatos sociais e territoriais fronteiriços, foi motivada grandemente pela sua não identificação com a ideia de unidade e identidade apregoadas pelos discursos nacionais. A luta dos índios pela preservação do seu espaço tribal era tida como um problema que atentava contra o ideal de nação, uma vez que eles não se enquadravam no modelo de sociedade nacional,

230

que contrapunha “civilização e barbárie”. Índios, crioulos e caboclos beiravam, a partir desse entendimento, os limites da civilização, uma vez que a mobilidade social e espacial, a troca de produtos e a apropriação de suas territorialidades não expressavam o caráter estável de fixação do território. Eles favorecem, a partir do olhar de Adriana Dorfman (2009), o “contrabando”, burlam as regulações econômicas e o controle do território pelo Estado. A barbárie representava uma ameaça e a possibilidade da transgressão da fronteira do privilégio e do poder. Os hiatos das fronteiras como espaços indefinidos e sem identidade eram vistos como lugares incertos e sem futuro. Por essa razão, era preferível plantar os marcos da “civilização” através de um povoamento seletivo, referenciado em sujeitos sociais portadores de um sistema sociocultural constituído a partir da matriz européia. Partia-se do entendimento de que: “Os europeus das classes inferiores são ávidos de possuir a terra em propriedade, este é o único fim de suas aspirações (...) Os colonos irão defender a sua propriedade sem necessidade de outro estímulo que o do seu próprio interesse, o mais poderoso de todos” (IRIARTE, 1852, p. 30).

Nesse caso, a defesa da propriedade representava implicitamente uma proteção à integridade territorial. A política da colonização através da imigração se tornou pauta comum nas estratégias de ocupação territorial dos países fronteiriços da tríplice fronteira Brasil, Argentina e Paraguai. Ela foi dando lugar à ideia de fronteira agrícola, que passou a não ser rígida em relação aos limites territoriais, mas dinâmica em função dos contingentes populacionais que historicamente se deslocavam através de processos migratórios dirigidos ou espontâneos. O incentivo à imigração deslocou frentes agrícolas, com perfil étnico e cultural similar, portadores de elementos culturais alicerçados em símbolos, representações, práticas, hábitos e costumes em comum, norteados por referenciais éticos e estéticos responsáveis pela construção de espaços socioculturais marcados pela ambiguidade das identidades. Se as condições políticoinstitucionais se constituíram em fatores circunstanciados de negociação

231

e de adaptação cultural de um lado, de outro, a memória e a tradição representaram os elementos constituintes da modelação social e da organização dos espaços de recriação e de demonstração da cultura. A fragmentação de laços sociais imposta pelos limites da fronteira e a articulação das diferenças identitárias não impediram que entre os núcleos coloniais dos diferentes espaços fronteiriços os bens simbólicos e materiais historicamente constituídos fossem recriados, demonstrados e comunicados. A drástica redução populacional no Paraguai com guerra contra a Tríplice Aliança fez com que a atração de colonos europeus se tornasse uma prerrogativa para fomentar o desenvolvimento interno do país. A política imigratória paraguaia reduziu ao mínimo as exigências e os prérequisitos para promover a imigração estrangeira (KLASSEN, 2001; MASKE, 2004). As terras do Estado situadas ao longo dos rios e das ferrovias foram colocadas à disposição dos imigrantes. A imigração alemã passou a ser o alvo principal dessa política, uma vez que havia dado resultados satisfatórios nos Estados Unidos, no Brasil e na Argentina. No sul do Brasil os imigrantes alemães e seus descendentes, que haviam se estabelecido a partir de 1824, foram buscando novos espaços de colonização em função do esgotamento das fronteiras agrícolas. Assim, das colônias pioneiras foram se expandindo para as regiões da Serra, do Planalto, do Alto Uruguai e do Oeste Catarinense, em território brasileiro, transpondo as fronteiras para se estabelecer nos territórios missioneiros de Corrientes, Misiones (Argentina) e Itapua (Paraguai). No início do século XX as frentes de colonização do sul do Brasil iniciaram a colonização de Puerto Rico, Eldorado e Montecarlo na Argentina. A organização destes núcleos de colonização seguiu as diretrizes da Associação Riograndense de Agricultores – Bauerverein, que estabelecia um modelo de ocupação social do espaço centrado na pequena propriedade familiar, na organização comunitária - com vínculos societários firmados a partir da solidariedade étnica - e no associativismo. (SCHALLENBERGER, 2010). Lideranças emergidas da Bauerverein, a exemplo do jesuíta Max von Lassberg e do agrimensor evangélico luterano Helmut Culmey, exerceram mediação importante na escolha dos espaços de colonização e na organização e constituição dos núcleos de povoamento. Essas frentes de colonização foram atraídas pela política

232

imigratória do Paraguai e no início do século XX fundaram nas terras próximas as margens do rio Paraná, nas imediações das reduções de Trinidad e Jesus, a colônia de Hohenau, seguida das de Bela Vista e Obligado (KLIEWER, 1941). Os colonos de ascendência étnica alemã do sul do Brasil que se estabeleceram nos territórios argentino e paraguaio, apesar das fronteiras territoriais e institucionais, mantiveram vivas relações culturais através de correspondências, impressos e encontros, o que representa de certa forma uma rede de relações que caracteriza um espaço cultural transfronteiriço. A produção social desse espaço tornou presente um mundo simbólico e de referência ética e estética que identifica estes migrantes, traduzido em equipamentos que refletem a organização familiar, comunitária, associativa e cooperativa, presentes na cultura material destes grupos étnicos até os dias atuais. As fronteiras político territoriais não representam, neste caso, uma ruptura dos elos culturais, mas se interpõem como elemento distintivo em relação ao lugar da produção e da recriação da cultura, situando os colonos imigrantes e seus descendentes num ambiente de ambigüidade de identidades – a étnica e a nacional. As circunstâncias históricas que envolvem a mobilidade das fronteiras no período que sucede a fase da constituição dos núcleos de colonização reservam aos pesquisadores temas com aderência às atividades relacionadas à troca de bens e mercadorias (remédios, alimentos, pneus e outros), que sugerem a observação não só a partir da perspectiva da contravenção, mas, também, da complementaridade e da interação num cenário socioeconômico fronteiriço. Pode se entender desta forma que: “(...) comércio e contrabando são, pois, as faces de uma mesma atividade, a troca de bens e mercadorias, que atendem às necessidades da região” (SOUZA, 1996, p. 126). Por outro lado, o tráfico, o crime organizado e o furto passaram a dilacerar de forma crescente os laços sociais e transformaram os lugares de fronteira em espaços incertos e perigosos, inibindo valores como os da autenticidade, da criatividade e da liberdade. A projeção vertical de estratégias geopolíticas de desenvolvimento regional e de controle territorial, a exemplo da ITAIPU Binacional, promoveu deslocamentos que redefiniram o conceito de fronteira e 233

afetaram as relações culturais nos espaços fronteiriços. Além de trazer novos atores sociais para o cenário regional, a nova configuração espacial promoveu uma mobilidade social marcada pela migração interna e transfronteiriça, responsável pela desconstituição de fronteiras culturais, pela efemeridade das relações sociais e pela insegurança nas e das fronteiras. A instituição do MERCOSUL, mesmo tendo entre os seus objetivos, o de integrar os controles nas fronteiras internas, não conseguiu dar conta da percepção da sua vulnerabilidade, e, tampouco, da integração econômica, social e cultural das populações que nelas residem e se movimentam. Em circunstâncias e contextos históricos diferentes dos que mobilizaram as frentes imigratórias espontâneas, incentivadas pelas políticas de colonização e de fixação dos territórios nacionais, a injunção do processo de expansão capitalista, sobretudo a derivada da vertente do agronegócio, passou a exercer pressão sobre a propriedade da terra e, consequentemente, comprimir as pequenas unidades produtoras, obrigando os seus usuários a buscarem espaços produtivos em novas fronteiras internas ou externas. Esses deslocamentos geraram um fenômeno cultural complexo que pode ser observado a partir da ambiguidade dos sentidos construídos pelos atores sociais que se movimentam neste novo cenário. É um processo constituinte de relações culturais marcadas pela permanência, referenciada na memória e na tradição, pela negociação cultural e, em certos casos, por certo hibridismo cultural, que enseja o novo. É pertinente que neste longo tempo histórico, da conquista territorial da América Meridional à negociação continuada das fronteiras nacionais, as lentes teóricas do pesquisador visualizem a possibilidade de novos modos de existência e de novas relações socioculturais que permitam entender experiências societárias inovadoras – heterotopías (FOUCAULT, 2000). Estas experiências desconstituem as utopias preconcebidas, inquietam, alteram sentidos, invertem relações dominantes e definem espaços reais, construídos pelos movimentos históricos da conquista, da colonização e da interação das frentes imigratórias com os atores sociais dos diferentes ambientes culturais (RUIDREJO, 2006). A acomodação teórica que privilegia tão somente as relações verticais de poder como forma simples de subjugação de um

234

mundo cultural por outro é muito cômoda e pouco crítica. Conduz à admissão de certo estado de inferioridade e impotência que tributa ao passado a dependência estrutural da América Latina e a sua incapacidade de superar os desafios presentes de uma possível mudança sociocultural e política. NOTAS EXPLICATIVAS Doutor em História e Professor Associado da Unioeste/Campus de Toledo, onde atua na Graduação e PósGraduações em Ciências Sociais (Mestrado) e Agronegócio e Desenvolvimento Regional (Mestrado e Doutorado). 1

2

A Grande Guerra se refere ao conflito da Tríplice Aliança Argentina, Brasil e Uruguai com o Paraguai.

