Fronteiras (in)visíveis: raça, gênero e os limites do direito à cidade. In: O Rio que queremos: propostas para uma cidade inclusiva. Theófilo Rodrigues (org.) Núcleo Piratininga de Comunicação, 2016.

May 28, 2017 | Autor: M. Candido | Categoria: Racismo y discriminación, Planejamento Urbano, Género, Rio de Janeiro, Cidades, Anti-racismo
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Theófilo Rodrigues (Organizador)

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O RIO QUE QUEREMOS: PROPOSTAS PARA UMA CIDADE INCLUSIVA

Theófilo Rodrigues é graduado em ciências sociais pela PUC-Rio, mestre em ciência polí ca pela UFF e doutorando em ciências sociais pela PUC-Rio. Coordenador do Centro de Estudos da Mídia Alterna va Barão de Itararé e coordenador do comitê estadual do Fórum Nacional pela Democra zação da Comunicação (FNDC).

O RIO

que queremos: propostas para uma cidade inclusiva

ISBN 978-85-63004-23-9 Agosto 2016

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ão há muitas dúvidas de que o peso de ter sido a capital do Brasil por quase duzentos anos deixou sua marca no Rio de Janeiro. Cidade onde todos pensam a questão nacional e internacional, como atestam os tulos de seus principais jornais - O Globo e Jornal do Brasil são exemplos -, durante muito tempo o Rio deixou de olhar para si mesmo. O Rio que queremos: propostas para uma cidade inclusiva é uma contribuição para a reversão do problema. Trata-se de um debate cole vo construído por 31 autores, entre sociólogos, economistas, cien stas polí cos, juristas e historiadores que voltaram seus olhos para temas profundos da cidade. Entre eles um fio comum que costura a discussão do início ao fim: o direito à cidade. Não se trata apenas de um livro acadêmico, como poderia fazer imaginar a formação de seus autores. Os textos apresentados são de fácil acesso para todo o público e profundamente marcados pelo compromisso com a construção de uma cidade mais justa e igualitária. Não fosse assim, não haveria sen do em tamanho esforço cole vo. Boa leitura!

O Rio que queremos: propostas para uma cidade inclusiva

Theófilo Rodrigues Organizador

RIO DE JANEIRO Agosto de 2016

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O RIO QUE QUEREMOS: PROPOSTAS PARA UMA CIDADE INCLUSIVA

Coordenação editorial: Luisa San ago Vieira Souto Direção editorial: Claudia San ago Gianno Capa: Daniel Costa Foto de capa: Ricardo Stuckert Revisão: Sheila Ribeiro Jacob Impressão: NPC Pira ninga Cursos Livres e Editora Ltda Copyright by Rodrigues, Theófilo Rio de Janeiro, 2016. Todos os direitos reservados.

Rodrigues, Theófilo (org.) O Rio que queremos: propostas para uma cidade inclusiva. 228f. 1a ed, - Rio de Janeiro, 2016. 1. Rio de Janeiro. 2. Cidade. 3. Direito à cidade. 3. Polí cas. Núcleo Pira ninga de Comunicação Prefixo Editorial: 63004 Número ISBN: 978-85-63004-23-9

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ÍNDICE Prefácio ..................................................... 5 Marcelo Baumann Burgos

Introdução ............................................ 11 O que é o direito à cidade na prática? Luisa Santiago / Theófilo Rodrigues

capítulo 1 .............................................. 17 Ciência, tecnologia e inovação para o Rio que queremos Larissa Ormay / Pedro Fernandes

capítulo 2 .............................................. 29 Monopólio e direito à comunicação na cidade do Rio de Janeiro Marina Schneider / Theófilo Rodrigues

capítulo 3 .............................................. 40 Diagnóstico e alternativas às políticas de cultura na cidade do Rio de Janeiro Leonardo Puglia / Marcele Frossard

capítulo 4 .............................................. 54 Desenvolvimento urbano sustentável: o direito à cidade no Rio de Janeiro contemporâneo Pedro Henrique Torres / Rodrigo Ribeiro / Taísa Sanches

capítulo 5 .............................................. 82 A economia da metrópole carioca Mauro Osorio da Silva / Maria Helena Versiani / Paulo Reis

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capítulo 6 .............................................. 95

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Políticas Públicas para uma cidade democrática? O lugar da participação social no Rio de Janeiro Alessandra Maia Terra de Faria / Talita Tanscheit

capítulo 7 .......................................... 113 Políticas para Mulheres Ana Carolina Radd / Yasmin Curzi

capítulo 8 .......................................... 129 Fronteiras (in)visíveis: raça, gênero e os limites do direito à cidade Carolina Rocha / Marcia Rangel Candido / Veronica Toste Daflon

capítulo 9 .......................................... 149 A juventude e a cidade do Rio de Janeiro Daniel Gaspar / Rafael Chagas

capítulo 10 ....................................... 161 Segurança Pública, Polícia e Guarda Municipal na cidade do Rio de Janeiro: alguns elementos para o debate Angelo Remedio Neto / Elizabete Ribeiro Albernaz / Rogério Dultra dos Santos

capítulo 11 ....................................... 174 Politecnia e políticas públicas de educação no Rio de Janeiro Francicleo Castro Ramos / Theófilo Rodrigues

capítulo 12 ....................................... 186 O mundo do trabalho no Rio de Janeiro Luisa Barbosa Pereira

capítulo 13 ....................................... 198 A Saúde Pública e o Direito à Cidade no Rio de Janeiro Ana Pimentel / Daniela Tranches de Melo / Gisele Silva Araújo

capítulo 14 ....................................... 216 Uma breve história política: a maldição de Chagas e a hidra carioca Mayra Goulart 4

PREFÁCIO

A

cidade do Rio de Janeiro viveu nos últimos dez anos um período de profundas mudanças em sua morfologia urbana e em seu tecido social. A expansão da economia do país, o aquecimento da exportação de petróleo e gás natural que impactou a economia do estado como um todo, e a realização de uma agenda de grandes eventos internacionais tendo a cidade como palco concorreram para criar as condições que propiciaram essa vigorosa transformação. Tal foi a sua magnitude que não seria exagero afirmar que estamos diante de uma outra cidade, na qual estão latentes forças produtivas e uma energia social, cultural e política com potencialidades ainda desconhecidas. Embora muitas intervenções urbanas tenham sido realizadas na última década, as implementadas na região portuária e na Barra da Tijuca são certamente as que melhor exprimem o significado dessa nova ordem urbana. A reinvenção da decadente região portuária pelo Projeto Porto Maravilha, com seus bondes modernos e novos museus, cria um outro polo de lazer e de negócios na cidade, ao mesmo tempo em que desperdiça a melhor oportunidade de reversão da tendência de periferização de sua população, que seria possível caso seu imenso território fosse ocupado por bairros residenciais que acolhessem moradores de diferentes classes sociais. Difícil prever qual será seu impacto sobre o tradicional centro da cidade e sobre a dinâmica metropolitana como um todo, bem como o custo do desperdício dessa janela de oportunidade para o futuro da metrópole. É igualmente difícil avaliar que impacto terá o fortalecimento da centralidade que a Barra da Tijuca já vinha exercendo sobre um amplo perímetro da região metropolitana. Com efeito, o conjunto de intervenções que alteram os fluxos de mobilidade no espaço metropolitano fará daquele bairro um ponto de passa-

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gem obrigatório para diferentes tipos de usuários e transeuntes. A implantação da Linha 4 do Metrô e a duplicação do Viaduto do Joá, que ligam a Barra à Zona Sul da cidade, e os três novos eixos rodoviários, que têm sido denominados sob o prefixo “Trans”, e que partem da Barra para diferentes direções (Transcarioca, Transolímpica e Transoeste), terão certamente forte repercussão sobre os subúrbios do Rio de Janeiro, esvaziando zonas comerciais tradicionais e modificando a estrutura de preços dos imóveis de bairros consolidados, ao mesmo tempo em que criam novíssimas oportunidades para o mercado imobiliário. É certo que será ainda mais acentuada a força centrípeta exercida pela Barra – que já tinha sido impulsionada por vultosas intervenções urbanas anteriores, em especial com a abertura da Linha Amarela – mas ainda é difícil estimar qual a real extensão do barracentrismo sobre a “geografia de oportunidades” da região metropolitana. A magnitude dessas intervenções urbanas é ainda mais estonteante por terem sido realizadas em um curto espaço de tempo, sem planejamento, sem debate público, e com baixa transparência de procedimentos, dados e informações. Não custa lembrar que na maior parte das vezes a população da cidade somente tomou contato com as novidades urbanísticas preparadas pelo poder público através da imprensa, em geral por meio da reprodução de maquetes e croquis no principal jornal da cidade. Notável, neste caso, não apenas a ausência da sociedade civil em processos de tomadas de decisão a respeito de investimentos decisivos para o futuro da cidade, mas também a baixíssima participação do legislativo municipal. Muito além das mudanças na morfologia urbana da cidade, com seus efeitos no mercado imobiliário, mercado de trabalho e fluxos de migração no interior da metrópole, as transformações realizadas na última década colocam em jogo um complexo processo de mudanças políticas, sociais e culturais, cujas consequências mal se podem divisar nesse momento. O fato desse processo ter se dado sob uma hegemonia política que apostou de modo radical na premissa de que a cidade deve ser vista como um campo aberto a todo tipo de exploração mercantil, e não como um direito do cidadão, torna tudo mais incerto e aberto ao surgimento de conflitos e contradições ainda não explicitadas. O processo de transformação da cidade foi conduzido sob uma matriz que bem poderia ser caracterizada como um pragmatismo eclético, bem afeito ao espírito de urgência justificado pela iminência da realização das Olimpíadas. Um pragmatismo, vale dizer, quase sempre orientado pelos interesses dos segmentos econômicos dominantes na cidade, como o dos proprietários de empresas de ônibus, concessionárias de serviços públicos, e de setores da indústria da construção civil, de turismo e de entretenimento; mas que não descuidou do cálculo político, que explica os investi-

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mentos pontuais realizados em determinadas áreas populares, do que são exemplos o Parque de Madureira e o que foi denominado pelo poder público como “campus educacional da Maré”, onde foram construídas oito novas escolas de ensino básico. Mas essa combinação de interesses econômicos e políticos, que se articulam de modo tão eclético em torno de grandes intervenções urbanas, dificilmente ficaria de pé sem a sua “teoria” do urbano, a qual, em meio à desordem que as próprias intervenções engendraram, tenta emprestar aparência de coerência ao conjunto da obra, procurando conciliar a mercantilização da cidade com a formação de ilhas de urbanidade protegidas dos automóveis – quanto a isso, nada mais emblemático que a transformação de parte da Avenida Rio Branco, antiga Avenida Central, em um boulevard para pedestres e ciclistas. Faz sentido: Se um dia a Avenida Central pretendeu servir de cenário – que tudo escondia –para uma cultura de belle époque dos trópicos, a nova Rio Branco, com seu bonde moderno e seu boulevard, evoca a cidade pós-moderna, despudoradamente kitsch, só na aparência uma cidade em escala humana, mas que cultua a lógica do espetáculo, suprimindo dela seus cidadãos, ao tempo em que estimula processos que aprofundam a segregação urbana e a exclusão social. O quadro se mostra ainda mais complexo porque as intervenções urbanas na cidade envolveram diferentes atores, incluindo os governos federal, estadual e municipal, além da iniciativa privada, articulados sob novos arranjos de gestão, com as “parcerias público-privadas” e o uso das Organizações Sociais para administrar equipamentos e serviços públicos. Enfim, tudo contribui para deixar a população da cidade sob um estado de perplexidade quanto ao seu futuro. O Rio está diante de um enigma: ou decifra o legado produzido por essas transformações ou será devorado por elas – aí incluído um cenário de agravamento de diferentes formas de violência urbana. A cidade e a região metropolitana saem desse processo expostas a novas contradições. Certamente mais segregadas e mais desiguais do que antes, mas também dispondo de oportunidades políticas até aqui bloqueadas. De fato, ao transformar a região portuária em um imenso playground de lazer e entretenimento para turistas e classe média, e ao apostar em torres para edifícios comerciais ao invés de favorecer a formação de bairros residenciais para diferentes classes sociais, o Porto Maravilha reafirma a segregação urbana, indo em direção contrária ao movimento de aposta na mistura social, presente em muitas metrópoles europeias e mesmo norte-americanas. Além disso, ao subordinar à centralidade da Barra boa parte dos subúrbios da cidade atravessados pelas Trans, ao criar uma nova legião de removidos de favelas e de outras áreas populares, e ao

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aprofundar velhos problemas pela ausência de investimentos em transporte de massa e na urbanização das favelas e subúrbios, esse ciclo único de investimentos, que mobilizou recursos em escala inédita na história da cidade, ao invés de combater o quadro de desigualdade socioespacial da cidade e da região metropolitana do Rio de Janeiro, que já é uma das maiores do mundo, deverá aprofundá-lo. Por outro lado, foram alteradas as condições de inserção da cidade no mundo globalizado, fortalecendo-se sua vocação para a economia de serviços, lazer, turismo e entretenimento, que deverá criar novas oportunidades para parcelas dos segmentos populares e para o surgimento de novas classes médias, ao mesmo tempo em que deverá abrir espaço para novas formas de luta e de disputa pela cidade. Ao abalar de forma tão profunda a estrutura preexistente, esse ciclo de transformações abre fendas nos padrões de articulação anteriormente existentes entre as classes sociais, muito especialmente na relação das elites com os demais segmentos sociais. Com isso, formas políticas há muito consolidadas em torno de máquinas clientelistas, que têm oscilado entre populismos de esquerda e de direita, deverão perder suas bases sociais. Dos escombros deixados pelas obras que deram lugar a essa estranha cidade deverão emergir novos atores, que poderão radicalizar a luta pela cidade. Este é o aspecto mais sensível das novas contradições criadas pelo legado olímpico. Conviver com esse legado, fruto de um processo vertiginoso que se deu em meio a uma cidade politicamente desaparelhada para reagir, exigirá também um revigoramento de sua vida intelectual. E o próprio processo de transformação urbana da cidade poderá, contraditoriamente, concorrer para isso. Este livro, O Rio que queremos. Propostas para uma cidade inclusiva, já aponta nesta direção. Diagnóstico crítico do Rio de Janeiro que surge das brumas do ciclo olímpico, o livro é ele mesmo uma forma nova de reflexão sobre a cidade. Basicamente escrito por jovens intelectuais, boa parte deles egressos ou inscritos em programas de pós-graduação em ciências sociais do Rio de Janeiro, o livro realiza, em seus 21 artigos, uma análise abrangente desse processo de modernização excludente pelo qual a cidade acaba de passar. Embora organizado como coletânea, seus artigos encadeiam temas que costumam aparecer no debate público de forma segmentada – “a segurança pública”, a “saúde”, a “educação”, o “transporte público” –, obedecendo a uma divisão de trabalho que atenderia a um enfoque próprio ao da administração pública, mas não ao da realidade cotidiana do cidadão. Mais próxima desta última, o livro elabora uma visão transversal de todas essas dimensões, articulando-as sob a perspectiva do direito à cidade e do planejamento democrático, aqui entendido como processo de racionalização que combina transparência, critérios

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técnicos e ampla participação social e política. Trata-se de um livro assumidamente militante, que aposta em um projeto político de democratização da cidade. Sabe-se que a forma urbana do Rio de Janeiro, tão fortemente marcada por fronteiras entre seus espaços habitacionais – do que é exemplo a fronteira entre favelas e bairros de classe média e alta – conspira contra um projeto mais igualitário de cidade, estimulando, ao contrário, relações assimétricas entre os diferentes grupos sociais, muito frequentemente permeadas pelo racismo e por práticas como o paternalismo, o clientelismo e o mandonismo. O ciclo de intervenções vivido pela cidade na última década certamente não removeu essa forma urbana, mas a modificou a ponto de abrir espaço para novas práticas de luta. Quem sabe não surgirá daí uma oportunidade inédita de apropriação da política pelos setores populares da cidade. Este livro é com certeza um contributo nesta direção e talvez sua virtude mais importante resida no fato de constituir um esforço intelectual que articula a perspectiva acadêmica com uma reflexão comprometida com a construção de uma cidade que possa realmente ser pensada como obra coletiva, e que por essa via, somente por ela, possa se tornar mais justa e plural.

Marcelo Baumann Burgos Professor e Pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio

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INTRODUÇÃO O que é o direito à cidade na prática?

POR LUISA SANTIAGO1 E THEÓFILO RODRIGUES2 “O povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade” (Grândola Vila Morena)

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Rio de Janeiro foi a capital do Brasil por quase duzentos anos e isso não é pouca coisa. Bastaria lembramos que entre 1763 e 1961 nossa cidade foi palco de grandes acontecimentos e das principais decisões tomadas no país: a Colônia que assassinou Tiradentes em 1792, o ponto de chegada da Corte portuguesa em 1808 e a construção do Império, a Proclamação da República em 1889, a trincheira da revolução de 30 ou o cenário para o suicídio de Getúlio Vargas em 1954. Em 1961, o Rio de Janeiro perdeu o título de Capital Federal para Brasília, mas não seu peso simbólico. Essa pesada carga histórica não nos passou incólume. Seu legado está presente até os dias de hoje. O que foi construído histórico e socialmente passou a ser visto como uma vocação: a vocação do carioca de pensar sempre a política a partir de uma perspectiva nacional. Não à toa, como bem nos lembra Osório et al (2015) durante muitos anos os dois principais jornais da cidade foram O Globo e o Jornal do Brasil – que fechou sua edição impressa em 2010 – ao passo que em São 1 2

Luisa Santiago é Mestre em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Theófilo Rodrigues é Mestre em Ciência Política pela UFF e Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Rio.

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Paulo os diários tradicionais são a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo e em Minas Gerais o Estado de Minas. Seus respectivos nomes nos dizem muita coisa. Ao carioca supostamente não caberia a preocupação com os pormenores da vida política paroquial, ao contrário do que ocorreria no restante do Brasil. Tal vocação pela questão nacional pode ser vista pelos nativos como uma elegância política a ser valorizada. Ou apenas como arrogância ou delírio, quando analisada de forma menos generosa pelos não-cariocas. Contudo, independente da veracidade da narrativa, essa vocação é também uma maldição. Maldição, pois os cariocas possuem sérias dificuldades em debater os problemas próprios da cidade com a profundidade necessária que o tema requer. Não que os cariocas sejam passivos ou indiferentes em relação ao destino de sua cidade. As inúmeras manifestações político-culturais nas praças - do “Leão Etíope do Meier” à “Esquerda da Praça” na praça São Salvador, do “Corujão da poesia” no Leblon ao “Poesia de Esquina” da Cidade de Deus – nos mostram que os espaços públicos estão ocupados. O que talvez falte ao carioca seja a percepção de que essas ricas experiências práticas podem e devem subsidiar formulações teóricas mais ousadas para a construção de um radicalismo democrático na cidade. Ainda que modestamente, esperamos que com este livro possamos contribuir de forma qualificada para a construção dessa agenda radicalmente democrática a partir da perspectiva prática sobre o que é o direito à cidade. ********** Se durante muito tempo o pensamento social conviveu em grande parte com estudos voltados para o mundo rural, já no começo do século XX outros recortes analíticos começam a ganhar destaque. Reflexões sobre desigualdades econômicas, conflitos, movimentos, violência, direitos, entre outras, desembocam nos espaços urbanos, e são apontadas como as novas problemáticas sociológicas contemporâneas. O pensamento se viu diante da necessidade de olhar para a cidade urbano-industrial que se desenvolvia. A importante obra A Questão Urbana, de Manuel Castells, de 1983, é uma grande referência no escopo de investigações sobre as cidades. A partir de uma perspectiva marxista, esse autor extrapola a forma de análise economicista muito usada à época e apresenta o urbano como algo que compreende tanto a esfera da produção quanto a da reprodução da força de trabalho. Ou seja, o urbano trabalhado por esse autor diz respeito ao local de trabalho, mas também ao local de viver. Se antes a ideia de um conflito entre capital e trabalho estava diretamente

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ligada ao espaço das fábricas, agora o cenário se expande. Castells vê um deslocamento do conflito capital x trabalho que, no seu entendimento, deve ser usado para descortinamento das condições de vida da classe trabalhadora como um todo. As contradições geradas pelo desenvolvimento capitalista não se esgotavam no chão da fábrica. O espaço urbano é como algo que se desenvolve para que o capitalismo possa avançar e que se desenvolve na medida em que o capitalismo avança. Uma espécie de retroalimentação. Dito isso, Castells conclui que a posição que o trabalhador ocupava naquela sociedade era definidora também do seu padrão de vida fora dali. Ou seja, a cidade é o palco da luta de classes e também onde nascerá o embrião para superação do capitalismo. Contudo, foi, provavelmente, o francês Henri Lefebvre quem primeiro cunhou a expressão “direito à cidade” no âmbito da literatura especializada. Claro, a questão já estava presente na obra do jovem Engels desde a primeira metade do XIX ou na de George Simmel e Robert Ezra Park na Escola de Chicago, na primeira metade do século XX. No entanto, foi com o manifesto Le droit à la ville de Lefebvre, em 1968, que o termo alcançou a dimensão a qual nos referimos nos dias de hoje. Diante da crise que se instalava nas cidades, Lefebvre se apresentou como um autor que concebia o espaço urbano a partir, principalmente, do processo histórico de sua formação e transformação. Nesse ensaio, que posteriormente foi revisto e ampliado, Lefebvre parte de um dos princípios fundamentais da teoria de Marx: a ideia do homem como sujeito da sua história. A partir daí formula e apresenta a reivindicação do direito à cidade como uma necessidade para se contrapor ao processo de submissão das cidades ao desenvolvimento capitalista que estava em curso. O urbano aqui aparece como algo que se impôs em escala mundial e a partir do processo de implosão da cidade antiga. Seria através da luta pelo direito à cidade, nesse caso, o caminho pelo qual o homem chegaria à cidade como uma totalidade orgânica, socialmente produzida por cada indivíduo que habita esse espaço. De forma objetiva, podemos dizer que sua concepção vai além dos direitos individuais e imediatos. Não se trata, por exemplo, apenas do direito à opinião ou ao voto. O direito à cidade é uma necessidade social e pode ser concebido como: direito à vida urbana transformada, renovada. [...] direito à obra e no direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade). [...] direito à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais. (LEFEBVRE, 2006, p.117-135-143)

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De acordo com David Harvey (2014), Lefebvre apresenta o direito à cidade ao mesmo tempo como uma queixa e uma exigência. A queixa era uma resposta à dor existencial de uma crise devastadora da vida cotidiana nas cidades. A exigência era, na verdade, uma ordem para encarar a crise nos olhos e criar uma vida urbana alternativa que fosse menos alienada, mais significativa e divertida, porém, como sempre em Lefebvre, conflitante e dialética, aberta ao futuro, aos embates (tanto temíveis como prazerosos) e à eterna busca de uma novidade inalcançável. A realização da cidade lefrebvriana só pode acontecer quando se dá a apropriação do espaço pelos cidadãos e sua transformação para satisfazer e expandir necessidades e possibilidades da coletividade. Harvey volta aos conceitos de Lefebvre. A partir de uma análise da relação entre o capitalismo e o processo de urbanização, o autor mostra que, historicamente e ainda hoje, os processos de urbanização e reurbanização das cidades se apresentam como uma forma de reprodução da dominação. E ressalta a presença de um personagem que Lefebvre classificou como sujeito de sua própria história: o indivíduo. E é o indivíduo que protagoniza hoje movimentos que, como mostra Harvey, estão eclodindo ao redor do mundo e passaram a reivindicar um tipo de direito diferente daqueles que estamos acostumados a ver em pauta - como direitos civis e direitos humanos, por exemplo. A luta presente nas ruas hoje é a luta pelo direito à cidade que, na concepção do geógrafo britânico, pode ser entendido dessa forma: O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo, e não individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer as nossas cidades, e a nós mesmos, é, a meu ver, um dos nossos direitos humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados. (2014; p. 28)

O argumento de Harvey é que a liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e às nossas cidades é um dos direitos humanos mais importantes - ainda que ainda hoje seja menosprezado. Reivindicar o direito à cidade no sentido proposto é reivindicar algum tipo de poder configurador sobre os processos de urbanização, sobre o modo como nossas cidades são feitas e refeitas. Assim, esperamos que fique claro ao longo do texto o que compreendemos como o direito à cidade na prática. O direito de irmos e virmos pelas ruas em um transporte público de qualidade cuja rota e horário não sejam definidos por uma em-

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presa ou cartel. O direito de termos emprego ou acesso aos mais diversos serviços sem que questões de cor, classe ou gênero interfiram. O direito de morarmos onde seja mais adequado socialmente, independente dos interesses imobiliários do capital especulativo. Sem que os interesses das empresas de saúde limitem a quantidade de remédios que há no estoque de cada hospital. O direito à cidade na prática é o direto da sociedade decidir os rumos da cidade, sem os constrangimentos impostos apenas pelos lucros dos grandes empresários. Eis o nosso pressuposto normativo. ********** É a partir dessa compreensão de direito à cidade que este livro está dividido. São quatorze capítulos que abordam aspectos diversos da questão urbana, além de um capítulo final de caráter histórico. Página após página, o esforço é mostrar que a luta pelo direito à cidade está mais presente no dia a dia de uma grande cidade, como o Rio de Janeiro, do que muitos conseguem mensurar. No Capítulo 1, Larissa Ormay e Pedro Fernandes discutem as possibilidades de uma cidade voltada para o desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação. Marina Schneider e Theófilo Rodrigues discutem, no Capítulo 2, aspectos relacionados à concentração dos meios de comunicação e possíveis mecanismos de desconcentração informacional. Leonardo Puglia e Marcele Frossard trazem à baila no Capítulo 3 o tema da cultura sob a perspectiva gramsciana da construção de hegemonia na cidade. No Capítulo 4, Pedro Henrique Torres, Rodrigo Ribeiro e Taísa Sanches vão buscar na experiência da Vila Autódromo, por exemplo, a crítica à gentrificação e ao modelo autoritário com que são feitas as remoções de habitações populares na cidade sob o lema do legado olímpico. O desenvolvimento econômico é também uma dimensão fundamental para a análise desse livro. Essa é a perspectiva adotada por Mauro Osório, Maria Helena Versiani e Paulo Reis no Capítulo 5. A partir de uma comparação entre as recentes gestões carioca e paulista, Alessandra Maia e Talita Tanscheit apontam no Capítulo 6 relevantes deficiências participativas nos mecanismos de gestão da prefeitura do Rio de Janeiro. No Capítulo 7 é o debate sobre gênero que toma corpo com o estudo de Ana Carolina Radd e Yasmin Curzi, assim como no Capítulo 8 de Carolina Rocha, Marcia Rangel Candido e Veronica Toste Daflon que agrega ao gênero o debate sobre a questão racial. Daniel Gaspar e Rafael Chagas indicam no Capítulo 9 algumas das políticas públicas que poderiam envolver os jovens em seu direito à cidade. A segurança pública sob o olhar não-punitivista da sociologia do direito é apresentada por Rogério Dultra dos Santos, Elizabeth Ribei-

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ro Albernaz e Angelo Remedio no Capítulo 10. Theófilo Rodrigues e Francicleo Castro Ramos observam no Capítulo 11 a educação básica na cidade do Rio de Janeiro sob a ótica da politecnia. A sociologia do trabalho e o tema do emprego e da formalidade na cidade do Rio é o ponto de partida de Luisa Barbosa Pereira no Capítulo 12. Ana Pimentel, Daniela Tranches de Melo e Gisele Silva Araújo trazem as mais diversas esferas da saúde pública na cidade para a discussão no Capítulo 13. Por fim, Mayra Goulart nos narra no Capítulo 14 uma breve história política do Rio de Janeiro que vem do início dos anos 80 até os dias de hoje. O livro só foi possível graças ao empenho e dedicação de todos seus trinta autores. Agradecemos também à revisão atenta de Sheila Jacob, ao Núcleo Piratininga de Comunicação pela generosidade na edição, ao Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé pelo apoio e à Associação de Pós-Graduandos da PUC-Rio de onde nasceu a ideia. Boa leitura!

Rio de Janeiro, agosto de 2016

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  CASTELLS, M. A Questão Urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1983.  HARVEY, D. A Liberdade da Cidade. Disponível em: h p://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-82/tribuna-livre-da-luta-declasses/o-direito-a-cidade. Acesso em 10 de dezembro de 2014. ______. Cidades Rebeldes. Do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Mar ns Fontes, 2014.  LEFÉBVRE, H. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. ______. O Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2006.  OSORIO, Mauro. [ORG]. Uma agenda para o Rio de Janeiro: estratégias e polí cas públicas para o desenvolvimento socioeconômico. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015.

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CAPÍTULO 1 Ciência, tecnologia e inovação para o Rio que queremos

LARISSA ORMAY1 E PEDRO FERNANDES2

A

importância da ciência, da tecnologia e da inovação para o desenvolvimento econômico e para a melhoria da qualidade de vida da população é praticamente inconteste nos dias de hoje. Apesar de muitas pessoas ainda estarem, em diferentes níveis, excluídas das vantagens e facilidades propiciadas pela tecnologia, as profundas transformações que ocorrem em questão de poucos anos tornam claros os intensos impactos econômicos e sociais produzidos pelo desenvolvimento tecnológico. Isso é facilmente constatável quando percebemos que estamos rodeados de bens e produtos, considerados essenciais hoje em dia, que simplesmente não existiam há cinco anos. Alguns não existiam há dez. Outros, ainda, surgiram há cinquenta anos, e assim por diante, em um ritmo que parece se acelerar cada vez mais. Um dos primeiros economistas a atribuir centralidade à questão tecnológica para a explicação dos fenômenos econômicos foi o austríaco Joseph Schumpeter, da primeira metade do século XX. Este autor identificou, como sendo a força motriz do progresso econômico, saltos tecnológicos que alteram condições econômicas de equilíbrio previamente existentes. É dele a expressão “destruição criativa”, derivada de concepções marxistas, para se referir ao processo de incessante revolução das estruturas produtivas no capitalismo através da reinvenção tecnológica

1 Advogada, mestre em Ciência Política pela UFF, doutoranda pelo IBICT-UFRJ e Analista em Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Atua no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. 2 Advogado e mestrando em Teoria do Estado e Direito Constitucional na PUC-Rio.

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(SCHUMPETER, 2003, p. 81). Desde então o desenvolvimento tecnológico e a inovação adquiriram centralidade em qualquer análise econômica mais profunda. Os governos do mundo inteiro sabem da importância da ciência, tecnologia e inovação, e formulam diversas políticas com o intuito de estimular seu desenvolvimento, inclusive os países costumeiramente tidos como bastiões do liberalismo (MAZZUCATO, 2011, p. 53). É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos, nação que possui fortes políticas de Estado, envolvendo vultosos recursos públicos para alavancar o desenvolvimento tecnológico, políticas estas normalmente relacionadas à dimensão militar ou de segurança nacional (RUTTAN, 2006). Não à toa, diversas tecnologias com as quais temos imensa familiaridade atualmente, tais como a Internet, os aviões a jato e a energia nuclear, passaram, em alguma medida, pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, departamento este que esbanja um orçamento de cerca de 600 bilhões de dólares e que gastou, recentemente, cerca de 65 bilhões em Pesquisa e Desenvolvimento3. A importância da tecnologia se tornou ainda maior com o advento da chamada Revolução Técnico-Científica e Informacional, na qual os paradigmas da ordem econômica se transformam radicalmente e a informação se torna essencial. Alguns teóricos chegam, inclusive, a categorizar o mundo em que vivemos como um mundo pós-industrial, no qual a dimensão mais importante é o conhecimento (DRUCKER, 1994). Neste estágio do desenvolvimento, chamado por alguns de “Era da Informação” (HUMBERT, 2007), o trabalhador se torna, cada vez mais, um expert na sua área de atuação, um detentor de conhecimento especializado, e não um mero reprodutor de tarefas mecânicas. O velho aforisma “conhecimento é poder” é reafirmado com ainda mais intensidade na contemporaneidade. Esta é uma realidade que demanda constantes atualizações tecnológicas e demanda, também, que a população de modo geral se adapte a tais transformações. As sociedades que não conseguirem se adaptar a esta nova realidade correm o risco de ficarem na retaguarda da História e de se depararem, no futuro, com um gap tecnológico intransponível. Assim sendo, sabendo-se que o avanço tecnológico provém do conhecimento científico, o planejamento de políticas públicas passa, a partir da perspectiva schumpeteriana, ou próximo dela, a considerar o campo científico não mais exclusivamente referente à ciência, tampouco apenas à ciência e à tecnologia, e

United States Department of Defense Fiscal Year 2016. Disponível em http://comptroller.defense.gov/Portals/45/ Documents/defbudget/fy2016/FY2016_Budget_Request_Overview_Book.pdf 3

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LARISSA ORMAY / PEDRO FERNANDES

sim à ciência, tecnologia e inovação (CT&I), como um tripé indissociável que está na base do desenvolvimento econômico e social de um país. A seguir, faremos uma exposição do estado da ciência, tecnologia e inovação no Brasil, no estado do Rio de Janeiro e na capital carioca, e apresentaremos algumas propostas que consideramos que podem ser interessantes para o nosso município.

O cenário nacional Diante da realidade apresentada na Introdução, se o nosso país pretende construir uma sociedade avançada, em que a qualidade de vida dos seus cidadãos melhore com consistência, e se pretende ter um protagonismo relevante no cenário internacional do século XXI, nós precisamos atribuir centralidade à ciência, à tecnologia e à inovação. Considerando que somos, ainda, um país em desenvolvimento e, ao mesmo tempo, um país com vastas riquezas naturais e com enorme diversidade de matérias-primas, os desafios e as possibilidades nesta área são imensas. Os desafios são ainda maiores devido à grave crise econômica em que vivemos, visto que o governo precisa cortar gastos ao mesmo tempo em que precisa manter investimentos fundamentais para que o Brasil saia da crise, e entre tais investimentos constam, sem dúvida, os investimentos realizados em ciência, tecnologia e inovação (CT&I). No ano de 2015, a Emenda Constitucional nº 85 alterou significativamente a Constituição Federal de 1988 para adequar a ordem jurídica brasileira ao paradigma da sociedade do conhecimento, prevendo a organização do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) em regime de colaboração entre entes, tanto públicos quanto privados, com vistas a promover o desenvolvimento científico e tecnológico, bem como a inovação. Não obstante a existência deste e de outros significativos avanços recentes na ordem jurídica no sentido de estimular o desenvolvimento nacional a partir da CT&I, como a Lei de Inovação (Lei nº 10.973/2004), a Lei do Bem (Lei nº 11.196/2005) e, mais recentemente, a Lei 13.243/2016 (Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação), os dados relevantes indicam um quadro preocupante para o nosso país. O Brasil tem uma notória dificuldade em integrar novas tecnologias nacionais ao setor produtivo, muito embora os dados relativos à produção de conhecimento teórico, tais como o número de artigos publicados, sejam relativamente positivos. Mais preocupante ainda é o fato de países que até poucas décadas atrás possuíam capacidades tecnológicas similares ou inferiores à nossa, como era o caso da China e da Índia, nos terem ultrapassado com uma rapidez assustadora e se distanciam cada vez mais.

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O RIO QUE QUEREMOS: PROPOSTAS PARA UMA CIDADE INCLUSIVA

Para demonstrar este quadro, cumpre explicitar o estado da inovação do Brasil em comparação com os demais países de relevância internacional para este tema. Com este fim, recorremos a alguns dados estatísticos muito utilizados para se medir a inovação: a proporção entre investimento em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) de um país e o seu Produto Interno Bruto (PIB); o número de patentes pedidas e registradas anualmente de acordo com a nacionalidade do requerente; a proporção de produtos de alta tecnologia nas exportações nacionais; e o número de artigos publicados em jornais técnicos e científicos indexados. De acordo com dados do Banco Mundial, é possível perceber que a proporção de investimento em P&D em relação ao PIB brasileiro ainda é pequena se comparada com os países desenvolvidos e com a China, por mais que, nos anos 2000, o montante investido em termos proporcionais tenha apresentado um leve aumento.

Fonte: Banco Mundial. Gráfico criado em 07/05/2016

Em relação às publicações de artigos em jornais técnicos e científicos indexados4, os dados brasileiros são positivos se observada a série histórica. O crescimento nas últimas duas décadas foi significativo. Passamos de cerca de 2.300 artigos em 1990 para cerca de 13.000 em 2011. Não obstante, estamos muito longe dos países desenvolvidos e da China.5 4 Os dados do Banco Mundial englobam artigos nos seguintes campos de conhecimento: Física, Biologia, Química, Matemática, Medicina Clínica, Pesquisa Biomédica, Engenharia e Ciências Espaciais. 5 O Banco Mundial utiliza dados da National Science Foundation, agência do governo norte-americano, como fonte. O Próprio Banco Mundial admite que pode haver um viés em favor de jornais de língua inglesa.

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LARISSA ORMAY / PEDRO FERNANDES

Fonte: Banco Mundial. Gráfico criado em 07/05/2016

Analisando a proporção dos produtos de alta tecnologia nas exportações nacionais, podemos observar que o Brasil vive uma tendência de queda desde o final dos anos 1990. A Índia e principalmente a China apresentaram um aumento muito elevado na proporção de produtos de alta tecnologia exportados. Os países desenvolvidos, de modo geral, também apresentaram uma tendência de queda, mas permanecem muito superiores aos Brasil. O gráfico com tais dados se encontra a seguir:

Fonte: Banco Mundial. Gráfico criado em 07/05/2016

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O RIO QUE QUEREMOS: PROPOSTAS PARA UMA CIDADE INCLUSIVA

Os dados relativos a pedidos e registros de patentes são os mais preocupantes, pois o Brasil está muito distante dos outros países. Tais dados se mostram ainda mais alarmantes porque, observando a série histórica, vemos uma tendência de aumento da distância em relação aos países desenvolvidos e uma tendência de distanciamento ainda maior em relação a outros países não desenvolvidos, como a Índia e a China. Ou seja, o Brasil não está acompanhando o ritmo de desenvolvimento tecnológico de outros países que, como ele, não eram países centrais na configuração geopolítica e econômica até recentemente. Os dados abaixo são referentes a pedidos de patentes com base no país de origem do requerente. Nos anos 1990, a China tinha cerca de 3 vezes mais pedidos do que o Brasil, e a Índia cerca de metade. Enquanto o Brasil dobrou o número de pedidos entre 1995 e 2013, a China aumentou em mais de 70 vezes, se tornando o país com mais requerentes do mundo, e a Índia aumentou em cerca de 12 vezes, ultrapassando o Brasil por ampla margem. Países requerentes

1995

2000

2005

2008

2010

2011

2012

2013

1

Argen na

877

1397

1277

1112

317

339

1079

922

2

Brasil

3095

3782

4920

5521

5735

6359

6603

6848

3

China

10317

26445

97948

204268

308326

436170

561408

734096

4

Alemanha

69709

134691

153634

171835

173619

175606

183048

184493

5

Índia

1708

2886

8028

11546

14869

15896

18202

20908

6

Japão

404704

490776

530005

509990

468417

475051

490271

473141

7

Rússia

18042

24093

25948

31095

32837

31464

34379

34067

8

África do Sul

1549

1531

2109

2099

1996

1763

1688

2211

9

Reino Unido

29892

46333

46953

51313

50879

50805

51562

51300

10

EUA

186013

280390

383242

428881

433199

440632

473489

501162

Fonte: WIPO Statistics Database. Disponível em < http://www.wipo.int/ipstats/en/ > Acesso em 01/12/2015

Os números são ainda mais frustrantes quando observamos os registros de patentes, ao invés dos pedidos. Os registros de requerentes brasileiros aumentaram muito pouco entre 1995 e 2013 (menos do que o dobro), enquanto os registros chineses aumentaram quase 100 vezes, e os indianos 10. O número de registros sul-africanos, surpreendentemente, é superior ao brasileiro, embora tenha se mantido praticamente o mesmo desde 1995.

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1

Países

1995

2000

2005

2008

2010

2011

2012

2013

Argen na

262

240

372

346

105

112

354

411

2

Brasil

701

310

535

630

805

947

1026

1243

3

China

1679

6446

21575

48919

84814

118130

152097

154489

4

Alemanha

29817

46304

63802

68872

70652

72804

77077

81635

5

Índia

494

584

2284

3939

3134

2880

3583

4390

6

Japão

140806

167099

187897

240703

286844

304666

343525

340303

7

Rússia

21204

14830

20819

24159

23633

22179

24400

23365

8

África do Sul

1314

1316

1493

1332

1381

1122

1352

1439

9

Reino Unido

10830

14939

16348

14744

16704

18350

20256

20941

10

EUA

100161

136671

139485

150151

190842

202057

229116

243986

Fonte: WIPO Statistics Database. Disponível em < http://www.wipo.int/ipstats/en/ > Acesso em 01/12/2015

O cenário no Rio de Janeiro A regulamentação do Sistema Nacional de CT&I a partir da emenda constitucional nº 85/2015 realça a necessidade de o Brasil aprofundar seu federalismo com a cooperação entre os entes. Daí a importância, cada vez mais forte, de analisar o desenvolvimento da CT&I brasileira nos níveis federal, estadual e municipal. O estado do Rio de Janeiro esbanja uma das economias mais consolidadas do país, está localizado geoestrategicamente em termos de exploração petrolífera e ostenta uma rede privilegiada de instituições científicas. Ademais, conta com um dispositivo normativo especial que garante o repasse anual de 2% da receita tributária estadual do exercício a sua Fundação de Amparo à Pesquisa (Faperj), deduzidas as transferências e vinculações constitucionais e legais (art. 332 da Constituição Estadual)6. Esse é um importante instrumento da CT&I do estado, garantindo previsibilidade e estabilidade para a necessária continuidade das pesquisas científicas, que, assim, independem de financiamentos baseados em variações como, por exemplo, flutuantes preços do petróleo. O município do Rio de Janeiro, referência nacional em diversos aspectos, 6 Contra essa garantia, o governo do estado encaminhou à Assembleia Legislativa (Alerj) o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) nº 19/2016 para reduzir em 50% o orçamento da Faperj – que passaria de 2% para 1% do fundo de arrecadação do estado.