REFERÊNCIAS ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1976. ALBERDI, Juan Baustíta. Fundamentos da organização política da Argentina. Tradução Angela Maria Naoko Tijiwa, Campinas: Editora da Unicamp, 1994. ALSINA, Alfonso. La nueva línea de fronteras. Memoria especial presentada al Honorable Congreso Nacional por el Ministro de la Guerra. Buenos Aires: Porvenir, 1877. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas - Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ________. Comunidades imaginadas. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras, 2008. ANGELIS, Pedro de. Colección de obras y documentos relativos a la Historia Antigua y Moderna de las provincias del Río de La Plata. Tomo IV, Buenos Aires: Imprenta del Estado, 1836. (Edição digital da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2002). Portal: Academia Argentina de Letras BARCELOS, Artur H. F. Mergulho no Seculum: exploração, conquista e organização espacial jesuítica na América espanhola. (Tese) Porto Alegre: PUCRS, 2006. BHABHA. Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo, RS: Editora UNISINOS, 2010. CARDOZO, Aníbal. La crítica de la arquitetura como crítica de la cultura. El caso paraguayo. In: SANCHO, A. T; MARTÍNEZ, J. M. B. Pensar en Latinoamerica. Asunción: Jakembó Editores, 2006, pp. 125-129. CARDOZO, Efraim. Breve Historia del Paraguay. Asunción: El Lector, 1987. ________. El Imperio del Brasil y el Río de la Plata. Antecedentes y estallido de la guerra del

235

Paraguay. Buenos Aires: Librería del Plata, 1961. CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1750). Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1951, Parte III, T.I. DORFMAN, Adriana. A cultura do contrabando e a fronteira como um lugar de memória. Estudios Históricos – CDHRP, Nº 1, mayo 2009. FEIBER, Silmara Dias. O espaço estético como expressão social na arquitetura jesuítica – uma abordagem geográfica. Curitiba: UFPR (tese de doutorado), 2013. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2000. FRANCO, José E.; RITA, Annabela. O mito do Marquês de Pombal – a mitificação do primeiroministro de D. José pela maçonaria. Lisboa: Prefácio, 2004. FURTADO, Júnia Ferreira. Guerra, diplomacia e mapas: a Guerra da Sucessão Espanhola, o Tratado de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville. Topoi, v. 12, n. 23, jul.-dez. 2011, p. 66-83. GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. GONZALEZ, Teodósio. Infortúnios del Paraguay. Buenos Aires: Talleres Graficos Argentinos L. J. Rosso, 1931. IRIARTE, General Tomás. Memoría sobre inmigración y línea de fronteras sobre los índios salvaje. Buenos Aires: lmprenta de! Estado, 1852. KLASSEN, Peter. Die Mennoniten in Paraguay: Reich Gottes und Reich dieser Welt. BolandenWeierhof: Mennonitischer Geschichtsverein, 2001. KLIEWER, Friedrich. Die deutschen Volksgruppen in Paraguay. Hamburg: Verlag Clio, 1941. MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade. Revista FAMECOS, Porto Alegre, N. 15, pp 74-82, 2001. MASKE, Wilson. Entre a Suástica e a Cruz: a fé menonita e a tentação totalitária no Paraguai. Curitiba: UFPR (tese de doutorado), 2004. NÚÑEZ CABEZA DE VACA, Álvar. Comentários. Curitiba: Farol do Saber, 1995. NÚÑEZ GÓMEZ, Demétrio Gustavo. Limites territoriales: deuda de guera impuesta al Paraguay trás la guerra de la Tríplice Alianza - pasado-presente. In: SCHALLENBERGER, Erneldo (org). Identidades nas fronteiras: territórios, cultura e história. São Leopoldo: ÓIKOS, 2011, pp. 100138. QUESADA, Vicente G. História diplomática latino-americana III – La política imperialista del Brasil y lãs questiones de limites de lãs republicas sudamericanas. Buenos Aires: Casa Vaccaro, 1920. QUEVEDO, Charles. La identidad cultural a partir de la teoria postcolonial. In: SANCHO, A. T; MARTÍNEZ, J. M. B. Pensar en Latinoamerica. Asunción: Jakembó Editores, 2006, pp. 235240.

236

RUIDREJO, Alejandro. Foucault. de las Repúblicas Guaranies del Paraguaya uno ontologia de nuestro presente. In: SANCHO, A. T; MARTÍNEZ, J. M. B. Pensar en Latinoamerica. Asunción: Jakembó Editores, 2006, pp. 241-251. SCHALLENBERGER, Erneldo. Associativismo cristão e desenvolvimento comunitário – Imigração e produção social do espaço colonial no sul do Brasil. Cascavel: EDUNIOESTE, 2009. SCHMÍDEL, Ulrich. Viaje al Río de la Plata (1534-1554). Buenos Aires: Cabaut y Cia. Editores, 1903, LI, LII. SOUZA, Susana B. de. Os caminhos e os homens do contrabando. In CASTELLO, Iara Regina (Org.) Práticas de Integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS. 1996. TAUNAY, Affonso d’E., O bandeirismo e os primeiros caminhos do Brasil, em: Curso de bandeiralogia. São Paulo: Departamento Estadual de Informações, 1946. WACHOWICZ, Ruy C. Obrageros, mensus e colonos – história do oeste paranaense. 2 ed. Curitiba: Vicentina, 1987.

237

238

APUNTES SOBRE LOS MÁRGENES: FRONTERAS, FRONTERIZACIONES, ÓRDENES SOCIOTERRITORIALES

María Lois1

Hace unos meses, cuando comenzaba a recopilar información periodística para incluir en un artículo sobre fronteras en América Latina, dos noticias llamaban mi atención; el día 24 de abril, Bolivia presentaba una demanda contra Chile ante la Corte Internacional de Justicia de La Haya (Holanda), reclamando una salida al mar, al Océano Pacífico2. Casi al mismo tiempo, se publicaba una actualización del Eurobarómetro, cuyos resultados establecían que el 62 % de los encuestados afirmaba que la libertad de circulación sería el principal logro del proyecto de integración desarrollado por la Unión Europea3.En ambas noticias encontraba algunas de las características generalmente más difundidas de los imaginarios ligados a las fronteras: por una parte, los diferendos fronterizos, las disputas por los límites en América Latina. Profundizando en la cronología de la noticia, podríamos interpretar que el cuestionamiento del límite marcado en el tratado de Paz y Amistad firmadoen 1904 y los discursos estadocéntricos que despliegan ambas partes respecto a la opinión pública recolocaría a las fronteras, a su delimitación, en el centro de la soberanía estatal. La instancia implicada en la resolución de la demanda jurídica, un tribunal localizado en Europa, remarca la vinculación de los diferendos con los procesos de colonización y descolonización de la región, re-creados algunos siglos después, pero irremediablemente anclada en el pasado. Mientras tanto, en medio de una crisis económica y política, en el espacio de la Unión Europea la 239

normalización de la libre circulación entre países miembros podría convertirse en el baluarte de un proyecto institucional claramente cuestionado. Incluso podríamos asumir que la mayoría de los ciudadanos entienden el espacio Schengen como un territorio de libre circulación, con un régimen de movilidad absolutamente laxo, practicado por nómadas libres de las ataduras territoriales de los viejos Estados. En ese universo de cosmopolitanismo líquido, las fronteras interestatales serían poco más que reliquias de un pasado lejano. Esta lectura del pulso fronterizo en ambos lados era, sin duda, un lugar seguro, confortable, desde la que comenzar a escribir un capítulo de un volumen colectivo a publicar en Brasil. Algunos de los atributos de la imaginación geopolítica moderna (AGNEW, 2005) me empujaban definitivamente a seguir esta línea: la evocación de una división regional, jerárquicamente definida, donde uno de estos bloques, a causa de su carácter extraeuropeo (por tanto, más atrasado en experiencia histórica), estaría atrapado en un intento de significarse a partir de uno de los atributos claves de la búsqueda de un lugar en el horizonte político, esto es, a través del cuestionamiento territorial de la imaginación estatal, a través de una demanda por la delimitación fronteriza. Una generalización de estas características, ayudada por las recurrentes noticias sobre diferendos pendientes de resolución en América Latina, proporcionaría una visión homogénea de las características sociopolíticas de la región, definida desde su división territorial respecto a otros espacios. La cuestión es que, desde la incomodidad intelectual que produce un cierto escepticismo hacia las divisiones regionales en particular, y hacia la Transitología en general, me parecía más imaginativo proponer, desde el mismo contexto de producción, una visión algo desenfocada, proyectada desde una minúscula incisión dentro de las miradas preferentes. Así, el presidente boliviano Evo Morales inauguraba, casi un par de meses después de la incursión en La Haya, un tramo de carretera del Corredor Bioceánico Pacífico-Atlántico4. Proyecto mayoritariamente financiado por la Corporación Andina de Fomento (CAF), esta ruta uniría los puertos atlánticos del sur de Brasil con los del norte de Chile a través de territorio boliviano, desde una imaginación transfronteriza de integración regional entendida como un necesario impulso al comercio. También, a principios de junio, se debatía en el Parlamento Europeo las

240

dimensiones de una reforma de la regulación del espacio Schengen5 ; cuestión recurrente desde la denominada ‘primavera árabe’, e impulsada desde la Comisión, la idea sería regular los requisitos necesarios, el contenido de las circunstancias excepcionales necesarias para justificar la reintroducción temporal de controles internos, en las fronteras interestatales6. En esta segunda incursión en el mundo de las noticias sobre fronteras, la referencia a diferentes proyectos de integración en la región latinoamericana iba en paralelo a las reincidentes peticiones de varios países miembros de la UE de una mayor flexibilidad en las condiciones de suspensión unilateral del tratado de Schengen. Las imaginaciones regionales en torno a dinámicas fronterizas se saturaban con diferentes ángulos y perspectivas, que se cruzaban para incorporar, por un lado, proyectos de integración en América Latina, que implican al país envuelto en un diferendo fronterizo por la salida al mar con Chile; y, por otro, la poderosa visión de las fronteras como dispositivo de control de movilidad, periódicamente desplegada como icono territorial contra la inseguridad de los estados de la Europa occidental. La tercera etapa del recorrido periodístico sobre fronteras llegaba a una localización desordenada, esto es, la de las fronteras de la Unión Europea en América Latina7. En realidad, el ejemplo paradigmático de una fronteras localizada más allá de la mirada regional. Surinam reclama a la Guyana francesa la soberanía de un área de 5.000 kilómetros cuadrados situados entre el río Marouini (Maroni) y el Litani (Itany), ambos afluentes del río Lawa. El diferendo, como es frecuente, data de tiempos coloniales, cuando Francia y Holanda sometieron la disputa al zar ruso en 1891. Surinam aceptaba en un principio la frontera propuesta por Holanda en el momento de su independencia (1975), aunque luego se mostraba dispuesto a aceptar la delimitación propuesta por Francia (1977), a cambio de ayuda para el desarrollo. Sin embargo, un acuerdo más reciente cerrando la diferencia estaría pendiente de ratificación. Maroni es también el apellido de un ex ministro de Interior italiano, Roberto. Maroni fue el promotor y responsable de la implementación, en 2008, del llamado Pacheto Sicurezza (algo así como Paquete de Seguridad), la primera de una serie de medidas periódicas destinadas a mantener la seguridad en el país. En su primera edición, el Paquete elevaba a la categoría de delito la inmigración irregular, criminalizando 241

y racializando al sujeto móvil a través del vínculo entre los asentamientos gitanos en ciudades como Roma o Verona, y la inseguridad ciudadana, en línea con el discurso y la práctica política de su partido, la Liga Norte. Pese a las continuas denuncias públicas de racismo y xenofobia, la defensa del gobierno italiano de la suspensión del tratado de Schengen, y su uso de las fronteras como dispositivo territorial de control de movilidad, convertía a Rumania, país miembro de la UE y también de origen de parte de estos colectivos, en el último peldaño de una gradación de membresías dentro de la Unión, la de los ciudadanos abyectos de Europa (HEPWORTH, 2012). En torno a los Maronis, entonces, se reconfirmaba ya la superposición de significados complejos y formatos diversos de las fronteras en Europa, donde se mezclan el topónimo de un accidente geográfico utilizado como marcador de las delimitaciones territoriales colonialescon los diferentes estatus de ciudadanía ligados a los regímenes de movilidad de la Unión Europea; pero también están las prácticas de fronterización de la Unión Europea, ligadas a la ayuda al desarrollo como espacio de transacción y eliminación de las diferencias políticas8, que, en este caso, aparecen como mecanismo clave de la negociación del diferendo por parte del receptor latinoamericano, de Surinam; al tiempo, nos encontramos con un diferendo en el trazado del límite fronterizo, en este caso, en la frontera europea localizada en la región latinoamericana. Toda esta incursión periodística abunda en las aristas de las nociones de límites y de fronteras; más allá de lo anecdótico, aparecen visiones fragmentadas, procesos superpuestos, donde las fronteras y los límites cambian, se trasponen, y, sobre todo, muestran especificidades culturales e históricas, por su carácter de procesos multidimensionales. Establecen y marcan referentes, espacializan contextos geohistóricos de representación del espacio y el tiempo colectivos, y por tanto, de producción y reproducción del orden social, afectando no solo a las prácticas materiales, sino también a la comunidad de destino, a los espacios de imaginación cotidianos, desde donde construimos los horizontes simbólicos de las prácticas y representaciones sociopolíticas. Como acabamos de ver, las formas en las que se delimitan y definen esas comunidades espacialmente están en cambio constante. La socialización espacial, entendida como proceso a través del que los actores

242

individuales y las colectividades son socializados como miembros de entidades territorialmente delimitadas y adoptan formas específicas de pensamiento y acción (PAASI, 2007:15; 1996:54), está en permanente construcción y reconstrucción. Por tanto, el orden socioterritorial, también. La reflexión que presento a continuación es un conjunto de apuntes sobre las fronteras en Europa, desde una geografía política fragmentada, y con vocación provinciana. A partir de la perspectiva – últimamente popularizada por la crisis- de los múltiples espacios europeos, la idea es mostrara una serie de dinámicas que ocurren en el contexto de las fronteras interestatales de la Unión Europea como pretexto, desde el parroquialismo y la inevitable heterogeneidad espacial, para plantear algunas cuestiones en torno al papel de las fronteras en el contexto europeo, a sus insalvables paradojas, a la variabilidad de sus espacios y sus tiempos, a sus vínculos con la territorialidad y la imaginación geopolítica moderna y, en definitiva, a la experiencia del homo geographicus (SACK, 1997) contemporáneo9. LAS FRONTERAS Y LA GEOGRAFÍA POLÍTICA10 Desde el inicio de su conceptualización por la ciencia social moderna, la frontera ha viajado mayoritariamente acompañada de su significado como límite. Considerado uno de los fundadores de la Geografía Política moderna, Ratzel definía a las fronteras como “el órgano periférico del Estado, el soporte de su crecimiento así como su fortificación, y participan en todas las transformaciones del organismo del Estado” (RATZEL, 2011: 147). De este modo, Ratzel situaba el discurso sobre las fronteras en un plano localizado más allá de lo político: podríamos diferir en términos de instituciones, de su mayor o menor efectividad; del diseño político. Pero si el territorio era para Ratzel el cuerpo “natural” del Estado, su frontera tendría que ajustarse a su crecimiento, no por imperativo político, sino por necesidad vital. Precisamente por su deriva orgánica, Ratzel no pensaba las fronteras como realidades inmutables, sino como parte consustancial del cuerpo político, de la comunidad política que no podía concebir sin fronteras. La mayoría de los trabajos sucesivos sobre fronteras abundaban 243