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O RIO QUE QUEREMOS: PROPOSTAS PARA UMA CIDADE INCLUSIVA

composto por um povo naturalmente criativo e inovador, é um município no qual residem muitos cientistas e intelectuais, e pode desempenhar um papel importante nesta área. No interior do Sistema Nacional de CT&I, o estabelecimento de um robusto sistema municipal de CT&I no Rio de Janeiro é uma realidade, relacionando diversos atores de relevância e projeção nacional, tanto do setor público como do privado. O município é sede do maior parque tecnológico do Brasil, concentrando diversas empresas de base tecnológica, dezenas de universidades, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) e 8 das 13 unidades de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (como o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada – IMPA, o Instituto Nacional de Tecnologia – INT e o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas – CBPF), entre muitas outras instituições de elevada importância na área. Diante de todo esse potencial, a sólida infraestrutura de CT&I do município está apta a garantir seu desenvolvimento futuro, desde que bem empregada. De acordo com o § 2º do artigo 219-B da Constituição Federal, o município deve legislar concorrentemente sobre a ciência, tecnologia e inovação, conforme suas peculiaridades. Além dessa competência legislativa, o município tem competência executiva para implementar políticas que proporcionem meios de acesso à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação (art. 23 da Constituição Federal). A Constituição do Estado e a Lei Orgânica deste município seguem o desenho federal, embora ainda não tenham passado por reformas que atualizem os respectivos textos para incorporar explicitamente a normatividade do estímulo à inovação. No plano executivo, cumpre trazer a lume que, nos últimos anos, foram tomadas algumas iniciativas interessantes por parte da Prefeitura, principalmente através da Secretaria Especial de Ciência e Tecnologia (SECT) no sentido de fomentar o desenvolvimento tecnológico no município e estimular o interesse da população carioca por questões relativas à tecnologia. Entre elas estão o Projeto Naves do Conhecimento, que criou polos de conhecimento e de inclusão digital em vários bairros da cidade, com ênfase em regiões menos favorecidas, auxiliando na inserção da população local na Era da informação e beneficiando tais regiões com riqueza arquitetônica e áreas verdes. Outra iniciativa interessante é a Rio Ideias, concurso organizado pela prefeitura da cidade com o objetivo de premiar ideias inovadoras para a cidade. Em 2015, o concurso tinha como objeto ideias de aplicativos capazes de tornar o Rio de Janeiro uma cidade mais inteligente. O Rio de Janeiro chegou, inclusive, a ganhar o prêmio de cidade inteligente no ano de 2013 (World Smart City 2013). Não obstante, o nosso município ainda

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está aquém do seu potencial. Nós podemos fazer muito mais pelo estímulo à inovação e pelo desenvolvimento tecnológico na nossa cidade.

Considerações finais: propostas de CT&I para o Rio que queremos Diante do quadro exposto, fica evidente a necessidade de formular novas políticas governamentais voltadas para o estímulo da inovação, do desenvolvimento tecnológico e para a integração destes no sistema produtivo, além de aprimorar as políticas públicas já existentes. Observando-se o relevante papel desempenhado pelo município do Rio de Janeiro no Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, é possível vislumbrar algumas iniciativas a serem concretizadas na municipalidade que podem ser interessantes, como a utilização do Fundo Municipal de Amparo à Pesquisa, a criação de uma Fundação Municipal de Amparo à Pesquisa, a edição de leis municipais para pequenas, microempresas e startups, a criação de um “Caminho Tecnológico”, a expansão das atividades de divulgação científica e a difusão de aplicativos de dispositivos móveis relacionados a CT&I. O Fundo Municipal de Amparo à Pesquisa foi instituído pela Lei 5.397/12, mas não é utilizado na prática. Seria uma forma muito eficaz de estimular a ciência, a tecnologia e a inovação no município. Este interessante mecanismo de política pública foi, ao que tudo indica, relegado ao esquecimento. Faltam iniciativa e vontade política para a utilização do mesmo no nosso município. De acordo com dados publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)7, o município do Rio de Janeiro tem um Produto Interno Bruto (PIB) que supera diversos estados da Federação. Nesse sentido, trata-se de um município que, economicamente, é equiparável a um estado. Por que não, então, criar uma estrutura municipal de amparo a CT&I semelhante à dos estados? A criação de uma Fundação de Amparo à Pesquisa no município, paralelamente à fundação estadual (Faperj), provavelmente aceleraria o desenvolvimento municipal de maneira ímpar, contribuindo para a geração de riqueza a partir da transferência de conhecimento científico e tecnológico para a indústria. A Lei Geral de Micro e Pequena Empresa, criada em 2006, beneficia e simplifica o desenvolvimento empresarial no País. Agora, compete ao município le-

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http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/pibmunicipios/2010_2013/default_xls.shtm

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O RIO QUE QUEREMOS: PROPOSTAS PARA UMA CIDADE INCLUSIVA

gislar sobre a matéria segundo suas peculiaridades. O empreendedorismo é fundamental à inovação, entendendo-se esta como lançamento de um novo produto ou serviço no mercado. Nesse quesito, as startups são empreendimentos promissores para o desenvolvimento local, configurando-se como empresas de pequeno porte com grande potencial de expansão da escala de sua produção. A proposta de um “Caminho Tecnológico” envolvendo o município do Rio de Janeiro surgiu no livro A capacidade indutora dos serviços no estado do Rio de Janeiro, de Mauro Osório (2014). Segundo essa proposta, o Caminho articularia o Parque Tecnológico da UFRJ, o Parque Tecnológico do Inmetro, em Xerém, e a Petrópolis-Tecnópolis. A proposta tem forte potencial de sucesso devido aos recursos de CT&I disponíveis na região, merecendo as atenções de todos os gestores de políticas públicas em CT&I cariocas. Em reforço a essa ideia, o supercomputador mais potente da América Latina foi instalado em 2015 no município de Petrópolis, que fica aproximadamente a uma hora do município do Rio de Janeiro. Outro ponto importante, que pode ser melhor trabalhado no município, diz respeito à divulgação científica. Além de elemento de inclusão social e democratização da sociedade, a divulgação científica, como comunicação de ciência para o público não especializado, promove um estratégico movimento de atração de jovens estudantes às carreiras científicas, sendo capaz, assim, de aumentar o corpo científico municipal e de criar e manter o plural ambiente urbano carioca ainda mais propício ao estímulo à curiosidade científica. A realização de eventos públicos de divulgação científica, a criação de mais museus de ciência e a distribuição gratuita de material gráfico e audiovisual de popularização da ciência são alguns dos instrumentos de divulgação científica que poderiam ser mais explorados no Rio de Janeiro. Seria oportuna, também, uma maior atenção do governo municipal à tecnologia de aplicativos. Na economia das sociedades da informação, o acesso à Internet via celular não para de aumentar, e a tendência de inclusão digital vem se dando cada vez mais pelo aparelho portátil. Como consequência, o mercado de aplicativos cresce aceleradamente, revelando-se como um promissor nicho de negócios para um empreendimento de inovação tecnológica. Por outro lado, os chamados apps podem ter rebatimentos multiplicadores para a área de CT&I se facilitarem a comunicação e a divulgação científica. A prefeitura do Rio criou alguns aplicativos voltados para comunicação, turismo e outras atividades8, mas eles

8

Os aplicativos existentes estão neste endereço: http://www.rio.rj.gov.br/web/iplanrio/aplicativos-pcrj

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LARISSA ORMAY / PEDRO FERNANDES

são pouco conhecidos e ainda há espaço para a criação de novos aplicativos, principalmente ligados à tecnologia e inovação, e para uma melhor divulgação deles. Enfim, como demonstrado neste texto, a valorização da ciência, tecnologia e inovação (CT&I) é fundamental para a construção de uma sociedade desenvolvida e para a melhoria da qualidade de vida da população. Para o seu fortalecimento é preciso uma intensa atuação do Estado no seu fomento através de políticas diversas, articuladas em âmbito nacional, estadual e municipal. A despeito de significativos avanços recentes, o Brasil precisa melhorar – e muito – suas políticas ligadas à CT&I, principalmente diante do contexto econômico muito crítico atual. Caso contrário, nosso país corre o risco de não superar satisfatoriamente esta crise e de não aproveitar o momento para construir uma matriz econômica mais moderna e inovadora. Além de tolher o desenvolvimento social e econômico nacional, isto relegaria o país a um papel geopolítico subalterno em um mundo no qual a capacidade tecnológica é determinante. Especificamente do ponto de vista municipal, a aplicação de conhecimento de CT&I à produção industrial e mesmo aos serviços oferecidos localmente deve proporcionar uma vida urbana mais inteligente e sustentável, em benefício da própria população carioca.

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O RIO QUE QUEREMOS: PROPOSTAS PARA UMA CIDADE INCLUSIVA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:  CASSIOLATO, José Eduardo e LASTRES, Helena Maria Mar ns. Sistemas de Inovação e Desenvolvimento: as implicações de polí ca. São Paulo em Perspec va, v.19, n. 1 p. 34-45, jan./mar. 2005.  CASSIOLATO, José Eduardo, LASTRES, Helena Maria Mar ns e SZAPIRO, Marina. Dilemas e Perspec vas da Polí ca de Inovação. in: Indústria e Desenvolvimento Produ vo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2015, p. 377-416.  DRUCKER, Peter. The age of Social Transforma on. The Atlan c Monthly. 1994  FREEMAN, Christopher. A Schumpeterian Renaissance? SPRU Electronic Working Papers Series. 2003  MATHIAS, Humbert. Technology and Workforce: Comparison Between the Informa on Revolu on and the Industrial Revolu on. University of California. 2007  MAZZUCATO, Marina. The Entrepreneurial State. Londres: Demos. 2011  OSÓRIO, Mauro. A capacidade indutora dos serviços no estado do Rio de Janeiro. Ed: Sebrae. 2014.  RUTTAN, Vernon. Is War Necessary For Economic Growth? Oxford Scholarship Online. 2006  SCHUMPETER, Joseph. Capitalism, Socialism and Democracy. Taylor & Francis elibrary. 2003.

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CAPÍTULO 2 Monopólio e direito à comunicação na cidade do Rio de Janeiro MARINA SCHNEIDER1 E THEÓFILO RODRIGUES2 Art. 19 - Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. (Declaração Universal dos Direitos Humanos)

A

pesar de ter sua centralidade evidenciada e debatida de forma mais profunda recentemente, a relação da mídia com as democracias modernas e a militância em defesa do direito à comunicação ainda carecem de atenção tanto da universidade como dos movimentos sociais e da sociedade civil em geral. Se temos em mente algum compromisso com o amadurecimento e ampliação da democracia, é crucial analisar criticamente esta relação para pensar políticas públicas, leis e outras ações que estimulem a pluralidade e a diversidade informativa. Não é exagero dizer que os meios de comunicação constroem a realidade à nossa volta. É através do que assistimos, lemos e ouvimos que interpretamos e damos significado aos acontecimentos cotidianos. Evidentemente, fatores como relações familiares e pessoais, relações estabelecidas nas escolas, no ambiente de trabalho, além

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Marina Schneider é jornalista e mestranda em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Theófilo Rodrigues é mestre em Ciência Política pela UFF e doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Rio.

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da religião, entre outras questões, influenciam na forma como cada um de nós vê o mundo. No entanto, em um país em que 97,2% dos domicílios possuem pelo menos uma televisão e o acesso à radiodifusão aberta (rádio e TV) se dá de forma gratuita, bastando, em boa parte das vezes, a compra de antenas internas para se ter acesso à programação exibida por empresas concessionárias deste serviço, é possível afirmar, concordando com Guareschi e Biz (2009, p. 58) que “a mídia constrói a realidade, apresenta valores a serem seguidos, monta a pauta da discussão e influi na subjetivação e na definição das pessoas”. Nesse contexto podemos incluir a internet, recurso ao qual nós brasileiros dedicamos parte expressiva do nosso tempo e onde também se tem muito contato com o conteúdo produzido pela mídia tradicional, já que a tendência mundial continua sendo a de concentração da produção e disseminação de conteúdo nas mãos das grandes empresas do ramo da comunicação e entretenimento. Segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia 20153, metade dos brasileiros usava a internet regularmente em 2014. A média de tempo de conexão diária era de 4h59 durante a semana e de 4h14 nos finais de semana e o principal uso foi a busca de informações, opção marcada por 67% dos entrevistados. A internet é, portanto, junto com os meios de comunicação tradicionais, um elemento de peso na conformação de visões de mundo. O que não é escolhido pelos editores para figurar nos noticiários da mídia tradicional à qual quase todos podem ter acesso gratuitamente – a televisão e o rádio abertos, como já afirmamos – simplesmente deixa de existir para aqueles que não conhecem ou não têm acesso a fontes alternativas. A partir do momento que escolhe alguns assuntos e não outros, o editor contribui para que seja disseminada uma agenda de temas que será debatida não só nos almoços de domingo em família, no breve bate-papo na fila do banco, na sala de aula ou no escritório. Ele seleciona também quais assuntos estarão na agenda dos governantes e políticos, dos grandes empresários e de outros setores que decidem sobre os rumos do país. O poder que donos de meios de comunicação e seus editores possuem é, portanto, evidente. Mas e quem não é proprietário de veículos de mídia tem seu direito à liberdade de expressão garantido? Em outras palavras, é possível ao cidadão comum exercer seu direito à comunicação, ou seja, além de ter acesso à informação, se fazer ver e ouvir e levar ao debate público temas de seu interesse e de interesse da sua comunidade? Sem livre, diverso e plural debate de ideias não podemos conceber qualquer avanço em termos de democracia, tanto no plano local – como Pesquisa realizada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e publicada no final de 2014. Disponível na íntegra em http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-equalitativas-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf

3

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MARINA SCHNEIDER / THEÓFILO RODRIGUES

no Rio de Janeiro, objeto principal de nossa análise – quanto no plano nacional. O capítulo está dividido em três seções. Na primeira indicamos alguns dos alicerces que sustentam a importância da liberdade de expressão e do direito à comunicação e a forma como o debate chegou ao Brasil. Em seguida apresentamos as relações construídas nos últimos oito anos entre a prefeitura do Rio de Janeiro e duas grandes empresas de comunicação da cidade, o Grupo Globo e a agência de publicidade Prole. Por fim, discutimos algumas políticas públicas para o setor que poderiam ser implementadas pela prefeitura do Rio.

Liberdade de expressão e direito à comunicação Para apresentar um panorama sobre a questão do direito à comunicação no município do Rio de Janeiro é necessário fazer uma breve retomada do caminho transcorrido até que a comunicação começasse a ser reconhecida como um direito. Antes, no entanto, é fundamental tratarmos da liberdade de expressão, questão que também sofreu mudanças de entendimento ao longo do tempo. Em termos filosóficos, a liberdade de expressão está ligada à liberdade de pensamento. Com a consolidação do Estado moderno, a partir das revoluções burguesas (Revolução Gloriosa, na Inglaterra, e Revolução Francesa), o conceito de liberdade passa a estar identificado com o mundo privado, e a liberdade de expressão passa a ser uma liberdade negativa do Estado. Isso significa que dos governos esperavase apenas que não interferissem sobre o pensamento e a expressão dos cidadãos. A partir do avanço do pensamento liberal, essa visão se transforma e passa a ser função do Estado garantir a liberdade de expressão, ou seja, há uma positivação desse direito. A epígrafe deste artigo foi retirada da Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento da Organização das Nações Unidas (ONU) que data de 1948 e é considerado “ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações”. Ela é apenas um exemplo de registro dessa nova perspectiva a respeito da liberdade de expressão, que também consta em outras declarações de direitos. Fazendo uma breve incursão na história do direito à comunicação, é interessante lembrar que por muito tempo ele ficou atrelado apenas aos direitos à liberdade de informação e de imprensa. Em 1980, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) publicou o Relatório “Um mundo, muitas vozes”, após grande discussão no órgão sobre o tema, e essa visão foi ampliada. O documento ficou conhecido como Relatório MacBride e nele ficou reconhecida e, de alguma forma, denunciada, a enorme discrepância no

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fluxo mundial de informação, sendo os países desenvolvidos responsáveis pela maior parte das informações divulgadas no planeta. O documento recomendou uma série de ações, entre elas a necessidade de promover a ideia de que a comunicação é um direito fundamental dos cidadãos. Assim, reiterou a necessidade de reconhecimento do direito humano à comunicação como princípio jurídico4. Voltemos à questão já adiantada na introdução: de que forma é possível garantir que os cidadãos possam ter acesso a informações diversas se pensarmos que boa parte da mídia é formada por empresas privadas que, apesar de afirmarem que tomam para si o papel de disseminar informações de interesse público, não admitem qualquer tipo de controle público? Um momento marcante da defesa do direito à comunicação e da democratização da mídia – certamente ocasião em que o debate sobre o tema se deu de forma mais ampla no país – foi a Primeira (e até agora única) Conferência Nacional de Comunicação, realizada em 2009, penúltimo ano de governo Lula. Apesar da recusa de grande parte dos empresários em participar do fórum, foram criadas mais de 600 propostas que têm como fio comum a democratização da comunicação no Brasil. Segundo Moraes (2011, p. 108) e Lima (2012, p. 223), dois dos principais pesquisadores e especialistas no tema no Brasil, a proposta de afirmação da comunicação como direito humano e o pleito para que esse direito seja incluído na Constituição Federal é uma das que merecem mais destaque. Eles ressaltam, ainda, a demanda de criação de um Conselho Nacional de Comunicação com caráter de formulação e monitoramento de políticas públicas. Cabe lembrar que existe um Conselho de Comunicação Social, de âmbito nacional, que estava previsto no artigo 224 da Constituição Federal e foi regulamentado por lei em 1991. Apesar disso, o órgão, que é vinculado à Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática do Congresso Nacional, tem funcionado de forma bastante irregular e só realizou reuniões mensais no período de 2002 a 2006. Foi retomado em 2012, mas já teve sua representatividade questionada por ter um representante da sociedade civil nomeado diretamente pelo então presidente do senado, José Sarney (PMDB-AP)5, e não eleito. A questão do Conselho, fundamental para a participação da sociedade na definição e controle das políticas públicas do setor, será retomada mais adiante.

4 Outras informações podem ser obtidas no site do Observatório do Direito à Comunicação: http://www.intervozes.org.br/direitoacomunicacao/?page_id=28545 5 DINIZ, Lilia. A volta do Conselho de Comunicação Social. Artigo publicado na edição 709 do Observatório da Imprensa, em 30/08/2012. Disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_volta_do_conselho_de_comunicacao_social

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Outras duas propostas relevantes selecionadas por Moraes e Lima são a definição de regras mais democráticas e transparentes para concessões e renovações de outorgas, visando à ampliação da pluralidade e diversidade de conteúdo e a proibição de outorgas para políticos em exercício de mandato eletivo. Também tem destaque a proposta de que o acesso à internet banda larga fosse definido como direito fundamental e que este serviço fosse estabelecido em regime público para garantir sua universalização, continuidade e controle de preços. A regulamentação dos sistemas público, privado e estatal de comunicação, que são citados na Constituição Federal, mas não possuem definição legal, com reserva de espaço no espectro para cada um, é também uma proposta central. Claramente relacionada a esta proposta está a que recomenda o fortalecimento do financiamento do sistema público de comunicação. Outras proposições feitas na Confecom que se sobressaem, segundo Lima (2012, p. 233) e Moraes (2011, p. 108), são: (...) O combate à concentração no setor, com a determinação de limites à propriedade horizontal, vertical e cruzada; A garantia de espaço para produção regional e independente; (...) A descriminalização da radiodifusão comunitária e a abertura de mais espaço para esse tipo de serviço, hoje confinado a 1/40 avos do espectro; (...) A implementação de instrumentos para avaliar e combater violações de direitos humanos nas comunicações; O combate à discriminação de gênero, orientação sexual, etnia, raça, geração e de credo religioso nos meios de comunicação; A garantia da laicidade na exploração dos serviços de radiodifusão.

A riqueza das propostas aprovadas na 1ª Conferência Nacional de Comunicação na direção da democratização do setor é inegável. A efetivação das mesmas, contudo, até hoje parece muito distante da realidade. Mas as políticas públicas para o setor seguem sendo fundamentais para que se valorize a comunicação como direito e para que se possa combater “a oligopolização da produção simbólica, a começar por mecanismos democráticos de regulação, de universalização de acessos, de proteção do patrimônio cultural intangível, de usos educativos e comunitários das tecnologias” (MORAES, 2013, p. 48). Concordando com o ponto de vista do pesquisador do setor, admitimos que políticas públicas são indispensáveis para assegurar a diversidade, ou seja, para permitir o confronto de diferentes pontos de vista, condição que soa como uma das bases para o bom andamento de uma democracia. O caminho para o reconhecimento e efetivação deste direito, no entanto, parece ainda ser bastante longo no Brasil e na capital fluminense.

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As relações entre público e privado O direito à comunicação na cidade do Rio de Janeiro vem sendo inibido por uma série de obstáculos públicos e privados há muitos anos. Ao deserto de políticas públicas de comunicação presente na prefeitura soma-se o fato de a cidade sediar a maior empresa monopolística do setor, o Grupo Globo. Essa história não é nova. Contudo, foi seguramente a partir da posse do prefeito Eduardo Paes em janeiro de 2009 que a situação deletéria alcançou seu ápice. Paes e a Globo construíram uma parceria milionária que vai da publicidade oficial da prefeitura até a gestão dos principais museus municipais, passando pela organização dos mais diversos eventos que ocorreram na cidade. Uma das consequências dessa parceria foi o fomento da concentração monopolística da informação – vide o fechamento da edição impressa do Jornal do Brasil em 2010 e a crise no jornal O Dia nos últimos anos. Na prática só existem dois grandes jornais na cidade: O Globo e Extra, ambos da família Marinho. Outro resultado da proximidade entre a empresa e Paes foi a transferência da gestão de três grandes museus da cidade – Museu de Arte do Rio, Museu do Amanhã e Museu da Imagem e do Som – para a Fundação Roberto Marinho. Além do prestígio de ter sua marca ali impressa, a Fundação Roberto Marinho recebeu R$ 56 milhões da prefeitura para gerir os museus. No entanto, a danosa parceria entre público e privado não é privilégio exclusivo da Globo. Outra empresa que tem faturado com sua íntima relação com a prefeitura é a agência de publicidade Prole. E aqui a história fica ainda menos republicana. A Prole é a agência de publicidade preferida do PMDB carioca. Um de seus sócios é o marqueteiro Renato Pereira, que fez a campanha de Sérgio Cabral em 2006 e 2010, de Eduardo Paes em 2008 e 2012, de Luiz Fernando Pezão em 2014 e de Pedro Paulo em 2016. Por acaso, é também a agência que vem vencendo as licitações para cuidar da imagem do governo estadual desde 2006 e da prefeitura desde 2009. A relação entre público e privado ficou ainda mais íntima quando, em janeiro de 2013, Paes nomeou Fabiano Leal como Secretário de Comunicação Social da prefeitura. Antes de assumir o cargo Leal foi diretor da Prole, o que já indicaria um grave caso de conflito de interesses. E esse conflito de interesses foi confirmado em março de 2015 quando a Prole venceu novamente a licitação coordenada por Leal para a conta de publicidade da prefeitura. Ao lado de outras duas agências, a Prole foi escolhida para cuidar da imagem da gestão municipal nos anos de 2015 e 2016 por um valor de R$ 150 milhões. É, portanto, no mínimo intuitivo suspeitar que o PMDB no Rio de Janeiro esteja utilizando da conta de publicidade da máquina pública para atingir objetivos privados,

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quais sejam, as eleições e reeleições de seus candidatos, o que configuraria um grave crime a ser investigado pela justiça em geral e pelo Ministério Público em particular.

O deserto de políticas públicas e algumas propostas Como visto na seção anterior, grande parte da intervenção política da prefeitura do Rio de Janeiro no setor de comunicação se dá através da transferência de recursos públicos para duas grandes empresas privadas. No mais temos apenas um grande deserto para as políticas públicas de comunicação. Nesta seção apresentamos cinco possibilidades de políticas públicas que poderiam incrementar a rede de negócios da mídia na cidade, a pluralidade de informações, a transparência das ações públicas e a participação social. Estamos falando do Conselho de Comunicação Social, do Canal da Cidadania, da cota para mídia alternativa na publicidade oficial, do Gabinete Digital e do apoio às rádios comunitárias. O Conselho de Comunicação Social é seguramente uma das reivindicações mais antigas da sociedade civil organizada no que diz respeito ao tema da democratização dos meios de comunicação. Já na década de 80 uma grande parcela das organizações que agendavam o tema constituiu a Frente Nacional por Políticas Democráticas de Comunicação. Essa Frente foi vitoriosa em um de seus intuitos: aprovar na Constituição de 1988 um artigo para o Conselho de Comunicação Social – trata-se do artigo 224 da Constituição6. Entretanto, conforme já tivemos a oportunidade de argumentar, a efetivação desse artigo da Constituição não foi pacífica. Não obstante o fato desse artigo ter sido regulamentado logo após a promulgação da Constituição, sua primeira diretoria tomou posse apenas em 2002, como vimos. No entanto, em que pese o fato do artigo 8 da lei 8.389/1991 afirmar que o Conselho de Comunicação Social seria eleito em até sessenta dias após a publicação da lei e instalado em até trinta dias após a sua eleição, não foi o que ocorreu. Apesar de sua tramitação ter acontecido em um período curto – menos de dois anos – sua instalação demoraria ainda muito tempo para ocorrer. Foram dez anos entre 1992 – ano em que o

6 “O objetivo da Frente era influenciar a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987-88 nos temas acerca da comunicação social. Após algum esforço a Frente conseguiu reunir assinaturas suficientes para apresentar a Emenda Popular n: 91 para a ANC. A Emenda continha a criação do Conselho de Comunicação Social e o monopólio estatal das telecomunicações” (RODRIGUES, 2014).

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Conselho deveria ter sido instalado – e 2002 – ano da posse da primeira diretoria (RODRIGUES, 2014).

Se o atraso no âmbito nacional foi imenso, mais ainda foi a possível implementação de esferas estaduais e municipais do Conselho. Como nos indica Venício Lima, dois são os principais obstáculos enfrentados por aqueles que reivindicam os Conselhos Estaduais de Comunicação Social (CECS): a invisibilidade nos grandes meios de comunicação e a própria oposição desses veículos à sua implementação. As diferentes propostas de criar os CECS entre o início dos anos 1990 e o final de 2010 passaram praticamente despercebidas aos olhos dos grupos de mídia comercial hegemônicos no país. No entanto, a realização da 1ª. Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), em dezembro de 2009, e a aprovação do Projeto de Indicação no. 72.10, pela Assembleia Legislativa do Ceará (19 de outubro), despertaram os adversários e deram início a um incrível ciclo de reações no qual se acusa as propostas de se originarem exclusivamente na Confecom, de pretender “controlar” os meios de comunicação; e de serem, in limine, inconstitucionais (LIMA, 2015, p. 209-210).

O Rio de Janeiro é um caso exemplar onde o debate não consegue avançar. No ano de 2004, o deputado estadual Carlos Minc (PT) apresentou na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) a primeira proposta sobre o tema. De acordo com o projeto de lei 1969/2004, o Poder Executivo estaria autorizado a criar o Conselho Estadual de Comunicação Social. A iniciativa de Minc já indicava diversos aspectos a serem seguidos pelo Conselho. Entretanto, a proposta aprovada como Lei 4849 de 25 de setembro de 2006 trouxe em seu texto apenas um artigo: Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a criar o Conselho Estadual de Comunicação Social, responsável pelas atribuições do Poder Público Estadual em matéria normativa, consultiva e de planejamento setorial, ligada a assuntos de comunicação social e radiodifusão, observada a competência que lhe confere a legislação específica do Estado e do País.7

A aprovação da lei com apenas um artigo teve o objetivo claro de inviabiliDisponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/f25571cac4a61011032564fe0052c89c/e6b1358c12238b33832571f50079bedd 7

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zar posteriormente sua efetivação. Para resolver a situação, em 2010 o deputado estadual Paulo Ramos (PDT) apresentou uma nova iniciativa sobre o tema. O Projeto de Lei 3323/10 vislumbrava mais uma vez a criação do Conselho Estadual de Comunicação Social. De acordo com a proposta, Art. 1º - O Conselho Estadual de Comunicação Social do Estado do Rio de Janeiro (CECS-RJ), órgão colegiado integrante da Secretaria da Casa Civil do Estado do Rio de Janeiro, com sede nesta capital e jurisdição em todo o território estadual, tem por finalidade formular e acompanhar a execução da política estadual de comunicação, exercendo funções consultivas, normativas, fiscalizadoras e deliberativas, respeitando os dispositivos do Capítulo V da Constituição Federal de 19888.

O PL de Ramos trouxe também diversos sinalizações de como deveria ser a composição do Conselho. Entretanto, encontrou o mesmo destino da proposta de Carlos Minc e foi arquivado em 30 de dezembro de 2014 com o fim daquela legislatura. No caso da cidade do Rio de Janeiro, a iniciativa foi anterior. Em 1999 o então vereador Adilson Pires do PT apresentou na Câmara Municipal do Rio de Janeiro o PL 1117/1999 com o objetivo de criar “o Conselho Municipal de Comunicação, constituído como fórum autônomo e democrático”. Mas, assim como já havia ocorrido na Alerj, o PL de Pires também não logrou êxito tendo sido arquivado em 3 de janeiro de 2013. Não obstante toda a importância que a literatura aponta para os mecanismos de participação e deliberação como espaços de aprofundamento de nossa democracia, vale lembrar que a existência de um Conselho Municipal de Comunicação constitui uma exigência legal para a implementação de uma recente política do governo federal, o Canal da Cidadania. O Canal da Cidadania surgiu com o Decreto 5.820 de 2006 que regulamentou a TV Digital no Brasil. A TV Digital permite a existência de quatro novos canais públicos em todas as cidades brasileiras: um para a TV do governo do estado; um para a TV da prefeitura; e dois para serem geridos pela sociedade civil. Para que uma cidade possa aderir ao canal da cidadania basta que a prefeitura faça a solicitação ao Ministério das Comunicações. E é aí que o Canal da Cidadania esbarra em seu primeiro obstáculo, qual seja, a falta de vontade política por parte das prefeituras. Essa falta de vontade política pode ser por pelo menos três razões: (1) a falta de estrutura financeira para executar a ideia; (2) o temor de que o Canal da Cidadania funcione Disponível em http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1115.nsf/02ac6f279b568e24832566ec0018d839/e977d059083188a983257db00055df2e?OpenDocument 8

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como instrumento da oposição; (3) ou apenas a falta de percepção da importância do projeto. No Rio de Janeiro, a TV Comunitária da cidade reivindica poder ser a operadora de um dos canais destinados à sociedade civil. Contudo, o prefeito Eduardo Paes ainda não demonstrou interesse em efetivar o Canal da Cidadania. Em 27 de maio de 2014 várias organizações da sociedade civil carioca chegaram a publicar em conjunto uma “Carta Aberta ao prefeito Eduardo Paes” em que reivindicaram a atenção do gestor para o tema. Mas nunca obtiveram uma resposta. Todavia, não são apenas as TVs comunitárias que demandam políticas públicas. Embora sejam importantes fontes de informação para uma grande parcela da população que mora nas periferias da cidade, as rádios comunitárias continuam sendo perseguidas sistematicamente, através da criminalização da atividade e da apreensão de seus equipamentos em ações da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e da Polícia Federal. O apoio institucional da prefeitura da cidade para as rádios comunitárias poderia inibir essa ação dos outros entes federativos. Além da segurança jurídica, a prefeitura poderia criar linhas de fomento estrutural, visando a manutenção periódica dos equipamentos, o incentivo à criação de novas emissoras comunitárias, e mesmo a futura transição para o padrão digital, além de uma política de capacitação e qualificação de comunicadores comunitários e populares. Esse apoio para o Canal da Cidadania e para as rádios comunitárias deveria ser conjugado com a criação de um fundo público para a mídia alternativa que viria através de uma cota na publicidade oficial da prefeitura da cidade. Essa rubrica da publicidade oficial da prefeitura do Rio de Janeiro é de aproximadamente R$ 150 milhões por ano sendo direcionada em sua maior parte para veículos do Grupo Globo, como já demonstramos na seção anterior. Com uma cota para a mídia alternativa poderíamos ter uma parcela dessa publicidade sendo direcionada para veículos como as rádios comunitárias, o Canal da Cidadania, jornais de bairro e blogs. No âmbito estadual já há um projeto de lei (PL 2248/2013) da deputada Enfermeira Rejane (PCdoB) em tramitação na Alerj que propõe a destinação de um mínimo de 20% das verbas de publicidade do Governo do Estado para mídias alternativas como blogs, jornais de bairro, jornais e revistas alternativos, rádios comunitárias e TVs comunitárias. Por fim, mas não menos importante, em tempos de comunicação do século XXI, estabelecer a universalização do acesso à internet é fundamental. Através de um Plano Municipal de Banda Larga que poderia ser gerido pela Secretaria Municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação com participação da sociedade, a prefeitura deveria priorizar a expansão da internet nas comunidades mais carentes de serviços públicos e nas áreas periféricas da cidade bem como em todas as escolas e parques municipais, estabelecendo metas para a universalização do serviço.

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Considerações finais Conforme tentamos demonstrar neste capítulo, o Rio de Janeiro vive em um verdadeiro deserto de políticas públicas para o setor das comunicações. Muitas medidas poderiam ser tomadas como a criação de um Conselho Municipal de Comunicação que tenha poder deliberativo, a implementação do Canal da Cidadania, o subsídio para estruturação de rádios comunitárias, a expansão da internet gratuita e de qualidade através de um Plano Municipal de Banda Larga ou a redistribuição das verbas oficiais de publicidade. A realidade hoje é distinta, com a prefeitura sendo a principal fomentadora do monopólio informacional existente na cidade. O direito à comunicação é um direito fundamental, sem o qual o direito à cidade jamais poderá ser realizado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  GUARESCHI, Pedrinho A. e BIZ, Oswaldo. Mídia & Democracia. 5ª ed. Porto Alegre: Editora Evangraf, 2009.  LIMA, Venício. Cultura do silêncio e democracia no Brasil: ensaios em defesa da liberdade de expressão (1980-2015). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015.  LIMA, Venício A. Polí cas de comunicações – um balanço do governo Lula [2003-2010]. São Paulo: Publisher, 2012.  MIELLI, Renata. Direitos negados. São Paulo: Barão de Itararé, 2015.  MORAES, Dênis de. Vozes Abertas da América La na. Rio de Janeiro: Mauad X/ Faperj, 2011.  RODRIGUES, Theófilo. A Cons tuição de 1988 e a comunicação: história de um processo inacabado de regulamentação. Revista Mosaico, Edição nº 7, ano IV, 08 de Jan de 2014.  RODRIGUES, Theófilo; ORMAY, Larissa. Financiamento público da mídia privada no Brasil: notas para uma economia polí ca da comunicação. Revista Ep c Online. Vol 16. N:3, set-dez 2014.

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CAPÍTULO 3 Diagnóstico e alternativas às políticas de cultura na cidade do Rio de Janeiro LEONARDO PUGLIA1 E MARCELE FROSSARD2

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projeto de revitalização da região do Porto, Praça Mauá e adjacências tem sido objeto de muito debate. A prefeitura e os demais órgãos governamentais apresentam o Projeto Porto Maravilha como um dos principais legados dos grandes eventos sediados na cidade. O Rio de Janeiro, que já possuía fama internacional, agora está equipado com museus de última geração, meios de transporte mais modernos, como o VLT, e apresenta um projeto semelhante ao de outras grandes cidades do mundo. O principal debate sobre os novos equipamentos de cultura, como o Museu de Arte do Rio, Museu do Amanhã, Museu da Imagem e do Som, bem como os demais aparelhos culturais administrados pela prefeitura, diz respeito à implementação, manutenção e gerenciamento destes equipamentos. O projeto de revitalização da região portuária da cidade significa muito mais do que reformar prédios tombados e construir novos museus. O projeto, divulgado com empenho, envolve uma mudança urbanística e arquitetônica comparável aos projetos de Pereira Passos no início do século XX (DINIZ, 2012). As remoções, a abertura de novas avenidas e túneis, a criação de novos condomínios comerciais, a criação de praças, teleféricos, dentre outros, alteram a relação dos cidadãos com a cidade e ao mesmo tempo convidam a debater para quem será esse projeto. Os investimentos vultosos, os quais a prefeitura se orgulha de afirmar que 1 2

Doutorando em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Doutoranda em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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não foram feitos por ela3, foram adquiridos junto a fundos federais e a investidores privados. O gerenciamento desses equipamentos também é realizado por organizações sociais, as OSs, que também são empresas privadas de participação pública. Enfim, este texto pretende analisar como estas modificações alteram o cenário urbano e cultural da cidade do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que busca compreender o modelo de gestão escolhido pela prefeitura. Ao apresentar como esses projetos se relacionam como uma tendência global de organização das cidades, visamos demonstrar que a cidade preserva suas características e dinâmicas próprias. Por outro lado, o modelo de gestão, baseado em fundações público-privadas, também é uma tendência internacional que vem se tornando realidade na gestão pública brasileira.

Os projetos de revitalização do Rio e a tendência global de cidade Os projetos de revitalização da cidade do Rio de Janeiro não são uma inovação no que diz respeito a projetos urbanísticos, pelo contrário. Na verdade, eles se assemelham a diferentes projetos urbanísticos de cidades mundialmente conhecidas, como é o caso de Londres e Barcelona (VAZ, 2014). Outra semelhança importante que os projetos cariocas apresentam com relação a estas cidades é o fato de serem cidades-sede de megaeventos esportivos, como os Jogos Olímpicos. Castells e Borja (1996) falam das cidades como atores políticos “que adquirem, cada dia mais, um forte protagonismo tanto na vida política como na vida econômica, social, cultural e nos meios de comunicação”. Na América Latina, segundo Oliveira et al. (2015), as cidades começaram a ganhar proeminência a partir dos anos 1990, impulsionadas pelos processos de redemocratização. Os atributos turísticos da cidade e o contexto de crescimento econômico brasileiro durante os governos Lula atraíram o olhar internacional para a cidade, o que proporcionou a escolha da cidade como sede da Copa de 2014 e da Olímpiada de 2016. A revitalização da cidade, o investimento em transporte e o projeto de desenvolvimento cultural vieram na esteira da preparação do Rio de Janeiro para receber estes eventos. Esta metamorfose implica uma alteração da organização social da cidade, que se torna alvo da especulação imobiliária, intensificando o processo de gen3

Para mais informações, acessar http://www.portomaravilha.com.br/noticiasdetalhe/3663

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trificação (BOVIER, 2014), ao mesmo tempo que novos conflitos sociais surgem4. Neste contexto, crescem as políticas públicas que pretendem “reformar” o Rio, criando uma cidade para consumo, em que os equipamentos culturais, os espaços históricos e os circuitos de cultura são “vendidos” como produtos. Essa tendência de organização das cidades foi conceituada de diferentes formas: “criative cities”, “market cities”, “generical cities”, dentre outros. De alguma forma, todas essas expressões concordam que as cidades têm se tornado semelhantes, misturando o novo e o velho, criando historicidade para seus espaços e construindo novos equipamentos culturais. O desafio está, principalmente para os países em desenvolvimento, em seguir esta tendência, respeitando suas características próprias e dialogando com seus cidadãos. É difícil afirmar que todas essas cidades que passaram por processos de revitalização estão se tornando cidades iguais, pois as dinâmicas em que estão imersas são únicas. Porém, é inegável a existência de um movimento que favorece as relações de mercado sobre estes espaços. Sendo assim, colocamos a seguinte pergunta: é possível falar de um projeto hegemônico de construção da cultura? A vivacidade da cidade existe em função da relação entre as pessoas, as relações de mercado, a cultura e tudo mais que acontece nesse espaço físico. Os principais teóricos que debateram a pós-modernidade apontavam para um processo de globalização generalizado, que poderia criar uma cultura mundial. Atualmente percebemos que, apesar de existir um McDonald’s em cada esquina na maioria dos países do mundo, não foi tão simples assim homogeneizar a cultura. As diferentes culturas se relacionam de forma diferente com os mesmos símbolos do capitalismo e o mesmo se passa com esses processos de revitalização das cidades. Embora pareça ser simples construir novos monumentos, incentivar diferentes usos dos espaços públicos, construir discursos, as pessoas possuem uma relação com os espaços que ultrapassam os planos de urbanistas e técnicos da burocracia estatal. É neste sentido que, para realizar transformações tão brutais como as que estão em andamento no Rio, é necessário ao mesmo tempo justificar e atestar a importância dessas mudanças através do discurso. A prefeitura do Rio vem realizando um intenso investimento em propaganda para justificar as obras que transformam a cidade. Segundo Rodrigues (2014), “esta revitalização vem Patrícia Birman et al. (2014) apresentam no artigo “Um emaranhado de casos: tráfico de drogas, Estado e precariedade em moradias populares” um exemplo de como o Projeto do Porto Maravilha afeta a população local, criando novas relações de poder e vulnerabilidade.