en esta concepción naturalista, prescriptiva respecto a la existencia de fronteras, y a su dimensión de límite lineal. Así, el coronel Holdich, por ejemplo, en una de sus más conocidas investigaciones sobre límites, cualificaba específicamente su carácter: “deben ser barreras, que cuando no son geográficas y naturales deben ser artificiales y tan fuertes como el dispositivo militar pueda hacerlas” (HOLDICH, 1916: 46). La naturalización del límite fronterizo, desde un énfasis en su dimensión defensiva y su vinculación con la soberanía territorial de los Estados, era uno de los rasgos fundamentales de los ejercicios de delimitación fronteriza de finales del siglo XIX y principios del XX. Algunos años más tarde, en consonancia con la evolución de la disciplina, comienzan a publicarse trabajos descriptivos enfocados ya desde la hegemónica perspectiva funcionalista. Buenos ejemplos serían las clásicas aportaciones de Hartshorne (1936) o Boggs (1940), que incluían ya tipologías de fronteras. En todo este período, esto es, la primera mitad del siglo XX, los trabajos publicados desde la Geografía Política continuaban siendo prescriptivos, incidiendo repetidamente en la importancia de delimitar, demarcar y administrar correctamente las fronteras. La idea básica era que una demarcación adecuada evitaría que los territorios de los Estados fueran fuente de conflicto. Los años 1970 supusieron un cambio tanto en la Geografía Política como disciplina como en los estudios sobre fronteras. Trabajos como los de Guichonnet y Raffestin (1974), y algo más tarde, el de Foucher (1991) colocaban la investigación sobre fronteras dentro de una visión más amplia, al conectarla con la discusión central de la subdisciplina, esto es, la relación entre espacio y poder.Estas aportaciones comenzaron a cuestionar algunos de los mitos en torno a la naturalidad de los límites fronterizos, y, definitivamente, abrieron nuevas vías en su conceptualización. Pero será en los años 1990 cuando se transforme definitivamente el panorama de la investigación sobre fronteras, en buena parte gracias a la generalización de retóricas político-territoriales desde donde se proyectaban nuevas bases fundacionales para el mapa político mundial. Así, en una conocida revisión sobre narrativas en torno a límites y fronteras, Newman y Paasi (1998) identificaban varias de las principales cuestiones en torno a las que giraba la investigación en aquellos años. Una de ellas, muy presente en las investigaciones en torno a los llamados

244

“procesos de globalización” (MATO, 2001), era la que asumía una progresiva desaparición de las fronteras (1998: 191; ver, por ejemplo, OHMAE, 1990). El referente de un futuro mundo sin fronteras se convertía en una cuestión de discusión durante al menos una década. Sin embargo, el paso de los años confirmaba no sólo la pervivencia de las fronteras, sino también su multidimensionalidad espacial y temporal, algo que periódicamenteobliga a actualizar debates teóricos y metodológicos. En palabras de Balibar, “vivimos en una coyuntura de constante vacilación de las fronteras ¯tanto de su trazado como de sus funciones¯ que es, al mismo tiempo una vacilación de la propia noción de frontera, que se ha convertido en particularmente equívoca” (BALIBAR, 1998: 217-218). La equivoca noción de fronteras, entonces, requiere una persistente e inconfortable actualización en la incorporación de perspectivas, contextos y herramientas de análisis desde las que trabajar su complejidad. EL QUÉ Y EL CÓMO EN LOS ESTUDIOS DE FRONTERAS En los últimos años, muchos son los trabajos que han insistido en la necesidad de adoptar una perspectiva multidimensional en la investigación sobre fronteras (PERKMANN-SUM, 2002; PAASI, 2005; NEWMAN, 2006; VAN HOUTUM et al, 2005; AGNEW, 2008; KUUS, 2010; ZAPATA-BARRERO, 2012; ZÁRATE, 2012), y en su conceptualización como procesos históricamente contingentes (NEWMAN y PAASI, 1998: 201). Si las fronteras crecieron como parte de los Estados y de su creación, las identificaciones políticas se construyen a través de “prácticas de fronterización” (bordering practices) (KUUS, 2010: 671-672), entendidas como “una amplia gama de procesos transformativos y afectivos en los cuales los órdenes y desórdenes sociales y espaciales son constantemente reelaborados” (WOODWARD y JONES, 2005: 236). Re-pensar las fronteras a través de las prácticas de fronterización supone entender dichas prácticas como algo implícito en la construcción de esas fronteras, no analizables como desarrollos incompletos o acabados, “sino en constante proceso de materialización” (PROKKOLA, 2008: 15). Asumir, entonces, el carácter equívoco de las fronteras (AGNEW, 2008: 176), y los cambiantes y contradictorios 245

procesos en torno a su constante reproducción, se convertía, en la década de 2000, en una posibilidad de superar una conceptualización de las fronteras en términos binarios, como mecanismos de delimitación entre Estados; al tiempo, permitía dejar de pensarlas como lugares en proceso de desaparición, o como estructuras permanentes, estáticas y espacialmente localizables. Si bien las fronteras han sido proyecciones territoriales del poder infraestructural del Estado (O´DOWD, 2010), imaginarlas como las líneas fronterizas en las que se materializa el control político y social a través de la separación de espacios dejaría de lado una amplia gama de matices desde los que mirarlas. En ese sentido, y retomando el ejercicio de la mirada cruzada entre Europa y América Latina, podría ser paradigmática una anécdota relativamente reciente. En octubre de 2012 recibía un mail de una colega argentina; a raíz de una baja de última hora, una hermana suya venía a Madrid, a presentar su trabajo en un Congreso internacional sobre educación, y pedía ayuda para entrar en España. En Buenos Aires, se acercaba a la Cancillería a averiguar cuáles serían los requisitos para su ingreso en el país. Allí le hicieron una lista interminable, siendo la visita de la contraparte en destino a la Comisaría un requisito innegociable; en dicha Comisaría, en Madrid, además de unos plazos de inicio imposibles de cumplir ante la inminente llegada, se requería una carta de invitación, firmada ante notario, además de otra serie de pruebas fehacientes de situaciones de copresencia previa respecto a la persona invitada. Tratando de descifrar los códigos de las prácticas burocráticas desplegadas en torno a la entrada en España, el contacto con individuos que habían cruzado esa frontera, y en mayor o menor medida familiarizados con esta práctica, nos llevó a decidir que una carta de invitación explícita del Congreso, un billete de avión cerrado y una reserva en un hotel de dos días podría ser una forma de solucionar la cuestión de cruzar la frontera para un viaje de trabajo. En el aeropuerto de Barajas nadie preguntó nada. Ni a qué venía ni cuándo se iba, ni dónde se quedaba ni cuando era su fecha de regreso. El viaje se completó sin necesidad de más pruebas documentales que un pasaporte en vigor. La construcción de redes y procesos burocráticos articulada por actores institucionales se desmantelaba ante la implementación de los agentes de política fronteriza: al tiempo, se hacía evidente la vinculación entre la construcción de

246

frontera y la capacidad de agencia, esto es, individuos o colectivos que subvierten, cuestionan o construyen esa frontera, y las especificidades de su cruce. Así, la anécdota redundaba en cuestiones de trabajo fundamentales: ¿dónde estaba el límite fronterizo en este viaje?, ¿en los agentes de seguridad que trabajan en el aeropuerto de Barajas?, ¿en la comisaría del barrio de destino?, ¿en el notario que certifica una carta de invitación?, ¿en los funcionarios de la Cancillería del país de origen?, ¿en las narrativas de las personas que desafiaron el ritual oficial en base a su propia visión y experimentación de la esa frontera?... En definitiva, aparecía claramente una pregunta clave: ¿cómo y para quién se proyecta la fronterización entre ambos Estados? El mismo tipo de cuestiones, formuladas de un modo más elaborado y académico, también ha sido motivo de una reciente discusión entre expertos (JOHNSON et al, 2011: 61-69): ¿dónde está la frontera en los estudios sobre fronteras? Abordar la investigación sobre fronteras como mecanismos multidimensionales de la producción de límites, pero en múltiples escalas y en múltiples lugares requiere también una mayor sofisticación conceptual que permita incorporar diferentes escalas, actores, prácticas y contextos a un marco teórico general. Los plazos de solicitud de una certificación notarial, la virtualización de la emisión de visas, la creación de fronteras supraestatales, o las narrativas, experiencias y visiones de individuos y colectivos remiten a prácticas de fronterización alejadas del límite fronterizo, y que han de formar parte necesariamente de un marco de referencia donde el tiempo y el espacio frontera son elásticos. La frontera se disloca espacialmente (e.g., en oficinas policiales, aeropuertos, oficinas de emisión de visados, terceros países, etc.), y se dilata temporalmente, en un proceso que va mucho más allá de la inmediatez del cruce del límite fronterizo. El cómo se despliegan y producen prácticas de fronterización se confirmaba, entonces, como cuestión de investigación (LOIS Y CAIRO, 2011), entonces. El dónde, obviamente, también, desde una imperiosa desencialización de la relación entre contexto geográfico y dinámicas de frontera. Así, el acercamiento al contexto europeo de la Unión Europea será el pre-texto para ir dando contenido a unos apuntes parafuturas investigaciones.

247

FRONTERAS EN EUROPA: LUGARES PARA EL CENTRO, LUGARES PARA LA PERIFERIA Siguiendo la lógica experimental más clásica, la espacialización del proyecto institucional de la Unión Europea sería uno de los laboratorios más interesantes para acercarnos a procesos de fronterización, y a los significados territoriales de la idea de Europa. Por una parte, una de las principales consecuencias de la construcción del espacio Schengen ha sido el fortalecimiento del límite exterior de la Unión, en una suerte de frontera móvil, ligada a los procesos de ampliación de la UE hacia los nuevos miembros, pero, al mismo tiempo, explícitamente delimitada. Así, acciones como las desarrolladas a través de FRONTEX y los acuerdos con Terceros Países Seguros (CASAS et al, 2011), además de externalizar el propio control fronterizo, inciden en la dinámica de dislocación espacial y temporal de la frontera, mostrando su permeabilidad selectiva. Al tiempo, confirman, entre otras cosas, una racialización de la migración (VIVES, 2011), que se reproduce transversalmente y estructura imaginarios en torno a características físicas y lugares de procedencia (van Houtum, 2010). Estas dimensiones se han ido configurando como claves en la producción de un imaginario de frontera, y en su concepción como dispositivo de control de la movilidad, al estilo Maroni. Sin embargo, en un territorio atravesado por procesos de desigual espacialización de los límites, también se multiplican las perspectivas éticas y políticas en torno a las fronteras; si bien una parte de los estudios sobre fronteras de/en Europa se centran en un imaginario fronterizo espectacularizable, hiperrepresentado a través de las prácticas de riesgo y represión de su cruce irregular y en los mecanismos de seguridad proyectados de manera similar al esquema de territorialidad estatal más clásica, la presencia de diferentes regímenes de movilidad, desiguales procesos de acceso, y, en definitiva, de modos variables y móviles de construir frontera en el mismo espacio de referencia es cada vez más frecuente11. Mientras tanto, en las soporíferas fronteras interestatales de la Unión, se dirimen los contenidos políticos de las circunstancias excepcionales que se negocian a través de prácticas como los controles

248

de pasaportes en la frontera entre España y Francia al entrar en el Train à Grande Vitesse (TGV) francés; la ausencia de ellos en algunos de los límites que cruzan los autobuses de larga distancia;o las cámaras de vigilancia instaladas en la parte holandesa del límite fronterizo con Alemania. En términos de procesos internos, la entrada en vigor del tratado de Schengen también condiciona la imaginación espacial del proyecto de la UE. Así, incorporamos una de las geniales paradojas que Diez (2006) describe como inevitablesen un trabajo sobre Europa y la Unión Europea, esto es, que el reconocimiento de las fronteras interestatales multiplica los significados de estos límites; su dessecuritización implica una subversión de su dimensión más evidente (DIEZ, 2006: 238-239), la de diferenciación territorial de grupos sociales; y, al tiempo, una volátil y constante re-inscripción de las fronteras en la imaginación geográfica cotidiana en relación al proyecto espacial de la Unión. En cualquier caso, la imaginación espacial ligada a la Unión Europea es la de la Europa de las regiones; estas funcionarían como un conjunto de entidades funcionales que conectarían y mejorarían la competividad de las regiones en diferentes escalas. Este proceso se materializaría en “la introducción de nuevos procesos y estructuras institucionales que funcionan en nuevas escalas y transgreden las fronteras estatales, creando nuevas posibilidades de acción” (JENSEN y RICHARDSON, 2004: 24). Así, la política regional de la Unión Europea se basa en crear regiones capaces de desempeñar plenamente su papel en favor de un mayor crecimiento y competitividad e intercambiar al mismo tiempo ideas y buenas prácticas. Este es precisamente el objetivo teórico de la iniciativa “Las regiones, por el cambio económico”12: la política regional en su conjunto coincide con las prioridades que se fija la Unión Europea en favor del crecimiento y el empleo, tal y como se refleja en documentos programáticos clave, como la Estrategia de Lisboa. Esa es la teoría. Pero resulta interesante ver también cómo se practica la frontera, a través de qué mecanismos se subvierte su significado. Así, en términos de prácticas institucionales, el 75% de las regulaciones de la UE son implementadas a nivel de las regiones (EVERS, 2006: 81, apud LAMBREGTS et al., 2008: 46), y alrededor de un tercio del presupuesto comunitario se destina al desarrollo regional. Dentro de 249

ese proceso, la regionalización transfronteriza se habría convertido en un icono de la política territorial de la Unión. Entendiendo por región transfronteriza aquella entidad territorial que contiene unidades subnacionales de uno o más Estados (PERKMANN y SUM, 2002:3), el proceso de regionalización implicaría, al menos teóricamente, a los actores regionales y locales (institucionales y no institucionales; públicos y privados) en estrategias de desarrollo, a través de la promoción de formas de gestión donde el Estado ya no sería el principal agente de regulación política. Son instrumentos como las iniciativas INTERREG o las Redes Transeuropeas los que aportan el marco regulador de la construcción del desarrollo de regiones transfronterizas; de hecho, el territorio de la Unión Europea suele presentarse como el territorio de fronteras por excelencia: “las regiones fronterizas representan el 40% del territorio de la Unión Europea y un 25% de su población […] Las regiones situadas enteramente a lo largo de las fronteras internas de la Unión, esto es, las fronteras entre estados miembros, forman un grupo heterogéneo que supone el 27% del territorio de la Unión y el 18% de su población” (EC 2002). Tras las sucesivas ampliaciones, “el aumento del suelo fronterizo comunitario y su extensión implica que el valor añadido de la cooperación transfronteriza (…) debe ser incrementado” (EC 2006/ 1083). En ese sentido, los programas de trabajo de la Unión Europea para resignificar las fronteras entre los Estados miembros se basan en un modelo de desarrollo cuyo eje fundamental sería el turismo. Especialmente desde la firma del Tratado de Maastricht, en 1992, el turismo ha pasado a ser oficialmente reconocido como uno de los ejes fundamentales del desarrollo promovido por la UE: “La infraestructura creada para el turismo contribuye al desarrollo local, y se crean o mantienen puestos de trabajo incluso en zonas en declive industrial o rural, o que están en proceso de regeneración urbana. La necesidad de mejorar el atractivo de las regiones sirve de incentivo para que un número creciente de destinos y partes interesadas promuevan prácticas y políticas más sostenibles y positivas respecto al medio ambiente”13. El turismo se representa como futura actividad económica y motor de desarrollo en las periferias rurales de Europa, entre las que se encuentras las zonas fronterizas de los diferentes Estados. Así, el desarrollo del turismo estaría vinculado con la promoción de una conciencia regional y, al tiempo,

250

refleja la ambición de promover la integración a través de las fronteras internas de la Unión (PROKKOLA, 2007: 124). Este modelo de desarrollo, presente no sólo en el mencionado INTERREG, sino también en iniciativas como el LEADER, la Carta Europea del Turismo Sostenible o la Agenda 21, presenta características específicas: “El turismo sostenible desempeña un papel esencial en la preservación y la rehabilitación del patrimonio cultural y natural en un número creciente de ámbitos, que abarcan desde el arte a la gastronomía local, pasando por los oficios o la preservación de la biodiversidad”14. Las iniciativas de la Unión Europea, entonces, suponen una fuente de financiación para las actividades fronterizas, con la intención de “promover redes transfronterizas e identidad regional”, incluyendo un subprograma para iniciativas turísticas y culturales15. Las regiones periféricas se integrarían así en redes institucionales y centros de toma de decisiones; las prácticas y los discursos de desarrollo que afectan a estos ámbitos “vinculan el destino turístico a estructuras regionales y económicas más amplias, y, finalmente, a la economía mundial y la circulación de capital y de cultura. Al mismo tiempo, sirven como una herramienta y un medio institucional para el desarrollo y la construcción de la idea de una región” (SAARINEN, 2004:169). Estos lugares de desarrollo se convertirían en lugares de turismo enclávico- una forma específica de reproducción de actividades económicas - pero también una forma de re-crear las representaciones de los contextos locales, en permanente procesos de encuentro con las expectativas turísticas. De esta manera, la puesta en marcha de planes específicos de actuación en las fronteras interestatales abre un proceso de resignificación de las prácticas y los discursos sobre los límites, cómo se producen y cómo se representan y recrean cotidianamente. La transformación de las fronteras interestatales de periferias en centros, a través de políticas basadas en el turismo y la regionalización transfronteriza, subvierte su carácter de periferia y las define como elementos centrales del proyecto, entonces. De esta manera, las zonas fronterizas se localizan en el centro de los procesos de construcción de la esfera pública (BALIBAR, 1998, apud PICKLES, 2005: 362), las prácticas políticas, socioterritoriales y discursivas en torno a las fronteras se convierten en una de las claves de la performance de la europeidad de la Unión. 251