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acompanhada da construção de um discurso oficial de valorização de área que, vale ressaltar, estava há muito tempo abandonada pelo poder público”. O processo de culturalização (VAZ, 2014) do planejamento da cidade atua como uma dessas justificativas, pois trará novos investimentos, facilitará o envolvimento dos trabalhadores da região com o mundo da arte, atrairá mais turistas, além de promover o embelezamento e modernização da cidade. Tudo isso ao mesmo tempo em que respeita as características próprias do lugar, como o patrimônio arqueológico da região portuária, mais especificamente o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana. O site do Porto Maravilha5 diz: Nas últimas décadas, em particular, após o início das obras do Porto Maravilha, estudos e escavações arqueológicas trouxeram à tona a importância histórica e cultural da Região Portuária do Rio de Janeiro para a compreensão do processo da Diáspora Africana e da formação da sociedade brasileira. Achados arqueológicos motivaram a criação, pelo Decreto Municipal 34.803 de 29 de novembro de 2011, do Grupo de Trabalho Curatorial do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana, para construir coletivamente diretrizes para implementação de políticas de valorização da memória e proteção deste patrimônio cultural.

A criação deste circuito e a valorização do patrimônio do local são mais um indicativo da tentativa de justificar esses projetos, pois durante muito tempo não houve investimento ou manutenção desse patrimônio, e agora eles ressurgem como ícones da história local. Rodrigues (2014) sinaliza que é importante preservar a vida local, e que o processo de revitalização representa um perigo para os moradores da região não apenas pelo excesso de visitantes, mas pelo encarecimento da região e pela chegada de novos ocupantes, com o estabelecimento de ateliers. Por fim, é importante ressaltar que o projeto de revitalização do Rio de Janeiro se insere numa tendência mundial, que envolve a criação de equipamentos de cultura, projetos arquitetônicos relacionados a arquitetos renomados, investimento em transporte público, mas que, ao mesmo tempo, implica num processo de remodelação da organização social, econômica e cultural da cidade. Cabe ressaltar que é necessário um processo democrático e plural, que crie espaços de diálogo para que diferentes vozes sejam representadas e para que estes novos projetos não sejam apenas produto dos interesses de mercado que pairam sobre a cidade. 5

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No entanto, mecanismos de democratização, como o Conselho Municipal de Cultura, são colocados em segundo plano, enquanto a Prefeitura do Rio de Janeiro, sobretudo nas gestões do prefeito Eduardo Paes, naturaliza a lógica da competição entre as cidades, assumindo abertamente uma visão que concebe o espaço urbano como foco de investimento, acima de tudo. Nessa hierarquia de prioridades, as variadas demandas dos sujeitos que habitam a cidade são colocadas abaixo do objetivo central de melhorar o ambiente de negócios, pois esta seria a única forma de viabilizá-las economicamente. A necessidade de captar recursos se torna justificativa de um acelerado e violento processo de privatização do espaço público, sendo o principal exemplo o projeto do Porto Maravilha, que a prefeitura afirma ter sido integralmente financiado com dinheiro privado através da emissão dos Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC). O argumento, contudo, torna-se questionável quando constatamos que estes títulos, que permitem construir além da altura média prevista pelo Plano Diretor, foram adquiridos, em leilão único, pelo Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha (FIIPM), criado pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e administrado pela Caixa Econômica Federal. São, portanto, recursos do Governo Federal, ainda que o investimento no valor de R$ 3,5 bilhões deva render lucro no futuro diante da expectativa de valorização imobiliária da região (SILVA, 2014). Outra contradição do discurso neoliberal reside no fato de o poder público privatizar o espaço com o objetivo de arrecadar recursos para melhorias em benefício da coletividade, ao mesmo tempo em que concede isenções fiscais milionárias a grandes grupos empresarias. Pontos frágeis de uma narrativa que tenta justificar o esforço de moldar a cidade para inseri-la com sucesso no fluxo global de capitais, passando por cima dos agentes que venham a atrapalhar esse movimento visto como “modernizador” pelos gestores do município. Ao contrário do que as autoridades tentam fazer crer, não se trata de um movimento orgânico inescapável, mas, sim, de uma escolha política, pois no planejamento e na execução desse projeto de cidade interferem grandes instituições internacionais, como o Banco Mundial e as agências de classificação de risco norte-americanas Moody’s e Fitch, citadas no Plano Estratégico da Cidade (2013-2016) e em iniciativas como o projeto Rio Ambiente de Negócios. Sem falar nos interesses dos grandes grupos empresariais que financiam as campanhas eleitorais, com especial destaque para as empreiteiras e empresas de transporte coletivo. Diante do processo de desindustrialização enfrentado pelo país nas últimas décadas, tal projeto ancorado no setor privado encontra na cultura o motor

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do desenvolvimento econômico. Esse caminho já foi trilhado por cidades como Barcelona, Bilbao e Buenos Aires, entre outras, através do qual espaços monofuncionais degradados – sobretudo vazios fabris, portuários e ferroviários – são transformados em lugares de consumo de produtos, serviços e espetáculos (VAZ, 2004, p. 5). Radicaliza-se, assim, a transformação, em commodity, da cultura, constituindo-se esta o último produto diferenciado oferecido aos turistas por cidades cada vez mais similares, ou mais “genéricas”, na expressão de Rem Koolhaas (1995). Tal autenticidade, contudo, tende a se diluir, pois os chamados processos de “revitalização” têm forte caráter padronizador. Não somente por se prenderem a padrões estéticos da arquitetura de grife, importante fator legitimador na competição entre as cidades, mas também graças aos processos de especulação imobiliária e consequente “gentrificação”, que expulsam do centro para regiões periféricas as populações locais, principais agentes de preservação das tradições. Para disputar a atenção de investidores e turistas, a cidade-produto ganha a forma da cidade-espetáculo. Por isso não surpreende que o projeto do prefeito Cesar Maia de ancorar a transformação da região portuária na construção de um grande museu – na ocasião, uma filial do Guggenheim – só conseguiu sair do papel depois que o Rio de Janeiro foi escolhido em 2009, já na gestão de Eduardo Paes, como sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Pois o tempo necessário para a organização do evento se tornou justificativa para a implementação de um modelo de gestão ainda mais autoritário, com a aprovação em regime de urgência do projeto Porto Maravilha menos de um mês após o COI confirmar que a capital fluminense sediaria o evento (Coma, 2011, 2013). Legitimado pela realização da Copa do Mundo de futebol de 2014 e das Olimpíadas de 2016, o modelo de cidade neoliberal foi varrendo, de forma acelerada, os obstáculos ao seu avanço. Ao integrar um Plano de Metas que coloca em primeiro plano o setor privado a um programa de bonificação por resultados para servidores municipais – ambos estabelecidos de forma autocrática, sem participação coletiva –, a prefeitura contribuiu para reforçar a hegemonia da lógica da gestão empresarial na sociedade, que foi ganhando ares de senso comum nas últimas décadas. Com a justificativa de tornar a administração mais eficiente e menos burocrática, a prefeitura passou a entregar a gestão de diversos aparelhos das secretarias de Saúde e de Cultura, sobretudo a partir de 2009, às Organizações Sociais, figuras de direito privado sem fins lucrativos voltadas para a oferta de bens ou serviços públicos não exclusivos do Estado. Escândalos de desvios de verbas, principalmente na área da Saúde, e acusações de ineficiência, descumprimento de contratos e conflitos de interesse têm gerado in-

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tenso debate em torno desse modelo de gestão estabelecido por Lei Federal em 1998 com o objetivo de “dar ao aparelho do Estado flexibilidade, agilidade e abertura à participação da sociedade civil” (COSTIN, 2005, p. 110). No entanto, o caso mais polêmico, ou pelo menos o mais emblemático devido à sua visibilidade, acabou se tornando o do Museu do Amanhã, projetado pelo renomado arquiteto espanhol Santiago Calatrava e construído no Píer Mauá para ser a âncora do processo de transformação da região portuária. Na mesma Praça Mauá havia sido inaugurado em 2013 o Museu de Arte do Rio (MAR), outro aparelho cultural estratégico da prefeitura. Orçado em cerca de 300 milhões de reais, o Museu do Amanhã foi anunciado no site oficial (2016)6 como uma parceria da Prefeitura do Rio de Janeiro com o Banco Santander e a Fundação Roberto Marinho, ONG ligada às Organizações Globo, enquanto a gestão foi entregue à organização social Instituto de Desenvolvimento e Gestão, com sede em Recife. Pelo contrato de dois anos (prorrogável por mais três) assinado em fevereiro de 2015, a IDG vai receber da prefeitura, de forma parcelada, um total 31,1 milhões de reais para gerenciar, operacionalizar e executar ações e serviços do museu. A falta de transparência em torno da relação entre as partes envolvidas, além dos altos valores do projeto, que segundo a prefeitura não contou com recursos públicos, sendo 215 milhões financiados pela venda de CEPACs, gerou desconfiança de parte da opinião pública – certamente não aquela ligada às Organizações Globo – e fomentou a mobilização de setores críticos ao modelo de cidade imposto de cima pra baixo, com pouca participação coletiva, principalmente das comunidades da região portuária, onde famílias eram removidas de morros como o da Providência.

Democratização das políticas de cultura Centrais na estratégia de desenvolvimento do poder público municipal, as políticas de cultura logo se tornariam alvo de contestação, voltando a maior parte das críticas à questão das prioridades da prefeitura. Parte destas centenas de milhões de reais investidos em grandiosos e ultramodernos museus entregues, de forma pouco transparente, à gestão de agentes privados – além do MAR e do Museu do Amanhã, vale citar o Museu da Imagem e do Som, ainda em construção na praia de Copacabana –, poderia ser utilizada não apenas para financiar

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Fonte: http://www.museudoamanha.org.br/

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novos projetos de fomento das manifestações culturais autônomas e orgânicas que se espalham pelo território carioca, como também para potencializar iniciativas positivas da própria Secretaria Municipal de Cultura. Entre as metas estabelecidas para 2011, por exemplo, destacam-se a inauguração do moderno Centro Cultural João Nogueira, no local do antigo cinema Imperator, no Méier, e a construção de quatro novas “Arenas Cariocas” na Zona Norte e na Zona Oeste, além da ampliação da oferta de produtos e bens culturais nas Áreas de Planejamento 3, 4 e 5, região do munícipio mais carente na oferta de infraestrutura e serviços, englobando bairros que vão desde a Ilha do Governador até Santa Cruz, passando pela Barra da Tijuca e Jacarepaguá (SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA, 2011). No coração da Zona Norte, foi inaugurado, em 2012, o Parque Madureira, área de 90 mil metros quadrados com infraestrutura que inclui desde quadras poliesportivas e pistas de skate até aparelhos culturais como a Arena Carioca Fernando Torres, a Praça do Samba e a Praça do Conhecimento. Além dessas obras de grande visibilidade apresentadas à opinião pública como parte do chamado “projeto olímpico”, os esforços da Secretaria para descentralizar a oferta de bens culturais no município incluem ainda iniciativas pouco divulgadas, mas especialmente relevantes. Dentre elas estão os editais públicos como o Prêmio Ações Locais, que oferece verba de R$ 40 mil para financiar, durante período de um ano, “práticas, atividades e projetos nos campos da cultura, da arte, da comunicação e do conhecimento que promovam transformações nas comunidades e nos territórios em que são realizados” (SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA, 2015). O Prêmio Territórios de Cultura é ainda mais incisivo em seu impulso democratizante, contemplando somente “pessoas físicas que tenham atuação cultural reconhecida nos territórios de Senador Camará, Vila Kennedy, Maré, Complexo do Alemão e Complexo da Penha” (SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA, 2015). São programas que operam na direção contrária à da maior parte das ações da prefeitura, iluminando contradições internas da gestão municipal com potencial transformador. São possíveis pontos de diálogo, onde a sociedade civil organizada pode pressionar as autoridades no sentido da revisão de prioridades dentro do que já é praticado na área cultural. É um movimento que exige maior participação popular na elaboração do próprio orçamento da prefeitura e que pode ser retroalimentado ao se privilegiarem iniciativas como a dos Territórios de Cultura e Ações Locais. Além de democratizar geograficamente os bens culturais centralizados pela lógica de distribuição espacial do capital, tais projetos têm

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capacidade de empoderar – ainda que de forma lenta e molecular – as camadas mais vulneráveis da sociedade, fomentando a autoestima, o sentimento de pertencimento e a cidadania através da valorização e viabilização econômica de suas próprias manifestações culturais. Aqui o Estado deixa de lado o dirigismo autocrático que conduz projetos como o do Museu do Amanhã, para garantir a autonomia de agentes ativos, possibilitando não apenas a reprodução de uma cultura viva, mas a conexão – com potencial político transformador – entre agentes subalternos espalhados pelo território urbano. Uma lógica muito próxima à do lema “só o povo pode resolver os problemas populares”, colocada em prática no lendário Movimento de Cultura Popular criado pela gestão de Miguel Arraes, com participação do educador Paulo Freire, na prefeitura do Recife no início da década de 1960 (Memorial do MCP, 1986, p.52). Tal projeto ganhou configuração moderna, adaptada à realidade contemporânea, com os editais de fomento do programa Pontos de Cultura do Governo Federal, explicado por seu idealizador, Célio Turino: São organizações culturais da sociedade que ganham força e reconhecimento institucional ao estabelecer uma parceria com o Estado. Aqui há uma sutil distinção: o Ponto de Cultura não é para as pessoas e sim das pessoas. Uma organização da cultura no nível local, atuando como um ponto de recepção e irradiação de cultura. O Ponto de Cultura não é um equipamento cultural do governo, nem um serviço. Seu foco não está na carência, na ausência de bens e serviços, e sim na potência, na capacidade de agir de pessoas e grupos. Ponto de Cultura é cultura em processo, desenvolvida com autonomia e protagonismo social (SZANIECKI E SILVA, 2010).

A transformação provocada por iniciativas como as dos Pontos de Cultura, Territórios de Cultura e Ações Locais é certamente lenta e silenciosa. No entanto, a indiferença usual da grande mídia e a constante falta de recursos muitas vezes ganham configuração abertamente hostil, pois o discurso neoliberal hegemônico não hesita em condenar essas políticas como inviáveis, denunciando um pretenso “desperdício” de recursos públicos, ao mesmo tempo que fecha os olhos para a transferência em escala muito maior, mascarada por mecanismos de renúncia fiscal, de verbas do Estado para grandes grupos empresariais (SZANIECKI E SILVA, 2010). O questionamento a esse senso comum, ao consenso passivo desmobilizador que perpetua e amplia relações de desigualdade, passa necessariamente pela transformação cultural em sentido amplo, entendendo – à luz de Gramsci – a valoriza-

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ção da produção autônoma de bens simbólicos pelas classes trabalhadoras como um esforço contínuo de elaboração e “conquista de consciência superior, pela qual se consegue compreender o próprio valor histórico, a própria função na vida, os próprios direitos e os próprios deveres” (GRAMSCI in SCHLESENER, 2002, p.46). Dessa forma, seria possível encontrar elementos férteis para alimentar a tomada de consciência dos setores oprimidos, enquanto agentes ativos da história, nas contradições desencadeadas pelo mesmo processo pretensamente modernizador que impõe sobre eles uma série de pressões. Pois ao mesmo tempo que expulsam moradores de suas casas – seja de forma imediata, através das remoções; seja através da elevação progressiva dos custos de vida –, as intervenções do Porto Maravilha também resgatam sítios arqueológicos como o do Cais do Valongo, porta de entrada de cerca de um milhão escravos no Brasil durante as primeiras décadas do século XIX. É evidente a tentativa das autoridades de instrumentalizar o patrimônio arqueológico como forma de justificar o projeto, mas, de uma maneira ou de outra, a preservação da herança física e simbólica do elemento negro ainda tão forte na região cria um terreno fecundo para fazer germinar manifestações culturais renovadoras. Portanto é somente através da análise criteriosa e do reconhecimento da complexidade dos movimentos de transformação social desencadeados no território carioca nos últimos anos que é possível mobilizar um esforço para direcioná-los em um sentido mais democrático. Além de iniciativas recentes de fomento e descentralização, a prefeitura também dispõe de um conjunto significativo de aparelhos culturais, como as Arenas Cariocas, Centros e Lonas Culturais, Bibliotecas Populares, Museus e a Cidade das Artes, que mereciam mais atenção e investimento, configurando uma estrutura que, se expandida, poderia se tornar elemento de renovação social, mas somente se sua gestão fosse simultaneamente democratizada. Ou seja, se a população for envolvida ativamente no processo. A valorização da eficiência administrativa propagandeada pela gestão Eduardo Paes através do Plano Estratégico e do Acordo de Resultados com o funcionalismo em si não é negativa, residindo o problema, na verdade, na forma de implementação autocrática importada do mundo empresarial. É preciso, portanto, pensar em novos modelos de gestão eficazes que incluam a participação da sociedade já na elaboração das metas e orçamentos, transformando os cariocas de meros objetos da decisão dos governantes em verdadeiros sujeitos da política. Experiências de Orçamento Participativo como a do início dos anos 1990 em Porto Alegre certamente oferecem elementos inspiradores, mas a necessidade de criar novos mecanismos e instrumentos de participação, mais adequados à realidade

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contemporânea, não pode deixar de levar em consideração a riqueza das redes de cultura popular e as possibilidades abertas pelas novas tecnologias de informação.

Conclusão O novo modelo de cidade implementado pelo atual governo da prefeitura do Rio de Janeiro foi o objetivo de questionamento deste artigo. Embora não haja uma conclusão fechada, nossa crítica se direciona principalmente à ausência de debate neste governo sobre os meios de gestão dos principais equipamentos culturais públicos da cidade. É inegável que os investimentos aportados para a cidade junto ao setor privado e público estejam transformando-a significativamente. A dúvida se direciona à qualidade desta transformação. Certamente houve maior preocupação – ainda que insuficiente – de direcionar estes investimentos para áreas mais periféricas da cidade, como a construção do Parque Madureira. Porém, os custos sociais destas transformações são alarmantes, como as remoções e a reorganização do plano urbano da cidade. O entrelaçamento entre o público e o privado é um tema que não perde atualidade, mas que ganha novo verniz quando organizações do terceiro setor se unem às instituições estatais para o gerenciamento de equipamentos públicos de cultura7. Esse assunto merece maior atenção quando essas instituições, que foram beneficiadas com contratos muito lucrativos, são iniciativas do terceiro setor ligadas a grandes empresas, como é o caso da Fundação Roberto Marinho. Outro ponto importante diz respeito ao modelo de captação destes recursos. Apesar de a prefeitura colocar no site do Porto Maravilha os documentos relacionados às licitações e empresas que participam do projeto, não fica muito claro quais foram os principais investidores. Há casos de informações contraditórias ou não muito claras. Sendo assim, argumentamos que há um projeto de cidade em construção, que coloca o Rio de Janeiro na esteira de uma tendência mundial, que são as “cidades empresariais”. Estas cidades são transformadas e adaptadas para oferecerem características comuns aos seus visitantes e moradores. Como uma espécie de vitrine, elas são capazes de unir, de forma complexa, as características próprias de cada cidade Como o objetivo deste trabalho é tratar das políticas para a cultura na cidade, não discutiremos este modelo de participação em outras áreas, como a saúde. 7

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e, ao mesmo tempo, adquirir tons de cidades mundialmente conhecidas, genéricas. Ou seja, o planejamento passa a ser delineado em torno do objetivo central de atrair capitais de todo o mundo, deixando em segundo plano as variadas demandas dos moradores locais. Essa situação pode ser percebida inclusive na área cultural, em que a maior parte dos investimentos é canalizada para a realização de megaeventos e para a construção e gestão, através de agentes privados, de grandes aparelhos com potencial midiático. Por outro lado, relegam-se migalhas a iniciativas de elevado potencial transformador, como a do prêmio Territórios de Cultura e Ações Locais, que, além de fomentar um modelo de produção cultural horizontal e autônomo, ajudam a espalhar o acesso a bens simbólicos pelo território urbano. A reversão do sentido das políticas de cultura exige mudanças nas prioridades da administração, o que, na prática, significa relocação de recursos. Um movimento de caráter político, portanto, possível somente através da mobilização da população no sentido de pressionar as autoridades por uma maior participação na gestão do município, não somente no controle da oferta de serviços, mas na própria formulação de metas e orçamentos. Atuando para tornar o poder público um instrumento de apoio às suas manifestações culturais espontâneas, o carioca pode cada vez mais tomar consciência de seu valor enquanto cidadão e de sua importância como sujeito da história. Nesse sentido, políticas de democratização da cultura têm o potencial – como num círculo virtuoso – de alimentar o empoderamento popular em um sentido mais amplo, ecoando positivamente em outras esferas da ação humana.

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CAPÍTULO 4 Desenvolvimento urbano sustentável: o direito à cidade no Rio de Janeiro contemporâneo TAÍSA SANCHES1, PEDRO TORRES2 E RODRIGO RIBEIRO3

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presente capítulo objetiva discutir o direito à cidade no município do Rio de Janeiro, em perspectiva histórico-sociológica, com foco em seu desenvolvimento urbano a partir de dois eixos centrais: habitação e mobilidade urbana. Nesse sentido, buscamos fazer um breve resgate da história do planejamento urbano, indicando que a cidade do tempo presente é produto de um processo de longa duração que, em nosso caso, resulta em desigualdades e conflitos permanentes, envolvendo diversos agentes como poder público, empresariado, movimentos sociais, entre outros. Baixada a poeira olímpica e dos demais Megaeventos, é hora de planejar, lutar e buscar a cidade que queremos. Vivemos, desde a virada do século XIX para o XX, um aumento exponencial no número de pessoas vivendo em cidades do chamado mundo urbano. Hoje, no século XXI, muitos falam em crise urbana, e nela estão incluídas crises habi-

1 Doutoranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, bolsista Capes. Mestre em Ciências Sociais pela mesma instituição. Mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidad Carlos III de Madrid. Bacharel em Ciências Sociais, com foco em Ciência Política e Sociologia, pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. 2 Doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, foi bolsista Capes-Sanduíche e Visiting Scholar na Princeton University, nos Estados Unidos. Formado em História, é especialista e mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. 3 Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF). Bacharel em Ciências Sociais pela mesma instituição. Pesquisador Associado ao Laboratório de Etnografia Metropolitana – LeMetro/IFCS-UFRJ. Professor de Sociologia do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ.

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tacionais, de saneamento, de água, de transportes, climáticas, migracionais, de alimentos, entre outras. No Brasil, já superamos a marca de 85% da população vivendo no meio urbano, o que dá mais ou menos 175 milhões de pessoas (MAGALHÃES, 2014), e algumas questões surgem a partir desta constatação: Como estamos vivendo nesse mundo urbano? Como queremos viver as próximas décadas? David Harvey, em O Direito à Cidade (2012, p.73), faz uma provocação: “O compasso e a escala, surpreendentes, de urbanização dos últimos cem anos contribuíram para o bem-estar humano? ”. Para Harvey, geografo marxista, a “cidade que queremos”, ou seja, aquela a ser construída, “não pode ser divorciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos”. O direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade. Trata-se, portanto, de entender o direito à cidade como um direito humano. A liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos é, como procuramos argumentar, um dos mais preciosos e negligenciados direitos humanos. As cidades brasileiras, salvo raríssimas exceções, são exemplos de um planejamento urbano que, ancorado na aliança entre capital imobiliário e poder público, produziram cidades desiguais, com padrões de segregação e bolsões de pobreza em diversos municípios do país. Mesmo quando a tentativa por parte do poder público foi, de alguma forma, fazer política pública urbana para as classes subalternas, isso se deu de forma a produzir segregação espacial, como, por exemplo, a produção de moradias populares em áreas afastadas dos centros de comércio, serviços, educação, saúde etc. Tais perspectivas marcaram distintos períodos tanto de nossa democracia quanto da ditadura militar. Ainda hoje o governo federal reproduz, a partir do programa Minha Casa Minha Vida, uma lógica de produção de moradias que vem desde a década de 40. Ao mesmo tempo estamos de alguma maneira presos a um tipo de morfologia de nossas cidades, ou do planejamento delas, que ainda tem a forte marca da ditadura militar. Como ressalta Maria Alice Rezende de Carvalho: É, portanto, nessas “cidades da ditadura” que continuamos a viver – cidades marcadas por arranjos urbanísticos de péssima qualidade e pior inspiração, pela escassez de saneamento, pela proliferação de guetos sociais, pela violência do Estado, pela ausência de participação efetiva da sociedade em experiências de auto-organização, e, como se não bastasse, pelo desrespeito à vida (e mesmo à morte), que se percebe em eventos como o da recente passagem do trem da SuperVia sobre o corpo do jovem que jazia em seus trilhos (CARVALHO, 2015, p. 3). 

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As “marcas da ditadura militar” estão por todos os lados, tanto no plano simbólico quanto no plano material. Afinal, enquanto a sociedade acreditar ser normal continuar homenageando – dando nome a estátuas, escolas e ponte – ou sendo indiferente àqueles que participaram do Golpe Militar, que mataram, torturaram e perseguiram a resistência, dificilmente teremos uma nova cidade (TORRES, 2015, p. 381). As marcas da ditadura nas cidades ainda hoje se proliferam através das remoções forçadas e soluções habitacionais precárias. Pesquisas recentes indicam que, em caso de hipotético concurso, o atual Prefeito Eduardo Paes seria eleito o que mais realizou remoções na história da cidade4. Para se ter uma ideia, entre os anos de 1965-1974 foram removidos 139 mil moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro – uma das taxas mais altas do mundo, e o processo continua (DAVIS, 2006). Apenas entre 2009 e 2013 o atual Prefeito Eduardo Paes removeu 65 mil moradores de favelas, reproduzindo o sentido de “interiorização” das classes subalternas para áreas distantes, sobretudo da Zona Oeste da cidade, como Campo Grande e Santa Cruz, cerca de 50-60 km da área central do município. Muitos dos removidos foram transferidos para novos conjuntos habitacionais do programa federal Minha Casa Minha Vida, em estratégia muito semelhante à das décadas de 40 a 60 e 70. No entanto, uma nova cidade surge, inclusive, com a denúncia pública destas arbitrariedades, com a elaboração de alternativas para as políticas públicas dominantes e, ainda, com a construção coletiva de uma visão de cidade inclusiva e justa. Reclamar o direito à cidade e procurar romper a lógica atual da cidade como negócio, tão louvada pela atual gestão, parece o grande desafio e o debate a ser encarado pelas forças progressistas de nossa cidade. Neste sentido, apresentaremos a seguir algumas notas sobre o processo histórico que culminou na formação das desigualdades sociais na cidade do Rio de Janeiro. Logo em seguida, discutiremos como as políticas públicas atuais repetem alguns dos processos que levaram à segregação urbana no passado, apontando para as possibilidades de enfrentamento a esse tipo de execução dos programas habitacionais. Em seguida, apontaremos algumas alternativas de melhoria do espaço urbano.

4 Sobre o tema ver o livro de FAULHABER, Lucas e AZEVEDO, Lena. SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro. Editora: Mórula Editorial. 2015. Além das inúmeras remoções de favelas e das simbólicas marcações nas casas espalhadas pela cidade, o exemplo recente mais marcante é, certamente, o da Vila Autódromo, localizada na Zona Oeste da cidade e próximo às instalações olímpicas. Descrita como essencial à realização das obras de infraestrutura das olimpíadas, a remoção dos moradores se mostrou uma farsa pela prefeitura. A comunidade resistiu e, junto a acadêmicos e ativistas, realizou um plano alternativo de urbanização da área, que foi ignorado pelo município.

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Rio de Janeiro: um laboratório de políticas habitacionais Em 1906, o engenheiro civil Everardo Backheuser apresenta um relatório5 sobre as habitações populares vigentes no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, no começo do século XX. O relatório identifica as diferenças de moradia e a heterogeneidade das formas de habitação como os albergues, hospedarias, casas de cômodos, cortiços, estalagens, vilas operárias e pela primeira vez aparece a favela como uma dessas formas. As pessoas que viviam nessas moradias foram retratadas por médicos e engenheiros como a escória da sociedade. Frequentemente, os técnicos tratavam as pessoas que moravam em habitações degradadas como se fossem também moralmente degradadas. Vejamos: Hoje que a administração pública, deixando o campo theorico dos relatorios espalhafatosos, envereda afinal pelo terreno pratico da execução dos melhoramentos, hoje que se vae remodelando a velha metrópole rasgada por avenidas em todos os sentidos, demolindo-se e reconstruindose sofregamente, hoje que se sente, graças a isso, a esperança de se ver em breve um Rio de Janeiro formoso e hygienico, é hoje também ocasião de se voltarem as vistas para as lúgubres moradas onde vegeta a população indigente da cidade. (BACKHEUSER, 1906, p. 107. Grifos nossos)

A partir dos estudos específicos sobre a favela se começou a pensar sistematicamente a questão da habitação no Brasil. Essas primeiras análises datam dos anos 1950, devido às realizações dos censos demográficos6 de 1947 e 1950 coordenados por Alberto Passos Guimarães e que influenciaram posteriormente a realização do relatório SAGMACS7. Apesar disso, foi somente na década de 1960 que o assunRelatório apresentado ao Exmº Sr. Dr. J.J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Realizados pelo Serviço Nacional de Recenseamento, passaram a considerar “favela” um aglomerado que tivesse no mínimo 50 casas. 7 Sociedade para Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais – SAGMACS. Fundada nos anos 1950, a SAGMACS foi uma instituição de estudos e pesquisas com foco no planejamento urbano e regional e no desenvolvimento econômico e social, constituindo um organismo vinculado e influenciado pelo grupo francês MouvementÉconomie et Humanisme, coordenado pelo padre dominicano francês Louis-Joseph Lebret. No Rio de Janeiro, o grupo realizou trabalhos de planejamento urbano e regional e desenvolvimento econômico ao longo dos anos 1950 e início dos 1960. Em 1957, o grupo liderado por José Arthur Rios realizou o primeiro grande relatório sobre os aspectos sociais das favelas cariocas. Foi a primeira experiência de pesquisa urbana e regional e da inserção da pesquisa social como um instrumento dentro das ações do planejamento econômico e territorial, o que contribuiu com o aprimoramento da metodologia de pesquisa urbana sobre a realidade social, política e econômica da cidade e de seus habitantes. (MELLO; MACHADO DA SILVA; FREIRE e SIMÕES, 2012) 5 6

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to se firmou como objeto específico de reflexão. Nessa época vigorava a teoria da marginalidade social e a favela era vista como o local característico da pobreza urbana (PERLMAN, 1977). Após determinado tempo, essa abordagem foi superada e o foco passou da habitação à maneira de viver. Tendo se ampliado o leque de questões e enfoques, a associação entre marginalidade e precariedade habitacional soube, entretanto, subsistir, a ponto de sustentar uma ideologia que teve longa vigência no Brasil e no Rio de Janeiro sob a forma de distintas políticas habitacionais. De 1946 até 1960, diversas medidas e vários órgãos foram criados pelo Estado ou com apoio deste na tentativa de controlar e dar uma solução ao “problema” favela: Fundação da Casa Popular8; Fundação Leão XIII9; comissões da prefeitura do Distrito Federal e do Governo Federal; a Cruzada São Sebastião10; e o Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-higiênicas – SERFHA. No entanto, várias favelas nasceram a partir da “tolerância” ou do incentivo do próprio Estado (GONÇALVES, 2013). A falta de moradia adequada e de políticas habitacionais para suprir a demanda dos diversos setores populares fazia entender que as favelas eram lugares temporários, enquanto o Estado não conseguia realizar ou realocar de forma digna esses contingentes populacionais. Nesse sentido, manter a “ilegalidade” e a precariedade foi uma estratégia do Estado, concedendo aos moradores a posse temporária da área, mas não o direito de propriedade. Ao mesmo tempo em que se mantém a ilegalidade das favelas como lugares de posse temporária, surgiu no Estado Novo a política habitacional dos Parques Proletários Provisórios11 como primeira tentativa de remoção de favelas (BURGOS, 2004) e de recuperação “moral” dos favelados por uma lógica higienista-civilizatória.

Primeiro órgão federal brasileiro na área de moradia com a finalidade de centralizar a política de habitação, criado em 1946 durante o governo do presidente Getúlio Vargas. Esta fundação é tida como precursora do Banco Nacional da Habitação (BNH), criado em 1964. 9 A Fundação Leão XIII foi a primeira grande instituição governamental direcionada à assistência. Foi criada pela Igreja Católica em 22 de janeiro de 1946, a partir do Decreto Federal n°22.489. Sua criação ocorreu em perspectiva interventiva com a articulação entre a Prefeitura do Distrito Federal, Ação Social Arquidiocesana e a Fundação Cristo Redentor. Objetivo: prestar assistência moral, material e religiosa aos habitantes dos morros e favelas do Rio de Janeiro. A Fundação propunha trabalhar, na perspectiva de médio prazo, a promoção “moral” dos favelados. 10 Ação do bispo D. Hélder Câmara com verbas do Governo Federal (JK), 1955. Constitui-se como a principal ação da igreja católica desde o desgaste da Fundação Leão XIII, tendo a ideia principal de “integração dos favelados aos bairros”. A Cruzada São Sebastião também possuía um viés político dentro da conjuntura da guerra fria na disputa ideológica dos mais pobres. Em 1957, no Congresso Geral dos Representantes das Favelas Cariocas, D. Hélder condena políticos que fazem promessas e não cumprem e os comunistas para os quais “quanto mais miséria existir, haverá mais campo a ser explorado” (Tribuna da Imprensa, 07/01/1957). 11 Localizados no Leblon, Caju e Gávea, com o objetivo de promover forte controle para a “recuperação” do favelado, visto como marginal e desajustado. 8

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Como não atingiram os resultados esperados, os Parques Proletários também se tornaram espaços “favelizados” na cidade, tendo sido removidos na década de 1960 em outra intervenção do poder público do Rio de Janeiro. Nesse período, a categoria “favela” era generalizada no senso comum e muitas vezes pelo próprio Estado nos diversos ambientes em que existiam habitações populares, perdendo a sua especificação e configurando a necessidade de repensar a habitação popular. A partir da década de 1960, com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), se iniciou uma política habitacional no Rio de Janeiro com o objetivo de erradicação das favelas e de remoção de seus moradores para longínquos conjuntos habitacionais, dando início à ocupação de lugares como Cidade de Deus e Cidade Alta. Uma vez deflagrado o golpe de 1964, a prioridade dada pela ditadura militar à questão da habitação e seus interesses políticos fica expressa na carta de Sandra Cavalcanti, ex-secretária de Serviços Sociais do Governo Carlos Lacerda, enviada ao primeiro presidente militar Castello Branco, sugerindo a criação do BNH: Achamos que a revolução vai necessitar agir vigorosamente junto às massas. Elas estão órfãs e magoadas, de modo que vamos ter de nos esforçar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que a solução dos problemas de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma amenizadora e balsâmica sobre as suas feridas cívicas. (apud VALLADARES,1982, p.39)

Enquanto havia mudanças no campo político, no campo técnico/profissional também existiram alterações. Os norte-americanos, através da USAID12, financiaram a experiência das “vilas13”. Logo em seguida, vários professores universitários dos EUA vieram avaliá-las e foram muito críticos aos planos vigentes para as favelas e a seus resultados. Já havia uma forte corrente negando as teorias da marginalidade com uma série de argumentos contrários à erradicação de favelas e favoráveis ao seu desenvolvimento urbanístico no próprio local em que estavam. Nesse período, a entrada da opinião pública foi fundamental, sensibilizada pelas favelas e pela sua posição ambígua no contexto urbano. Ainda havia um razoável grau de informação através da imprensa e o assunto suscitava bastante debate. No início de 1966 e 1967, grandes chuvas causaram catástrofes com desabamento de morros e alagamento de áreas inundáveis. Revelou-se toda a fragili12 United States Agency for International Development (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). 13 Devido ao “acordo do Trigo”, Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Esperança. (GONÇALVES, 2013)

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dade da cidade. Alguns de seus problemas, mantidos em discreto esquecimento, foram mostrados por Ferreira dos Santos (1980): É nesse contexto político, profissional e de debate popular que pode ser explicada a ação de Negrão [de Lima, ex-governador do Estado da Guanabara] em relação às favelas. Depois de se comprometer a não mexer mais nelas, foi obrigado pelo governo federal a não fazer nada. Este chegou a criar um órgão chamado CHISAM [Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana], que, com o pretexto de coordenar ações a nível metropolitano (na época o aglomerado metropolitano do Rio se repartia entre dois Estados), de fato representava uma intervenção branca do BNH nas políticas habitacionais da Guanabara, tirando-lhe quaisquer pretensões à autonomia no setor. A ação da CHISAM foi notável, chegando em três anos a remover 28% da população favelada do Rio. (FERREIRA DOS SANTOS, 1980, p. 50.)

Em setembro de 1973, após vários problemas políticos e sociais causados por essa política de remoções, a CHISAM foi extinta, tendo removido mais de 175 mil moradores de 62 favelas (remoção total ou parcial), transferindo-os para novas 35.517 unidades em conjuntos habitacionais, estando a maioria destes nas zonas Norte e Oeste. No início da década de 1980, tendo em vista os antigos problemas, o Governo Federal implementou o Programa de Erradicação de Favelas – PROMORAR. O objetivo era promover o melhoramento das favelas através de obras de saneamento e aterramento das palafitas, entre outras prioridades. O primeiro programa realizado pelo PROMORAR foi o “Projeto Rio”. A meta consistia na urbanização das favelas situadas ao longo da Avenida Brasil e a remoção dos moradores das palafitas para os conjuntos habitacionais que estavam sendo construídos naquela mesma área. A mediação entre os moradores e o governo deveria ocorrer através das associações de moradores. A conjuntura política se modifica com a eleição de Leonel Brizola para governador em 1982, apoiado por um amplo setor popular e pelos movimentos sociais. O discurso institucional remocionista perde força para o da urbanização e fortalecimento dos direitos dos moradores das favelas. Vejamos na fala do ex-governador: As favelas pagam impostos, não apenas os indiretos, que estão incluídos nos preços de tudo que consomem (…) mas especialmente através de sua força de trabalho. (…) Há uma grande dívida social a ser resgatada em

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relação aos favelados, estes nossos irmãos modestos e humildes, discriminados, marginalizados, isolados, (…) Quando se considera a favela algo de incômodo, algo que tem de terminar, algo que tem que ser removido, algo que é uma ferida no rosto desta linda cidade, pouca importância se dá ao que ela deva merecer, e na hora da distribuição de investimento ninguém se lembra dela. (Entrevista de Leonel Brizola à revista Cadernos do Terceiro Mundo, Janeiro de 1983.)

Em pesquisa feita em 1982 pelo IplanRio/SMDS com lideranças comunitárias, as principais reivindicações dessas seriam (em ordem crescente): esgoto, água, luz, melhorias nas vias e propriedade das terras. Neste último quesito, o Governo Estadual lançou o programa “Cada Família Um Lote”, concebendo o auxílio na titulação de propriedades, permitindo que os moradores das favelas submetessem pedidos de regularização de propriedade através das associações de moradores. Apesar de ter sido uma prioridade para os moradores durante os anos em que a remoção era uma ameaça real (especialmente quando o Brasil vivia sob a ditadura militar), o título foi requisitado para apenas 2% dos milhões de lotes selecionados. Uma vez que a ameaça de remoção havia sido afastada, as demandas de parte dos moradores de favela mudaram para o desenvolvimento da infraestrutura e melhoria das condições materiais de suas casas e bairros, além de que as posições de Brizola referentes à favela e as suas declarações de apoio à reforma da polícia não agradavam a elite carioca nem os conglomerados midiáticos, que fizeram uma forte oposição às políticas sociais do início ao fim do governo. A década de 1980, no clima da redemocratização do país, retomou o diálogo (em parte) do poder público com os moradores das favelas, a prefeitura do Rio lançou em 1985 o programa “Mutirão” com técnicos da secretaria e lideranças faveladas para debater onde e quais obras seriam implementadas pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), utilizando-se de mão de obra local e remunerada. A ideia da remuneração foi defendida pelo movimento comunitário. Essas experiências pautaram a urbanização como política de Estado na constituinte de 1988 e na Constituição do Estado do Rio de Janeiro, colocando o território das cidades como atribuição das prefeituras, entre outras conquistas do movimento social: função social da propriedade; usucapião urbano de 5 (cinco) anos; Plano Diretor, projeto do Estatuto das Cidades e indenização em caso de desapropriação. Vejamos: Art. 234 - No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão: I - urbaniza-

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ção, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área imponham risco à vida de seus habitantes. (Constituição Estadual, cap. III – Da Política Urbana)

O princípio da não-remoção também foi incluído na Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro: Art. 429. A política de desenvolvimento urbano respeitará os seguintes preceitos: VI - urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área ocupada imponham risco de vida aos seus habitantes, hipóteses em que serão seguidas as seguintes regras: a) laudo técnico do órgão responsável; b) participação da comunidade interessada e das entidades representativas na análise e definição das soluções; c) assentamento em localidades próximas dos locais da moradia ou do trabalho, se necessário o remanejamento. (Lei Orgânica do Município, Subseção I – Dos Preceitos e Instrumentos)

Se a década de 1980 trouxe melhorias consideráveis para as favelas, é certo também que o quadro ainda era de deficiência em vários aspectos. Mesmo na oferta de serviços públicos, o esgoto só chegava a 20% dos domicílios em favelas; a água atingia 60% destes e a luz, 85%. Em algumas favelas a situação mudou. Na década de 1990, o governo local passou a lidar de outro modo com a questão, mais sensível à necessidade de promover debates e ações voltadas para a urbanização das favelas cariocas. Em 1991, o número de favelas, segundo o IplanRio, era de 570, e o de moradores era de 963.000. Em 1992 foi constituído o Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, exigência da Constituição de 1988, na qual a via urbanizadora das favelas é consolidada como função do poder público. Nos artigos do Plano, a favela é definida como [...] área predominantemente habitacional, caracterizada por ocupação de terra por população de baixa renda, precariedade da infraestrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e de alinhamento irregular,

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lotes de forma e tamanhos irregulares e construções não licenciadas, em desconformidade com os padrões legais. (Art. 147 do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, 1992).