A través de ellas, de ver cómo se practica la idea de Europa en las fronteras de la UE, podemos hablar de diferentes geografías políticas desplegadas desde el horizonte político y a través de las políticas de la Unión Europea en particular, y en Europa en general. Seguir trabajando sobre ellas ha de superar, necesariamente, su conceptualización como una estructura geográfica; implica considerar diferentes geografías políticas desplegadas en diferentes escalas espaciales y momentos temporales, absolutamente heterogéneas, multiescalarmente desplegadas. Y, en todo ello, el rol de individuos y colectivos, como sujetos que construyen, mantienen o cuestionan fronteras ¯lo que se denomina borderwork (RUMFORD, 2008: 2 y ss.)¯, es fundamental para seguir avanzando en la investigación en torno a cuándo, dónde y para quién continúan funcionando. NOTAS FINALES Sin intención de hacer un inventario exhaustivo o una clasificación regionalde los estudios sobre fronteras, quisiera concluir haciendo referencia a algunos trabajos que incorporan, en mayor o menor medida, un acercamiento a la naturalización de diferentes órdenes socioterritoriales, y que, a su vez, entiendo como relativamente descentrados de la imaginación geopolítica moderna. Retomando la argumentación de la sección anterior, la idea es trabajar el cómo se practicaEuropa en las fronteras en la Unión Europea (LOIS, 2010); en otras palabras, como se performan y evocan horizontes socioespaciales y políticos en los límites fronterizos interestatales europeos, desde y a través de los actores institucionales y no institucionales, en las fronteras aburridas. En esos lugares también, cotidianamente, se negocian, cuestionan, re-producen o resisten patrones de socialización espacial, siendo nodos necesariamente presentes de un debate más amplio en torno a las imaginaciones geopolíticas en torno a la relación entre fronterasEuropa-América Latina-regiones. Así, uno de las principales cuestiones de trabajo en torno a las fronteras en la Unión Europea ha sido la cooperación transfronteriza. Convertida en la atalaya de este proyecto de integración, y del significado de la cooperación transfronteriza en algunos otros 16 , resulta

252

tremendamente evocador acercarse no sólo a los discursos programáticos sino también a las dimensiones espaciales que derivan de las intervenciones en zonas fronterizas. De hecho, pasado un momento de EU-foria que duró casi una década, algunos trabajos ya han profundizado en las prácticas ligadas a la cooperación transfronteriza desde una perspectiva saludablemente escéptica, y vinculada a la incorporación de la capacidad de agencia como variable en la producción de fronteras. Es el caso de Prokkola et al (2012) quienes, a partir de la frontera entre Finlandia y Suecia, abundan en la complejidad práctica de la retórica programática de los programas de cooperación transfronteriza, específicamente los derivados de fondos INTERREG. El artículo sugiere la importancia de diferentes elementos, como las identificaciones estatales o las relaciones entre colectivos de ambas partes como variables fundamentales a la hora de construir la socialización espacial en las regiones transfronterizas; la proyección de estas regiones, su contenido, adquiere significado en los contextos cotidianos y siempre en clave relacional y performativa17 Otros autores, en otras fronteras, profundizan en las paradojas inevitablemente de la cooperación transfronteriza, tanto en el surgimiento de nuevas fronteras desarrolladas a partir del desarrollo de instituciones transfronterizas, como en la reproducción de los límites estatales ligada a la financiación de estas iniciativas. Es el caso de los trabajos sobre el parque científico y empresarial Avantis, en la Eurorregión Mosa-Rhin, en la frontera entre Alemania y Holanda (JACOBS y KOOIG, 2013), o de la Eurociudad Chaves-Verín, al noreste de la frontera hispanoportuguesa (LOIS, 2013), entre otros. La idea de trabajar desde una perspectiva desenfocada respecto a la construcción de la frontera, y que centra la atención en sus intentos de borrarla, de suavizarla. En ese sentido, resulta muy sugestiva la propuesta de Kramsch (2011), que lanza la posibilidad de, una vez terminado el periodo de fascinación por la gobernanza transfronteriza, comenzar a trabajar en una agenda de investigación que incorpore, desde una visión no teleólógica, la doble dimensión de las fronteras europeas; por un lado, como límites, como medios espaciales, y, por otro lado, como iconos que definen normas y presuponen valores y horizontes normativos de gobernanza intrametropolitana (KRAMSCH, 2011:203). En cualquier caso, la necesaria 253

apertura de la lente conceptual, que trate de incorporar las políticas de representación, espacialización y socialización ligadas a los límites se revela como enormemente excéntrica y tremendamente interesante. Y en esas políticas, además de la cooperación y regionalización transfronteriza institucionales, el cruce de fronteras es, como veíamos anteriormente, la práctica espacial que transgrede su definición como límite, que contesta su atributo espacial más clásico, y que reifica las diferencias marcadas por el confín. Como veíamos, las dinámicas individuales y colectivas en torno al cruce contestan, refuerzan, comparten, proponen, y dibujan la frontera. En ese sentido, trabajos como los de Alburquerque (2012) o van Houtum y Gielis (2006) abordan la práctica del cruce de fronteras interestatales desde perspectivas multiescalares, incorporando dimensiones específicas de los proyectos de integración regional (Brasil y Paraguay, por un lado, y AlemaniaHolanda, por otro) en la constelación relacional a través de la que se negocia la frontera como recurso. En otros trabajos, el cruce ilegal de la frontera, el contrabando, ha sido ampliamente estudiado como estrategia de supervivencia cotidiana (GODINHO, 1995, 2011; FREIRE et al, 2009; CARDIN, 2012; SIMÕES, 2009). La transgresión de la frontera que representa el contrabando sigue siendo clave en la negociación del contenido político de la frontera. Contradiciendo la imaginación geopolítica más fácil sobre fronteras en la UE, y sin haber desaparecido como actividad económica, también ha pasado a convertirse en elemento de memoria (CUNHA, 2009), en un objeto de patrimonialización esponsorizado a través de su ritualización (LOIS y CAIRO, 2012). La re-creación del cruce de la frontera como experiencia se significa como horizonte de gobernanza cultural (SHAPIRO, 2004), repetidamente musealizado y teatralizado en las fronteras interestatales de la UE (PROKKOLA, 2008b), pero, en cualquier caso, ligado al consumo turístico, a la turistificación de la frontera. Esa turistificación se manifiesta en diversas formas, siendo una de ellas la de re-presentar el cruce de la frontera como parte de la experiencia fronteriza; esta aventurase puede consumir en la frontera entre Laos y Thailandia (su precio incluye un paseo por el río Mekong y un sello en el pasaporte que confirma haber pasado al otro lado); también es parte de las amenidades ofertadas por al menos dos empresas finlandesas -no localizadas en el límite

254

necesariamente -, que reproducen un cruce de la frontera Finlandia-Rusia que incluye falsos guardias fronterizos rusos bebiendo vodka (LÖYTYNOJA, 2007); y es una de las actividades más demandadas del parque temático EcoAlberto, en el estado de Hidalgo (en el centro de México), donde se re-crea el cruce de la frontera a Estados Unidos. Gestionado por indígenas HñaHñu, en el tour se performan coyotes y falsos agentes de la Border Patrol estadounidense18. Quizás en el encuentro entre la construcción de la frontera como atracción turística y la re-producción de las fronteras como espacios de espectacular represión pudieran surgir elementos de fuga de la imaginación geopolítica moderna, en su dimensión fronteriza. Las políticas de representación de fronteras, en cualquier escala, disponen las coordenadas de los diferentes circuitos de movilidad. Continuando con las dimensiones de una gobernanza cultural proyectada desde las fronteras como espacios de negociación del contenido territorial de lo político, resulta interesante también reseñar la repetida presencia de elementos comunes en la representación visual de las fronteras y, específicamente, en la forma de incorporar lo que está al otro lado el límite. En ese sentido, la construcción de puentes, como iconos de definición regional financiada por fondos INTERREG ha sido trabajada, por ejemplo, en el caso de la frontera entre Dinamarca y Suecia (HOSPERS, 2006). Como infraestructuras que habilitan a la otra parte como parte de un consorcio, proyectan un espacio imaginado, en ocasiones relativamente alejado de las prácticas locales. La misma dimensión es remarcada, en términos escalares birregionales, en el caso del puente sobre el río Oyapoque, entre Brasil y la Guyana francesa (KRAMSCH, 2012). Financiado en buen parte por la Iniciativa para la Integración de la Infraestrucura Regional Suramericana (IIRSA), en ese puente, aún sin inaugurar, confluirían lecturas regionales, visiones paralelas que regularizan, desde la monumentalidad y la contundencia visual de la infraestructura, la proyección del cruce. Mientras continúo con la preparación del artículo sobre fronteras en América Latina, leo como una manifestación en el País Vasco reabre cinco puestos fronterizos terrestres entre Francia y España; o cómo la visita de los Ángeles del Infierno a un club de motociclismo de Reykjavik rehabilitó los controles aéreos en unos 16 vuelos procedentes de países 255