Assumindo a urbanização das favelas como uma atribuição do Estado, o Plano define as responsabilidades da Prefeitura na matéria, expressando a orientação de integrar as favelas aos bairros com uma urbanização que preserve a “tipicidade da ocupação”. Em 1994, a Prefeitura do Rio de Janeiro, juntamente com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), lançou o programa “Favela-Bairro”, possuindo como objetivo: “construir ou complementar a estrutura urbana principal (saneamento ou democratização de acessos) e oferecer as condições ambientais de leitura da favela como bairro da cidade”14. A descrição demonstra que as políticas públicas para a favela também estão associadas à preocupação com o crescimento da violência urbana, que é relacionada diretamente à representação da “ausência” do Estado nas favelas. Tal conotação antiquada é explorada por Valladares (2005) ao mencionar que Euclides da Cunha já utilizava o termo “ausência” do Estado ao retratar a situação de Canudos, promovendo a reflexão que o mesmo não está ausente, mas se apresenta de diferentes formas nas margens do Estado (DAS e POOLE, 2004). A política do Favela-Bairro foi apresentada possuindo um caráter eminentemente “técnico”, sendo dividida em três fases e, em sua primeira etapa, tinha como principal missão integrar e solucionar problemas nos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em favelas, assim como a contenção e a estabilização de encostas, a drenagem fluvial, a coleta de lixo, a circulação viária e a iluminação pública. Além disso, engajou arquitetos e urbanistas em projetos para a construção de áreas de convivência como parques, praças e jardins. De acordo com o site da Secretaria Municipal de Habitação, 143 comunidades foram beneficiadas com as ações do Programa. O que presenciamos na última gestão da prefeitura carioca (2009-2012) foi a redefinição da política urbanística municipal. Neste sentido foi apresentado um “novo” projeto da Prefeitura Municipal, o “Morar Carioca”, diretamente conectado ao “Plano do Legado Urbano dos Jogos Olímpicos 2016”, com o objetivo de “urbanizar todas as favelas ‘urbanizáveis’ até 2020”, tal como estabelece o “Planejamento Estratégico

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Fonte: Secretaria Municipal de Habitação (SMH).

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Rio pós-2016” da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro15. Com recursos do PAC – Urbanização de Favelas, totalizando cerca de 8 bilhões de reais, o Morar Carioca possuía como lema “integrar todas as favelas do Rio à cidade formal”. Pretendia promover um ordenamento no uso do solo urbano, a partir de três eixos principais: proteção ao meio ambiente (“ecoeficiência”), reassentamento e melhorias habitacionais. A partir de um convênio firmado com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), o programa constituiu normas urbanísticas na esfera municipal para reger a ocupação do uso do solo, estabelecendo parâmetros sobre as características físicas de cada uma das áreas. No quadro dessas normas, retomou-se o tema das remoções, amenizadas pelas propagandas governamentais, considerando os modos de “reverter o crescimento urbano e desordenado, criando formas de cidadania à população de baixa renda”, com o intuito declarado de “promover a urbanização com inclusão social, envolvendo a participação da comunidade”. Dentre as diversas notáveis contradições existentes entre o programa Morar Carioca e o Plano Estratégico Rio Pós-2016, destaca-se que o primeiro estabelece que 97% da população que vive em favelas ocupa áreas passíveis de urbanização, enquanto o segundo afirma que, até 2016, a Prefeitura pretende diminuir em 5% as áreas de favelas no Rio de Janeiro, sem ao menos explicar o motivo do quociente numérico. Tal contradição demonstra a falta de lógica programática dentro do próprio poder público, utilizando diferentes parâmetros em seus projetos de maior visibilidade. Entretanto, o programa não teve um desfecho positivo, praticamente parando a sua execução com a saída do ex-Secretário de Habitação Jorge Bittar em 2012. Na época, alguns urbanistas pontuavam questões complexas, no qual a integração das favelas à cidade oficial seria concluída apenas se os projetos de urbanização reconhecessem o que é comum e o que é particular em cada favela (LEITÃO & DELECAVE, 2013). Por fim, com a interrupção do Morar Carioca, a Prefeitura priorizou a sua política habitacional em conjunto com as intervenções urbanas e a volta das incursões remocionistas em favelas. Em uma sucessão de leis aprovadas na Câmara e Decretos pelo Executivo municipal, inicia-se um novo ciclo no solo urbano carioca com favorecimentos fiscais às empreiteiras para a construção de conjuntos habitacionais de baixa renda vinculados ao Programa “Minha Casa Minha Vida” (PMCMV) e definindo a Zona Oeste como “área de interesse especial” para habitação com a aprovação do Plano Diretor em 2011. 15

Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/

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Rodrigo Ribeiro

Na gestão do prefeito Eduardo Paes, inúmeras casas foram marcadas pela Secretaria Municipal de Habitação (SMH) para serem removidas. Na foto está a simbólica casa 01 na favela Chácara do Céu, no Morro do Borel

A cidade olímpica e a gestão de alto desempenho: novos padrões de segregação urbana na cidade A administração da Prefeitura do Rio de Janeiro que teve início em 2009 decidiu por outro caminho: se guiar pelas melhores práticas de gestão (...) A chamada Gestão de Alto Desempenho da Prefeitura estava pautada em três valores fundamentais: foco em resultados, pragmatismo e disciplina. (...) Ou seja, ao invés de agir somente pela necessidade ou intuição, a Prefeitura passou a agir com método. (Gestão de Alto Desempenho, prefeitura do Rio de Janeiro 2009-2012)

Os trechos acima, retirados de um relatório chamado Gestão de Alto Desempenho, elaborado pela prefeitura do Rio de Janeiro para demonstrar o cumprimento das metas propostas para o período de 2009 a 2012, primeiro mandato de Eduardo Paes, sugerem que sua gestão se inspirou em práticas mais comuns ao setor privado. O relatório é importante para mostrarmos a partir de qual concepção partem os desenhos urbano e habitacional produzidos na cidade do Rio de Janeiro atualmente.

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Orlando Alves dos Santos Jr. (2015) vê neste projeto de cidade um novo ciclo de mercantilização do espaço urbano, na medida em que sua administração passa a ser feita de forma empresarial, inserindo as áreas e serviços públicos da cidade “aos circuitos de valorização do capital” (idem, p. 466). O autor sugere que está em curso um “processo de intensificação da elitização da cidade”, tanto por conta da “transferência forçada de ativos sob a posse ou controle das classes populares para setores do capital imobiliário”, quanto pela “criação de novos serviços e equipamentos urbanos que passariam a ser geridos pela iniciativa privada” (ibid.). Na mesma direção, Feltran (2014) aponta para o caráter de inclusão social pelo mercado das políticas públicas atuais. Para ele, “a habitação social contemporânea é a ponta da operação de mercados financeiros transnacionais” (FELTRAN, 2014, p. 507), sendo fundamental “associar ao dispositivo mercantil uma cunha de destituição do ‘direito a ter direitos’” (idem, p. 508), no sentido em que o direito à habitação é dado via aquisição de imóvel, mas não oferece aos beneficiários um real acesso à vida pública que a cidade possibilita. Veremos, nesta seção, como os planos e projetos, leis e decretos, relativos à urbanização e à habitação, da prefeitura do Rio de Janeiro e do governo federal, têm influenciado o processo de segregação urbana no Rio de Janeiro, a partir das perspectivas expostas. O documento que guia a gestão da prefeitura, de 198 páginas, contém o Plano Estratégico para os anos de 2013 a 2016, segundo mandato desta administração. Ele se baseia nas políticas “exitosas” que foram implementadas no primeiro mandato, e traz ao debate a questão habitacional – que não estava presente no relatório dos primeiros anos. O Plano propõe a construção de 100 mil residências, e a redução em 5% da área do município ocupada por favelas, mas não explica quais as atividades que serão desenvolvidas nesse sentido. A palavra habitação aparece menos de 10 vezes no documento, e a palavra favela, quatro vezes. O Programa Minha Casa Minha Vida não é mencionado. Estes fatos se contrapõem àquilo que poderia se esperar em uma cidade cujo déficit habitacional é de 220 mil domicílios (Fundação João Pinheiro, 2013). Outro documento oficial importante que expõe a conjuntura habitacional e urbana da cidade do Rio de Janeiro é o decreto 34.522, de outubro de 2011, que “aprova as diretrizes para a demolição de edificações e relocação de moradores em assentamentos populares”. Ele estabelece “a necessidade de atualizar e uniformizar os procedimentos da administração municipal para a desocupação de áreas em assentamentos populares, necessárias à implantação de projetos de interesse público”, e apresenta o PMCMV como alternativa de relocação das famílias removidas. O Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro, em conformidade com a linha

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exposta no decreto, prevê, em seu Artigo 15, segundo parágrafo, que Os moradores que ocupem favelas e loteamentos clandestinos nas áreas referidas no parágrafo anterior16 deverão ser realocados, obedecendo-se às diretrizes constantes do art. 201 desta Lei Complementar, do artigo 429 da Lei Orgânica do Município, observado os dispositivos do Art. 4º da Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 200117.

O art. 201, mencionado no parágrafo acima, prevê que a política de habitação deve “produzir novas soluções habitacionais” e “incentivar a formação de parcerias com entidades públicas e privadas”, entre outras coisas. Portanto, os moradores de favelas e loteamentos clandestinos, devem, segundo o Plano Diretor da cidade, ser removidos e realocados em soluções habitacionais que preveem a parceria público privada. Ou seja, se antes a justificativa às remoções estava atrelada a ideias higienistas, civilizatórias e reativas à ordem, o investimento do excedente de capital no espaço urbano é o foco das políticas habitacionais atuais. A cidade está sendo redesenhada através de relocações em conjuntos habitacionais em formato de condomínios como forma de oferecer à população acesso à cidade, e enquadrando-as em um perfil de classe média. Há a tentativa em se universalizar um “novo urbanismo”, como aquele descrito por Harvey (2012), que nega a pobreza na cidade e vê na classe trabalhadora um mercado em potencial. No Rio de Janeiro, o investimento no ambiente urbano devido aos jogos olímpicos é enorme, e seus impactos na urbanização da cidade seguem o mesmo padrão, uma vez que absorvem “as mercadorias excedentes que os capitalistas não param de produzir em sua busca de mais-valia” (HARVEY, 2014, p. 33). Nas margens da cidade, os efeitos do investimento do excedente de capital produzem outro fenômeno descrito por Harvey. O autor aponta para o fenômeno de expansão da propriedade privada, e para a consequente suburbanização de condomínios customizados, sugerindo que este tipo de fenômeno cria uma “vida sem

Ou seja: áreas de risco; faixas marginais de proteção de águas superficiais; faixas de proteção de adutoras e de redes elétricas de alta tensão; faixa de domínio de estradas federais, estaduais e municipais; áreas de Preservação Permanente e Unidades de Conservação da Natureza; áreas que não possam ser dotadas de condições satisfatórias de urbanização e saneamento básico; áreas externas aos ecolimites, que assinalam a fronteira entre as áreas ocupadas e as destinadas à proteção ambiental ou que apresentam cobertura vegetal de qualquer natureza; vãos e pilares de viadutos, pontes, passarelas e áreas a estes adjacentes; e áreas frágeis de encostas, em especial os talvegues, e as áreas frágeis de baixadas. 17 Disponível em http://doweb.rio.rj.gov.br/ler_pdf.php?edi_id=455&page=6 16

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alma”. Os empreendimentos monótonos de moradia, nestes locais, “recebem um antídoto no movimento do ‘novo urbanismo’, que pretende vender uma “réplica customizada da vida nas cidades” (HARVEY, 2013, p. 41). A conjuntura em 2009 foi muito propícia para o começo da aplicação das mudanças urbanísticas e do reordenamento habitacional no Rio de Janeiro. Eduardo Paes foi eleito com amplo apoio e financiamento dos setores imobiliários, com destaque para os aportes financeiros de diversas empreiteiras: Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS, Gafisa, dentre outras. Ao mesmo tempo, a cidade já estava fortemente inserida nas obras do PAC e no começo da experiência das UPPs, configurando a gramática da PACificação (CAVALCANTI, 2013) e, para completar a conjunção de fatores favoráveis à consolidação do PMCMV, o Rio de Janeiro foi eleito como sede das Olímpiadas. A partir da inserção do Rio aos megaeventos, o poder público local passou a usar expressões como “precisamos vender a cidade18”, no sentido de melhorar a competitividade territorial e angariar “benefícios” externos para o município, aproximando a gestão pública na lógica da gestão empresarial (VAINER, 2000) e transformando o Rio de Janeiro em uma cidade-commodity. Vejamos as palavras do próprio chefe do executivo municipal: Não podemos deixar de divulgar a cidade. Precisamos vendê-la bem. Não adianta ser bonita e não ser bem tratada. Comparo o Rio a uma modelo internacional. Precisamos dar um tratamento privilegiado aos locais turísticos, precisamos cuidar bem de locais como a Lapa, com corredores iluminados, com revitalização e ordem, sempre trabalhando em parceria, principalmente com as forças de segurança. (Eduardo Paes, 2008, Coletiva de Imprensa. Grifo nosso)19

As palavras proferidas pelo prefeito incluem as expressões “vender”, “revitalizar”, “ordem” e “segurança”, demonstrando a prioridade no reordenamento do solo urbano e a estratégia de gentrificação20 pelo poder público local. Na capital “A mercadotecnia da cidade, vender a cidade, converteu-se [...] em uma das funções básicas dos governos locais...” (Borja & Forn, 1996, p. 33) 19 Coletiva de imprensa realizada para a apresentação do novo Secretário Municipal de Turismo, Antônio Pedro Figueira de Mello. Fonte: http://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2008/11/13/ult4728u20510.jhtm 20 O conceito gentrification foi formulado pela socióloga inglesa Ruth Glass na década de 1960. “Foi quase poética a forma como Glass contou a novidade desse novo processo do qual a nova gentry urbana, isto é, as famílias de classe média, tinham transformado os bairros operários”. (Smith, 2006, p. 60) 18

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fluminense, assim como em diversas metrópoles do mundo ocidental, verifica-se que “a linguagem do renascimento urbano é a prova da generalização da gentrificação na paisagem urbana” (SMITH, 2006, p. 61). Em abril de 2011, o Prefeito Eduardo Paes promulgou um decreto que retomou determinados parâmetros para as remoções e conflagrou o congelamento urbanístico: Artigo 1º. Fica vedado iniciar a construção de novas edificações em favelas declaradas por Lei como Áreas Especiais de Interesse Social – AEIS. Parágrafo único: Excetuam-se as construções de iniciativa e responsabilidade do Poder Público destinadas ao reassentamento de população situada em áreas de risco, de preservação ambiental e em áreas de objeto de projeto de urbanização de comunidade, que poderão ser licenciadas observando os decretos específicos. Artigo 2º. Serão permitidas apenas reformas nas edificações existentes, comprovadamente para melhoria das condições de higiene, segurança e habitabilidade, desde que: I – Seja comprovada sua existência na data da publicação da Lei que declarou a respectiva área como de especial interesse social; II – Não promova acréscimo de gabarito ou expansão horizontal e vertical; III – Não se constituam em novas unidades habitacionais; IV – Não se situam em Zona de Risco ou de preservação. (Decreto n.º 33.648, 11 de abril de 2011)21

A falta de objetividade para definir quais áreas são removidas, e por quais motivos, coloca milhares de famílias à margem no posicionamento do solo urbano carioca, determinando cada vez mais a ação da especulação imobiliária na cidade do Rio de Janeiro. Alguns órgãos públicos, como o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (NUTH/DPGE), e alguns setores da sociedade civil e dos movimentos sociais que possuem ações ativistas nas favelas e periferias da cidade denunciaram a possível ligação dos Governos (Municipal e 21

Fonte: Diário Oficial da Cidade do Rio de Janeiro.

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Estadual) e outros setores do poder público, com interesses imobiliários, dos grandes eventos e a desapropriação de áreas para o planejamento urbano municipal. A associação do Estado ao capital privado na construção de um projeto de cidade-mercadoria vem produzindo profundas máculas na capital fluminense. No Jardim Botânico, a ameaça está entre os moradores do Horto, uma vila de trabalhadores que existe dentro da área ambiental do parque desde a época de D. João VI. Segundo os moradores, o comitê do Jardim Botânico se recusa a discutir sobre por qual ou quais razões a comunidade precisa ser removida. O fato é que a comunidade do Horto está localizada na rua Pacheco Leão, uma das terras mais valorizadas do Rio, e tem poderosos vizinhos ricos, como por exemplo, as organizações Globo. Os moradores acreditam que a especulação imobiliária é o motivo para a remoção. Além do caso tratado acima, também foi bastante emblemático a remoção da Vila Autódromo, situada ao lado do Parque Olímpico, no bairro da Barra da Tijuca, na Zona Oeste da cidade. Esta referida comunidade tem aproximadamente 40 anos e desde muito tempo vem resistindo durante duas décadas a diversas ameaças de remoção. As alegações dadas pelo ente Público Municipal para a remoção desse assentamento popular são calcadas em diversas explicações. Uma das primeiras tentativas de remoção é datada de 1993, em que, por meio de uma ação civil pública movida pelo então subprefeito da Barra da Tijuca, Eduardo Paes, alegava-se que a Vila Autódromo estaria supostamente causando danos ambientais. Posteriormente, após três anos, a mesma área foi declarada “área de risco” pelo mesmo subprefeito, contudo sem apresentação de nenhum laudo técnico comprovando a afirmação. Recentemente, já em 2007, os Jogos Pan-americanos serviu como justificativa sobre um cadastramento para remoção, com o pretexto da construção da Vila Olímpica. Nesta ocasião, alguns assentamentos foram parcialmente removidos, como Arroio Pavuna e o Canal do Cortado, porém a Vila Autódromo conseguiu resistir ao processo de remoção. Outrossim, as ameaças foram mais intensificadas a partir de 2009 quando o Rio de Janeiro foi eleito como a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. A partir deste momento foi apresentado mais uma variedade de argumentos por parte da Prefeitura para justificar a necessidade de remoção dessa população, tais como :poluição da lagoa de Jacarepaguá; ampliação das avenidas Salvador Allende e Embaixador Abelardo Bueno; instalação de um Centro de Mídia; incompatibilidade com a implantação do Parque Olímpico; ligação viária entre os corredores Transolímpica e Transcarioca, entre outros. Esses episódios eram apenas uma parcela de uma série de tentativas de desmantelamento da localidade

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que coincidiu com a rápida valorização dos terrenos na região (TAFAKGI, 2014). Atualmente, a maior parte da Vila Autódromo foi removida, eis que sofreu com grandes ameaças do poder público municipal e também a própria comunidade foi sendo aos poucos influenciadas a largar seus imóveis pelos altos valores financeiros oferecidos pelo consórcio Odebrecht-OAS-Carvalho Hosken aos moradores das casas que mais resistiram às remoções. Destaca-se que é intuito deste consórcio construir um grande condomínio destinado às classes médias e altas naquele local, acompanhando assim a especulação imobiliária da Barra da Tijuca. Os grandes investimentos em infraestrutura implementados pela atual prefeitura carioca e o seu programa maior de urbanização vêm estimulando, como visto, a especulação imobiliária em diversos lugares, inserindo a capital carioca no circuito global de cidades-commodities (VAINER, 2000) e favorecendo a gentrificação em muitas áreas. Em contrapartida, as ofertas de moradias populares oferecidas pelo Minha Casa Minha Vida se concentram em sua maioria (cerca de 80%) em áreas da Zona Oeste e Zona Norte da cidade, as quais não receberão os grandes investimentos destinados às Olimpíadas. O Programa, do governo federal, foi criado com o intuito de oferecer habitação à população com faixa de renda de até 10 salários mínimos, ampliando o mercado habitacional brasileiro e o acesso a ele, especialmente para as famílias com baixa renda. Uma das características do programa é oferecer ao setor privado grande parte das responsabilidades acerca dos empreendimentos construídos sob sua marca. O governo, representado pela Caixa, fecha acordo com empresas de construção que se comprometam a construir as unidades habitacionais definidas, respeitando uma determinada faixa de preço. Por exemplo, se o valor definido para a construção das unidades habitacionais destinadas à Faixa 1 for R$ 50.000,00, a empreiteira terá que entregar as casas prontas por este valor, que inclui a compra do terreno. A localização periférica de alguns conjuntos habitacionais, a baixa qualidade construtiva e a adoção do modelo “condomínio” são algumas das consequências deste acordo entre governo e setor privado, uma vez que a busca de lucro pelas empresas tem influência nas suas escolhas. A opção por adotar a forma de “condomínios”, por exemplo, vai além da oferta de um estilo de vida. Para as empreiteiras, este tipo de construção as isenta da responsabilidade de gerir a manutenção dos edifícios após a entrega aos moradores, o que as exime dos custos relativos a isso. Os moradores, após se mudarem para os conjuntos, devem se responsabilizar pela gestão dos blocos de edifícios. O programa prevê, em sua criação, a adesão aos princípios do Estatuto da

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Cidade22, sugerindo que as empreiteiras responsáveis pela construção dos conjuntos habitacionais priorizem a construção em áreas urbanas consolidadas, por exemplo. No entanto, muitos municípios, como o Rio de Janeiro, não o fazem, ou não regulamentam as leis necessárias para que isso seja possível. Dessa forma, a execução do PMCMV idealizado é obstruída, e os municípios e empreiteiras encontram nele possibilidades de maiores ganhos de capital. No Rio de Janeiro, 67% (AZEVEDO & FAULHABER, 2015) dos conjuntos do PMCMV destinados à faixa salarial de 0 a 3 salários mínimos localizam-se na Zona Oeste da cidade, ou seja, em áreas afastadas do centro, pelos mesmos motivos expostos acima. As empresas buscam terrenos mais baratos, que ofereçam maiores chances de lucro, e a população é realocada em locais distantes e sem infraestrutura urbana. Não se leva em conta que existem especificidades em relação aos tipos de segregação e desigualdades presentes na cidade. Oferecer condomínios padronizados a diferentes populações e inseri-los em bairros também carentes de infraestrutura denuncia um tipo de visão que homogeneíza os problemas das periferias. Como solução, são oferecidas “políticas redistributivas para espaços periféricos (...) que ficam perdidas entre a evidente insuficiência do que é realizado e a irrelevância das iniciativas, diante do que deveria (e até poderia) ser feito” (MARQUES, 2005, p. 54). Acerca da implementação do PMCMV no país, Maricato (2013) observa que o lançamento do programa, em 2009, representou o esquecimento da agenda da reforma urbana brasileira, iniciada em 2001, com a definição do Estatuto da Cidade (que previa o cumprimento da função social da cidade), uma vez que atendeu a interesses do capital imobiliário, enquanto “os pobres foram expulsos para a periferia da periferia” (MARICATO, 2013, p. 40). Ou seja, o PMCMV representaria a terceirização da questão da moradia, deixando sob responsabilidade de empresários a construção de edifícios cada vez mais distantes do centro das grandes cidades. Da forma como a cidade do Rio de Janeiro se apropriou do programa, além de oferecer somente a unidade habitacional, ele também serve como oferta de moradia aos removidos de áreas de risco e de interesse estatal. Desta forma, a segregação urbana que surge adquire novos contornos – além da distância física promovida pela construção em áreas afastadas, o formato “condomínio” expõe a cidade que está sendo construída, que procura inserir a população favelada em 22 Sua função é garantir o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana, o que significa o estabelecimento de “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.” (art.1º).

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padrões de classe média, oferecendo-lhes acesso à propriedade privada, mas não ao urbano. Afinal, teto não é cidade.

Mobilidade Urbana Pólvora e estopim das manifestações que ficaram conhecidas como as jornadas de junho de 201323, a temática da mobilidade urbana já havia sido protagonista principal da campanha eleitoral municipal em 2012, com inúmeras promessas, planos e debates em um momento de crescimento acelerado de nossas cidades. Em 2016 não será diferente, embora alguns elementos importantes possam diferenciar o debate do pleito municipal deste ano do anterior:  O Plano Municipal de Mobilidade Urbana;  Escassez de recursos do Governo Federal e do Governo Estadual;  Diminuição de recursos da Prefeitura advindos de royalties do petróleo;  Fim do ciclo de Megaeventos (JMJ, RIO+20, Copa do Mundo, Olimpíadas). Nas eleições de 2012, ainda não estava valendo a Lei de Mobilidade Urbana (12.587/12), lei federal fruto de 17 anos de disputas e conflitos no Congresso Nacional, que prevê a suspenção de recursos do tesouro nacional para as prefeituras com mais de 20.000 habitantes que não apresentassem seus Planos Municipais de Mobilidade Urbana até abril de 2015 – três anos após a entrada em vigência da Lei24. Entre as principais diretrizes, além da realização de um plano de mobilidade com participação popular, estão a priorização do transporte público e não motorizado sobre o automóvel individual, a integração com outras políticas de desenvolvimento urbano como habitação, saneamento e gestão do uso do solo, entre outros importantes avanços.

Embora o mote principal dos protestos tenha sido o aumento de 20 centavos na tarifa do transporte público, uma série de outros fatores levaram milhares de pessoas às ruas. Muito se escreveu sobre as jornadas de junho de 2013. Recomendamos duas leituras: NOGUEIRA, Marco Aurélio. As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília. Fundação Astrojildo Pereira (FAP); Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. 228p. E também SINGER, André. Brasil, junho de 2013, classes e ideologias cruzadas. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 97, Nov. 2013. p. 23-40. 24 O IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas – lançou em janeiro de 2012 o Comunicado Nº 128: A Nova Lei de Diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. 23

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Algumas obras da atual Prefeitura, como a duplicação da Avenida Niemeyer ou o Novo Mergulhão, ao não priorizarem nem o transporte público nem o não motorizado, afrontam a atual legislação e merecem atenção do Ministério Público. Apenas em janeiro de 2015, três meses antes do prazo final, a Prefeitura do Rio de Janeiro iniciou o processo de elaboração de seu Plano de Mobilidade Urbana, nomeado de PMUS25 (Plano de Mobilidade Urbana Sustentável). O processo de construção, que deve conter e empregar a participação e o controle social, é discutível e tutelado pelo poder municipal sob a esfera de um canal oficial de diálogo chamado Ágora26. Mas o diálogo e a participação democrática não são marcas da atual gestão, muito pelo contrário. O município optou nos últimos anos por investir pesadamente no sistema de BRTs (sigla em inglês para Bus Rapid Transit), um projeto de VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) no Centro da Cidade, de BRSs (Bus Rapid System), além de trechos isolados de ciclovias, ciclofaixas, zonas 30, ou as bicicletas compartilhadas. Em termos de BRTs são 4 projetos: TransOeste, TransCarioca, TransOlímpica e TransBrasil, sendo que os dois primeiros já estão em funcionamento. O primeiro inaugurado, o TransOeste, que liga o Bairro de Santa Cruz à Barra da Tijuca, é, desde sua inauguração, alvo de inúmeras críticas, tanto de usuários quanto de especialistas: superlotação, assalto, movimento pendular em horário de pico, ausência de integração física com a estação de trem de Santa Cruz, entre tantos outros problemas. O problema do movimento pendular parece superado com relação ao BRT TransCarioca, corredor previsto desde a década de 1960 com o Plano Policromático de Constantino Doxiádis. Seria a Linha Azul, que posteriormente se chamou Corredor T5, que percorre bairros com alto índice de ocupação urbana. Uma avaliação sobre os BRTs deverá ser um dos grandes pontos de debate sobre mobilidade urbana nas próximas eleições. Muita gente questiona a priorização 25 De acordo com a Prefeitura, “o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável, desenvolvido pela Prefeitura do Rio por meio da Secretaria Municipal de Transportes (SMTR), vai orientar os investimentos públicos em infraestruturas de transportes da cidade por dez anos, a partir de 2016. O PMUS deverá integrar modais motorizados e não motorizados em um sistema coeso e sustentável, priorizando o transporte público, o deslocamento a pé e por bicicleta e considerando emissões de gases do efeito estufa. O trabalho utiliza os dados do Plano Diretor de Transporte Urbano da Região Metropolitana (PDTU-2013), com foco na cidade do Rio de Janeiro. Ao final de dez meses, será elaborado um documento com as principais conclusões e propostas do estudo para os cenários de 2021 e 2026 (com diferentes graus de investimento). Todas as medidas estarão em acordo com as recomendações do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro (Lei Complementar 111/11), da Política Municipal de Mudanças Climáticas (Lei 5.248/11) e da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12)”. 26 O conselho curador do Ágora é composto 4 Secretarias Municipais, o IAB, o CAU-RJ, a PUC-Rio, além de três ONGs: ITDP, Transporte Ativo e Rio Como Vamos. Nota-se a ausência de movimentos sociais, associações de moradores e de bairros, sindicatos, outras universidades, entre tantas frações da sociedade.

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pelo sistema de ônibus, tanto em detrimento do serviço por trilhos, quanto no que poderia ter sido investido para melhorar o atual e péssimo sistema de trens metropolitanos sob administração da Supervia. O problema não parece tanto o questionamento sobre o sistema de BRTs, mas seu planejamento, operação e transparência com relação à tarifa. Corredores de ônibus com faixa exclusiva ou prioritária são velhos conhecidos do brasileiro, que desde a década de 70 convive com a experiência que começou em Curitiba, passou por Bogotá, na Colômbia, e hoje retorna ao país em cidades como Porto Alegre, Fortaleza, Belo Horizonte, Brasília, entre tantas outras. Trata-se de um sistema de implementação rápida e barata se comparado ao metrô, trem ou o VLT, mas, no caso carioca, as obras são caras, com construção de inúmeras vias elevadas, pontes estaiadas, e alto número de remoções, o que coloca em xeque as vantagens que poderia ter a obra. No caso específico do BRT TransBrasil, seu traçado foi muito questionado, sobretudo por conta da alta demanda do corredor, quanto de sua chegada ao centro da cidade. Quando inaugurado, o corredor, que ligará Deodoro ao centro do Rio pela Avenida Brasil, deve se tornar o corredor com maior número de usuários do mundo, com uma demanda esperada de 900 mil passageiros/dia. A problemática que envolve o aumento constante das tarifas de ônibus, contrastando com o péssimo serviço oferecido, os altos lucros dos empresários27 e a má condição dos veículos, também deverá ser tema do próximo pleito eleitoral. Afinal foi promessa de campanha a meta de ter 100 % dos ônibus da cidade com ar-condicionado e adaptados para garantir a acessibilidade das pessoas com deficiência até o fim de 2016. O Bilhete Único Carioca, outra promessa da última eleição, também deve ser alvo de questionamento sobre seu funcionamento para os próximos anos, afinal qual a dificuldade de termos em nossa região metropolitana apenas um cartão que integre todos os sistemas? Devemos ainda pensar em modernas ferramentas de planejamento integrado, como, por exemplo, o DOT ou TOD28 (do inglês Transit Oriented Development), que prevê o máximo aproveitamento da área de abrangência de um transporte de alta capacidade, integrando outros fatores do viver em cidade (TORRES, 2015). Ou seja, ao se pensar em grandes obras, como uma estação de metrô, trem, VLT ou um BRT, deve-se levar em conta como é possível aproveitar o potencial do investimenEm 2012, a Câmara de vereadores do Rio de Janeiro instaurou a CPI dos Ônibus, que tinha como principais objetivos investigar a formação de cartéis e a transparência das planilhas e contratos das empresas de ônibus da cidade. 28 A ONG ITDP vem realizando um trabalho pioneiro com o conceito no Brasil, tendo, inclusive, realizado iniciativas com a Prefeitura do Rio de Janeiro para aplicação de TOD no corredor da Avenida Brasil e outras áreas. 27

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to para o desenvolvimento urbano do entorno dessa área. Ou, ainda, explorar instrumentos previstos no Estatuto das Cidades29, como a Contribuição de Melhoria. A Contribuição de Melhoria, prevista por lei, é a possibilidade de o poder público recuperar parte do dinheiro investido em obras de infraestrutura urbana que tenham gerado valorização imobiliária. É sabido que logo após o anúncio de uma obra como o metrô, VLT ou um BRT, os valores dos imóveis da área de impacto sofrem alterações e a especulação imobiliária se aproveita para tirar grandes lucros. No recente caso do BRT TransCarioca, isso pode ser verificado pelo aumento do preço dos aluguéis e a verticalização da região. Com a Contribuição de Melhoria, o poder público poderia recuperar parte do investimento, reaplicando esse recurso em mais melhorias para a cidade. Agendas contemporâneas, salvaguardadas pela Lei da Mobilidade, podem enriquecer o debate sobre, por exemplo, qual será o futuro dos automóveis em nossas cidades? Rodízios de carros ou o pedágio urbano (congestion charge em inglês) são temas importantes para o futuro da nossa cidade, assim como a necessidade de se investir em resiliência e/ou adaptação às mudanças climáticas. Mobilidade urbana e sustentabilidade são, hoje mais do que nunca, como irmãos siameses, e, em nosso caso, com as maiores cidades brasileiras ocupando territorialmente o litoral, suscetíveis aos impactos de eventos extremos.

Conclusões e caminhos Esses temas, que no fundo nos remetem à questão central de qual cidade queremos para os próximos anos, estão ganhando cada vez mais a agenda internacional como nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ou o HABITAT III, ambos liderados pela Organização das Nações Unidas. Hoje as cidades parecem reproduzir, em âmbito municipal, a desarticulação do Ministério das Cidades separado em Secretarias que não são interligadas (Saneamento, Mobilidade e Habitação). O passo posterior ao da definição da cidade que queremos é colocar em prática políticas públicas integradas, de ocupação do território, de habitação, saneamento e mobilidade urbana. Em suma, políticas da cidade. 29 Outros instrumentos urbanos, como o IPTU progressivo, operações urbanas consorciadas ou a outorga onerosa, poderiam ser melhor debatidos no caso carioca, verificando experiências positivas e negativas, benefícios e malefícios que tais medidas poderiam gerar. No caso do BRT Transcarioca, a Prefeitura optou por estabelecer uma AEIU – Área de Especial Interesse Urbanístico – no entorno, instrumento, a nosso ver, insuficiente com o potencial de valorização e aproveitamento do desenvolvimento urbano do local.

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No que se refere à habitação, pode-se apontar para uma execução mais responsável do MCMV30. A forma como o projeto é concebido possibilita que seja colocado em prática de maneira dialógica, ou seja, de forma que os condomínios estejam inseridos na cidade e ofereçam a seus moradores o direito a ela. Dentro do programa, há espaço para a urbanização de favelas, por exemplo, e também há a possibilidade de investimentos em áreas mais consolidadas da cidade. A análise aqui apresentada demonstrou que o erro consiste em inserir esse tipo de política pública em uma lógica de mercado que não considera a população e sua utilização do espaço. Mas é possível caminhar pelos trilhos do MCMV sem levá-lo a ser mais um vetor de segregação. Experiências exitosas, como em São Paulo, podem servir de guia. Na cidade, o plano de metas do governo de Fernando Haddad prevê a construção de 55 mil unidades residenciais entre 2013 e 2016; sendo que, destas, 25.473 famílias foram ou serão atendidas no âmbito do MCMV. Dentre estas últimas, 16.149 são destinadas à categoria Entidades, que é dirigida “a famílias de renda familiar mensal bruta de até R$ 1.600,00 e estimula o cooperativismo e a participação da população como protagonista na solução dos seus problemas habitacionais” (Prefeitura de São Paulo, 2015). As demais unidades seriam construídas através de outros programas, tais como Urbanização de Favelas e Mananciais. Não está prevista a execução do MCMV com foco em remoções. O MCMV Entidades é a atualização do Programa Crédito Solidário, criado em 2005, sendo que ambos têm o objetivo de oferecer moradia a associações de famílias que se proponham a autogerir a construção de suas moradias. Lago (2011) destaca a “significativa concentração das unidades contratadas em Goiás, Rio Grande do Sul, São Paulo, Maranhão e Mato Grosso do Sul” (LAGO, 2011, p. 8), afirmando que esta característica se dá tanto pela maior organização política da população quanto pelo estímulo dos governos locais. Tanto o Minha Casa Minha Vida, quanto o programa Entidades, foram marcas da gestão da Era Lula e do Governo Dilma para a área de habitação, não ficando claro se serão mantidos por novas gestões. Existem ainda outras saídas interessantes de serem debatidas com a sociedade em relação à questão da habitação, como, por exemplo, o aluguel social – certamente não nos moldes e valores atuais – sobretudo para ocupação de áreas centrais ou vetores da cidade que seriam desejáveis de se habitar, principalmente aquelas áreas já dotadas de infraestrutura. Mas, novamente, é fundamental a so30 Seria desejável, por exemplo, que a Prefeitura, através de decretos, ou submetendo à Câmara de Vereadores um Projeto de Lei, defina as áreas prioritárias para a construção de novas unidades, exigindo que elas atendam certos padrões de inserção urbana.

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ciedade retomar o protagonismo nesse debate até para evitar casos recentes de absoluto descompasso entre a sociedade civil e o poder público, como, por exemplo, no caso do teleférico da Rocinha31. Do mesmo modo, a mobilidade urbana pode ser levada a dialogar mais com a cidade, promovendo a gestão democrática e priorizando obras e áreas prioritárias para assegurar o direito à cidade e não apenas atender o setor imobiliário. É imperativo que a cidade tenha um plano integrado de desenvolvimento urbano sustentável, que aponte – ouvindo a população – a cidade que queremos para o curto, médio e longo prazo. E que esse plano faça o diálogo com os demais planos e projetos existentes de nossa cidade, de habitação, mobilidade, saneamento, ambiental, etc. Pairam dúvidas para o cenário carioca pós-Olímpiadas. Será sustentável o investimento em duas frentes da cidade como a Barra (e adjacências) e o Centro? Como podemos pensar a integração com a região metropolitana? Pensar os deslocamentos, a mobilidade, portanto, em sintonia com os projetos de habitação – e saneamento – da cidade deve ser prioridade. Não é possível que em pleno século XXI continuemos insistindo em políticas públicas autoritárias que produzem desigualdades nas cidades, com conjuntos habitacionais construídos a quilômetros de centros e sub-centros, e sem a garantia de transporte público, saúde, educação, entre tantos outros direitos.

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O caso do teleférico da Rocinha é emblemático do ponto de vista das prioridades do poder público no processo de urbanização de favelas e da ausência de uma gestão democrática que dê voz às demandas dos moradores. Líderes comunitários, residentes e especialistas criticaram o alto custo com a obra em detrimento da resolução de problemas básicos como saneamento.

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CAPÍTULO 5 A economia da metrópole carioca1

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O

estado do Rio de Janeiro enfrenta, a partir dos anos 1960 e principalmente 1970, uma grave crise econômica, social e política. Essa crise apresenta, entre suas razões: a transferência da capital para Brasília, do que principalmente derivava o dinamismo econômico, não só da cidade do Rio, mas também da metrópole e mesmo do interior fluminense; a ausência ou equívoco de estratégias regionais; e uma deterioração de sua representação política, tendo em vista que o golpe de 64 atingiu com particular violência a representação carioca, principalmente na Câmara dos Deputados5. De acordo com dados do IBGE, entre 1970 (quando se consolida a transferência da capital para Brasília) e 2013, o estado do Rio de Janeiro passou de uma participação no PIB nacional de 16,7% para 11,78%. Isso significou uma perda de participação no

Registramos aqui nossos sinceros agradecimentos a Leonardo Amaral da Veiga e Ivan Gontijo Akerman, pelo cuidadoso trabalho de revisão deste artigo. 2 Professor Associado da FND/UFRJ. Coordenador do Observatório de Estudos sobre o Rio de Janeiro, vinculado ao Programa de Pós-Graduação da FND/UFRJ e cadastrado nos Grupos de Pesquisa do CNPq. Presidente do Instituto de Estudos sobre o Rio de Janeiro-IERJ. E-mail: [email protected] 3 Historiadora, vinculada ao Museu da República e integrante do grupo de pesquisa Observatório de Estudos sobre o Rio de Janeiro (UFRJ) e do IERJ. Doutora em História, Política e Bens Culturais, pelo CPDOC/FGV. E-mail: [email protected] 4 Historiador, professor da Universidade Estácio de Sá e integrante do grupo de pesquisa Observatório de Estudos sobre o Rio de Janeiro (UFRJ) e do IERJ. Doutorando em Planejamento Urbano e Regional, pelo IPPUR/ UFRJ. E-mail: [email protected] 5 Sobre essas três razões, ver Osorio, 2005 e Osorio; Versiani, 2013. 1

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PIB nacional de 29,3%, a maior, nesse período, entre todas as unidades federativas. Na mesma direção, os dados do PIB calculados pelo IBGE mostram que, entre 1970 e 2013, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) passou de uma participação no PIB nacional de 14,6% para 7,6%, apresentando uma perda de participação no PIB nacional de 47,6%. Da mesma forma, a cidade do Rio de Janeiro, de acordo com o IBGE, passou, entre 1970 e 2013, de uma participação no PIB nacional, em 1970, de 12,84%, para uma participação, em 2013, de 5,31%. Nesse período, a cidade do Rio apresentou uma perda de participação no PIB nacional de 58,61%. Essa perda de participação do estado do Rio de Janeiro na economia nacional pode ser verificada também pelos dados de evolução do emprego formal. Entre 1985 e 2014, de acordo com dados da Rais/Ministério do Trabalho e Emprego (série mais longa disponível, com a mesma metodologia), o estado do Rio de Janeiro apresentou um crescimento do emprego formal no total de atividades de apenas 73,6%, contra um crescimento no Brasil de 141,9%. A gravidade da crise ocorrida no estado do Rio de Janeiro pode ser verificada também pelo fato de o estado – de acordo com dados de emprego formal da Rais/MTE– ter passado da segunda posição, em 1985, em número de empregos formais (atrás apenas do estado de São Paulo), para a terceira posição, em 2014, sendo ultrapassado pelo estado de Minas Gerais. Na mesma direção, na indústria de transformação, em que também éramos o segundo colocado, em 1985, passamos para a sexta posição, em 2014, sendo ultrapassados por Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, além de nos mantermos atrás de São Paulo. Da mesma forma, tendo em vista a perda de densidade da economia fluminense, o que aumentou a dependência do estado do Rio de Janeiro em relação às receitas de royalties, a partir de 2004 a economia mineira passou a ter uma base para arrecadação e uma receita de ICMS superior às do estado do Rio de Janeiro, de acordo com dados do Conselho Nacional de Política Fazendária do Ministério da Fazenda (Confaz).

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A metrópole carioca e sua periferia No cenário apontado de perda de participação da economia fluminense, a situação da RMRJ e, principalmente, dos municípios de sua periferia6, aparece como um desafio central em uma estratégia integrada de fomento ao desenvolvimento econômico-social no estado do Rio de Janeiro.7 A periferia da RMRJ, quando comparada às periferias das Regiões Metropolitanas de São Paulo e Belo Horizonte8, com base nos dados primários disponíveis através de diversas fontes oficiais, apresenta, via de regra, do ponto de vista econômico e social, particular precarização. No campo social, na área de educação, de acordo com dados do Índice de Oportunidades da Educação Brasileira-Ioeb, ao realizarmos um ranking dos resultados, em 2013, para os 59 municípios das periferias das RMRJ, RMSP e RMBH com 50 mil habitantes ou mais9, verificamos que os dezoito piores resultados são de municípios da periferia da RMRJ. Também na área da saúde, os resultados são ruins. Em um ranking do Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM-Saúde), no ano de 2013, para 6 Atualmente, os seguintes municípios compõem a Região Metropolitana do Rio de Janeiro: Belford Roxo; Cachoeiras de Macacu; Duque de Caxias; Guapimirim; Itaboraí; Itaguaí; Japeri; Magé; Maricá; Mesquita; Nilópolis; Niterói; Nova Iguaçu; Paracambi; Queimados; Rio Bonito; Rio de Janeiro; São Gonçalo; São João de Meriti; Seropédica; e Tanguá. Quando falamos de periferia, estamos tratando de todos os municípios da RMRJ excetuando-se a cidade do Rio de Janeiro. 7 Quando se analisam as regiões de governo no estado do Rio de Janeiro, muitas vezes aponta-se a região Noroeste Fluminense como a mais problemática. De fato, essa região apresenta o menor PIB per capita entre todas as regiões de governo do ERJ. No entanto, quando são analisados também os indicadores sociais e de infraestrutura, verifica-se que o problema mais grave está na periferia da RMRJ. Por exemplo, em um ranking, para os 92 municípios fluminenses, do Índice de Oportunidades da Educação Brasileira-IOEB, organizado para o ano de 2013 pelo Centro de Liderança Pública, com apoio das Fundações Lemann e Roberto Marinho, vemos que, entre os dez primeiros colocados, cinco são municípios da Região Noroeste Fluminense. Esse índice procura observar a qualidade da educação em cada município brasileiro, levando em consideração os dados disponíveis no que dizem respeito aos resultados da educação pública e privada, do ensino fundamental e médio. Leva em conta ainda informações como o número de crianças e adolescentes em idade escolar e fora da sala de aula. Procura, também, dar ênfase à necessidade de integrar os ensinos fundamental e médio, dentro da lógica de estimular a criação, em cada localidade, de um sistema municipal de educação. A metodologia completa desse índice está disponível no link: http://www.ioeb.org.br/pagina/metodologia. 8 Quando falamos da periferia da RMSP e RMBH, estamos analisando todos os municípios dessas duas Regiões Metropolitanas, excetuando-se suas respectivas capitais. 9 Ao realizarmos uma comparação dos municípios da periferia da RMRJ com os municípios das periferias das RMSP e RMBH, analisamos apenas os municípios com 50 mil habitantes ou mais. Essa decisão baseia-se no fato de, por um lado, a periferia da RMRJ apresentar muitos poucos municípios com menos de 50 mil habitantes, ao contrário do verificado nas periferias das RMSP e RMBH, principalmente a segunda.

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os 59 municípios das periferias das RMRJ, RMSP e RMBH com 50 mil habitantes ou mais, verificamos que o município da periferia da RMRJ mais bem colocado é Niterói, na 12ª posição. O segundo município fluminense melhor colocado é Maricá, apenas na 31ª posição. Aparecem, nas vinte últimas posições, onze municípios fluminenses, sendo que o último colocado nesse ranking é o município de Japeri. No quesito segurança, novamente comparando os municípios das periferias das RMRJ, RMSP e RMBH, com cinquenta mil habitantes ou mais, vemos que os municípios com os dois melhores resultados são São Caetano do Sul e São Bernardo, ambos da RMSP, que possuíam, em 2013, taxas de homicídios por cem mil habitantes de, respectivamente, 4,5 e 6,2. Por outro lado, vários municípios da RMRJ apresentavam elevadas taxas de homicídios, superiores a 40 por cem mil habitantes: Japeri, 41,7; Itaguaí, 51,1; Belford Roxo, 54,2; Duque de Caxias, 60,3; e Nova Iguaçu, 63,6 (Datasus). No campo da infraestrutura, também se verificam importantes problemas na periferia da RMRJ. De acordo com o Censo IBGE de 2010, ao realizarmos um ranking, para os 59 municípios com 50 mil ou mais habitantes das periferias das metrópoles do RJ, SP e BH, no tocante ao percentual de domicílios atendidos por rede de água, em 2010, observa-se que, entre os 16 piores resultados, estão 12 municípios da periferia da RMRJ. Aliado a isso, a qualidade e a periodicidade da chegada da água aos domicílios não são boas.10 Na mesma direção, ao realizarmos um ranking da participação do total do emprego industrial com carteira assinada no total da população em idade ativa, em cada um dos 59 municípios das periferias dessas três metrópoles, com cinquenta mil habitantes ou mais, no ano de 2014, verificamos uma situação bastante rarefeita do ponto de vista da existência de empregos na periferia da RMRJ. Entre os 19 municípios pior colocados nesse ranking, 15 são da periferia da RMRJ. Mesmo o município de Duque de Caxias, onde existe a REDUC e onde foi instalada recentemente a Rio Polímeros, no distrito de Campos Elísios, a relação entre emprego industrial existente e sua população em idade ativa é de apenas 4,3%.11 10 Mesmo em bairros habitados por classe média, em Nova Iguaçu, a frequência de recebimento de água encanada em residências é muito precária. Os prédios de classe média, em Nova Iguaçu, costumam já ter em seu orçamento de condomínio reserva para entregas regulares de água por carros-pipa. No momento, a Cedae, com recursos da Caixa Econômica Federal, está fazendo um grande investimento de cerca de R$ 3 bilhões para a melhoria da rede de água na Baixada Fluminense. Esperamos que de fato melhore o fornecimento. 11 A falta de densidade da estrutura produtiva na periferia da RMRJ pode ser verificada também pelo fato de que a cidade do Rio de Janeiro sozinha apresentava, em 2014, um total de 201.429 empregos diretos na indústria de transformação, de acordo com a Rais/MTE, contra um total, em todos os demais 20 municípios da RMRJ, de apenas 115.464 empregos. Ou seja, a cidade do Rio apresentava, em 2014, quase o dobro de empregos na indústria de transformação, comparativamente a todos os demais municípios da metrópole carioca.

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Quando se pensa em desenvolvimento regional, é importante dar prioridade àquelas atividades que podemos denominar como “atividades indutoras” ou “exportadoras”. Ou seja, aquelas que podem atender não só a região em que estão instaladas, mas também outros locais, gerando assim renda e emprego novo para a sua região. As “atividades exportadoras” estão basicamente no setor industrial, no turismo e no que podemos chamar de conjunto do terciário superior.12 Na periferia metropolitana do Rio de Janeiro, embora possa haver ampliação do turismo, tendo em vista principalmente as áreas de reserva florestal existentes, as atividades indutoras estão basicamente no setor industrial. Por isso, em uma estratégia de adensamento produtivo nessa região, esse setor tem papel fundamental. Do ponto de vista do conjunto do emprego formal no setor privado, também vemos uma falta de densidade produtiva e de geração de emprego na periferia da RMRJ. Novamente, em um ranking, para o ano de 2014, da participação do total do emprego formal privado no total da população em idade ativa existente em cada um dos 59 municípios analisados, verificamos que entre os 20 primeiros colocados, aparecem apenas 2 municípios da periferia da metrópole carioca: Niterói e Rio Bonito.13 Entre a 21ª e 40ª posição, aparecem apenas mais cinco dos dezoito municípios da periferia da RMRJ com cinquenta mil habitantes ou mais: Itaguaí, Itaboraí, Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São João de Meriti. Além disso, dos 5 municípios com menor quantidade de empregos formais, relativamente ao total da população, encontramos 3 da RMRJ: Guapimirim, Belford Roxo e Japeri (Rais/MTE e Censo IBGE de 2010). A carência de empregos na periferia da RMRJ – onde residiam, em 2015, 47,07% (IBGE/SEADE) dos habitantes da metrópole carioca –, obriga parcela significativa dos moradores dessa região a se deslocar diariamente para trabalhar na cidade do Rio de Janeiro. Isso, aliado às deficiências ainda existentes nos transportes públicos de massa nessa região, faz com que, de acordo com o Censo IBGE de 2010, os dados na periferia da RMRJ sejam piores do que os encontrados na periferia da RMSP. No ano de 2010, na periferia da RMRJ, 32,41% dos trabalhadores levavam, em um único trajeto diário, mais de uma hora para se deslocar entre casa e trabalho, contra um percentual, na periferia da RMSP, de 25,50%. Esse conjunto de dados reafirma a prioridade que, em uma estratégia de foSobre as atividades indutoras no setor serviços, ver Osorio, 2014. Deve-se ressaltar que, no caso do município de Rio Bonito, uma quantidade expressiva de empresas e empregos não existe de fato no território, sendo registrada apenas formalmente no município. Isto porque diversos donos de empresas registram-nas formalmente no município apenas para se beneficiarem do incentivo fiscal de ISS. Ou seja, trata-se, em parte, de uma “economia fantasma”. 12 13

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mento ao desenvolvimento socioeconômico do estado do Rio de Janeiro, devem ter as políticas a serem desenhadas para a metrópole carioca, principalmente aquelas voltadas para a periferia metropolitana.

Mudanças, permanências e desafios para a metrópole carioca no século XXI O estado do Rio de Janeiro, a partir de período recente, passa a apresentar melhoria em seus indicadores econômicos e inicia, também, uma reestruturação da gestão pública no âmbito do Estado, esta bastante inconclusa, como mostra a crise da máquina pública estadual nos anos de 2015 e 2016. No campo econômico, o estado do Rio de Janeiro, após décadas crescendo significativamente abaixo da média das demais regiões brasileiras, começa a apresentar, basicamente a partir de 2008, um crescimento econômico próximo ao da média brasileira. No que diz respeito ao emprego, entre 2008 e 2014, por exemplo, ocorreu um crescimento do total de empregos formais no estado do Rio de Janeiro de 25,0%, na RMRJ de 23,8% e, no total do país, de 25,7% (Rais/MTE). Esse maior dinamismo econômico no estado do Rio de Janeiro decorre dos grandes empreendimentos que ocorrem no estado e na metrópole carioca, como a instalação da Rio Polímeros, em Duque de Caxias; as obras do Comperj (recentemente paralisadas, com a crise da Petrobras, mas que, no entanto, devem ser retomadas para término da refinaria)14; as obras de instalação do estaleiro nuclear da Marinha; a criação do complexo portuário em Itaguaí; a reativação da indústria naval (também sob risco, tendo em vista as graves incertezas pelas quais vem Costumamos afirmar que o Comperj foi caso de irresponsabilidade coletiva e de um debate na sociedade muito mal feito, ajudado pela carência de reflexão regional no estado do Rio de Janeiro. A Petrobras, o Governo do Estado e a mídia venderam a ideia de que já estava certa a existência de um polo petroquímico em Itaboraí, gerando na região em torno de duzentos mil empregos. Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que a proposta de um polo petroquímico nunca esteve perto de ser de fato concretizada. O parceiro da Petrobras para o setor petroquímico tem sido a Brasken, que, antes de pensar em novo polo petroquímico, deve ampliar o já existente em Duque de Caxias, no distrito de Campos Elíseos, a Rio Polímeros. Ou seja, a perspectiva concreta, em Itaboraí, foi sempre de apenas uma refinaria, o que já é importante, principalmente pela receita fiscal que gerará para o município. Em segundo lugar, mesmo que venha a existir um polo petroquímico em Itaboraí, com a presença plena de empresas de primeira, segunda e terceira geração (indústria de plástico), não seriam gerados nem de longe, na região, os propalados duzentos mil empregos. Esse número foi estimativa de pesquisa do BNDES, incluindo mão de obra direta, indireta e por efeito renda, para o conjunto do país, e não apenas para Itaboraí e municípios do seu entorno que poderiam ser beneficiados.

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passando o país, em 2015 e 2016, e pela possibilidade de retorno de uma pauta econômica liberal em que uma política de conteúdo nacional não tenha a mesma prioridade); a ampliação dos investimentos e demandas de empresas petrolíferas capitaneadas pela Petrobras; a chegada de novas empresas internacionais de petróleo no Rio de Janeiro e o crescimento do Parque Tecnológico da UFRJ; investimentos no que podemos denominar de complexo da economia da saúde, principalmente em torno de expansões na Fiocruz; a implantação do complexo portuário industrial do Açu, em São João da Barra, que já começa a funcionar e que pode ser uma âncora fundamental, não só para as Regiões Norte e Noroeste Fluminense, mas também para o conjunto do estado; e a ampliação da presença da indústria automobilística, na Região do Médio Paraíba. Além disso, o dinamismo recente decorre também dos eventos internacionais de grande porte que têm ocorrido na cidade do Rio de Janeiro: as Olimpíadas Mundiais Militares, em 2011; a Rio+20, em 2012; o Congresso Mundial da Juventude Católica, em 2013; a final da Copa do Mundo, em 2014; e as Olimpíadas de 2016. Deve-se destacar, ainda, que a cidade do Rio possui uma densidade do emprego formal privado maior do que pressupõe o senso comum, apesar de ter sido a capital do país por quase duzentos anos. Claro exemplo é que, em 2014, o peso do emprego público, no total do emprego formal existente na cidade, foi de 18,65%, inferior ao verificado no total do país, de 20,05% (Rais/MTE). Entendemos que esse peso do emprego privado deriva do fato de a cidade, como ex-capital e cidade portuária – com o porto do Rio apresentando grande importância para a logística brasileira ainda no correr da primeira metade do século XX – ter, historicamente, um forte setor mercantil. Deriva também do fato de ter constituído importante mercado consumidor, que ativa não só a economia carioca, como também a metropolitana, com a implantação, por exemplo, de indústrias de bens de consumo não duráveis, várias até hoje existentes na cidade e no conjunto da metrópole. Por último, mas não menos importante, deriva também de um aspecto ainda pouco estudado, o fato da cidade do Rio ter se tornado o eixo da capitalidade brasileira, conforme o conceito desenvolvido pelo historiador de arte e ex-prefeito de Roma, Giulio Argan15. Segundo Argan, todo país do mundo possui uma cidade que é a sua referência internacional. Quando, por exemplo, pen15 Os conceitos de signos capitalinos, capitalidade e cidade-capital são bem trabalhados por Marly Silva da Motta, quando, partindo da formulação teórica de Giulio Argan,define as cidades-capitais como “o lugar da política e da cultura, como núcleo da sociabilidade intelectual e da produção simbólica, representando, cada uma a sua maneira, o papel de foco da civilização, núcleo da modernidade, teatro do poder e lugar de memória” (Motta, 2001, p.24). Sobre a história de capitalidade do Rio, ver: Osorio; Rabello; Versiani, 2016.

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sa-se nos EUA, pensa-se em Nova York e não em Washington. Quando se pensa na Austrália, a primeira referência que vem à mente é Sydney e não Camberra. Assim, como eixo da capitalidade brasileira, a cidade do Rio de Janeiro gerou também um setor de serviços com razoável diversificação e tornou-se sede de diversas empresas privadas e públicas que atuam no território nacional. Além disso, a cidade preserva, até os dias atuais, atividades e emprego na indústria de transformação também bastante mais significativas do que pressupõe o senso comum. Como apontado na nota 12, a cidade do Rio apresentava, em 2014, expressivo total de 201.429 empregos diretos na indústria de transformação, gerando uma massa salarial de R$ 809.508.578,00, superior inclusive à massa salarial verificada no total do comércio varejista da cidade, de R$ 512.212.269,00 (Rais/MTE). Por último, cabe destacar que a cidade do Rio de Janeiro curiosamente é, entre os 92 municípios fluminenses, a que apresenta maior número de pessoas ocupadas no setor agropecuário: 9.299 pessoas (Censo IBGE de 2010). No entanto, diversos desafios socioeconômicos, territoriais e de adensamento da estrutura produtiva, no conjunto do estado e em sua Região Metropolitana, ainda se fazem presentes. No que se refere à cidade do Rio, apesar dessa boa densidade econômica e de emprego, e até surpreendente em relação ao senso comum, ainda apresenta graves problemas de desigualdade territorial, de qualidade de vida e de infraestrutura. Esses desafios podem ser vistos, por exemplo, pelo fato de termos um percentual de em torno de 22% da população morando em favela, contra um percentual nas cidades de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Florianópolis de em torno de, respectivamente, 11%, 13%, 14% e 4%. O percentual da cidade do Rio de Janeiro é o maior entre todas as capitais do Sudeste e o 5º maior entre todas as capitais brasileiras (Censo IBGE de 2010). As desigualdades socioterritoriais, entre outros indicadores, podem ser vistas pelo percentual de “nem-nem” – jovens entre 18 e 24 anos de idade que não estudam nem trabalham. Enquanto na Área de Planejamento 2-AP-2 da cidade do Rio – Zona Sul e Grande Tijuca16 –, 19% do total de jovens são nem-nem, no Complexo do Alemão, em Jacarezinho, Santa Cruz e Bangu, localizados na Zona Suburbana e Oeste, esses percentuais atingem, respectivamente, 32,9%, 38,8%, 38,4% e 35,1% (Censo IBGE de 2010). 16 Entendemos que, na RMRJ, existem duas “cidades metropolitanas”. Uma com forte presença de moradores de classe média e classe média alta, além de empresários, que é a Zona Sul, a Barra da Tijuca, a Grande Tijuca e Niterói. Outra com o restante do território da metrópole.

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Outro dado interessante que sugere que a cidade do Rio de Janeiro tem maior desigualdade territorial do que outras capitais é o fato de nossa região ter apresentado, em 2013, uma desigualdade de resultados entre as escolas públicas de ensino fundamental de 1ª a 5ª série maior do que a verificada nas cidades de São Paulo e Belo Horizonte (Inep/MEC). Do ponto de vista da estratégia urbana da Prefeitura do Rio de Janeiro, dado preocupante é que a cidade do Rio, segundo urbanistas como Sérgio Magalhães, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil, não só possui baixa densidade de habitantes por quilômetro quadrado, como também continua ampliando sua expansão territorial para as AP-4 (Regiões Administrativas da Barra e de Jacarepaguá) e AP-5 (Regiões Administrativas de Campo Grande, Santa Cruz, Bangu, Realengo e Guaratiba), principalmente em termos de moradias, o que aumenta o custo de investimentos e manutenção da infraestrutura urbana na cidade. Enquanto, pelos dados de 2014, na AP-1 (Zona Central e Portuária) encontra-se 37,6% do emprego formal e apenas 4,8% da população, na AP-5 estão apenas 7,5% do emprego formal existente na cidade do Rio e 27,1% da moradia (Censo IBGE de 2010 e Rais/MTE). Nesse sentido, uma mudança fundamental na política urbana deve ser procurar atrair atividades produtivas e limitar o crescimento populacional para a AP-5, além de estimular a ampliação de moradias na AP-3 (Zona Suburbana) e na AP-1. O território onde se desenvolve o projeto do “Porto Maravilha” tem sofrido melhorias em sua estrutura urbana e atraído equipamentos culturais e de entretenimento, como o aquário marinho e os Museu do Amanhã e Museu de Arte do Rio de Janeiro, além de investimentos iniciais em novos prédios comerciais. No entanto, não há perspectiva positiva do ponto de vista da ampliação de moradias. Isto porque, em uma lógica exclusivamente de mercado, os incorporadores preferem construir empreendimentos empresariais, pois permitem lucro por metro quadrado bem superior aos residenciais. Dessa forma, para haver ampliação de moradias, é importante criar uma legislação mais indutora do que a existente até o momento. Além disso, é importante ampliar a política de habitação popular na região. Do ponto de vista de uma estratégia econômica, a Prefeitura do Rio não deve se ver como uma ilha, mas sim como o hub de uma economia regional. Do ponto de vista turístico, por exemplo, a cidade e o estado ainda são muito pouco aproveitados. A cidade do Rio, mesmo com os novos empreendimentos de hotéis e pousadas, tendo em vista os megaeventos, ainda possui uma dimensão turística pequena. O número de empregos formais em hotéis e pousadas re-

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presentava, em 2015, apenas 0,84% do total de empregos formais existentes na cidade do Rio (Rais e Caged/MTE). Além disso, somente três cidades no restante do estado têm a atividade turística como elemento importante para a economia municipal: Armação de Búzios, Paraty e Itatiaia.17 Dessa forma, fica claro que a potencialidade turística da cidade e do conjunto do estado do Rio ainda é fortemente subutilizada. Para ampliar o turismo no estado do Rio de Janeiro e suas regiões, é importante organizar um planejamento, integrando políticas turísticas da cidade do Rio com as das demais regiões do estado. Isso pode permitir um jogo de ganhaganha, ampliando a atratividade turística do estado e estimulando maior tempo de permanência do turista na região. Na cidade do Rio, por exemplo, é necessário criar um conselho municipal de turismo, hoje inexistente, e transformar a Secretaria Municipal de Turismo, que atualmente é mais uma Secretaria de eventos, em uma Secretaria de planejamento e coordenação de políticas turísticas. Deve-se ter em conta ainda que, após o câmbio ter ficado sobrevalorizado no país desde o Plano Real, com a nova realidade cambial, com o dólar valendo mais no país, caso mantida, ficou mais barato para os estrangeiros visitarem o país e mais atrativo para os brasileiros fazerem turismo interno. O fomento ao turismo deve estar integrado a um bloco de atividades econômicas que apresentem sinergia entre elas, que inclui a economia vinculada ao esporte, à cultura, ao entretenimento e à multimídia18. Ainda do ponto de vista econômico, é importante definir que papel a cidade do Rio de Janeiro pode ter como comando de uma economia regional, nos complexos produtivos com maior potencialidade no estado, como os vinculados à economia da saúde; ao bloco citado de esporte, turismo, entretenimento, cultura e multimídia; e ao complexo do petróleo e gás19. Além de maior integração com o restante do estado, é importante que a Prefeitura do Rio de Janeiro defina seu planejamento e políticas em permanente diálogo com a Câmara Metropolitana e os demais 20 municípios da RMRJ20. Por último, é importante que a Prefeitura do Rio crie uma Secretaria de Planejamento e construa suas prioridades e carteira de projetos com base em uma Sobre o assunto, ver Osorio, 2014 e 2015a. Sobre o assunto, ver Osorio, 2011. 19 Sobre o assunto, ver Osorio et al., 2015b. 20 No momento em que este artigo está sendo escrito, está em discussão na Assembleia Legislativa a criação de uma Agência Metropolitana, com participação do Governo do Estado e dos 21 municípios da RMRJ, o que pode ser importante para a construção e execução de políticas metropolitanas mais integradas. 17 18

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estratégia geral definida em debate com a Câmara de Vereadores e a sociedade e com maior institucionalização do planejamento, por meio de instrumentos como o Plano Diretor. Além disso, entendemos ser fundamental criar um orçamento territorial, que dê maior transparência aos gastos por região da cidade. No que diz respeito à periferia metropolitana, os dados apontados mostram que, apesar das melhorias econômicas que ocorreram no estado do Rio de Janeiro até a crise política e econômica instaurada a partir de 2014 e principalmente de 2015, essa região ainda é dormitório; não apresenta planejamento e políticas urbanas minimamente razoáveis; tem péssimos indicadores sociais e de infraestrutura; e baixa receita pública per capita21. Dessa forma, é importante ampliar o debate sobre o Rio de Janeiro e, particularmente, sobre sua Região Metropolitana e as graves desigualdades intrametropolitanas. Nossa expectativa é que este artigo e livro contribuam para esse debate.

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Tendo em vista a precária estrutura produtiva na periferia metropolitana e a pequena base produtiva para arrecadação de impostos, temos que, por exemplo, enquanto na periferia metropolitana de São Paulo, municípios como São Caetano do Sul e São Bernardo do Campo apresentaram, em 2014, uma receita pública per capita de, respectivamente, R$ 6.832,86 e R$ 3.695,28, Duque de Caxias apresentou uma receita pública per capita de R$ 2.012,51. Outros municípios importantes da periferia metropolitana do Rio de Janeiro, como Nova Iguaçu e São Gonçalo, apresentaram, em 2014, uma receita pública per capita de, respectivamente, R$ 1.258,07 e R$ 896,72, segundo os dados da Secretaria do Tesouro Nacional, do Ministério da Fazenda.

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CAPÍTULO 6 Políticas públicas para uma cidade democrática? O lugar da participação social no Rio de Janeiro1 ALESSANDRA MAIA TERRA DE FARIA2 E TALITA TANSCHEIT3

A

política, em seu formato clássico, aludia à organização da vida na polis, ou seja, a tudo o que fosse caro à cidade: o urbano, o civil, o público, o sociável e o social. A política era constituída por cidadãos livres, interpretada enquanto momento de diálogo e consequente suspensão da violência, e o que forjava o significado comum para a liberdade dos antigos era exatamente a proposta de que se participava em igualdade segundo as leis. As leis, por sua vez, eram compreendidas enquanto produtos de acordos públicos, e a promoção da justiça se legitimava a partir da responsabilidade no seu debate compartido, na sua elaboração e subsequente votação. Foi apenas na modernidade que a política associou-se à nova estrutura do Estado e sua consequente burocratização estendeu-a à escala de massas e conduziu-a, na sequência, a um afastamento do debate público e do conjunto de atividades e interesses sociais presente nas cidades. 1 As autoras agradecem pela generosa leitura e comentários recebidos de Marcelo Burgos sobre o presente texto, que foram de muita valia. 2 Socióloga formada na Uerj, doutora e pesquisadora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professora agregada de teoria política no departamento de graduação em Ciências Sociais da Puc-Rio, e na especialização Lato Sensu de Sociologia Política e Cultura da Puc-Rio. Professora colaboradora no tema de políticas públicas para a Área de Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade, no Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da ENSP / Fiocruz. E-mail: [email protected] 3 Cientista Social formada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É doutoranda em Ciência Política e Mestra em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

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Ainda que este afastamento entre a política e o debate público tenha predominado ao longo da modernidade, conjugado aos processos incessantes de especialização que a ciência moderna inaugurou e aprofundou, a perspectiva clássica da política e dos conteúdos mencionados acima seguiu norteando muitos dentre os contemporâneos, associados aos movimentos e às organizações sociais, com relação à perspectiva de cidade (LEFEBVRE, 1969; MARICATO, 2001; RIBEIRO, 2000) e de uma sociedade democrática. O movimento de expansão da igualdade e seu transbordamento (DINIZ, 1982) acompanhou os movimentos por liberdade civil e pela igualdade na esfera do trabalho, que ao longo dos séculos XIX e XX ampliaram seu significado ao propor a participação e inclusão de novo(a)s sujeito(a)s de direitos, perspectiva em plena expansão, haja vista os debates sobre raça, etnia, gênero, sexualidade e pertencimento na esfera pública, e renovados esforços de compreensão mútua (BOURDIEU, 2012). As leis, de acordo com o acima mencionado, são tão antigas quanto a própria ideia de existência civilizada. Theodore Lowi (1969), conhecido por seus manuais na temática de políticas públicas, argumentava que a perspectiva que entrelaça leis, políticas públicas e participação não foi uma constante no tempo. O autor aponta que a própria menção à política pública enquanto tal apenas teria surgido enquanto expressão - public policy – em inglês4, a partir do século XIX: As políticas públicas não entraram em cena até meados do século XIX, e estavam então distantes das leis ou da legislação. Tanto quanto eu tenha sido capaz de determinar, a sua utilização eventual era mais enquanto um sinônimo para opinião pública ou vontade geral ou de consenso (LOWI, 2003, p. 494, tradução nossa)5.

Foi apenas treze anos após a proposta que apresentava a necessidade de divisão entre políticas de governo e a administração dessas políticas, ideias defendidas pelo então professor e cientista político Woodrow Wilson6, que o significado de política pública foi se transformando paulatinamente de um sinônimo de opinião pública para uma referência a padrões sobre “o que o governo faz”. O Referimo-nos aqui a uma palestra que Lowi proferiu em 2002 como professor sênior na Cornell University. Ver LOWI, 2003. 5 “Public policy did not enter the picture at all until well into the nineteenth century and far from law or legislation. As far as I have been able to determine, its infrequent usage was more in the nature of a soft synonym for public opinion or general will or consensus”. 6 Ele havia retornado da Alemanha após concluir estudos de doutoramento sobre a burocracia e administração prussiana (LOWI, 2003, p. 495). 4

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termo que mais tarde seria traduzido por “politique publique” (THOENIG, 2004; MULLER, 2008) em francês, havia sido cunhado no século XIX, e teria emergido da exata confluência entre a ideia de lei com a ideia de participação, haja vista, no caso norte-americano, a ideia de um sinônimo brando (soft) para opinião pública, vontade geral ou consenso, que teria associado o tema da participação. É possível adicionar à análise de Lowi, que havia ali a intenção do fazer presente a opinião social, a perspectiva de ação do governo. Essa é a origem da famosa alusão a que o modo de fazer importa em políticas públicas, a atenção necessária ao processo em si e a arena de disputa de interesses que se forma ao seu redor. Nesse sentido, se considerado que uma política pública envolve a intervenção de uma autoridade investida de poder público e de legitimidade governamental sobre um domínio específico da sociedade ou do território, de acordo com Thoenig (2004), é fundamental observar a origem da decisão, ou seja, não apenas as situações de intervenção, mas igualmente as situações de não intervenção do poder público constituem decisões políticas. Em especial a nível municipal e local, a análise da decisão e do atuar das prefeituras em relação ao tema da participação é definitiva na forma pela qual a plataforma de políticas públicas promove e adensa a perspectiva participativa na cidade, como este artigo buscará destacar. No Brasil, ao longo dos anos 1990 (GERSHMAN, 2004), um dos princípios organizativos amplamente discutidos por agências nacionais e internacionais envolveu a ideia de participação nos processos de formulação de políticas públicas e a possibilidade de deliberação democrática em escala local. A proposta era incorporar a participação de distintos segmentos sociais e promover uma rede de interações que pudesse elaborar, implementar e avaliar as políticas públicas em funcionamento. É possível afirmar que esta associação foi retomada durante o período da redemocratização e com o estabelecimento da Constituição Federal de 1988 (WERNECK VIANNA, 2004). Construída com a participação de diversos atores políticos e sociais, a Constituição de 1988 destaca-se, neste artigo, por dois de seus aspectos: em primeiro lugar, pelo estabelecimento de direitos sociais relacionados ao acesso aos serviços públicos; e, em segundo lugar, pela consagração de diversos direitos relacionados à participação social. Da confluência destes dois aspectos, teve início uma trajetória de experiências e inovações democráticas, sobretudo em nível municipal, com a introdução e o desenvolvimento de distintas formas de participação social destinadas à garantia de direitos sociais estabelecidos constitucionalmente, em campos variados como moradia, saúde e educação. No Rio de Janeiro, tal confluência esteve repleta de impasses. Dos Conse-

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lhos Governo-Comunidade da gestão de Saturnino Braga (1986-1988)7 ao Lab. Rio da gestão de Eduardo Paes (2009-2016)8, tentativas de afastamento ou de aproximação da política à perspectiva da cidade foram sinais que tomaram direções incongruentes de acordo com propostas dos diferentes prefeitos já eleitos e seus respectivos partidos. Neste artigo, propõe-se uma compreensão atual em relação à construção participativa das políticas públicas na cidade do Rio de Janeiro, visando responder de maneira preliminar à seguinte pergunta: como a prefeitura atual enfatiza ou é aderente a processos públicos que envolvem participação social? Este artigo será organizado em três partes: em primeiro lugar, será estabelecido um diálogo com a teoria especializada, a fim de compreender como a participação insere-se no debate sobre políticas públicas municipais; em segundo lugar, será realizada uma análise descritiva do que é apresentado enquanto possibilidade de participação social municipal pela prefeitura; e, em terceiro lugar, em uma tentativa de qualificar os modos em que a participação toma forma política e gera representação, serão comparadas as iniciativas das prefeituras do Rio de Janeiro e de São Paulo, visando, desta maneira, apontar alguns caminhos interessantes a serem adotados no Rio de Janeiro com vistas à construção de uma cidade democrática.

Como a teoria pode ajudar? A teoria pode ajudar a refletir sobre o assunto, destacando-se as contribuições da teoria democrática relacionadas à participação e à representação. Conceitualmente, quanto à participação, é sabido que ela compreende como significado geral corroborar ações positivas, atos de comunicar, informar, 7 Em meados de 1979 os setores organizados da sociedade – Igreja e associações de moradores diversas começam a postular a participação popular na administração pública e propõem a criação de Conselhos Comunitários por bairros. As administrações regionais funcionariam como órgãos técnicos do poder executivo e a ideia era que se criassem à parte os conselhos e que estes fossem compostos por representantes de associações de moradores, eleitos por voto direto à nível de rua, quarteirão e bairro; a forma da relação com o Estado foi debatida no I Congresso da Famerj. Com a conquista da autonomia pelas capitais em 1985 e a eleição de Saturnino Braga para a prefeitura do Rio de Janeiro, os Conselhos Governo-Comunidade seriam uma conquista do Movimento Comunitário de então. Havia compromissos sobre a participação da comunidade em decisões que afetassem cada bairro, garantias de descentralização do poder, atribuindo às administrações regionais competência decisória local e entrosamento com demais órgão do governo. Pelo Decreto n 5.711 de março de 1986 foram criados os CGC – Conselhos Governo-Comunidade, porém presididos pelo administrador regional das RA ( Regiões Administrativas). Embora dotados de certa autonomia, não conseguiram alcançar o objetivo de serem autônomos sobre ações e orçamento de cada bairro. Ver VIRGENS; SANTOS, 1989. 8 Será apresentado a seguir no texto.

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tomar parte em alguma coisa, ter ou receber algo proveniente de uma divisão qualquer. Esses empregos comuns da participação contemporaneamente a qualificam em sentido amplo (DIANI, 1996); mas, no interior da própria Ciência Política, a expressão participação compreende uma série variada de atividades (SANI, 2010) tais como votar, militar em um partido, participar de manifestações, contribuir para uma agremiação política, discutir temas e acontecimentos, participar de um comício ou de uma reunião de seção, apoiar um candidato ao longo de uma campanha eleitoral, pressionar um dirigente político, difundir informações políticas, dentre outras. A temática da participação no Brasil teve em Leonardo Avritzer uma das principais vertentes de sistematização da discussão relacionada à teoria democrática no que diz respeito ao desenvolvimento de variadas formas de participação social, que o autor irá posteriormente chamar de Instituições Participativas (AVRITZER, 2007). Segundo o autor, a tradição elitista da democracia, hegemônica durante grande parte do século XX, foi contestada a partir dos anos 1970 ao menos em duas direções: a primeira delas por meio do estudo dos chamados novos movimentos sociais na Europa e Estados Unidos, através de teorias como as de Alberto Mellucci (1980), Jean Cohen (1985) e Charles Tilly (1985); e a segunda delas por meio dos estudos sobre a importância da participação e do associativismo na reação aos regimes autoritários e na reconstrução democrática do Leste-Europeu e da América Latina, analisada principalmente por Jean Cohen e Andrew Arato (1992), Jürgen Habermas (1995), Evelina Dagnino (2002) e Sidney Tarrow (2009). No que se refere ao Brasil, Avritzer (2007) irá referenciar-se neste debate para desenvolver o argumento de emergência de uma nova sociedade civil, cuja principal perspectiva envolvia a ideia de reconstituição dos laços sociais entre os pobres. Naquele momento, o envolvimento de setores da classe média conjugava o argumento de que a sociedade civil servia enquanto um divisor de águas do que seriam as ações de um governo autoritário e a possibilidade de oposição política a ele (WEFFORT, 1989). Ainda segundo o autor, vale recuperar a seguinte definição acerca das Instituições Participativas, que corroboram a proposta do presente artigo: “Entendemos por Instituições Participativas formas diferenciadas de incorporação de cidadãos e associações da sociedade civil na deliberação sobre políticas” (AVRITZER, 2015:190). Na medida em que participação e representação são campos próximos, mesmo que não sejam equivalentes (PITKIN e ROSENBLUM, 2015), foi o estudo clássico de Hanna Pitkin (1969) que apresentou o argumento principal de que

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representar é – fazer presente novamente – (make present again9). À representação política caberia o papel de fazer presentes as vozes, as opiniões e as perspectivas dos ausentes no processo de tomada de decisões públicas. A autora chama atenção para as formas em que a representação é pensada, e a partir dos usos observados define quatro tipos principais: a representação formal10(1), a descritiva (2), a simbólica (3) e a substantiva (4). Os desdobramentos dessa tipificação sobre o foco de análise seriam: que o foco pode recair na autorização das instituições e prestações de contas (tipo 1); no representante eleito ser como os representados (tipo 2); no sentido/significação do representante eleito para os representados (tipo 3); e do representante que serve diretamente aos interesses dos representados (tipo 4). A autora não se concentrou no exame das interações entre os tipos propostos, mas é evidente que a representação autorizada por eleições e onde está prevista a prestação de contas, associada ao mandato livre em confiança (em oposição ao delegado), foi a perspectiva amplamente adotada pelos teóricos posteriores sobre o tema. Foi a ideia de representação eleitoral que começou a tomar forma permanente no lento processo de democratização no Brasil, e esteve dentre as demandas principais à época das Diretas Já (FARIA, 2014). Para discutir a participação na cidade do Rio de Janeiro, recuperou-se a perspectiva de que o contexto no qual a representação é proposta seria fundamental para determinar o significado que ela adquire11. O problema é que na representação política como entendida por Pitkin (1967), a autorização eleitoral é considerada como o principal contexto. Esse é o deslocamento com o qual é preciso lidar quando se trata das novas formas de participação que emergiram durante o processo constituinte e se estabeleceram a partir de 1988. Na discussão de Pitkin, os seus tipos e suas análises se baseiam em representantes formais12, ou seja, portadores de mandatos obtidos via sufrágio universal. Se os constituintes possuíram mandatos amparados pelo sufrágio universal, e hoje prefeitos, vereadores e cargos nomeados em confiança seguem amparados na representação formal, os ambientes que envolvem participação social descritos 9 Hanna Fenichel Pitkin, em sua obra seminal The concept of Representation (1967), apresenta uma síntese histórica, política e teórica que buscou equilibrar a discussão sobre a representação política em torno da noção de consciência resgatada de Kant. 10 A alusão à representação formal/representantes formais é traçada a partir do vínculo eleitoral, e toma dessa argumentação suas principais caracterizações e expectativas sobre o papel e atuação do representante. 11 Algo que a partir das teorias de J. L. Austin e WITTGENSTEIN (2005) permite investigar como é empregada a palavra “representação”, sua gramática nos jogos de linguagem, ou investigar como se comparam representações. 12 Sempre que usada a referência aos representantes formais daqui em diante, o argumento de vínculo será o mandato obtido via sufrágio.