Schengen. En definitiva, continúo coleccionando circunstancias regionalmente excepcionales. NOTAS EXPLICATIVAS Departamento de Ciência Política III (Teorías y Formas Políticas y Geografia Humana). Universidad Complutense de Madrid. E´mail: [email protected] 1

[ consultado el 24/06/2013] 2

[consultado el 24/06/2013] 3

[consultado el 24/06/2013]. 4

El tratado de Schengen, en vigor desde 1995, regula la eliminación de controles fronterizos entre los países suscriptores, a través de la libre circulación de personas. Forma parte de la legislación de la Unión Europea desde la firma del Tratado de Amsterdam, en 1999, y reconoce una sola frontera común, exterior, con procedimientos y normas comunes en lo referente a visados para estancias cortas, solicitudes de asilo y controles fronterizos. [consultado el 10/06/2013]. 5

[consultado el 24/06/2013]. 6

7

Agradezco a Olivier Kramsch la conversación (y la bibliografía) que movilizó esta idea.

8

Caso, por ejemplo, de las Políticas Europeas de Vecindad (ENP).

Mencionar que ese ha sido el objetivo docente de la asignatura Geografía Política y Geopolítica de Europa, ahora ausente de los nuevos currículos educativos, pero que impartí durante 7 años en la licenciatura en Ciencia Políticas de la Universidad Complutense. A lo largo de ellos, mi propuesta de trabajo en el aula se ha basado instrumentalizar el particularismo de las diferentes formas espaciales presentes en Europa (desde área a región rural policéntrica, pasando por nación, Unión Europea o ciudad global) para pensar en el interminable proceso de alteridad ligado a su definición, así como en la multiplicación de geografías políticas posibles en torno a un mismo referente. A pesar de alguna sorpresa inicial ante la ausencia de metanarrativas tranquilizadoras, los estudiantes me han ido enseñando cómo avanzar en este dirección. 9

10

Buena parte de los argumentos que aquí se presentan fueron publicados en Lois y Cairo (2011).

En ese sentido destacar, por ejemplo, el trabajo de Vives (2013) sobre la migración femenina de Senegal a España, desarrollado desde una perspectiva etnográfica multisituada, con una cartografía móvil, y, en particular, con la (éticamente) adecuada discreción respecto a las prácticas de cruce irregulares. Riofrio (2012) ha desarrollado un planteamiento similar, relacionando los cambios en la política de movilidad en Ecuador en 2008con la externalización de la frontera de la Unión Europea, que convirtieron al país latinoamericano en lugar de tránsito hacia España para los flujos de población procedentes del norte de África. 11

[consultado el 25/02/2009]; ; , [consultado el 25/02/2009]; «Informe estratégico sobre la estrategia de Lisboa renovada para el crecimiento y el empleo: lanzamiento de un nuevo ciclo (2008-2010), parte I», Comunicación de la Comisión al Consejo, de 11 de diciembre de 2007, [COM(2007) 803 final – no publicado

256

en el Diario Oficial].) 13

[consultado el 25/02/2009].

14

[consultado el 25/02/2009].

INTERREG IIIA Nord- Fondo Europeo de Desarrollo Regional. [consultado el 26/02/2009]. 15

16 Excelente el ejemplo del uso de un manual de INTERREG como manual de cooperación transfronteriza en África Occidental (Kramsch y Brambilla, 2007), o de la visita en 2010 de una delegación del gobierno de Brasil a la Eurociudad Chaves-Verín, en el marco del Memorando de Entendimiento entre la Comisión Europea y el Ministerio de Integración de Brasil, donde los integrantes (representantes de las Meso-Regiones de Alto Simoneo, Vale do Río Acre y de la Gran Fronteira Mercosur) recibieron, además de una introducción a las buenas prácticas, su tarjeta de Eurociudadanos (Lois, 2013). Reconociendo la desigual relación entre las partes, tampoco entendemos, al estilo orientalista , que las prácticas, modelos y posiciones emitidas desde la UE se asumen y reproducen miméticamente; es algo más complejo, y que llevaría a una discusión sobre cuestiones de agencia mencionadas anteriormente pero alejado del objetivo de esta sección. En cualquier caso, las prácticas de representación de los sujetos como receptores y transmisores resultan escasamente innovadoras. 17 Paula Godinho (2009) entiende esas negociaciones constantes como claves para contextualizar la figura del regionauta, productos de una concepción de la cooperación “desde arriba hacia abajo, y desde adentro hacia afuera“ (GODINHO, 2009 :148; en cursiva en el original).

http://www.fronterasdesk.org/news/2013/jun/18/fake-border-crossing-amusement-park-attraction/ ?utm_source=facebook.com&utm_medium=referral&utm_campaign=fronteras-facebook [consultado el 27/ 06/2013].

18

REFERÊNCIAS AGNEW, J. (2005): Geopolítica: una re-visión de la política mundial Trama Editorial, Madrid. Trad. al castellano por M. Lois de Geopolitics: re-visioning world politics, Londres: Routledge, 1998. ______. Borders on the mind: re-framing border thinking. Ethics & Global Politics, 1 (4), 175191, 2008. ALBUQUERQUE, L. Limites e paradoxos da cidadania no territorio fronteirico: O atendimento dos brasiguaios no sistema público de saude em Foz do Iguacu (Brasil), Geopolítica(s) 3 (2), 185-205, 2012. BALIBAR, E.: “The borders of Europe” en P. Cheah y B. Robbins (eds) Cosmopolitics: Thinking and Feeling beyond the Nation, Minneapolis: University of Minnesota Press, 216–233 BOGGS, S. W. International boundaries: A study of boundary functions and problems. Nueva York: Columbia University Press, 1940 CARDIN, E.. Trabalho e práticas de contrabando na fronteira do Brasil com o Paraguai, Geopolítica(s) 3, (2), págs. 207-234, 2012. CASAS, M. et al: Stretching Borders Beyond SovereignTerritories? Mapping EU and Spain’s Border Externalization Policies, Geopolítica(s), 2, ( 1), págs. 71-90, 2011. CUNHA, L.: Memórias de fronteira: o contrabando como explicação do mundo, In D. FREIRE

257

et al (coord.), Contrabando na Fronteira Luso-Espanhola. Práticas, Memórias e Patrimónios, Lisboa, Edições Nelson de Matos, págs. 289-307, 2009. DIEZ, T.: The paradoxes of Europe’s borders, Comparative European Politics, 4, págs.. 235252, 2006. EUROPEAN COMMISSION: Structural policies and European territory: Cooperation without frontiers. Luxemburgo: European Social Fund and the Cohesion Fund, 2002. ______: European Regional Development Fund, the European Social Fund and the Cohesion Fund, Luxemburgo, European Social Fund and the Cohesion Fund, EC 2006-1083 FOUCHER, M.: Fronts et frontières. Un tour du monde géopolitique, París: Fayard, 1991. FREIRE, D. et al (coord.): Contrabando na Fronteira Luso-Espanhola. Práticas, Memórias e Patrimónios, Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2009. GODINHO, P. O contrabando como estratégia integrada nas aldeias da raia transmontana, A Trabe de Ouro, II, págs. 209-222, 1995. _____. Entre Chaves e Verín: mediadores, fronteira útil e fronteira fútil, In E. MEDINAet al (eds) Fronteras, Patrimonio y Etnicidad en Iberoamérica, Sevilla: Signatura Ediciones, págs. 137-152, 2009. ____. Oír o galo cantar dúas veces. Identificacións locais, culturas das marxes e construción de nación na fronteira entre Portugal e Galicia, Ourense: Deputación Provincial de Ourense, 2011. GUICHONNET, P. y Raffestin, C. Géographie des frontiers, Paris: Presses Universitaires de France, 1974. HARTSHORNE, R.. Suggestions on the terminology of political boundaries. Annals of the Association of American Geographers, 26, págs. 56-57, 1936. HEPWORTH, K. Abject Citizens: Italian ‘nomad Emergencies’ And The Deportability Of Romanian Roma. Citizenship Studies, 16 (3-4), págs. 431-449, 2012. HOLDICH, T. H.. Political frontiers and boundary making, Londres: Macmillan, 1916. HOSPERS, G.: Borders, Bridges and Branding: The Transformation of the Øresund Region into an Imagined Space, European Planning Studies, 14, págs. 1015-1033, 2006. JACOBS, J. y KOOIJ, H. J. Fading Euphoria at the Dutch-German Border? The Case of Avantis, Tijdschrift voor Economische en Sociale Geografie (TESG) 104, págs. 379–387, 2013. JENSEN, O. B. y RICHARDSON, T.. Making European Space. Mobility, power and territorial identity, London: Routledge, 2004. JOHNSON, C. et al. Interventions on rethinking «the border» in border studies. Political Geography, 30, págs. 61-69, 2011. KRAMSCH, O. Negotiating the ‘Spatial Turn’ in European Cross-Border Governance: Notes on a Research Agenda. Geopolítica(s)2, (2), págs. 185-207, 2011. ___________. Reconociendo la frontera UE-MERCOSUR: Espacio, visión e imaginación ‘dreyfusard’ sobre el puente del río Oyapock, In C.ZÁRATE (ed): Espacios Urbanos y Sociedades Transfronterizas en la Amazonia, Leticia: Universidad Nacional de Colombia Sede Amazonia,