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a seguir bebem de outras tradições, como foi o caso das Emendas Populares de lei. Eles contam com o apoio de segmentos variados e organizados, de associações civis e públicas que agregam opiniões e temas comuns. Assim, a perspectiva da participação social envolve uma dinâmica política no interior do próprio processo de gestão pública, que pode envolver em diferentes graus a participação da sociedade. Há os chamados registros de proximidade, como descritos por Pierre Rosanvallon (2008), em que os cidadãos estão cada vez mais sensíveis ao comportamento dos governantes e a possibilidade de proximidade. Estes significam a presença, a empatia, a atenção. Ou seja, há o desafio aos governos que precisam lidar com demandas no sentido de se portarem de forma acessível, receptiva, em situação de escuta. É esperado também que sejam proativos, que aceitem que precisam explicar suas ações e decisões, e evitem atitudes arbitrárias que se prendam apenas ao funcionamento institucional. Há uma expectativa crescente de que as decisões e políticas públicas se façam de forma transparente, com retorno constante à sociedade, cuja opinião se espera que seja tomada em consideração inclusive em situações pontuais, que atingem determinados grupos. De tal compreensão segue que representantes da sociedade civil mobilizada, de entidades públicas e profissionais não arbitrados normativamente pelo sufrágio, no sentido tradicional, façam parte dos debates públicos. É possível sugerir que tal estratégia com frequência é articulada inclusive pelos governos, no sentido de mediar e legitimar as suas ações, visto que estratégias existem e são articuladas por todos os atores envolvidos na decisão pública. Decerto, porém, sua trajetória inicial esteve relacionada à sensação de insuficiência percebida pela sociedade, no que se refere à prestação de contas e legitimidade, e justificava a participação social como estratégia de promoção de mudanças efetivas13. É a partir destes referenciais teóricos que será analisada a participação social no Rio de Janeiro.

A participação social no Rio de Janeiro A Prefeitura do Rio de Janeiro apresenta, na página principal de seu portal na internet14, duas iniciativas de participação cidadã: o Conselho da Cidade e o 13 Tais divergências são consideradas por Pitkin como uma tensão interna ao conceito de representação, devido a uma dualidade entre ideal e efetivação. “O conceito de representação é uma tensão contínua entre o ideal e a efetivação” (PITKIN, 1967, p. 240, tradução nossa). Do original: “The concept of representation thus is a continuing tension between ideal and achievement”. 14 http://www.rio.rj.gov.br. Acesso em 10/02/2016.

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Lab.Rio, que será destacado neste artigo, por ser a principal iniciativa apresentada pela Prefeitura e que mais se aproxima a uma iniciativa voltada para o desenvolvimento de experiências de deliberação e de participação cidadã15. O Conselho da Cidade16, a ser brevemente explicado, é um fórum consultivo da Prefeitura do Rio de Janeiro, e tem como objetivo auxiliar no acompanhamento do Plano Estratégico. Segundo o seu portal na internet, os 217 conselheiros e conselheiras são pessoas de “destacada posição na sociedade, seja por seu conhecimento das questões de nosso município, seja por contribuição pessoal ou profissional para a evolução de nossa cidade”. Criado em 2009, o Plano Estratégico é responsável por definir as metas setoriais e as medidas estratégicas da gestão pública municipal. Em sua segunda edição, a Prefeitura afirma que, para a aprovação do Plano Estratégico 2013-2016, foram realizadas diversas oficinas de trabalho com o Conselho da Cidade, o prefeito Eduardo Paes, os secretários e as secretárias municipais e a Unidade Estratégica da Casa Civil17, além de uma pesquisa popular destinada a recolher informações com cerca de 1.000 moradores da cidade do Rio de Janeiro (Plano Estratégico 2013-2016, 2013). A principal iniciativa recente de participação cidadã da Prefeitura é, contudo, o Lab.Rio18, apresentado em seu portal da internet da seguinte maneira: É o laboratório de participação da Prefeitura do Rio, criado para aproximar o poder público dos cidadãos e cidadãs cariocas. Entendemos que a cidade pode e deve ser uma construção coletiva e colaborativa. Por isso, criamos experiências digitais e presenciais de engajamento e participação cidadã na gestão municipal.

Criado em dezembro de 2014, o Lab.Rio propõe-se a atender uma demanda por participação identificada nas manifestações ocorridas em junho de 2013, 15 São apresentadas também três iniciativas, que se não de participação, tem como objetivo aproximar a população da Prefeitura: o Data.Rio, portal de dados abertos da prefeitura do Rio; o Rio Sempre Presente, que funciona como uma ouvidoria e em que é possível enviar dúvidas, sugestões, críticas e elogios à Prefeitura; e o Rio Transparente, o portal de transparência da Prefeitura. 16 http://www.conselhodacidade.com. Acesso em 11/02/2016. 17 A estratégia de enfoque em favor do Plano Estratégico que inclusive pode ser encomendado para consultorias privadas resultou em um total processo de esvaziamento na cidade das propostas de discussão sobre o Plano Diretor, que estariam em consonância com a proposta da Constituição de 1988 e os seus desdobramentos sobre o direito à cidade e que foram interrompidas no caso da cidade do Rio de Janeiro e adotadas no sentido de privatizar e terceirizar a estratégia pública. 18 http://www.labrio.cc/. Acesso em 11/02/2016.

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tendo como objetivo experimentar novas formas de participação que incluam a população no planejamento e no trabalho das Secretarias e dos Órgãos Administrativos da Prefeitura. O Lab.Rio congrega, atualmente, cinco iniciativas de participação cidadã: o Desafio Ágora Rio, o Imersão, o Conselho da Juventude da Cidade, o Mapeando e o Chega Junto. O Desafio Ágora Rio19 foi a primeira iniciativa lançada pela Prefeitura, em setembro de 2014, sendo responsável por dar origem ao Lab.Rio. Funcionando em ciclos temáticos, a iniciativa tem como objetivo que a população debata com as Secretarias e demais órgãos municipais um determinado tema da gestão municipal previamente selecionado pela Prefeitura. Dois ciclos temáticos foram realizados até agora: o primeiro, realizado em setembro de 2014, destinado a debater “O Legado Olímpico”, e o segundo, realizado em janeiro de 2015, destinado a debater a “Mobilidade Urbana”. Nos ciclos temáticos do Desafio Ágora Rio, os participantes realizam propostas e debatem com outros participantes através da página na internet e comparecem a encontros presenciais em diferentes Áreas de Planejamento da cidade com representantes da Prefeitura. Depois de cada ciclo temático é produzido um relatório final com as principais contribuições dos participantes e em que a Prefeitura deve justificar, dentro de dez dias e por videoconferência, a incorporação ou não das propostas às políticas públicas da gestão municipal. O Imersão20 foi lançado em janeiro de 2015, e consiste na realização, por parte de um determinado órgão municipal, de apresentações e debates com um determinado grupo pré-selecionado de participantes. Os/as participantes que tenham interesse devem preencher uma ficha de inscrição, escolhendo alguns temas e respondendo à pergunta “Qual o seu interesse em participar do projeto?”. A seleção é realizada respondendo a critérios de idade, área de residência e de gênero, bem como de acordo com os temas selecionados e a resposta dada à pergunta realizada. Em cada Imersão são abordados quatro temas da gestão municipal: Planejamento e Gestão e outros três temas escolhidos de acordo com o interesse dos/das participantes selecionados/as. O Conselho de Juventude da Cidade21 entrou em vigência em setembro de 2015 e é um fórum consultivo da Prefeitura cujo objetivo é fomentar a participação da juventude na gestão pública municipal e acompanhar e fiscalizar o Planejamento Estratégico 2013-2016, bem como participar do processo do Plahttps://desafioagorario.crowdicity.com. Acesso em 11/02/2016. http://www.labrio.cc/imersao.html. Acesso em 11/02/2016. 21 http://conselhodajuventude.com. Acesso em 11/02/2016. 19 20

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nejamento Estratégico 2017-2020. Segundo o seu portal na internet, o Conselho tem como objetivo ser “um espaço de diversidade, multiplicidade de projetos, pensamentos e vivências, de construção coletiva e compartilhada, gestão e produção horizontal e uma rede de troca de experiências e conhecimentos”. Os conselheiros e as conselheiras possuem um ano de mandato, e a sua seleção ocorreu em duas fases, respeitando critérios de gênero: a primeira, de inscrição através da internet, em que as candidaturas foram apresentadas e votadas virtualmente, de acordo com as propostas que apresentaram para a cidade; e a segunda fase, em que 50 instituições – 25 órgãos municipais e 25 organizações da sociedade civil – foram responsáveis por escolher 100 das candidaturas apresentadas. A composição final do Conselho foi correspondente às 50 candidaturas mais votadas virtualmente e às 50 candidaturas com maior respaldo pelas instituições, garantindo que, em caso de sobreposição, cada fase selecionou o mesmo número de jovens para o Conselho. Cabe destacar que jovens residentes em outra cidade, mas que estudam e/ou trabalham na cidade do Rio de Janeiro, puderam candidatar-se. Por fim, observa-se que cada conselheiro e conselheira deve cumprir a carga-horário mínima de quatro horas semanais, recebendo uma bolsa auxílio de R$200,00 por mês. O Mapeando22 é uma plataforma colaborativa da Prefeitura desenvolvida pelo Lab.Rio, e consiste em um mapa em que os cidadãos e as cidadãs podem indicar problemas ou demandas relacionados aos serviços públicos municipais. A iniciativa tem como objetivo reportar os problemas e as demandas identificados para que sejam resolvidos individualmente e considerados coletivamente nas políticas públicas da prefeitura. A plataforma é aberta a qualquer pessoa, sendo necessário apenas um e-mail válido para o cadastro e a participação, e não há prazos para a indicação de problemas ou demandas. O Chega Junto23 é uma iniciativa direcionada às crianças e adolescentes, e tem como objetivo proporcionar-lhes experiências na Prefeitura. A iniciativa tem como objetivo fortalecer o Artigo 12 da Convenção Sobre os Direitos da Criança – em que as opiniões das crianças devem ser ouvidas nos processos administrativos que lhes dizem respeito. A iniciativa ocorre em duas etapas: na primeira, as crianças e adolescentes realizam atividades pedagógicas e lúdicas relacionadas à formulação de projetos para a cidade do Rio; na segunda, as crianças e adolescentes criam um projeto sobre o que consideram mais importante para a gestão pública municipal, apresentando-o às Secretarias, que deverão comentar os pro22 23

http://mapeando.rio.gov.br. Acesso em 11/02/2016. http://www.labrio.cc/chegajunto.html. Acesso em 11/02/2016.

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jetos apresentados. Espera-se, desta maneira, que os efeitos desta participação sejam levados pelas crianças aos seus espaços de convivência e pelos integrantes da prefeitura em todos os órgãos municipais. Este conjunto de iniciativas pode ser agrupado da seguinte maneira: 1) em um primeiro grupo, as iniciativas em que prevalece o elemento da participação social, composto pelo Desafio Ágora Rio e Pelo Projeto Imersão; 2) em um segundo grupo, as iniciativas em que prevalece o elemento da representação política, composto pelos Conselhos da Cidade e o Conselho de Juventude da Cidade; 3) e em um terceiro grupo, composto por iniciativas inovadoras e de caráter experimental, composto pelo Mapeando, voltado para a inovação digital, e pelo Chega Junto, voltado para a educação para a participação na gestão pública de crianças e adolescentes. Destacando-se os dois primeiros grupos, deve-se analisar a forma pela qual a participação e a representação se relacionam com estas iniciativas, bem como a sua relação com o ciclo de políticas públicas da cidade. Em relação ao primeiro grupo, a participação social se faz presente apenas em um nível consultivo: as iniciativas são voltadas, sobretudo, para o debate público sobre um tema previamente selecionado pela Prefeitura, em que esta tanto sistematiza as contribuições apresentadas durante o debate quando decide, ao fim, se irá inserir ou não estas opiniões nas políticas públicas da gestão municipal. Em relação ao segundo grupo, a representação é ativada de duas maneiras diferentes: ao passo que no Conselho da Cidade não há eleição, e os e as representantes são indicados e indicadas pela Prefeitura, o Conselho de Juventude da Cidade possui eleições e regras eleitorais transparentes. Ainda assim, ambos os Conselhos, que são destinados ao debate sobre a cidade, são iniciativas de representação voltadas apenas para a consulta em relação ao Plano Estratégico da Prefeitura. As iniciativas de ambos os grupos, apesar de se apresentarem como iniciativas de participação social, não possuem o objetivo de envolvimento da população no ciclo de políticas públicas – de definição de agenda, confecção, implementação e avaliação – da cidade do Rio de Janeiro. Nesse sentido, alguns pontos da reflexão teórica podem ajudar na análise dos processos promovidos tendo em vista a participação. A perspectiva de interseção entre lei e participação, no sentido apontado a partir de Lowi (2003) e discutido anteriormente, fica prejudicado. Estas iniciativas possuem, assim, dois papéis principais: em primeiro lugar, um papel de ouvidoria, uma vez que apenas a escuta se faz presente; e em segundo lugar, o papel de legitimar, através destas iniciativas, as políticas e os planos que já estão em desenvolvimento pela Prefeitura. Se a escuta, em certo sentido, contempla a proposta de Rosanvallon (2008), ela não suplanta seu momento inicial, refluindo e desgastando a proposta de

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constituição de uma proximidade proveitosa do ponto de vista da legitimidade. Ela nem mesmo aprofunda o sentido da representação como ressaltado por Pitkin (1967), na medida em que o – tornar presente os ausentes – não se institui em opiniões, legislações e ações do executivo que coincidam com as propostas debatidas nessas arenas de participação. Assim, além de subvalorizar iniciativas de participação social consagradas nacionalmente pela sua capacidade de inserção no ciclo de políticas públicas, tais como os Conselhos Gestores de Políticas Públicas – como o Conselho da Cidade –, estas iniciativas estão alheias à principal política pública municipal na qual a participação social é prevista: os Planos Diretores Estratégicos (PDE). A seguir, será discutida a apresentação do Processo Participativo de Revisão do PDE da cidade de São Paulo, como um exemplo de articulação de direitos de participação social consagrados pela Constituição de 1988, com novas iniciativas cujo objetivo é inserir a população de forma substantiva nos ciclos de políticas públicas relacionados ao PDE.

Contribuições da experiência de participação de São Paulo à cidade do Rio de Janeiro Estabelecido pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/200124), responsável por regulamentar o capítulo “Política Urbana” da Constituição Federal de 1988, o Plano Diretor Estratégico (PDE) é o “instrumento básico de desenvolvimento da política e de expansão urbana”, e é obrigatório para municípios com mais de 20.000 habitantes, que sejam “área de especial interesse turístico”, em que existam atividades de significativo impacto ambiental ou em áreas que queiram utilizar de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios de imóvel. Acompanhado pelo Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU) e pelo Conselho da Cidade de São Paulo (ConCidade), o Processo de Revisão Participativa é a principal iniciativa de participação social apresentada pela Prefeitura de São Paulo25, e consistiu em três etapas. Em primeiro lugar, o PDE de 2002 foi avaliado em diversas reuniões temáticas e na 6ª Conferência Municipal da Cidade de São Paulo, em que 9.000 pessoas estiveram presentes. Em segundo lugar, visando elaborar a Minuta do Projeto de Lei do PDE, foram realizados diálogos participativos nas 32 Subprefeituras ao mesmo tempo em que foi criado o Mapa 24 25

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em 24/02/2016. http://www.capital.sp.gov.br/. Acesso em 02/05/2016.

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Colaborativo, através do site Gestão Urbana26, em que foi possível realizar sugestões em relação a localidades específicas da cidade. E, em terceiro lugar, foram realizadas reuniões macrorregionais, audiências públicas e outros encontros para a discussão da Minuta do Projeto de Lei do PDE, que resultou no PL 688/2013, encaminhado à Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) em 26 de setembro de 2013. Ao longo de um ano e meio, foram realizados 114 encontros, com mais de 25.000 participantes e 10.000 contribuições. A CMSP, por sua vez, realizou Audiências Públicas nas Subprefeituras e outros debates temáticos e macrorregionais, aprovando por unanimidade um Substitutivo ao PL. Este Substitutivo, todavia, recebeu 363 emendas, resultando em um segundo Substitutivo do PL, que recebeu 117 emendas, sendo aprovado definitivamente em 30 de junho de 2014 e sancionado pelo prefeito Fernando Haddad em 31 de julho de 2014. O PDE aprovado possui os seguintes eixos principais: socialização dos ganhos da produção da cidade; direito à moradia digna para quem precisa; melhoria da mobilidade urbana; qualificação da vida urbana nos bairros; orientação do crescimento da cidade nas proximidades do transporte público; reorganização das dinâmicas metropolitanas; promoção do desenvolvimento econômico da cidade; incorporação da agenda ambiental ao desenvolvimento da cidade; preservação do patrimônio e valorização das iniciativas culturais; e promoção da participação popular nas decisões dos rumos da cidade. Nesse sentido, a coincidência entre proposta participativa e atividade legislativa que concerne à Prefeitura, de acordo com o analisado a partir de Lowi (2003), apresenta características mais fortes de coincidência e interseção. Destaca-se, no eixo da promoção da participação, a definição dos seguintes mecanismos: o Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), composto paritariamente pelo Poder Público e pela sociedade civil; a Conferência Municipal da Cidade de São Paulo, a ser realizada a cada três anos; o Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), eleito de forma direta; a Câmara Técnica de Legislação Urbanística (CTLU) e a Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU), além dos Conselhos Participativos Municipais, destinados a debater a cidade em suas localidades, em conjunto com as subprefeituras. Além destas formas de participação, o PDE prevê, também, a realização de Audiências Públicas, iniciativas populares de projetos de desenvolvimento urbano, de lei, plebiscitos e referendos.

26

http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br. Acesso em 24/02/2016.

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Após a aprovação do PDE de São Paulo, foi criado o “observaSP”27, observatório ligado ao projeto de pesquisa “Estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística voltados à implementação do direito à moradia e à cidade no Brasil”, desenvolvido em São Paulo pelo Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, e coordenado pelas Professoras Doutoras Paula Santoro e Raquel Rolnik. O observatório tem como objetivo acompanhar a implementação do PDE, promovendo debates públicos e construindo propostas relacionadas à garantia das diretrizes estabelecidas pelo PDE. Sabe-se que a interseção entre academia e propostas de reformas urbanas faz parte de uma tradição com algum êxito no Brasil, como é o caso da reforma sanitária e das emendas populares de lei (GERSHMAN, 2004; FARIA, 2014). Tal exemplo do PDE em São Paulo pode ser elencado à semelhança de tal tradição. No Rio de Janeiro, eventos como o da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (SALAZAR ET AL, 2014) mostram a organização de setores da academia - com destaque para o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) que atuam em interseção em sentido similar com setores organizados da sociedade, enfatizando a perspectiva de autogestão da cidade. As diferenças entre o Rio de Janeiro e São Paulo podem ser observadas a partir das menções aos entraves ao direito à cidade no primeiro caso, diagnosticados em especial no que diz respeito à esfera das políticas públicas e sua organização atual, que em muito difere do PDE, como discutido na seção anterior. O Processo de Revisão Participativa do PDE destaca-se, em relação à participação e à representação e a sua articulação às políticas públicas, em dois aspectos: pela confecção participativa do PDE, em que a atuação dos movimentos sociais e da universidade em conjunto com a Prefeitura foi fundamental e gerou um plano que contempla bandeiras dos movimentos sociais, tais como as do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. Também pode-se destacar, enquanto um adensamento da participação, a inclusão da expertise da universidade que impactou todo o processo. Houve ainda a valorização dos Conselhos e das Audiências Públicas na revisão participativa do PDE, possibilitando que estes sejam também mecanismos de participação – as chamadas Instituições Participativas – integrantes do novo PDE aprovado. Desta maneira, as possibilidades de participação no PDE não se encerraram com a sua sanção, mas caracterizam-se enquanto um processo contínuo em que a participação social é imprescindível para as políticas públicas a serem definidas, confeccionadas, implementadas e avaliadas na cidade de São Paulo. 27

https://observasp.wordpress.com. Acesso em 24/02/2016.

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Conclusão Este artigo possuiu dois objetivos: em primeiro lugar, o de responder à sua pergunta inicial, sobre como a Prefeitura do Rio de Janeiro enfatiza ou é aderente a processos públicos que envolvem participação social; e em segundo lugar, o de realizar algumas contribuições à participação social na cidade do Rio de Janeiro, referenciando-se na experiência de Revisão Participativa do PDE de São Paulo enquanto uma experiência interessante de inserção, de fato, da participação social nos ciclos de políticas públicas do município. No caso do Rio de Janeiro, as iniciativas de participação social priorizadas pela Prefeitura, além de se distanciarem das Instituições Participativas e aproximarem-se de formas variadas de Ouvidorias, são desenvolvidas sem uma interação entre a prefeitura e atores sociais da cidade, parecendo-se mais como uma estratégia da Prefeitura para legitimar, discursivamente, as suas políticas e os seus planos. O Conselho da Cidade, por exemplo, que poderia ser um espaço de representação e de participação com vistas a uma gestão democrática, assemelha-se mais a um Conselho dos Notáveis, estabelecido sem qualquer tipo de consulta à população e sem nenhum poder de decisão. Os experimentos participativos, tais como o Desafio Ágora Rio, realizam debates pontuais e sobre planos já em desenvolvimento pela Prefeitura. Neste sentido, a política se afasta do seu sentido clássico e do debate público estabelecido na cidade, permeado, ainda que com tensões, pela proximidade à burocracia da gestão municipal, onde processos públicos que envolvem participação social são vistos não como constitutivos, mas como legitimadores de um plano ou de uma política já estabelecida. Realizadas estas considerações, as iniciativas de participação social desenvolvidas em São Paulo chamam a atenção, na medida em que realocam a política no debate público sobre a cidade, em que a participação social apresenta-se enquanto constitutiva dos planos e das políticas públicas, e conjugada aos Poderes Executivo e Legislativo na cidade, uma vez que o Poder Executivo envia o PDE à Câmara – ao Poder Legislativo – que deverá, por sua vez, aprová-lo ou não. Assim, Instituições Participativas conjugam-se às Instituições Representativas, possibilitando não apenas a participação da população na revisão do PDE, mas que a participação social integre a gestão pública municipal. Longe de estabelecer, a partir da experiência de São Paulo, uma espécie de paradigma ou modelo, este artigo buscou tão somente realizar algumas contribuições e destacar processos de fruição nos procedimentos decisórios para o debate sobre o lugar da participação social nas políticas públicas municipais. A partir da comparação

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entre os casos carioca e paulistano, o segundo aparenta obter maior êxito nas práticas adotadas do ponto de vista participativo, em especial no tocante aos movimentos sociais, sua interface com a academia e com os Poderes Executivo e Legislativo municipais. Tal processo poderia vir a referenciar a Prefeitura do Rio de Janeiro, caso a intenção futura, que é fator decisivo do ponto de vista da promoção da inovação em termos de política pública, considere que a participação social esteja de fato no centro do debate sobre planos e estratégias públicas da cidade, com vistas a construir uma gestão pública e uma cidade mais democrática para todos e todas que nela convivem.

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CAPÍTULO 7 Políticas para mulheres

ANA CAROLINA RADD1 E YASMIN CURZI2

A

conquista de direitos sociais e políticos pelas mulheres no Brasil foi fruto de lutas políticas feministas principalmente no início do século XX, apesar de as mulheres já se organizarem desde muito antes na América Latina. Pode-se dizer que durante muito tempo a desigualdade entre os sexos e a luta pelo direito das mulheres foram pautas de discussões específicas dos movimentos feministas. A partir da década de 1980, este tema passou a fazer parte dos objetos de estudo nas universidades de todo o mundo. Após anos de repressão social as mulheres tornaram-se protagonistas e hoje são as atrizes principais da nova recomposição do mundo, conforme descrito por Touraine em O Mundo das Mulheres. Nessa perspectiva, o fortalecimento das condições de vida das mulheres é crucial para o desenvolvimento do país. Segundo Kergoat, o período de 1970 a 2010 foi de mudanças gigantescas. Foi uma temporalidade de lutas, assim como uma temporalidade social, política e econômica: o casamento e a família, o assalariamento das mulheres, a sexualidade, a contracepção, e também a evolução das forças produtivas (peso relativo dos setores primário, secundário e terciário), a evolução do trabalho em suas dimensões técnicas, organizacionais e hierárquicas e a evolução relacionada ao trabalho, à informatização (2014, p. 12).

1 2

Ana Carolina Radd é mestra em Sociologia pela UFF e doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Yasmin Curzi é mestranda em Ciências Sociais pela PUC-Rio.

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Foi sobretudo no século XX que as mulheres brasileiras passaram a ter reconhecidos os direitos ao voto, ao divórcio, à educação formal, à propriedade e herança, entre outros. A partir da década de 1990, as mulheres passaram a ocupar novas arenas não mais como movimento social de mulheres, mas como movimento feminista (GHON, 2007). Como muitas das feministas se encontravam também no campo acadêmico, a categoria mulher passa a ser objeto de estudo de várias pesquisadoras e pesquisadores, conduzindo as pesquisas a um rumo diferente, o que acabou por interferir de alguma forma na formulação de políticas públicas. Segundo Ghon (2007), atualmente as mulheres se apresentam como maioria dos movimentos sociais organizados em diferentes mobilizações. No entanto, existe uma invisibilidade da atuação feminina. De acordo com a pesquisadora, a categoria “mulher”, vem formando movimentos sociais para libertarem-se e assim vem também surgindo uma nova configuração social e as mulheres se tornando as protagonistas da sociedade atual. A entrada cada vez mais massiva das mulheres no mercado de trabalho bem como o efeito das políticas distributivas ampliaram a autonomia econômica das mulheres. Na última década ocorreu uma alteração significativa do lugar que as mulheres ocupam na sociedade, fato este que reposicionou a categoria mulher nas políticas públicas no Brasil e no mundo. Entretanto, na sociedade brasileira destacaram-se nos últimos anos algumas questões que limitam o avanço no que tange aos direitos das mulheres, como o aumento de movimentos conservadores no âmbito legislativo e na sociedade civil, a persistente desigualdade de classe, raça e gênero, a violência de gênero e a mercantilização3 do corpo das mulheres. Segundo dados do IBGE4, as mulheres conformam a maioria do povo brasileiro. O número de mulheres economicamente ativas no Brasil aumentou de forma extraordinária, passando de 13,6% em 1950 para 48,9% em 2010, enquanto o hiato entre os gêneros encontra-se em decréscimo. De acordo com o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, (2013, p. 1) “as mulheres são a principal força por detrás do crescimento da força de trabalho”. Na faixa de mais de 11 anos de estudo, elas são a maioria da população economicamente ativa. No entanto, as mulheres continuam com menor inserção no mercado formal e maior presença no trabalho doméstico não remunerado. Isso significa que, mesmo com mais anos de estudos e maior capacitação, persiste a desigualdade sexual WALLERSTEIN, Immanuel. “A mercantilização de tudo” in: “Capitalismo histórico e Civilização capitalista” (1995). Dados da última Pesquisa Nacional por amostra de Domicílio, divulgada pelo IBGE em 2013, apontam que as mulheres compõem 51,4% da população brasileira, cerca de 103,5 milhões. 3 4

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no mercado de trabalho. Segundo Laís Abramo (2000, p. 115), as mulheres ocupam os postos de trabalho mais precários, recebem salários mais baixos em relação aos homens, mesmo desempenhando a mesma função5, encontram maiores limitações para acesso a postos elevados nas hierarquias ocupacionais, e ainda acumulam jornadas de trabalho, por serem as principais responsáveis pelo trabalho doméstico. Se por um lado ocorreu um aumento quantitativo e uma mudança no modelo de participação laboral feminina a partir da década de 19906, o patriarcado, entendido como sistema de dominação masculina, não permitiu que se alterasse a estrutura social das formas de divisão sexual do trabalho, perpetuando a violência cotidiana contra as mulheres. Carole Pateman, em sua obra O contrato sexual (1993), sustenta que a desigualdade entre os sexos foi e é um produto da forma especial como se deu e se dá a organização das estruturas e instituições patriarcais na modernidade. De acordo com Paradis (apud PARADIS, 2014, p. 56), essa divisão sexual do trabalho delimitou e continua delimitando os dois âmbitos da modernidade: o público, dos cidadãos e trabalhadores, e o doméstico, espaço proeminente de subordinação das mulheres. Nessa divisão, as mulheres foram concebidas como seres “mais naturais e menos racionais” do que os homens, sendo incapazes de controlar suas emoções e sem capacidade de chegar à “imparcialidade” necessária ao âmbito público e político. Segundo Kergoat, “as mulheres são socializadas para acreditar que suas qualificações e suas competências (destreza, habilidade, competência em matéria de cuidar...) são fatos da natureza, e não da cultura” (2014, p. 15). Assim, as mulheres passaram a ser associadas ao amor, ao cuidado, à submissão, sendo historicamente privadas de participação pública, sendo competência dela a esfera privada; ou seja, a família e a vida doméstica. Por outro lado, o mundo público é associado à cidadania, à liberdade, aos direitos, à propriedade e, portanto, aos homens que interagem como cidadãos iguais. A despeito de as mulheres transitarem entre as esferas pública e privada na modernidade, sua inserção em ambas continua a ser marcada pela lógica liberal de separação e hierarquização. Nesse sentido, para a construção efetiva de uma sociedade democrática, é necessário conceber a igualdade entre os sexos como um princípio e um objetivo político, o que vai muito além da igualdade formal e normativa, que se restringe à “igualdade de todos perante a lei”. Ainda que para a conquista da igualdade formal tenha 5 Mesmo com maior nível educacional, os salários femininos continuam sendo significativamente inferiores aos dos homens, e a diferença aumenta quanto maior o nível educacional, ou seja, quanto maior o nível educacional maior a diferença salarial. (ABRAMO, 2000, p. 116). 6 As mulheres hoje possuem mais tempo de estudos e é a maioria do corpo discente das universidades. Aumentou também o número de famílias chefiadas por mulheres.

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havido e ainda é necessário haver muita luta, muitas vezes ela se restringe apenas ao ordenamento jurídico. A luta pela igualdade material deve orientar-se pela identificação de que a opressão das mulheres se estrutura em um sistema que tem como base a mercantilização do corpo feminino e a organização desigual do trabalho. Importante ainda considerar que as garantias normativas conquistadas pelas mulheres não são lineares, nem definitivas. No Brasil, por exemplo, ainda temos o desafio de garantir o direito de decisão sobre a maternidade e temos acompanhado nos últimos anos diversas tentativas de retrocesso em relação ao direito ao aborto legal, o qual em diversas democracias consolidadas é entendido como um direito fundamental7. Devido à questão da transversalidade e diversas outras formas de opressões, também é necessário ressaltar que os direitos não são conquistados por todas as mulheres de forma equitativa, nem são usufruídos da mesma maneira por todas as mulheres. Ao se falar em mulheres, fala-se de diversidade de mulheres – negras, brancas, heterossexuais, lésbicas, trabalhadoras rurais e urbanas, jovens e não jovens etc. Ressaltase, então, que esses marcadores de diferenças influenciam o modo como cada mulher se situa na trama social, refletindo as oportunidades e desigualdades vividas por elas. Portanto, conforme nos indica Godinho (2007), falar de políticas públicas para as mulheres, em uma perspectiva feminista, é falar de políticas que incidam sobre as desigualdades de gênero e suas transversalidades (classe, raça, sexualidade etc.), as quais possuem raízes profundas na divisão entre os âmbitos público e privado na sociedade e na construção da cidadania das mulheres. Como consequência há a necessidade de que as políticas públicas venham a conceber as mulheres para além de um público-alvo universal, mas como sujeitos ativos na transformação dessas desigualdades. Segundo Paradis (2014, p. 56), cabe aos movimentos e organizações feministas reivindicarem políticas públicas que atendam as mulheres. É necessário que sua implementação no âmbito do Estado seja parte de um reconhecimento das mulheres na condição de sujeitos sociais e políticos e de fortalecimento de uma visão das relações de gênero que revele a hierarquia e a subordinação às quais as mulheres estão submetidas. Nesse sentido, Alvarez (1990) reforça que as mulheres devem ser vistas como sujeitos ativos na elaboração de políticas estatais. Assim, a relação entre movimento de mulheres e Estado deve ocorrer de forma dinâmica e dialética. Para a autora, a incorporação das demandas das mulheres organizadas no Estado é um processo complexo uma vez que essas demandas nem sempre geV. Garrow, David J. Liberty and sexuality: The right to privacy and the making of Roe v. Wade. Open Road Media, 2015. 7

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ram os resultados esperados pelas próprias demandantes. Muitas vezes, o Estado subverte a pauta dos movimentos sociais e incorpora a violência contra a mulher, por exemplo, como violência familiar, centrando o problema na família e não nas estruturas patriarcais e nas desigualdades entre homens e mulheres (Alvarez, 2000), ou quando busca combater o assédio contra as mulheres no espaço público, por meio de segregação, como ocorre com a criação do vagão específico para mulheres no serviço metroviário carioca. Destaca-se, portanto, nesse momento, a importância dos processos de monitoramento e controle social das políticas, a fim de assegurar seu conteúdo transformador, garantindo as mudanças estruturais da sociedade pela conscientização. No escopo das novas políticas sociais implementadas a partir dos anos 1990 e aprofundadas no contexto dos governos progressistas na América Latina, o tema das políticas para mulheres tem ganhado espaço no debate público. No entanto, autoras como Bila Sorj (2011) identificam nas políticas públicas para mulheres um retorno ou aprofundamento do maternalismo, ou ambos. Segundo Paradis, as mulheres funcionariam como intermediárias entre Estado e família, gerando uma expectativa social em relação a elas como altruístas, cuidadoras, moralizadoras, reforçando os papéis tradicionais de gênero e contribuindo para cristalizar a associação entre maternidade e cidadania entre as mulheres (2014, p. 62).

Dessa forma, tais políticas, elaboradas de forma verticalizada e sem participação de seu público alvo fundamental, têm como consequência primordial o reforço dos estereótipos de gênero.

Cidades seguras para mulheres e meninas Diante deste panorama, uma nova pergunta tem ecoado nos debates dos últimos anos acerca do direito à cidade: é possível construir cidades seguras para as mulheres e meninas? Baseando-se em pesquisas acadêmicas, insights provenientes de estudos de campo e o acompanhamento das atividades realizadas pelo

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grupo Jagori8 na Índia, a UN Women South Asia procurou responder a essa questão no guia Building Safe and Inclusive Cities for Women: a practical guide, publicado em 2011. O debate sobre a violência contra mulheres e meninas tem feito parte do movimento feminista desde sua origem. Alguns avanços foram obtidos ao longo das duas últimas décadas nessa seara, como a aprovação em 1993 da Declaração para a Eliminação da Violência contra as Mulheres9 pelas Nações Unidas e, mais especificamente no Brasil, a promulgação da Lei “Maria da Penha”10 em 2006 e as recentes alterações do Código Penal, em 2009, sobre os crimes contra a dignidade sexual11,e em 201512 incluindo o feminicídio como modalidade qualificadora do crime de homicídio. O Dossiê Mulher publicado em 2015 reúne informações sobre o panorama da violência contra a mulher no estado do Rio de Janeiro durante o ano de 2014, com base nas ocorrências registradas nas delegacias policiais fluminenses. Apesar da Lei n° 12.015/09 ter ampliado a abrangência do crime de estupro, incluindo também os homens como sujeitos do tipo penal, as mulheres permanecem como as principais vítimas desse tipo de violência sexual. Elas também predominam como vítimas de outros delitos, como ameaças e lesões corporais, tendo como prováveis agressores seus companheiros ou pessoas do seu convívio familiar. Segundo dados do Departamento Geral de Tecnologia da Informação e Telecomunicações (DGTIT) da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) com relação à Violência Física no Estado do Rio de Janeiro, 64% das vítimas de Lesão Corporal

O coletivo Jagori, que significa “Acorde, mulher!”, tem como proposta levar a consciência feminista à mulheres marginalizadas em áreas rurais e urbanas da Índia. O grupo atua comungando a teoria e a prática feminista ao produzir workshops de capacitação, campanhas para a sociedade civil em geral, instruções sobre violência contra as mulheres para jovens mulheres e homens, acompanhamento de organizações que atuam com minorias marginalizadas, além de intervir em situações de violência, acompanhando mulheres a delegacias, garantindo suporte físico-emocional e instruindo-as legal e juridicamente. No âmbito político em sentido estrito, o grupo também atua como advocacy para formulação e implementação de políticas públicas de segurança voltadas às mulheres. 9 “Artigo Primeiro: Para os propósitos dessa Declaração, o termo “violência contra mulheres” significa qualquer ato baseado em gênero que resulte em, ou possivelmente resulte em agressão física, sexual ou psicológica, ou em sofrimento para mulheres, incluindo ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade, seja acontecendo em público, ou na vida privada. (Tradução livre) 10 Assim ficou conhecida a Lei 11.340/2006, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica contra a mulher. 11 Promulgação da Lei nº 12.015/2009, que dentre outras mudanças, revogou o tipo penal “Atentado violento ao pudor”, previsto no artigo 214 do Código Penal Brasileiro, e alterou a redação do artigo 213 do CP, que passou a incluir no rol das condutas previstas como estupro aquela que anteriormente era definida como atentado violento ao pudor, destacando-se que, a partir de então, tanto homens quanto mulheres podem ser vítimas de estupro (Fonte: ISP. Dossiê Mulher. 2015. p.6). 12 Com a Lei 13.104/2015, foram acrescentados ao artigo 121 do Código Penal de 2003 os incisos VI e o parágrafo 2-A, estabelecendo aumento de pena para o assassinato de mulheres e meninas decorrente da discriminação de gênero. Também foi alterada a Lei de Crimes Hediondos (8.072/1992), inserindo o feminicídio em seu rol taxativo. 8

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Dolosa são mulheres. Quando se trata da violência sexual, tanto nos crimes que configuram estupros13 como nas tentativas, as mulheres também são as maiores vítimas. Quando se fala das demais formas de violência – patrimonial (dano, violação de domicílio, supressão de documento), moral (calúnia, difamação e injúria) e psicológica (ameaça e constrangimento ilegal) – as mulheres só não são a maioria das vítimas no crime configurado como dano, representando 49,9% das vítimas. Em todos os outros crimes, mais de 50% das vítimas são mulheres, com destaque para a violência sexual. Dentre as fomas de violência contra a mulher, a que tem maior percentual de mulheres vítimas é a violência sexual. Os delitos relacionados a essa esfera da vitimização são o estupro e a tentativa de estupro, que em 2014 registraram juntos 6.318 vítimas, entre homens e mulheres. Foram 4.725 mulheres vítimas de estupro (83,2%) e 586 mulheres vítimas de tentativa de estupro, (91,3%). (Dossiê Mulher, 2015).

De acordo com a base de dados da PCERJ, 56,5% das mulheres vítimas de ameaça no estado do Rio de Janeiro foram vítimas de violência doméstica e/ou familiar. Esse universo representa um total de quase 2.700 mulheres ao mês, o que representa 90 mulheres por dia. As lesões corporais dolosas, juntamente aos crimes de ameaças e estupro, concentraram a maior parte da violência que atinge a população feminina, segundo o Dossiê Mulher 2015. O ano de 2014 registrou 87.561 vítimas de lesão corporal, 64,0% do total de vítimas registradas foram mulheres, o que significa que 56.031 mulheres foram vítimas desse tipo de violência em 2014. Segundo o PCERJ, 60,5% das mulheres vítimas de lesão corporal dolosa no estado foram vítimas de violência doméstica e/ou familiar, sendo que mais da metade, 51,7%, foi agredida por companheiros ou ex-companheiros. A média diária é de 79 mulheres agredidas fisicamente por seus companheiros ou ex-companheiros. Nos casos de tentativa de homicídio de mulheres em 2014, no estado do Rio de Janeiro, 33,8%dos acusados como principais autores são os companheiros e ex-companheiros das vítimas, uma média mensal de 22 mulheres agredidas por seus companheiros ou excompanheiros com intenção de morte. Pais, padrastos e parentes somam 3,8% dos acusados. Em quase 50% dos casos, as vítimas possuíam ou possuíram algum tipo de vínculo com seus agressores. Os crimes de estupro aqui tratados atendem à nova tipificação estabelecida pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. 13

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De acordo com dados do Dossiê Mulher de 2014. Com relação ao homicídio doloso 12,4% das mulheres vítimas, foram também, anteriormente, vítimas de violência doméstica e/ou familiar. Pelo menos uma mulher a cada semana tornou-se vítima fatal da violência doméstica/familiar em 2014. A violência doméstica aparece mais uma vez de forma significativa quando se refere à violência sexual. Em 2014 foram registradas 642 tentativas de estupro, uma média mensal de 53,5 vítimas, no universo das vítimas de tentativa de estupro registradas, 91,3% eram do sexo feminino. De acordo com a base de dados da PCERJ, em 39,6% dos casos a vítima tinha relações próximas com seu agressor, sendo que em 10,7% dos casos as relações eram de parentesco e em 16,6% dos casos os acusados mantinham ou mantiveram relacionamentos amorosos com as vítimas, ou seja, eram companheiros ou ex-companheiros das mesmas. Com relação ao crime consumado, o ano de 2014 apresentou em valores absolutos mais 5.676 vítimas de estupro no estado do Rio de Janeiro, ou seja, cerca de 15 vítimas ao dia. Dentre as vítimas de estupro registradas, 83,2% eram do sexo feminino. Vale-se ressaltar que 42% possuíam relações próximas com seus agressores. De acordo com a base de dados da PCERJ, 31,3% das mulheres vítimas de estupro foram também vítimas de violência doméstica, compreendendo 1.478mulheres. Com relação à violência patrimonial, a distribuição percentual de vítimas segundo o sexo demonstra que mulheres estão mais suscetíveis a esse tipo de delito do que homens, uma vez que mais de 60,0% das vítimas são do sexo feminino. A relação entre vítima e acusado mostra que, no caso das mulheres, a violência patrimonial é, em grande parte, uma violência doméstica e/ou familiar, ao se considerar o somatório das categorias companheiros ou ex-companheiros, pais, padrastos e parentes, é possível concluir que 42,1% das mulheres foram vítimas de violência patrimonial e doméstica em 2014 no estado do Rio de Janeiro. Em 2014, de 1.354 pessoas que foram vítimas de constrangimento ilegal, 59% eram mulheres. Das denúncias de constrangimento ilegal, feitas por mulheres, 27,2% foram contra companheiros e ex-companheiros, se somarmos companheiros, pais/padrastos, parentes, nota-se que em 31,2% das ocasiões de constrangimento ilegal a vitima tinha alguma proximidade com o acusado. e 5,2% contra pais, padrastos e parentes. Isso indica que esse tipo de violência psicológica se associa à violência doméstica e/ou familiar contra a mulher em 31,324% dos casos, enquanto que, quando as vítimas são sexo masculino, a associação é feita em 5,8% dos casos. A partir dos dados apresentados é possível concluir que, apesar de não representar a maioria dos casos, a violência doméstica contra a mulher possui alto destaque quando é feita a comparação entre os sexos.

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Das denúncias de violência moral, no qual 73,6% das vítimas de 2014 são mulheres, o que equivale a 41.509 no ano, em 58,0% das denúncias a vítima apresenta algum grau de aproximação com o acusado. 32,1% das denúncias foram contra companheiros e ex-companheiros e 7,9%, contra pais/padrastos e parentes. Assim, a violência doméstica e/ou familiar contra a mulher estaria associada a 40,1% dos casos. Mesmo não representando a maioria dos episódios, a violência doméstica contra a mulher ainda se destaca. Sendo assim, dentre os principais eixos das políticas para as mulheres ressaltase o enfrentamento à violência contra as mulheres, em que se destacam, além da Lei Maria da Penha, o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher e a articulação institucional entre diferentes ministérios do governo federal e entre estados e municípios. Como equipamento de combate à violência vinculado à Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM-Rio), há o Centro Especializado de Atendimento à Mulher em situação de violência doméstica (CEAM Chiquinha Gonzaga) e o projeto Casa Viva Mulher Cora Coralina, que funcionam como casas de abrigo e oferecem atendimento temporário para mulheres em risco de morte. Os endereços são sigilosos a fim de garantir a segurança e a integridade física das mulheres. O objetivo é oferecer subsídios para que a mulher vítima de violência conjugal consiga viver de forma autônoma, sem precisar retornar para sua antiga residência. Em 08 de março de 2016 foram ainda inauguradas as Casas da Mulher Carioca nos bairros de Madureira e Realengo. De acordo com a SPM-Rio, as Casas da Mulher Carioca são centros de cidadania, um espaço importante para as mulheres dessas regiões. A maioria delas desconhece os serviços a que têm direito. Nas casas, a mulher será tratada em sua integralidade, em várias frentes como trabalho, cultura, saúde, educação e combate à violência.

Apesar de tais avanços, outras formas de violência continuam naturalizadas como parte da vida urbana e enraizadas na cultura de diversas sociedades, como o assédio em espaços públicos. Com a insurgência desse novo cenário, movimentos de mulheres em diversos países têm dispendido esforços para que a ausência de segurança das mulheres nas cidades seja identificada como um problema relacionado à condição de gênero, de forma que possam ser formuladas políticas públicas com enfoques específicos em tais problemáticas. A abstenção do Estado em garantir a segurança feminina resulta na responsabilização individual das mulheres para que evitem “situações de risco”, tais

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como transitar sem companhia em lugares ermos ou durante a noite, utilizar vestimentas “pouco chamativas”, evitar ir para a rua durante determinados horários, evitar utilizar o transporte público, entre outras. Apesar da adoção de tais medidas de “precaução”, casos de assédios e estupros continuam sendo corriqueiros nos grandes centros urbanos. É possível dizer que a responsabilização individual de pessoas do sexo feminino pela contenção do assédio, além da ineficácia na garantia de segurança das mulheres, tem como consequência principal a limitação da liberdade das mulheres, devido ao medo constante de um estado hobbesiano onde, a qualquer momento, direitos básicos, tais como segurança, vida e integridade, estão sob ameaça. A partir dessa perspectiva, o guia da ONU observa que O trabalho em torno de cidades mais seguras abrange a segurança das mulheres a partir da perspectiva dos direitos das mulheres de acessar a cidade sem medo de violência. Ao invés de impor restrições partenalistas às mulheres e enfatizando sua necessidade de proteção, essa abordagem reconhece que mulheres e meninas tem o direito, enquanto cidadãs, de segurança nas suas cidades. (Tradução livre - 2011, p. 9)

Um projeto de cidade segura precisa considerar o recorte de gênero na formulação de suas políticas públicas, identificando os problemas específicos de cada área da cidade de forma a planejar adequadamente intervenções e monitorar resultados. A importância do olhar local está no fato de que os problemas e tipos de violência variam de acordo com o lugar em que se está. Na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro podem ocorrer situações de violência contra as mulheres bastante diferentes das que ocorrem nas periferias, como Sepetiba ou Santa Cruz. Consultar a população local para a formulação das políticas públicas é também fundamental para identificar quais seriam essas questões. Nesse mesmo sentido, observar quais políticas públicas já se fazem existentes é fundamental para que as novas medidas sejam eficientes. As Conferências de Políticas para Mulheres estão entre os principais instrumentos democráticos para se construir políticas públicas. São nelas onde movimentos sociais, representantes do Estado e da sociedade civil podem debater, de forma democrática, questões que dizem respeito aos direitos das mulheres brasileiras. A fim de que as propostas sejam de fato para a construção da igualdade numa perspectiva feminista, é de extrema importância que exista a participação efetiva de organizações feministas na elaboração de políticas públicas principalmente perante essa conjuntura de grande conservadorismo. Alguns movimentos sociais vêm atuando como ad-

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vocacy de pautas pertinentes a lutas feministas nas Conferências, visando contribuir para a aprovação de leis que garantam direitos das mulheres e equidade de gênero. No ano de 2016, ocorre a Conferência em nível nacional dando continuidade ao que foi debatido nas Conferências Municipais que ocorreram em 2015. De acordo com Sônia Coelho, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), os principais eixos levados pelo movimento feminista às Conferências Municipais, Estaduais e Nacional são os que debatem a questão da autonomia econômica, da violência, dos direitos reprodutivos e da reforma política. Em 2013 foi criada, pelo Decreto nº 36691, a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres da cidade do Rio de Janeiro (SPM-Rio), como demanda da III Conferência Municipal de Política para Mulheres realizada no Rio de Janeiro14, tendo como finalidade a formulação e implementação de Políticas Públicas que tenham como foco a garantia dos direitos da mulher. Na IV Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres, que ocorreu em setembro de 2015, foram definidas estratégias para avançar e algumas propostas foram elencadas, como criação do Sistema Nacional de Política para as Mulheres e do Fundo Nacional, Estadual e Municipal para atender as políticas para mulheres nos Estados e Municípios; introdução das políticas de gênero, raça, etnia, nas escolas, a partir da educação infantil, através da articulação da SPM-Rio e da Secretaria de Educação, podendo-se contar com o apoio da câmara temática da SPM-Rio; além da instituição de programa de valorização e visibilidade do futebol feminino possibilitando sua inserção nas escolas públicas municipais e estaduais; a mobilização e articulação dos grupos de mulheres negras junto ao conselho e a criação de um Centro Especializado de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Doméstica na região15.

As diretrizes da Secretaria se baseiam, portanto, no Plano Nacional, uma vez que no Município do Rio de Janeiro não existe um Plano Municipal de Políticas para as Mulheres (PMPM). Diante desse cenário é importante ressaltar a necessidade de construção de um plano específico e adaptado à realidade municipal e suas distintas localidades, uma vez que ele deve ser observado como 14 Que também apresentou como demanda a criação do Conselho dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro (CODIM-Rio) criado em julho de 2015. 15 (http://www.spm.gov.br/)

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instrumento primordial para a implementação efetiva e consequente monitoramento das políticas públicas para mulheres em âmbito municipal. Tendo em vista as peculiaridades locais com relação aos direitos das mulheres, bem como a relevância de destaque e fortalecimento dos movimentos de mulheres na cidade, é imprescindível a elaboração de um Plano Municipal de Políticas para Mulheres. Para a eficácia deste Plano, os movimentos feministas devem estar envolvidos no processo de construção de políticas públicas e serem protagonistas dele, a fim de que haja real avanço das propostas feministas na esfera pública.

Horizontes de políticas para as mulheres As práticas patriarcais que se perpetuam nas relações sociais e nas diversas institucionalidades do Estado, como demonstradas anteriormente, devem ser combatidas no cotidiano de maneira permanente. A busca pela igualdade e o enfrentamento às desigualdades de gênero devem fazer parte da história social brasileira. Nesse sentido, as políticas públicas para mulheres devem reafirmar os princípios orientados pela Política Nacional para as Mulheres como: a) Autonomia das mulheres em todas as dimensões da vida; b) Busca da igualdade efetiva entre mulheres e homens, em todos os âmbitos; c) Respeito à diversidade e combate a todas as formas de discriminação; d) Caráter laico do Estado; e) Universalidade dos serviços e benefícios ofertados pelo Estado; f) Participação ativa das mulheres em todas as fases das políticas públicas; e g) Transversalidade como princípio orientador de todas as políticas públicas. Para que a autonomia econômica avance, é necessário que se implementem, de forma efetiva, políticas como a ampliação de vagas em creches públicas, que busquem o fim da desigualdade salarial entre homens e mulheres e entre pessoas brancas e negras, além da necessidade de incentivo à socialização do trabalho doméstico. Faz-se necessário ainda o estímulo às alternativas de trabalho que fogem da lógica patriarcal, como é o caso da Economia Solidária e Feminista. Sobretudo, é

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preciso fortalecer o desenvolvimento sustentável com igualdade econômica e social, para democratizar o acesso aos bens da natureza e aos equipamentos sociais e serviços públicos, bem como valorizar e reconhecer o trabalho das mulheres em suas práticas alternativas e coletivas de produção, fortalecendo a economia e o direito à vida de qualidade das mulheres do campo e da floresta, com garantia do acesso à terra, bens, equipamentos e serviços públicos, em especial em momentos de crise e desemprego. Ainda com relação à igualdade no mundo do trabalho, deve-se elaborar políticas públicas que busquem fomentar e fortalecer a participação igualitária, plural e multirracial das mulheres nos espaços de poder e decisão, agregando ainda ações nas áreas de cultura, esporte, comunicação e mídia, para a construção de uma cultura igualitária, democrática e não reprodutora de estereótipos de gênero. Tema de extrema importância no que tange ao direito das mulheres, é necessário ressaltar o enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres. Entretanto pode-se dizer que, com relação a esse tema, já se avançou bastante nos últimos anos, do ponto de vista legislativo, conquanto ainda seja de extrema importância a elaboração de novas maneiras de se prevenir a violência e não apenas punir os seus atores. De acordo com organizações feministas como, por exemplo a Marcha Mundial da Mulheres, é necessário ampliar as redes de enfrentamento à violência, com o objetivo de superar a visão de que a violência deve ser tratada apenas no âmbito do Judiciário. A violência deve, sobretudo, ser combatida nos meios educacionais, de formação e conscientização do indivíduo16. É necessário, ainda, construir ações para a construção de uma educação não sexista, baseada na igualdade e cidadania, contribuindo para promover o acesso, a permanência e o sucesso de meninas, jovens e mulheres à educação de qualidade, com ênfase em grupos com baixa escolaridade. O planejamento das cidades em si precisaria considerar o recorte de gênero a fim de evitar situações em que mulheres e meninas possam estar em vulnerabilidade, como uma sinalização otimizada dos locais públicos, a fim de facilitar o acesso a espaços, urbanização e iluminação das ruas que assegurem uma maior visibilidade dos transeuntes, além da garantia de segurança especializada no atendimento de mulheres e meninas nas ruas, de forma a fomentar denúncias de abusos e o acolhimento de vítimas, entre outras. Nesse sentindo, destaca-se a necessidade de articular duas ordens de demandas: as de enfrentamento à violência contra as mulheres e as de reconhe16 Vale lembrar o processo de votação dos Planos Municipais e Nacional de Educação (PMEs e PNE), em que o incentivo à igualdade de gênero foi completamente rechaçado pelas forças conservadoras e machistas pondo fim à qualquer iniciativa de trabalhar a construção da igualdade através da educação.

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cimento da autonomia das mulheres sobre seus corpos e suas vidas. É importante desenvolver políticas públicas voltadas para a saúde integral das mulheres, os direitos sexuais e os direitos reprodutivos, visando promover a melhoria das condições de vida e de saúde das mulheres em todas as fases do seu ciclo vital. Para uma transformação efetiva dos espaços cristalizados de opressão e invisibilidade das mulheres dentro do aparato estatal, é necessário elaborar políticas públicas que levem em conta a transversalidade, permitindo abordar problemas multidimensionais e interseccionais de forma combinada e considerando todas as formas de desigualdade. É fundamental desenvolver políticas que busquem combater o racismo, sexismo e lesbofobia, enfrentando o preconceito e a discriminação baseados na orientação sexual e identidade de gênero. É necessário, ainda, promover a igualdade para as mulheres jovens, idosas e mulheres com deficiência, para a garantia do protagonismo dessas mulheres nas políticas públicas, bem como em seu acesso a equipamentos e serviços públicos.

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CAPÍTULO 8 Fronteiras (in)visíveis: raça, gênero e os limites do direito à cidade CAROLINA ROCHA1, MARCIA RANGEL CANDIDO2 E VERONICA TOSTE DAFLON3 “O que nos separa não são as nossas diferenças, e sim a resistência em reconhecer essas diferenças e enfrentar as distorções que resultam de ignorá-las e mal interpretá-las”. (Audre Lorde)

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em tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal”, declarou, em outubro de 2007, o então governador do Estado Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. A fala é densa em significados. A comparação entre a natalidade 1 Graduada e mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutoranda em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Autora do livro: “O Sabá do Sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758)”, publicado pela Paco Editorial em 2015.Atualmente é militante no Coletivo Feminista do IESP – Virgínia Leone Bicudo. 2 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre e doutoranda em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp -Uerj). É assistente editorial da Revista Dados, pesquisadora associada do Grupo de Estudo Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP). 3 Graduada em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Sociologia pelo IUPERJ, doutora em Sociologia pelo IESP -UERJ. Atualmente é bolsista de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS-UFRJ e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre a Desigualdade (NIED) da mesma instituição.

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na favela e os índices de países africanos, por exemplo, não é fortuita: ela dá cor àquilo que é por ele entendido como um problema de ordem demográfica. A referência a “fábricas” representa as mulheres como reprodutoras biológicas, cujos corpos multiplicariam um grupo social criminoso. Por fim, o termo “marginal”, empregado para referir-se aos seus filhos, traça distinções morais entre os indivíduos baseadas em “raça” e origem social. Sua declaração, enfim, inscreve as desigualdades sociais e suas consequências no mundo da natureza e da biologia e, portanto, fora do âmbito da responsabilidade do Estado e das políticas públicas, além de alimentar um imaginário social marcadamente racista e sexista. Tendo em vista a forte circulação desse e de outros discursos análogos sobre a natureza da pobreza, do crime e das desigualdades, o intuito do presente capítulo é colaborar para reinscrever a discussão sobre desigualdades raciais no debate sobre a gestão pública da cidade, evidenciando como as noções de espaço e de cidade no Rio de Janeiro estão conectadas a percepções sociais de cor. As chamadas “Operações Verão”, por exemplo, até o ano de 2015 colocaram anualmente um grande contingente de policiais militares e membros da Guarda Municipal nas praias cariocas para abordar, revistar e deter adolescentes que faziam o trajeto da Zona Norte à orla da Zona Sul da cidade. De acordo com dados fornecidos pela própria Prefeitura em seu website, no verão de 2014-2015 foi recolhido e levado à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente um total de 730 crianças e adolescentes, dentre os quais 85% eram do sexo masculino e 86% eram pretos ou pardos1. Trata-se, portanto, de grandes esforços dispendidos pelo Governo Estadual em parceria com a Prefeitura para limitar a mobilidade de homens e mulheres, notadamente negras/os, pela cidade. Em setembro de 2015 a Justiça do Rio proibiu as ações, sob a alegação de que elas violavam o direito fundamental de ir e vir desses jovens. No entanto, no mês de outubro o prefeito Eduardo Paes anunciou a extinção de 22 linhas de ônibus que ligam as Zonas Norte e Oeste do Rio à Zona Sul, com a alegação de sobreposição de itinerários. A argumentação técnica da prefeitura dificilmente encobre o fato de que, na prática, seu efeito será o de restringir o acesso de moradores de diversos bairros periféricos a espaços públicos da cidade – grande parte dos quais serão negros. Os habitantes negros da cidade do Rio de Janeiro têm tido seus corpos lidos por uma imaginação racista, o que os torna particularmente vulneráveis ao arbítrio e violência estatal. De acordo com dados da Pesquisa das Dimensões Sociais da Desigualdade (PDSD), enquanto no Brasil apenas 10% dos indivíduos autodeclarados brancos afirmam sentir-se tratados com menos respeito pela polícia do que as demais pessoas, esse índice é significativamente maior para pardos (17,5%) e o dobro para

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pretos (21%) (Daflon, 2007). Segundo Ramos e Musumeci (2005), a filtragem social e racial na abordagem policial figura no uso corriqueiro do termo “elemento suspeito de cor padrão” na comunicação cotidiana da Polícia Militar Fluminense por rádio. De acordo com os dados do último censo populacional, no município do Rio de Janeiro, de um total de 6.320.446 residentes, 51,3% se autodeclaram brancos e 47,9% pretos e pardos. De modo geral, os residentes do município detêm uma renda bastante superior à média brasileira. No entanto, esses rendimentos se distribuem de maneira desigual conforme a cor: a renda média dos brancos em 2010 era de R$ 2.807 reais e a dos pretos e pardos era de R$ 1.310 (IBGE, 2010). O município do Rio de Janeiro tem taxas de homicídios desproporcionalmente distribuídas entre brancos e negros: 15,5 e 35,6 a cada 100 mil habitantes, respectivamente (Waiselfisz, 2012). Esses e outros indicadores, como taxa de ocupação da população economicamente ativa, nível de abandono escolar (IBGE, 2010), índices de mortalidade infantil e materna (Cardoso, Santos e Coimbra, 2005) e níveis de representação política (Campos, 2015) apontam todos consistentemente para a existência de fortes disparidades raciais na cidade. Em vista disso, faz-se necessária a adoção de uma perspectiva geográfica, atenta a padrões de ocupação urbana e seus impactos físicos e simbólicos, no debate sobre desigualdades raciais e racismo (Vargas, 2005). A questão racial deve ser também tratada em vista da bidimensionalidade do fenômeno, que envolve tanto questões de redistribuição como de reconhecimento (Fraser, 2003). Para além dos seus impactos materiais, o isolamento espacial dos negros em relação às classes médias e elites na cidade (Telles, 2004) contribui para alimentar um imaginário social que racializa a pobreza, o crime e a violência, e naturaliza as distâncias sociais entre negros e brancos. Questões de ordem simbólica e cultural relativas à ascendência africana interagem, por sua vez, com questões de ordem material e territorial, tais como as políticas culturais, a comunicação, as comunidades remanescentes de quilombos, a perseguição religiosa às religiões de matriz africana, bem como a educação e o ensino da história da África. No presente ensaio, discutiremos diferentes aspectos das desigualdades raciais na cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de subsidiar e qualificar o debate sobre o atual modelo de gestão da cidade e as políticas públicas dirigidas à melhoria da qualidade de vida da população negra. Primeiramente, apresentaremos dados referentes à segregação socioespacial na cidade, marcadamente racializada e aprofundada pelo atual modelo de gestão do espaço e pelo racismo institucional. Em sequência, nos debruçaremos sobre os problemas específicos das mulheres negras, explorando os contornos específicos assumidos pela interação entre

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a discriminação racial e de gênero. Em terceiro lugar, examinaremos a postura das autoridades públicas diante das manifestações culturais negras e populares, a posição da prefeitura perante as demandas de reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombos e as formas de resistência negra e popular. Em seguida, apontaremos a leniência das autoridades frente aos casos de intolerância religiosa praticados contra as religiões de matriz africana, bem como em relação à denúncia e encaminhamento dos casos de racismo. Discutiremos também as desigualdades raciais na educação, através da referência às dinâmicas internas às escolas e às dificuldades de mudança curricular e implementação da Lei 10.639. Por fim, apresentaremos as ações afirmativas em favor da população negra e seus potenciais impactos sobre a estrutura de desigualdades sociais e raciais, salientando a transversalidade da questão racial e a necessidade de pensar sobre o tema no interior de uma discussão mais ampla sobre o direito à cidade. À guisa de conclusão, produziremos algumas sugestões e possíveis encaminhamentos para a formulação de políticas públicas norteadas por uma agenda igualitária, feminista e antirracista.

Territórios negros Estima-se que, entre os anos 2009 e 2013, mais de 65 mil pessoas tenham sido desalojadas de suas casas em virtude da política de remoções da Prefeitura do Rio de Janeiro com vistas à implantação de grandes projetos urbanos e empreendimentos imobiliários na cidade (Faulhaber e Azevedo, 2016). Isso significa que o prefeito Eduardo Paes promoveu mais despejos do que Pereira Passos e Carlos Lacerda juntos, e removeu mais pessoas do que o governador Negrão de Lima, que esteve à frente do cargo no tempo mais repressivo do regime de exceção entre 1965 e 1970. A cidade vive também um momento de intensa especulação imobiliária, que conduz a aumentos de custo de vida, responsáveis, muitas vezes, por inviabilizar a permanência das populações negras e pobres em áreas subitamente valorizadas. Além disso, no momento em que a cidade se prepara para receber mais um megaevento, as Olimpíadas, a Prefeitura explora turística e comercialmente a cultura e as manifestações populares negras, ao mesmo tempo em que elas passam por processos de regulamentação e normatização. Embora a questão da segregação racial socioespacial tenha centralidade nas pesquisas desenvolvidas em países como os Estados Unidos e a África do Sul, ela não recebeu a mesma atenção dos estudos mais recentes sobre racismo e racialização no Brasil. A literatura da sociologia, da antropologia urbana e do urbanismo de

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modo geral não tem o hábito de enxergar a cidade com lentes “raciais” (Telles, 2012; Oliveira, 2001; Vargas, 2005; Garcia, 2006). Algumas exceções, como o trabalho do sociólogo Luiz Aguiar Costa Pinto (1953), forneceram pistas de como a estratificação racial se traduz no espaço físico da cidade. Conforme os dados do Censo de 1940 por ele estudados, 71% dos moradores de favelas do Rio de Janeiro eram pretos e pardos, em um momento em que esse contingente representava apenas 27% da população da cidade. A extrema resiliência desses padrões se manifestou ao longo das décadas: com dados do Censo de 1990, Edward Telles (2004) mostrou que a maior parte da população negra que vivia na Zona Sul do Rio de Janeiro concentrava-se nas favelas, e os distritos predominantemente negros correspondiam aos subúrbios pobres da cidade (Telles, 2004). Mais recentemente, os dados do Censo 2010 mostraram que os brancos representam 83% da população dos bairros de Copacabana, Leme, Ipanema, Leblon, Gávea, Jardim Botânico e Lagoa e na mesma Zona Sul, onde se localizam esses bairros nobres e elitizados, vivem na favela Morro do Cantagalo 69% de pretos e pardos e 32% de brancos (Gusmão, 2015). Como asseverou Antonia Garcia, pode-se afirmar, a partir da análise do modelo de organização e desenvolvimento do espaço das cidades do Rio de Janeiro e Salvador, que elas apresentam um grau importante de segregação espacial, que é também racial, na medida que os brancos que ocupam os estratos superiores destas cidades estão recorrentemente sobre-representados nos territórios de concentração dos capitais sociais, econômicos, culturais, educacionais e políticos promovidos tanto pelos mecanismos de mercado como de Estado, e, em sentido oposto, os negros estão confinados aos territórios mais desprovidos destas diferentes modalidades de capitais. (Garcia, 2006, p. 35)

A percepção da proximidade física entre brancos e negros nas favelas e periferias de cidades, como o Rio de Janeiro, foi por muito tempo tomada como evidência da ausência de segregação espacial racial nesses locais. Diferentemente de países como a África do Sul, as desigualdades raciais no Brasil não se caracterizam pela ausência de brancos nas camadas pobres da população. O que caracteriza, de fato, nossa desigualdade é a virtual ausência de negros nas classes médias e elites (Hasenbalg, 1979). O resultado disso é que, em uma cidade como o Rio de Janeiro, a convivência entre brancos e negros está limitada às regiões pobres das cidades e as classes médias e elites brancas permanecem insuladas nos bairros nobres (Telles, 2004; Gusmão, 2015). O racismo do mercado imobiliário formal, o acesso diferenciado ao crédito,

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a discriminação dos brancos contra os vizinhos negros, assim como as disparidades na riqueza acumulada entre negros e brancos, costumam ser as explicações mais comumente aventadas para os padrões racializados de ocupação urbana no Rio de Janeiro (Telles, 2004). Uma segunda abordagem atribui um peso maior aos privilégios institucionalizados dos brancos na manutenção da homogeneidade racial nas áreas mais afluentes da cidade, buscando demostrar de que modo o Estado, as instituições e os organismos que o representam dão operacionalidade aos privilégios de cor e de classe social (Vargas, 2005). Essa ideia dialoga com o conceito de “racismo institucional”, definido pela Comissão para a Igualdade Racial (Commission for Racial Equality - CRE), do Reino Unido, como: o fracasso coletivo de uma organização para prover um serviço apropriado e profissional para as pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica. Ele pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos que totalizam em discriminação por preconceito involuntário, ignorância, negligência e estereotipagem racista, que causa desvantagem a pessoas de minoria étnica. (Commission for Racial Equality, 1999 apud Sampaio, 2003, p. 82)

É nessa segunda perspectiva que podemos incluir o trabalho de Márcia Pereira Leite (2013), que destaca que a associação entre instituições públicas e o racismo não é fortuita: o “racismo institucional” se manifesta tanto por meio de políticas de segregação socioespacial quanto pela designação de territórios majoritariamente negros como suscetíveis ao crime e, portanto, merecedores de atenção distinta dos aparatos de repressão do Estado. A população negra possui elevado índice de encarceramento e é a mais atingida pela violência policial, bem como pela inoperância de um sistema jurídico com marcado viés racial. Além da escassez de investimentos públicos na urbanização das áreas pobres da cidade, o acesso das pessoas à saúde, por exemplo, difere tanto em relação à raça quanto ao gênero. Os negros são parte majoritária do grupo que não consegue acesso a atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), e dentro desse grupo são as mulheres negras as mais prejudicadas (Meireles apud Leite, 2013). Vale ainda destacar a inflexão na relação entre o Estado e as favelas que ocorreu a partir da inserção das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), com início em 2008 (Leite, 2013). As UPPs foram instaladas predominantemente em áreas com maior interesse do mercado imobiliário. Para além da evidente influência do poder econômico nessa política pública, as UPPs têm sido alvo de

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críticas pela maneira como maximizam o controle social sobre os moradores de favelas. A interação entre essa e outras políticas do governo do Estado e as ações da prefeitura resulta em uma extrema dificuldade de circunscrever uma análise da desigualdade racial na cidade do Rio de Janeiro à esfera de competências e atribuições do município. Isso porque as ações em nível municipal e estadual se articulam umbilicalmente para produzir impactos sobre a vida da população.

Mulheres negras A complexa interação entre gênero e raça é pouco considerada nas discussões sobre o espaço urbano, ainda que as mulheres negras frequentemente se destaquem como protagonistas das lutas por direitos nas cidades (Moreno, 2016; Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, 2016). Quando analisamos a distribuição de renda da população carioca por cor e gênero, percebemos que mulheres pretas e pardas possuem os menores rendimentos (R$ 1.093, em comparação com R$ 1.482 dos homens pretos e pardos, R$ 2.314 das mulheres brancas e R$ 3.231 dos homens brancos) (IBGE, 2010). Elas são também o grupo menos escolarizado, o mais exposto ao desemprego e à precarização do trabalho (IPEA, 2011). As mulheres negras apresentam elevada exposição à violência física, sofrendo com altos índices de feminicídio (Waiselfisz, 2015) e maior vulnerabilidade ao óbito em virtude de abortos clandestinos2. As taxas globais de homicídios de mulheres no Brasil vêm traçando uma linha ascendente desde 2007. Esse aumento se distribui diferencialmente entre mulheres brancas e negras: entre 2007 e 2013, os homicídios de mulheres brancas aumentaram 3,2% e os de mulheres negras 22%. Além de não conseguirem conter a escalada e a violência de gênero, as políticas públicas dirigidas a esse fim adotam um recorte de gênero cego à cor, se concentrando nas dimensões da violência que atingem apenas as mulheres brancas (Alessi, 2015; Crenshaw, 2002). A maior vulnerabilidade econômica da mulher negra, a má distribuição de redes de proteção à mulher nos territórios e a ação diferencial dos agentes de segurança pública nos bairros de classe média e elite, em contraste com as favelas e periferias pobres, fazem com que a vítima tenha medo ou dificuldade de recorrer ao Estado para reivindicar proteção. Soma-se a isso o duplo preconceito de gênero e raça no atendimento à mulher negra agredida (Alessi, 2015). As mulheres negras são também a maioria dentre os jovens de 18 a 25 anos que não estão na educação formal nem no mercado de trabalho, somando 41,5% desse grupo no Brasil. A gravidez é o principal motivo apontado, uma vez que metade dessas mulheres têm filhos3. No lu-

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gar de culpar ou patologizar essas mulheres por índices mais elevados de natalidade, é preciso compreender que, para muitas mulheres de meios populares, a maternidade representa uma escolha e uma mudança de status de menina para mulher, que reforça laços familiares e faz com que conquistem respeito social (Dadoorian, 2003). No entanto, em razão de uma divisão sexual do trabalho injusta, as mulheres são responsabilizadas pela maior parte do trabalho relacionado ao cuidado das crianças. A expansão de vagas em creches e na educação infantil, nesse sentido, ajudaria a compatibilizar trabalho e demandas familiares. Contudo, apesar de um acordo de transferência de R$ 38,4 milhões do Governo Federal ao município para a construção de creches firmado em 2012, a Prefeitura do Rio de Janeiro não os utilizou e os repasses foram congelados4. Como o nível de vida e de segurança da mulher melhoram substancialmente com o seu acesso direto à renda e ao emprego, a falta de amparo estatal limita fortemente a sua autonomia e independência. Kimberlé Crenshaw (2004) detectou dois problemas recorrentes nos debates sobre justiça e políticas públicas que provocam o que ela chama de “invisibilidade interseccional”. O primeiro, que denominou “superinclusão”, ocorre quando um grupo – seja racial ou de gênero – é visto de maneira homogênea, generalizando-se assim os aspectos das vivências do subgrupo dominante dentro do grupo desprivilegiado. Isso ocorre, por exemplo, quando os “negros” são interpretados conforme a presunção implícita de um universal masculino ou quando os problemas que acometem apenas a fração menos desprivilegiada das mulheres são tratados de forma desproporcional e simplesmente definidos como “problemas de mulheres”. O segundo problema é a subinclusão, isto é, quando um subconjunto de pessoas de um grupo subordinado enfrenta um problema que, por não fazer parte da experiência dos membros mais privilegiados do grupo, acaba por ser negado enquanto problema. Assim, dentro do grupo dos “negros” pode haver um problema específico das mulheres que não ganha visibilidade; da mesma maneira, no interior do grupo das “mulheres” pode haver questões que não são explicitadas em virtude de atingirem apenas as mulheres negras.

Cultura, política e território no Rio de Janeiro O controle sobre as manifestações culturais desenvolvidas nas diversas regiões da cidade também difere de acordo com classe e raça. Com a assinatura do Decreto 39.355 em 2006, a ex-governadora Rosinha Matheus incumbiu as autoridades policiais de autorizar eventos esportivos e culturais, o que lhes conferiu o

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poder de proibir a realização de bailes funk nas favelas e reeditar a antiga criminalização do samba, hoje amplamente festejado como parte da imagem de nação brasileira. A Lei 5.265/2008, de autoria do deputado Álvaro Lins, ao disciplinar bailes funk e raves, conferiu ainda mais legitimidade à intervenção policial nas manifestações culturais das favelas. Em 2012 a lei foi revogada em virtude da forte mobilização de movimentos sociais, dentre os quais se destacou a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), em articulação com deputados como Marcelo Freixo e Chico Alencar. O decreto 39.355, por sua vez, foi suspenso em 2013 pelo ex-governador Sérgio Cabral5. Contudo, os efeitos desagregadores dessa legislação ainda são sentidos por moradores e produtores culturais das favelas, que denunciam a continuidade de práticas de arbítrio policial. Ainda que o Estado afirme, em diversas declarações públicas6, o direito à cultura enquanto meio material e simbólico de produção de bem-estar, populações de favelas e periferias têm tido acesso obstruído a possibilidades de expressão cultural. Ao mesmo tempo, o funk é transformado em objeto de arte nas exposições dos museus, como serve de exemplo a sala dedicada ao gênero a ser criada no novo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro7. Não obstante, a tentativa de disciplinar as manifestações culturais populares não anula as resistências e construções autônomas dos grupos sociais. Movimentos como o “Ocupa Borel às Nove” questionam o controle sobre os espaços públicos e reivindicam a livre possibilidade de manifestações culturais (Leite, 2013). Nas “batalhas do passinho”, os jovens, em sua maioria negros, afirmam o funk e a dança do passinho como um caminho próprio de fazer cultura. O funk ressurge, então, como uma possibilidade de ressignificação social para os negros e de comunicação contra-hegemônica (Lopes e Facina, 2010). Além da linguagem do funk, os coletivos negros e feministas nas universidades e nas ruas injetam novo vigor na cultura como meio de transformação social. Dá exemplo disso o curta-metragem “Kbela”, que fez uso de trabalho colaborativo para construir uma narrativa protagonizada por mulheres negras. Outra produção independente de relevância nos últimos anos é o documentário “A Batalha do Passinho”, produzido sem o apoio de editais do município e de modo independente8. Ambos os trabalhos são experiências de valorização das manifestações artísticas negras, feitas sem apoio ou subvenção estatal. Com efeito, no âmbito do governo municipal do Rio de Janeiro, cabe destacar que a Rio Filme, empresa comandada pela Prefeitura, não destina nenhuma política especial para promover a diversidade de raça e gênero no audiovisual e apoia um rol de produções cinematográficas majoritariamente brancas e masculinas, como evidencia a listagem de lançamentos apoiados pela Rio Filme em 20139. Em pesquisa recente, o Grupo de

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Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA-IESP) mostrou que, dentre os filmes brasileiros de maior bilheteria entre 2002 e 2012, nenhum foi dirigido ou roteirizado por mulheres negras, e os homens negros representavam, respectivamente, apenas 2% e 4% dessas funções. A representatividade das/os negras/os no elenco principal das produções também é ínfima, obtendo um percentual de 4% para as mulheres negras e 14% para os homens negros (Candido et al, 2014). A cidade do Rio de Janeiro conseguiu aprovar em 2001 uma proposta inédita no Brasil, que delimitou cotas à participação dos negros nos filmes subvencionados ou coproduzidos pela prefeitura. O Projeto de Lei nº326910, da ex-vereadora do Partido dos Trabalhadores, Jurema Batista, postulava o mínimo de 40% de participação de atrizes/atores e modelos negras/os nas produções com apoio do município. No entanto, a lei foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro11. A justificativa foi baseada no princípio de hierarquia entre os poderes, que determina que leis que interferem na atuação de instituições do município sejam propostas pelo prefeito e não por vereadores4. Mesmo que o desenrolar do processo de anulação da lei tenha fundamentação jurídica, ele reflete o percurso comum das propostas para democratizar os espaços de representação nos meios de comunicação, a partir da reserva de vagas. Com a sanção da Lei nº 12.288, mais conhecida como Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, a população negra passou a ser reconhecida oficialmente pelo Estado como intitulada a direitos especiais. Apresentado pelo deputado do Partido dos Trabalhadores (PT), Paulo Paim, em 1998, o Projeto de Lei n.4370 versava sobre cotas na mídia e era justificado pela posição marginal que os negros ocupavam nesse meio, excluídos de possibilidades de autorrepresentação e frequentemente retratados por meio de estereótipos. As cotas nas produções cinematográficas eram uma das principais demandas em discussão no debate que precedeu o Estatuto da Igualdade Racial, mas foram excluídas do texto final. Segundo Silva (2012), as modificações empreendidas nas propostas originais transformaram ações de caráter mais impositivo em teor autorizativo, o que enfraqueceu o seu potencial de redução de desigualdades raciais. Contudo, o Estatuto da Igualdade Racial também apresentou avanços em relação à valorização da cultura da população negra. Foi ressaltada a garantia de proteção do Estado para a manutenção de tradições e costumes, bem como o acesso a políticas públicas para os territórios quilombolas. Desde a constituição de 1988, o direito à propriedade da terra aos remanescentes dos quilombos é previsto na legislação federal, mas 4

Agradecemos a consultoria jurídica da companheira Viviane Magno.

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alcançar o efetivo reconhecimento enquanto comunidade quilombola significa atravessar uma série de estágios e disputas12. Os quilombos urbanos, nesse sentido, têm se tornado um importante motor de lutas populares pelo direito à cidade. No que se refere à esfera municipal, o vereador Eliomar Coelho, do PSOL, criou um projeto de lei complementar em 2011, aprovado em 2014, que reconhece os quilombos como Área Especial de Interesse Cultural (AEIC)13. Tal ação objetiva garantir os direitos dos quilombolas aos seus territórios, e protegê-los da especulação imobiliária. No entanto, a chancela do prefeito também é necessária para a aplicação da lei. No Rio de Janeiro, a história de dois quilombos urbanos demonstra a relevância da atuação municipal nos processos de reconhecimento dos quilombolas: o quilombo Sacopã, na Lagoa, e o quilombo Pedra do Sal, na Saúde, ambos localizados em áreas de grande especulação imobiliária. Na atual apresentação do “Porto Maravilha”14 o quilombo da Pedra do Sal figura como espaço de celebração da herança africana, valorizado no projeto de cidade sob gestão de Eduardo Paes. O marketing da prefeitura, no entanto, encobre o fato de que as lideranças da comunidade passaram por um duro processo de negociação com o prefeito, que a princípio vetou a aplicação da lei15. No quilombo Sacopã, em cuja entrada hoje figura uma placa da Prefeitura, as multas aplicadas pela Prefeitura eram recorrentes, bem como o impedimento de que seus moradores exercessem as práticas culturais responsáveis pela sua subsistência, tal como os sambas com feijoada16. Vale refletir ainda que comunidades quilombolas mais afastadas das regiões centrais são atingidas por outras dificuldades e dificilmente ganham visibilidade na mídia e no debate público, o que dificulta ainda mais as suas lutas por reconhecimento.