258

págs. 127-153, 2012. _________. y BRAMBILLA, C. Transboundary Europe through a West African Looking Glass: Cross-border Integration, ‘Colonial Difference’ and the Chance for ‘Border Thinking’, COMPARATIV, 17,(4), págs. 95-115, 2007. KUUS, M.. Critical Geopolitics. In R. DENEMARK (ed.) The International Studies Encyclopedia. Vol. II, Chichester: Wiley-Blackwell, págs. 683-701, 2010. LAMBREGST, B. et.al.: Effective governance for competitive regions in Europe: the difficult case of Randstad. GeoJournal, 72, págs. 45-57, 2008. LOIS, M.: Practicing Europe,in the EU borders: local geographies, tourism and spatial socialization at the Spanish-Portuguese border, comunicación presentada en la Conferencia Anual de la Asociación de Geógrafos Americanos (AAG), Washington D.C., Abril 2010. _______. Re-significando la frontera: el caso de la Eurociudad Chaves-Verín. Boletín de la Asociación de Geógrafos Españoles (AGE), 61, págs. 309-327, 2013. _______. y CAIRO, H. Desfronterización y refronterización en la Península Ibérica, Geopolítica (s), 2 (1), págs. 11-22, 2011. _______. y _______. Border-Crossing and Transborder Mobilities: spatial stories at the SpanishPortuguese Border, comunicación presentada en el Congreso de las Asociación Internacional de Ciencia Política (IPSA- RC15: Geografía Política y Cultural), Madrid, Julio 2012. LÖYTYNOJA, T.: National Boundaries and Place-making in Tourism: Staging the FinnishRussian Border. Nordia Geographical Publications 36(4), págs. 35-45, 2007. MATO, D.: Des-fetichizar la ‘Globalización’: Basta de Reduccionismos, Apologías y Demonizaciones, Mostrar la Complejidad y las Prácticas de los actores, en D. MATO (ed) Estudios Latinoamericanos sobre Cultura y Transformaciones Sociales en Tiempos de Globalización, Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), págs. 147-178, 2001. NEWMAN, D.: The lines that continue to separate us: Borders in our borderlessworld. Progress in Human Geography, 30 (2), págs. 1-19, 2006. _________. y PAASI, A.: Fences and neighbours in the post-modern world: boundary narratives in political geography. Progress in Human Geography, 22 (2), págs.186-207, 1998. O´DOWD, L.: From a ‘borderless world’ to a ‘world of borders’: bringing history back in, Environment and Planning D: Society and Space, 28, págs. 1031-1050, 2010. OHMAE, K.. The Borderless World. London: Collins, 1990. PAASI, A.: Territories, Boundaries and Consciousness. The Changing Geographies of the FinnishRussian Border, Chichester, Wiley, 1996. ________.: Generations and the «Development» of Border Studies, Geopolitics, 10, págs. 663661, 2005. ________.: Region-Building, Boundaries and Identities in a Globalizing World. Northern Encounters in Geography, Tromsae [En línea].Disponible en http://uit.no/ getfile.php?PageId=1671&FileId=160 [consultado el 22 de marzo de 2011].

259

PERKMAN, M., y SUM, N. L. Globalization, Regionalization and Cross- Border Regions: Scales, Discourses and Governance, In M. PERKMAN y N-L. SUM (eds.) Globalization, Regionalization and Cross-Border Regions, Houndsmills: Palgrave Macmillan, págs. 3-24, 2001. PICKLES, J.: New cartographies and the decolonization of European geographies, Area, 37 (4), págs. 355-364, 2005. POUNDS, N., y BALL, S. S.: Core areas and the development of the European states system. Annals of the Association of American Geographers, 54: págs. 24-40, 1964. PROKKOLA, E.: Making bridges, removing barriers. Cross-border cooperation and identity at the Finnish-Swedish border.Oulu: Nordia Geographical Publications, 2008. ________.: Border Narratives at Work: Theatrical Smuggling and the Politics of Commemoration. Geopolitics, 13(4), págs. 657-675, 2008. ________. et al: Performance of regional identity in the implementation of European crossborder initiatives. European Urban and Regional Studies, doi: 10.1177/0969776412465629, 2012. RATZEL, F.: Die Gesetze des räumlichen Wachstums der Staaten. Petermanns Geographische Mitteilungen, 42, págs. 97-107. [trad. al castellano por M. DÍAZ: “Las leyes del crecimiento espacial de los Estados. Una contribución a la Geografía científico-política”, Geopolítica(s), 2, (1), págs. 135-156], 2011. RIOFRIO, M.: La externalización de la frontera española y su incidencia en el cambio de rutas migratorias provenientes de África: el caso de Ecuador en el período 2008-2010. Tesis de Maestría inédita, Universidad Complutense de Madrid, 2012. RUMFORD, C.: Citizens and borderwork in Europe, Space and Polity, 12 (1), págs. 1-12, 2008. SAARINEN, J.: Destinations in Change. The transformation process of tourist destination. Tourist Studies, 4 (2), págs. 161-179, 2004. SACK, R.: Homo geographicus: a framework for action, awareness, and moral concern. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1997. SCOTT, J. W., y HOUTUM Van, H.: Reflections on EU territoriality and the «bordering» of Europe. Political Geography, 28 (5), págs. 271-273, 2009. SHAPIRO, M. J.: Methods and Nations: Cultural Governance and the Indigenous Subject, New York: Routledge, 2004. SIMO S, D.: O contrabando em Barrancos; memórias de um tempo de guerra, In D. FREIRE et al (coord.). Contrabando na Fronteira Luso-Espanhola. Práticas, Memórias e Patrimónios, Lisboa, Edições Nelson de Matos, págs. 165-195, 2009. STRÜVER, A.: Stories of the ‘Boring Border’: The Dutch-German Borderscape in People’s Minds, Münster: Lit Verlag, 2005. HOUTUM, Van H.: Human blacklisting: the global apartheid of the EU’s external border regime. Environment and Planning D: Society and Space 28, págs. 957 -976, 2010. ________. et al. (eds) B/ordering Space, Aldershot: Ashgate, 2005. ________. y GIELIS, R.: Elastic migration: the case of Dutch short-distance transmigrants in

260

Belgian and German Borderlands. Tijdschrift voor Economische en Sociale Geograe (TESG), 97, págs.195–202, 2006. VIVES, L.: White Europe: an alternative reading of the Southern EU border, Geopolítica(s), 2 (1), págs. 51-70, 2011. VIVES, C.: Through The Border: Senegalese Gendered Migration To Spain (2005-2010), Tesis Doctoral inédita, University of British Columbia, 2013. WOODWARD, K., y JONES, J. P.: On the border with Deleuze and Guattari, In H. VAN HOUTUM et al (eds). B/Ordering Space, Aldershot: Ashgate, págs. 234-248, 2005. ZAPATA-BARRERO, R.: Teoría Política de la frontera y la movilidad humana. Revista Española de Ciencia Política (RECP), 29, págs. 39-66, 2012. ZÁRATE, C. (ed): Introducción, en C. ZÁRATE (ed).Espacios Urbanos y Sociedades Transfronterizas en la Amazonia, Leticia: Universidad Nacional de Colombia Sede Amazonia, págs. 11-18, 2012.

261

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.