Racismo e intolerância religiosa Uma pesquisa feita a partir dos registros de casos de racismo em delegacias do Estado do Rio de Janeiro entre 2007 e 2010 mostrou que, nesse período, foram registradas 3.773 denúncias de injúria racial no estado, 50% das quais se concentraram no município do Rio de Janeiro. Para os pesquisadores, tais dados demonstram que a identificação desse crime começa finalmente a se materializar em forma de denúncia (Silva e Costa, 2015). No entanto, há indícios de dificuldade das vítimas em registrar as ocorrências nas delegacias do Rio de Janeiro17. Além disso, poucos são os casos de processos por crime instaurados e os casos com mérito julgado (Santos, 2010). Costuma-se atribuir esse estado de coisas à crença na democracia racial, que leva à minimização dos casos, e ao despreparo dos operadores

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da lei para lidar com a legislação que versa sobre o racismo. Esses fatos apontam para a necessidade de retrabalhar as rotinas de condutas nas delegacias, para que elas deem o atendimento apropriado e o encaminhamento correto às denúncias. Outra questão que merece atenção é a da perseguição às religiões de matriz africana. Da mesma maneira que se costuma acreditar que não há segregação racial no país, há o hábito de se encarar o Brasil como um território de paz religiosa. Essa crença, contudo, não se sustenta diante dos constantes episódios de intolerância vivenciados pelos adeptos das religiões de ancestralidade africana, discriminados por membros de outras religiões e excluídos das políticas públicas estatais. O que se convencionou mais recentemente chamar de intolerância religiosa no Brasil foi, na verdade, constitutivo do processo de colonização do país, deixando suas marcas no âmbito cultural e político-estatal até os dias atuais. A presença constante da intolerância religiosa em nossa história é para alguns autores tributária de uma ideologia nacional assimilacionista que rejeita a herança cultural africana (Cunha, 2012). Esse debate ganhou visibilidade em 2006, principalmente em virtude do comportamento e discurso extremistas de algumas Igrejas, mormente de denominação neopentecostal. A recente “conversão” de traficantes de drogas ao Neopentecostalismo e a expulsão de pais de santo das favelas e periferias do país, notadamente no Rio de Janeiro, reacendeu o debate sobre intolerância. Embora o ataque às religiões de matriz africana não seja uma novidade trazida pelas igrejas neopentecostais, sua teologia tem levado até as últimas consequências discursos e práticas de ódio. Em dois anos e meio, cerca de mil casos de intolerância religiosa foram registrados pelo Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir) no Rio de Janeiro18. A maioria das denúncias identificadas como crimes de intolerância religiosa atingem negros, membros das religiões afro-brasileiras, vítimas, principalmente, de religiosos neopentecostais19. Em junho de 2015, por exemplo, Kayllane Campos, de onze anos, foi apedrejada após sair de uma cerimônia de candomblé na Vila da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro. Outro caso emblemático ocorreu em 2014, quando um menino de doze anos foi barrado numa escola municipal da Zona Norte do Rio de Janeiro por usar bermudas brancas e fios de conta próprios das religiões afro-brasileiras por baixo da camisa. A mãe do aluno notificou previamente a professora que o aluno cumpriria uma prescrição da sua religião, o Candomblé, mas ainda assim ele foi proibido de entrar no colégio. A ausência de uma delegacia específica para lidar com os casos de intolerância religiosa dificulta a identificação dos crimes, muitas vezes tratados como injúria racial ou até qualificados pejorativamente como “brigas de vizinhança”.

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O caso de Kayllane gerou grande repercussão, inclusive internacional, e tem fomentado a luta por políticas públicas no plano municipal para garantir os direitos civis da população afro-brasileira. O que grande parte dos representantes de religiões diversas reivindicam é a implementação da Lei 5.931/11, que criou a Delegacia de Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância no Rio de Janeiro, estado com o maior número de casos notificados no Brasil.

Educação O sistema educacional é uma das únicas formas pelas quais os negros podem se qualificar para tirar proveito de canais de mobilidade ascendente e superar as desigualdades de origem (Hasenbalg e Silva, 1990). No entanto, o sistema educacional tende a reproduzir as desigualdades de origem, e não contrapô-las. Isso começa com o grande abismo entre educação pública e particular: a distância entre a escola pública e a escola privada tornou-se mecanismo por excelência de conversão das desigualdades de capital econômico em resultados educacionais. O Programme for International Student Assessment (PISA) de 2009 posicionou o Brasil entre os países em que o desempenho dos estudantes da rede escolar pública e a particular é dos mais desiguais20. Essa desigualdade afeta sobremaneira os estudantes negros uma vez que, no ano de 2008, 19,6% dos alunos brancos brasileiros entre 15 e 17 anos frequentavam a escola particular, enquanto esse índice era de apenas 6,4% para pretos e pardos com a mesma idade, isto é, um percentual três vezes menor que o dos brancos (Paixão, Rossetto et al, 2010). Além disso, como demonstra Garcia, o sistema educacional do Rio de Janeiro “é composto por quatro redes de ensino: municipal, estadual, federal e particular, que apresentam uma territorialização muito desigual em sua composição racial” (2006, p. 207). A desproporção de matrículas entre negros e brancos nas redes particular e pública de ensino, as discrepâncias nos seus índices de evasão escolar e as diferenças na defasagem entre idade e série mostram o tamanho do desafio da educação pública na redução das desigualdades raciais e distribuição de oportunidades. Além de problemas referentes a recursos e infraestrutura, a escola pública costuma estar despreparada para lidar com o racismo em seu ambiente e com a implementação da Lei Federal 10.639, que se refere à inclusão do ensino de História da África, das questões raciais e da cultura afro-brasileira na grade curricular. O problema é que “criou-se uma verdadeira ética do silêncio em relação à cor

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dos brasileiros”21. Daí a importância dos debates em torno do tema, recuperando tensões silenciadas que ajudam a enfrentar a realidade. Na maior parte dos livros didáticos adotados pelas escolas o negro só aparece no Brasil colonial na condição de escravo ou no episódio da abolição da escravatura, como uma massa homogênea, passiva e submissa e fora da condição de sujeito de construção de saberes. Não se leciona uma história da África que enfatize as complexas relações existentes neste continente antes de os negros chegarem aos portos brasileiros nem que discuta a escravidão para além da visão do senso comum, mostrando, por exemplo, a história das organizações negras, como os quilombos, as irmandades religiosas, e o papel do negro na economia, na política, na cultura, na ciência e nas artes do Brasil. Por isso, a implementação da Lei 10.639 deve ser acompanhada da preparação dos professores e da escola para garantir debates sobre o racismo. A distribuição de cartilhas, a realização de palestras e uma propaganda ostensiva dos municípios deve ser feita para garantir a preservação da pluralidade cultural no país.

A gestão municipal e a desigualdade racial: por uma cidade racialmente inclusiva Uma reflexão fundamental para o presente exercício diz respeito à maneira por vezes paradoxal como o Estado e as autoridades públicas se portam diante das desigualdades raciais. A gestão municipal que ora examinamos foi uma apoiadora entusiasmada das políticas de ação afirmativa em favor da população negra nos concursos para o município. Saiu da lavra do próprio prefeito Eduardo Paes o projeto que deu origem à Lei 5.695/2014, atualmente em vigor, que estabeleceu um sistema de cotas de 20% para negros e indígenas nos concursos públicos da administração direta e indireta do município. Por outro lado, como vimos nesse capítulo, a mesma gestão tem sido responsável pela produção e aprofundamento de desigualdades raciais na cidade. Essa ação aparentemente contraditória do poder público só pode ser apropriadamente interpretada se entendermos que as ações afirmativas, embora sejam políticas de absoluta importância, agem sobre a distribuição dos indivíduos em uma estrutura de classes sem alterá-la substancialmente. Em outros termos, elas buscam tornar mais paritária a participação dos grupos sociais discriminados nas classes médias e elites, procurando dessegregá-las, mas não age diretamente sobre a estrutura social desigual (Darity, 2005; Weisskopf, 2004). A distinção entre a estrutura das desigualdades e a mobilidade nessa estrutura

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(Hasenbalg, 1979) é fundamental para entender por que um mesmo Estado pode colaborar ativamente para a produção de desigualdades estruturais, ao mesmo tempo que pode fazer intervenções tópicas sobre essas desigualdades. Formas de gestão pública que aprofundam a segregação socioespacial e obstruem a livre circulação pela cidade, por exemplo, constroem as áreas valorizadas da cidade como ambientes hostis para os negros, o que pode desencorajar aqueles que possuem mais recursos econômicos a fixar-se nesses bairros e assim prejudicar o próprio intento da ação afirmativa, que é introduzir diversidade racial nos espaços de status e prestígio. A mercadificação da cidade (Harvey, 2014), por seu turno, atinge de forma mais aguda a população negra, dada a sua maior vulnerabilidade e menor autonomia econômica em virtude do menor acúmulo de riqueza e propriedade em relação aos brancos. Nesse sentido, a ação do estado sobre o território, com o uso das suas prerrogativas de regulação do uso e ocupação do solo urbano para fazer remoções, desapropriações e militarização de territórios, aprofunda a estrutura das desigualdades sobre a qual as ações afirmativas se propõem a agir. Nesse sentido, políticas de ação afirmativa não devem ser dissociadas de políticas sociais, da ampliação da oferta de serviços públicos e de uma discussão mais ampla sobre o direito à cidade. Em outras palavras, deve ser reconhecida a transversalidade da pauta da igualdade racial. Assim, torna-se fundamental (1) ampliar as políticas de ação afirmativa para outros âmbitos além dos concursos no município, como a cultura e o audiovisual; (2) repensar o atual modelo de gestão da cidade, atualmente voltado para abrir frentes de expansão do mercado, e introduzir uma discussão sobre os padrões racializados de ocupação urbana; (3) tratar como um direito de todos a construção de sistemas integrados, acessíveis e eficientes de transporte; (4) banir práticas estatais de segregação e controle sobre a mobilidade social e territorial dos negros nos espaços de classe média e elite; (5) integrar os circuitos sociais, culturais e econômicos da cidade; (6) ampliar a infraestrutura e aparelhos públicos em todo o território; (7) criar e fortalecer delegacias especializadas no combate à intolerância religiosa, ao racismo e à violência contra a mulher; (8) sensibilizar agentes públicos para o combate ao racismo institucional e à violência policial; (9) valorizar o patrimônio material e imaterial das populações negras na cidade; e (10) ampliar investimentos na educação escolar, na disponibilização de vagas na educação infantil, e na efetivação da Lei 10.639. Todos os problemas relativos ao acesso à educação, moradia, mobilidade urbana, segurança, participação política, saúde e trabalho analisados nesse dossiê afetam desproporcionalmente a população negra. Audre Lorde (1984), citada no começo do capítulo, ilustra como uma das mais relevantes contribuições do

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feminismo negro a proposta de uma nova maneira de observar o mundo, na qual o racismo, o sexismo, a homofobia, os conflitos e os preconceitos de classe não fiquem esvaziados em um discurso de universalismo cego às diferenças. As políticas públicas precisam incorporar a interação entre as distintas variáveis que condicionam privilégios ou adversidades.

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CAPÍTULO 9 A juventude e a cidade do Rio de Janeiro

DANIEL GASPAR1 E RAFAEL CHAGAS2/3

Cartografando a juventude carioca

A

ideia da juventude como uma categoria social é recente, data do pósguerra. As mudanças econômicas e sociais nos EUA e na Europa desse período contribuíram para a construção de uma cultura jovem. A partir desse momento, os jovens já não eram mais considerados, prioritariamente, como força de trabalho (Hobsbawn, 2009), e passaram a se entender como um setor específico, tornando-se produtores de estilos de vida, consumidores de novos produtos e protagonistas nas reivindicações por direitos. No entanto, durante muito tempo a juventude foi interpretada como um momento transitório de vida, concepção que fundamentou e restringiu as políticas públicas para essa faixa etária, tendo por objetivo apenas a preparação para a vida adulta. Em países onde as riquezas são mais concentradas e a pobreza acomete a maioria da população, como o Brasil, também foi construída a ideia na qual a juventude é uma etapa problemática, especialmente quando tal caracterização se refe-

Daniel Gaspar é advogado e sociólogo, doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ. 2 Rafael Chagas é historiador formado pela UFF e mestre em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGSC) da UFF. 3 Os autores agradecem à doutoranda em Sociologia pelo PPGSA-UFRJ, Natália Cindra, que participou das primeiras sessões de brainstorming e ajudou a conformar a estrutura do artigo e pensar nos dilemas vividos pela juventude carioca. 1

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ria à experiência de certos grupos e setores da população, como as/os jovens negras e negros, moradores das grandes periferias urbanas e mulheres. Nessa perspectiva, os jovens foram percebidos como ameaças à ordem social e interpretados a partir de questões – violência, consumo de drogas, gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis – que realçavam as imagens de risco e transgressão. Tais concepções sobre a juventude resultaram em ações e políticas públicas em que, muitas vezes, os jovens eram colocados em situação de vulnerabilidade pelo próprio Estado. Desde meados dos anos 2000, a mobilização de setores da sociedade – organizações da sociedade civil, movimentos sociais, pesquisadores, gestores governamentais de diferentes instâncias, entre outros –, inclusive dos próprios jovens e de organizações juvenis, tem contribuído para a emergência e consolidação de uma perspectiva segundo a qual a juventude é compreendida como etapa singular do desenvolvimento pessoal e social, para a qual o Estado e a sociedade devem estar atentos e estruturar políticas públicas capazes de garantir a cidadania e a plena satisfação de seus direitos em diferentes domínios da vida: social, político, econômico e cultural. Tal perspectiva reconhece que os jovens são sujeitos de direitos e, portanto, deve-se formular políticas públicas específicas para essa categoria. A criação do Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) e da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) em 2005 e a institucionalização de diversas políticas públicas no âmbito dos governos federal, estaduais e municipais são exemplos dessa nova realidade. Ainda que reconheçamos os avanços obtidos nos últimos anos, os jovens continuam sendo um dos setores que mais sofrem com a violência, o desemprego, a falta de transporte e o trabalho precário. Diante desse quadro, torna-se importante pensar, no âmbito da cidade do Rio de Janeiro, a realidade da juventude carioca e tentar propor alguns caminhos para que este setor possa ser protagonista de um novo ciclo de desenvolvimento da nossa cidade. A grande presença de jovens em movimentos que resistem à produção de uma cidade excludente mostra a força que a juventude pode assumir na construção de um modelo de cidade, no qual os diretos de cidadania se sobreponham aos interesses do mercado. A juventude da cidade do Rio de Janeiro, entre 15 e 24 anos, representa 15,4% dos moradores do município. A maioria mora nas favelas e 52,5% são negros (CENSO DEMOGRÁFICO, 2010). Desses, 16,4% não estudam e não trabalham, 24,2% moram em domicílios pobres e 10,6% em habitações extremamente pobres. Diante dessa realidade, escolhemos discutir os desafios que se apresentam, principalmente, aos jovens que são colocados em situação de vulnerabilidade e tentar apresentar algumas saídas. Nesse sentido, este artigo tomará como eixo a defesa do direito à cidade

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como forma de se viver a juventude plenamente por todos os jovens de forma democrática. Ao colocarmos dessa forma, reconhecemos que a juventude não necessita apenas de políticas que tenham por objetivo ofertar aquilo que ela carece. Mais do que isso, as políticas públicas precisam reconhecer os singulares modos de vida e garantir as condições para a possibilidade de construção de trajetórias e independência desses sujeitos, independente da sua classe social. Mediante essa ideia-força, dividiremos este artigo em três tópicos: educação e trabalho, direito à mobilidade urbana e o extermínio da juventude negra.

Juventude, educação e trabalho Na cidade do Rio de Janeiro, a taxa de jovens, entre 15 a 24 anos, que estão empregados ou procurando emprego (PEA) em relação ao conjunto de todos os jovens teoricamente aptos a exercer uma atividade econômica (PIA) é de apenas 48,9% (IBGE, 2010). Essa taxa é considerada baixa se comparada com outras capitais e mesmo com a média brasileira. Por outro lado, em que pese o aumento da escolarização formal entre os jovens de 15 a 24 anos, 21% não estudam e nem trabalham e apenas 13,3% estudam e trabalham, enquanto na cidade de São Paulo esse número chega a 18,7% (CENSO DEMOGRÁFICO, 2012). Esses números se mostram preocupantes uma vez que, com a transformação econômica e social ocorrida no Brasil nos últimos anos, um elemento importante a ser notado, nessa nova dinâmica, é o chamado bônus demográfico4. Previsto para durar até 2030, o bônus demográfico significa que a população economicamente ativa (entre 15 e 64 anos) é maior que a população inativa (menores de 14 anos, maiores de 65 anos). Isso implica uma janela de oportunidade econômica que só pode ser aproveitada em um modelo econômico que busque o pleno emprego e a formalização da mão de obra. Esse modelo econômico deve investir prioritariamente na parcela mais jovem da população economicamente ativa, uma vez que será ela que seguirá trabalhando quando o bônus demográfico acabar. Quanto mais qualificada e formalizada for a juventude hoje, menos a economia do município vai sentir o peso da inversão demográfica que fará, a partir de 2030, com que a população economicamente ativa seja menor que a inativa. Diante desses dados gerais sobre a situação de atividade da juventude no Brasil e no município do Rio de Janeiro, propomos debater educação e trabalho 4

http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/capt12_estrutura.pdf

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como duas dimensões de um mesmo movimento. Trabalhar e estudar não são situações que se anulam nas trajetórias dos jovens, especialmente a partir dos 18 anos, quando, de maneira mais intensa, é possível perceber a busca por conciliar formação e experiências no mundo do trabalho. O trabalho é uma dimensão presente e central na estruturação das expectativas e dos projetos da população juvenil brasileira. Um conjunto significativo de jovens trabalha, busca emprego e combina o serviço com os estudos e outras dimensões da vida juvenil. Além disso, há grandes expectativas em torno dessa esfera, mesmo entre aqueles jovens que ainda não iniciaram suas trajetórias profissionais. Para tanto, é importante articular de forma vigorosa os vínculos entre a juventude, a educação e o mundo do trabalho. No período do neoliberalismo, parte das reivindicações sobre esse tema giraram em torno de uma noção de que deveríamos adiar ao máximo a entrada dos jovens no mercado de trabalho. Tal formulação teve sua importância em um momento de resistência em que a entrada no mercado de trabalho significava, quase necessariamente, abandonar a escola e viver em trabalhos precários, ou mesmo em situação de desemprego. O crescimento econômico, articulado com a diminuição das desigualdades e a instituição de políticas de consolidação de direitos, implementadas nos últimos 15 anos, nos permite pensar uma nova perspectiva para a relação entre juventude, trabalho e estudo. Diferentemente dos Estados de Bem-Estar europeus, construídos no pósguerra, em que o pleno emprego se baseava no trabalho, majoritariamente fabril e exercido por homens adultos brancos, as particularidades do mundo do trabalho atual – bem mais diversificado e informatizado após a reestruturação produtiva dos anos 1970 (HARVEY, 1996) – e as especificidades dos sentidos de ser jovem na sociedade brasileira e, particularmente, no Rio de Janeiro, nos obrigam a incluir novas perspectivas. Torna-se necessário, em relação ao trabalho juvenil, formular políticas públicas que insiram os jovens no mundo do trabalho de maneira desprecarizada, para além do seu simples adiamento. A juventude brasileira sempre teve participação significativa no mundo do trabalho e este é um elemento importante para construção das suas trajetórias de vida. Outro fator importante se refere à opção de entrada no mundo do trabalho. Embora a maioria da juventude ingresse no mundo do trabalho por necessidade, muitos fazem essa opção por satisfação pessoal, buscando autonomia em relação à família ou a viabilização dos seus projetos de vida. Portanto, reconhecer essa dimensão presente na vida dos jovens parece relevante para impulsionar um novo ciclo de desenvolvimento no Rio de Janeiro e garantir o pleno direito de viver a cidade. É mister garantir políticas específicas que assegurem a geração de emprego, renda

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e o acesso ao trabalho decente para a juventude; que combatam o desemprego juvenil; que ofertem formação adequada para a entrada qualificada no mundo do trabalho e que viabilizem a possibilidade de conciliar trabalho, educação e vida familiar. Então, não se trata apenas de pensar em políticas que retardem a entrada da juventude no mercado de trabalho. Aliado a isso, é necessário formular ações que qualifiquem as ofertas e os postos de trabalho para a juventude. Nesse sentido, os jovens não devem ser definidos apenas por aquilo que não têm, por uma carência que os deixa em situação de vulnerabilidade. Os jovens precisam ser entendidos também pelo que produzem e pelo seu potencial de produção. Nesse caso, as políticas públicas devem reconhecer e incentivar essa dimensão produtiva presente, mesmo que em diferentes graus, na vida de qualquer um. É essa perspectiva que orienta a Lei nº 12.852/2013, que institui o Estatuto da Juventude, ao reconhecer o direito da juventude “à profissionalização, ao trabalho e à renda, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, adequadamente remunerado e com proteção social” (BRASIL, 2013). Além disso, mediante um quadro de grave crise financeira que já afeta o município do Rio de Janeiro, torna-se necessário a elaboração de políticas que garantam emprego e renda, sobretudo para os setores mais vulneráveis. Sabe-se que, historicamente, nos momentos de crise a juventude, principalmente os(as) negros(as) e as mulheres, é a categoria que mais sofre com o desemprego, a precariedade no trabalho, com a violência e com a deterioração da qualidade de vida em geral. Por outro lado, as novas formas de trabalho – que estão se expandindo desde a reestruturação produtiva dos anos 1970 e da chamada revolução tecnocientífica dos anos 1990 –, vinculadas ao setor de serviços e aos meios informacionais e comunicacionais de alta tecnologia da produção, são realizadas por pessoas cada vez mais jovens. Esse tipo de trabalho não se concentra apenas nas grandes empresas, mas, também, em novos tipos de associativismo e de empreendedorismo. Incentivar, através de políticas públicas, o potencial criativo e de produção da juventude, principalmente na cidade do Rio, em que o setor da economia criativa e do turismo tem uma forte presença na economia, pode ser uma das respostas para incidir na superação da crise econômica e até mesmo investir em uma nova matriz econômica menos dependente do setor de exportação de commodities. Assim, levando em consideração as novas formas de trabalho praticadas principalmente por jovens e a energia criativa presente na juventude, é possível pensar políticas que revertam essa potência para amenizar e superar elementos da crise econômica vigente em nosso município. Incentivar formas de produção coletivas e criar dispositivos da economia solidária podem fazer esses jovens complementa-

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rem sua renda, desenvolver empreendimentos, continuar seus estudos e fortalecer a economia de sua comunidade. Além disso, podem surgir dessas experiências modelos de desenvolvimento mais sustentáveis e menos mercantilizados de cidade.

A juventude carioca e o direito à mobilidade urbana Uma das bandeiras capazes de mobilizar a juventude da cidade do Rio de Janeiro é a luta pelo direito à mobilidade urbana. Os/as jovens circulam pela cidade com os mais diversos fins: frequentar a escola e a universidade, ir para o estágio ou o emprego, visitar os amigos, ir à praia etc. O Rio de Janeiro é uma cidade com muitos lugares histórico-culturais, que possibilitam diversos percursos aos/ às jovens, ávidos/as por explorar e se descobrir na metrópole. Podemos dizer que não há direito à cidade sem que esteja garantida a livre circulação da juventude. Para fazer um balanço crítico da efetivação desse direito na cidade do Rio, é importante ressaltar que dois poderosos atores políticos colocam-se avessos a quaisquer mudanças: as empresas de ônibus, com grande influência político -econômica nas eleições municipais, e a indústria automobilística, refratária à utilização de novos modais, como o cicloviário. No Rio de Janeiro, em especial, a família Barata, detentora de cerca de 25% dos ônibus da cidade, é conhecida por suas relações políticas próximas ao métier político5. Mesmo diante desse poder político-econômico complexo, as manifestações de junho de 2013 foram capazes de garantir uma importante conquista para os/as jovens da cidade: o passe livre para universitários cotistas, prounistas e com renda familiar per capita de até 1 salário mínimo6. Uma das principais dificuldades dos/as jovens negros/as e pobres, ao acessar o ensino superior, é a sua permanência nos estudos. Logo, o transporte gratuito passa a ser uma das dimensões do direito à educação desses/as jovens7. Essa conquista, contudo, não deve ocultar as limitações impostas à circulação dos/as jovens pela cidade. Além do aumento contínuo das tarifas de ônibus muhttp://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-07-28/em-nova-gravacao-bethlem-diz-que-foi-muito-util-a-empresario -rei-do-onibus.html Acesso em 12.02.16, às 16:13. 6 Está previsto no Decreto 38.280, de 29 de janeiro de 2014. São 76 viagens por mês; 4 por dia, ao máximo. Pode ser utilizado nos finais de semana e feriados. Tem que ser preservadas 2 viagens por dia útil até o final do mês. 7 No final de 2015, foi promulgada pelo Congresso Nacional a Emenda Constitucional 90, de 15 de setembro de 2015, que estabeleceu o direito ao transporte como um direito social, insculpido no artigo 6º. Esta era uma das principais bandeiras do Movimento Passe Livre nas manifestações de junho de 2013. 5

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nicipais8, não é possível dizer que um/a jovem universitário/a, cuja família possua 1,5 salário mínimo de renda per capita, tem condições de custear seu transporte pela cidade. É por isso que muitos/as jovens, ano a ano, vem organizando manifestações contra o aumento das tarifas no transporte público. É preciso abrir um debate entre poder público e sociedade civil sobre as taxas de lucro dessas empresas de ônibus e a limitação do direito de ir e vir de uma parcela da juventude carioca. A obstrução mais direta ao direito à mobilidade urbana evidenciou-se com a extinção de 22 linhas de ônibus, que atendem passageiros das zonas Norte e Oeste do Rio de Janeiro, utilizadas no acesso às praias da Zona Sul. Essa medida foi determinada pela Secretaria Municipal de Transportes e visou, segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública, à diminuição de crimes na orla do Rio, principalmente os arrastões. Os ônibus passaram a fazer baldeação no Centro ou em Botafogo, locais em que os/as jovens, em sua maioria negros/as, eram revistados/as pela Polícia Militar9. Ora, se a praia de Ipanema é identificada como local potencial para a infração criminal, a medida mais eficiente para preveni-la é o reforço do policiamento nesses hotspots10 e a instalação de câmeras que possibilitem a identificação dos eventuais criminosos. A restrição do uso das praias pelos/as jovens negros/as pobres fere o princípio da presunção da inocência e reforça um estereótipo racista e classista, que legitima o pensamento conservador de uma parte da imprensa e da riqueza econômica carioca. É preciso também que o poder público municipal promova as mudanças que o Prefeito Fernando Haddad vem fazendo no transporte público da cidade de São Paulo. O incentivo ao uso de novos modais, como o cicloviário, é investimento em uma maneira mais rápida e menos poluente de deslocamento nos grandes centros urbanos, bem como constitui um hábito mais saudável para as pessoas. Além disso, a bicicleta é um transporte de mais fácil acesso à juventude, que não tem condições de comprar um carro ou usar o transporte público cotidianamente. Muito embora tenha sido recentemente inaugurada a ciclovia da Niemeyer, que liga o Leblon a São Conrado, os/as jovens moradores do subúrbio e dos bairros mais pobres devem ter garantido o direito a utilizarem bicicletas como meio de transporte. A tarifa de ônibus na cidade do Rio de Janeiro passou, em 2016, de R$ 3,40 para R$ 3,80. Trata-se de um aumento de mais de 10% acima da inflação do ano de 2015. Aliás, os preços controlados, como as tarifas de transporte público, são componentes importantes para explicar as altas inflacionárias dos últimos anos no país. 9 http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-09-15/fim-do-acesso-direto-as-praias-da-zona-sul-vira-polemica-na -zona-norte.html Acesso em 12.02.16. 10 Termo utilizado na segurança pública para identificar, através de georreferenciamento, os locais específicos de um território onde há maior incidência de crimes. 8

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Portanto, a política municipal, que garantiu aos/às jovens universitários/as pobres e negros/as o passe livre, convive com políticas excludentes, que impedem que eles/as possam exercer plenamente o seu direito à cidade. Uma nova política de mobilidade urbana para a juventude deve ter, em seu centro, o controle público sobre as concessões das empresas de ônibus, o investimento em novos modais, especialmente, o cicloviário, e deve refutar teses que visam a criminalizar a juventude negra.

Homicídios no Rio: a vida da juventude negra importa Viver a vida plenamente na cidade maravilhosa significa, para o jovem negro, sobreviver às violências cotidianas, em especial à violência letal. O medo acarretado pelas chances de ser alvo de armas de fogo faz parte do imaginário de uma juventude que é obrigada a gritar pelo direito básico à vida. Os contextos sociais violentos em que vivem os jovens negros cariocas têm como causa e consequência a desestruturação familiar, a interrupção de trajetórias de vida, a restrição da liberdade para sair de casa e andar por certos lugares e a descrença no Estado e nas instituições policiais como entidades garantidoras de direitos. De início, é importante traçar um panorama geral sobre o problema social dos homicídios. Eles são, atualmente, uma grande questão mundial, mas com alta concentração na América Latina. O Brasil, obviamente, pelo tamanho de sua população, tem um peso importante. No país, 56.337 pessoas foram vítimas de homicídio em 2012. Os jovens, faixa da população entre 15 e 29 anos, corresponderam a 54% das vítimas, muito embora representem 26,9% da população; os homens foram 91,6% dos assassinados. Na comparação étnico-racial, morreram por homicídio, em 2012, 41.127 negros e 14.928 brancos. (WAISELFISZ, 2014, pp. 129-130). Os jovens negros têm 2,5 vezes mais chances de serem assassinados do que os jovens brancos. (BRASIL, 2014a, p. 21) É nesse sentido que o Governo Federal formulou o Pacto Nacional Pela Redução dos Homicídios.11 Esse Pacto teve como ponto de partida reuniões feitas pelo Ministério da Justiça com especialistas na área de segurança pública. Essas reuniões apontaram para a necessidade de formulação de uma política nacional sobre o tema, que desse conta de reunir e articular os esforços de A maior responsabilização da União foi tema de debate na campanha eleitoral de 2014. A candidata eleita comprometeu-se em seu programa a alterar a Constituição e tomar a frente da discussão sobre a redução dos homicídios. 11

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governos, em seus diferentes níveis, além dos movimentos sociais e pesquisadores da área. O Pacto ainda não foi apresentado pelo Governo Federal, mas os estudos feitos pelos pesquisadores de violência e segurança pública podem ser marcos importantes para a implantação de políticas municipais. Além disso, o Plano Juventude Viva, coordenado pela Secretaria Nacional de Juventude e pela Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial, lançado no final de 2013, já apontava a preocupação do Estado com a vulnerabilidade dos jovens negros à violência física e simbólica. Essa vulnerabilidade baseia-se, principalmente, no problema da alta taxa de mortalidade dos jovens por homicídio12. (BRASIL, 2014b) Mas, por que recaem sobre os jovens a maioria dos homicídios? Uma hipótese é que a juventude é um momento de formação psicológica e de consolidação de vínculos sociais, que configurariam um sentimento de pertença dos jovens à ordem social estabelecida. Sem perspectivas, o jovem estaria sujeito a se afirmar a partir da inclusão em grupos criminosos, em especial o tráfico, e a partir do uso da arma como instrumento de poder. Seriam necessárias, portanto, políticas públicas para oferecer alternativas a essa trajetória social violenta. Dentro deste contexto social de oportunidades violentas, o jovem torna-se agressor e vítima. Com relação aos homicídios no Rio de Janeiro, apesar da queda dos números em 201513, convivemos com uma taxa considerada epidêmica pela Organização Mundial de Saúde. Enquanto a organização estabelece a faixa limite de 10 homicídios dolosos por 100.000 habitantes, a cidade teve 18,6 por 100.000 habitantes. Isso sem mencionar o fato de que existe um padrão de concentração espacial dos homicídios em áreas específicas da cidade: regiões com alta vulnerabilidade social, pouca presença de serviços públicos e deterioração urbanística. Dinâmicas excludentes de urbanização, que produzem desigualdades sociais latentes, seriam fatores importantes para explicar altas taxas de homicídios em favelas e periferias urbanas (BEATO e ZILLI, 2015, p. 76). Isto é, se recortarmos os territórios em que existem favelas e bairros pobres, há uma possibilidade de que essa taxa aumente exponencialmente:

12 O Plano promove uma articulação entre União, Estados e Municípios para ofertar políticas sociais visando à redução da vulnerabilidade social dos jovens em 142 municípios com maior número de homicídios por 100.000 jovens. Estes municípios concentram 70% dos homicídios de jovens negros no país. 13 É preciso ler criticamente os dados produzidos pelos órgãos de segurança. Eles podem ser manipulados de várias formas pelas polícias. A diminuição dos autos de resistência pode se justificar pelo aumento da prática de desaparecimento de corpos, por exemplo.

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A Área Integrada de Segurança Pública (AISP) 41, que inclui a favela de Acari, teve o maior número de registros de “homicídios decorrentes de intervenção policial” em 2014, de acordo com dados oficiais. São 68 casos registrados, de um total de 244 na cidade do Rio de Janeiro. Dez deles ocorreram na favela de Acari. (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015, p. 4)

Ressalte-se que a taxa de homicídios por 100.000 habitantes na cidade do Rio em 2012 de um jovem branco foi de 20, enquanto que a de um jovem negro foi de 64,1, ou seja, três vezes maior. A comparação entre essas taxas em 2015 ainda deve evidenciar que a “carne mais barata no mercado é a carne negra”. Outro dado agravante no Rio de Janeiro é o aumento da taxa de letalidade policial em 10,3% entre 2014 e 2015 (644 mortes por intervenção policial). A polícia militar do Rio de Janeiro é uma das mais letais do país, junto com a de São Paulo. Não se deve descartar também a prática recorrente de desaparecimentos, usada para diminuir o número de homicídios registrados. Essa é uma hipótese não estudada ainda para a variação da taxa nesses anos, mas deve ser levada em consideração. O episódio dos 4 rapazes mortos por policiais quando passeavam de carro em Costa Barros, após terem ido ao Parque Madureira comemorar o primeiro salário de um deles, é um retrato do que ocorre com a juventude negra do Rio de Janeiro. É inimaginável que ocorra um episódio como esse na Zona Sul da cidade ou na Barra da Tijuca14. É por essas razões que a Prefeitura deve assumir o debate da segurança pública. A União formulou o Pacto Nacional pela Redução dos Homicídios e os Governos Estaduais e Prefeituras vêm negociando as diretrizes, estratégias e principais metas. É preciso que o poder público elenque o tema como uma prioridade de governo, promova estudos sobre as causas e dinâmicas dos homicídios e formule um programa de redução de mortes com foco na juventude negra. Esta política deve envolver as polícias, a Secretaria de Segurança Pública do Estado, o Ministério Público e o Poder Judiciário e deve ter como foco reduzir os homicídios nos bairros com as maiores taxas de letalidade. As escolas do entorno, as comunidades e as famílias devem ser mobilizadas para se envolverem na política. Uma política de segurança pública territorializada e institucional e socialmente articulada pode garantir a preservação da vida de centenas de jovens negros cariocas.

http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/11/jovens-mortos-por-pm-em-costa-barros-rio-sao-enterrados.html Acesso em 16.02.16, às 20:52. 14

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Conclusões Juventude é uma categoria historicamente em disputa, fato que vem influenciando a elaboração de ações e políticas públicas dos governos em torno do tema. Tratar a juventude como um problema contribuiu com o agravamento de questões perversas na nossa sociedade, como o aumento da criminalização e o encarceramento em massa. Em nossa perspectiva, os jovens devem ser reconhecidos como sujeitos de direitos e o Estado deve garantir que a juventude exerça plenamente todas as suas potencialidades. Os/as jovens devem ter oportunidade de trabalho e educação, devem ter sua livre circulação garantida e devem ter suas vidas protegidas. Dessa forma, faz-se necessária uma mudança na orientação geral das políticas públicas que têm como foco a juventude da cidade do Rio de Janeiro. Isso porque a juventude deve ser entendida como um tema transversal, relacionado a diferentes áreas da gestão municipal. O papel protagonista assumido pelo mercado na condução do público vem repercutindo negativamente na consolidação dos direitos da juventude. O arranjo político-empresarial que dirige a cidade há anos deve ter seus interesses e políticas questionados por uma ampla plataforma de garantia de direitos e afirmação do público, tarefa designada pelos partidos de esquerda e movimentos de juventude da cidade. Por fim, mas não menos importante, é preciso também que esse conjunto de organizações denuncie o golpe em curso no Brasil contra a presidenta Dilma Rousseff e a institucionalidade democrática do país. Os peemedebistas Eduardo Cunha e Michel Temer arregimentaram interesses escusos para formar uma maioria política e, desavergonhadamente, promover o impeachment da presidenta sem respeito aos requisitos legais constitucionais. Esse golpe, que conta com apoio do núcleo político dirigente da Prefeitura do Rio de Janeiro, tem suas diretrizes especificadas no documento “Uma Ponte para o Futuro”. Trata-se de um ataque aos direitos da juventude, pois o fim de investimentos mínimos fixos em educação e a desvalorização dos direitos trabalhistas colocarão ainda mais obstáculos às trajetórias de vida dos/as jovens cariocas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:  ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou meu filho – Homicídios come dos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anis a Internacional, 2015.  BEATO, Claudio e ZILLI, Luís Felipe. Gangues juvenis, grupos armados e estruturação de a vidades criminosas na Região Metropolitana de Belo Horizonte. In: Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, Edição Especial nº 1 – 2015 – pp. 73-110.  BRASIL. Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência 2014. Secretaria-Geral da Presidência da República, Ministério da Jus ça e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Brasília. 2014.  ________. O Plano. Re rado do sí o h p://juventude.gov.br/ juventudeviva/o-plano#.VagWHflViko, em 16.07.15, às 17:40. Publicado em 2 de dezembro de 2014.  ________. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013 que Ins tui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das polí cas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude – SINAJUVE.  CENSO DEMOGRÁGICO 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.  HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 6 ed. São Paulo: Loyola, 1996.  HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos, o breve séculos XX. Cia das Letras. 2009.  WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2014 – Os jovens do Brasil. Rio de Janeiro: FLACSO, 2014.

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CAPÍTULO 10 Segurança Pública, Polícia e Guarda Municipal na cidade do Rio de Janeiro: alguns elementos para o debate ANGELO REMEDIO NETO1, ELIZABETE RIBEIRO ALBERNAZ2 E ROGERIO DULTRA DOS SANTOS3

A

população da cidade do Rio de Janeiro está acostumada há decadas com manchetes de jornal e com reportagens televisivas sobre violência. Em geral, a apresentação do tema pela mídia tem um viés muito particular. Diferentemente do noticiário econômico, pautado pela detalhada análise de dados compilados e de índices oficiais, as notícias relativas à violência urbana focam quase exclusivamente casos exemplares. O método é de propaganda: é o da difusão massiva de fatos violentos isolados, geralmente ligando um conjunto muito limitado de crimes a um modelo estereotipado de criminoso, ordinariamente jovem e socialmente marginalizado4. O avanço organizado de campanhas midiáticas que geram a sensação de insegurança da população reforça o argumento falacioso de que a ampliação

1 Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense, Mestrando em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). 2 Antropóloga, Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS-UFRJ), Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal Fluminense, Professora do Curso de Graduação em Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense. 3 Graduado Em Direito, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Doutor em Ciência Política pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Professor Adjunto IV da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. 4 Ver, nesse sentido, ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Tradução Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991 e CERVINI, Raúl. Os Processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

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da legislação penal e de sua intensidade colaboram diretamente para a redução das taxas de criminalidade. A solução “mágica” apresentada passa igualmente pelo reforço dos aparelhos repressivos tradicionais, como as polícias e as políticas públicas de segurança (cf. SANTOS, 2009). Para além das distorções usuais no debate público, onde violência é identificada com marginalidade social e não com exploração e submissão sistêmicas da população, os casos em debate destacam geralmente os de violência cometida por pobres (furto, roubo e tráfico de drogas simples) ao invés de focar nos de violência contra pobres (extermínios sumários, abuso de autoridade, desaparecimentos, “autos de resistência”, etc.). Nota-se, portanto, que o sistema de segurança pública atua como se a violência derivasse da pobreza. A esta narrativa perversa se agrega uma outra ainda mais míope e mais grave: a pobreza, a exclusão e a marginalidade são tidas como normais, recolocando-se no discurso os problemas gerados pela desigualdade da organização capitalista da cidade como oriundos da própria pobreza. Na década de 1990 e início do século XXI, o Rio de Janeiro estimulava um imaginário coletivo de ser uma “zona de guerra”. Por meio da mídia, a cidade era vista como um palco de duelos constantes entre facções criminosas e policiais. Essa versão enviesada terminava por gerar uma sensação constante de insegurança, e a violência real que, se de fato e estatisticamente era comum na periferia, com a ajuda dos meios de comunicação se generalizava por toda a cidade: ou seja, o imaginário social amplificava o conflito urbano, em especial nas áreas mais nobres da zona sul e zona norte. Percebe-se, dado seu forte caráter de classe, que a questão da segurança pública na cidade do Rio de Janeiro está intimamente relacionada com a própria organização e significação do espaço urbano. Se o Brasil passou por grandes transformações na última década, talvez a cidade do Rio de Janeiro tenha sido sua principal vitrine. A cidade alçou níveis de reconhecimento talvez inéditos no cenário global. A isto se juntou um processo brutal de crescimento da construção civil local, revitalização de áreas que passaram a ser vistas como estratégicas, trazendo como consequência a sua sobrevalorização e estimulando a especulação imobiliária e a segregação social. Assim, este modelo de desenvolvimento se realizou não só com a criação de zonas de marginalidade, em relação às quais o abandono do poder público e a falta de investimento passam a ser vistos como naturais, mas também com uma naturalização da distinção de tratamento entre áreas diferenciadas da cidade. As zonas socialmente privilegiadas sofrem uma intervenção “anabolizada” dos aparatos de segurança – mesmo que estatisticamente os dados não indiquem tal necessidade. Enquanto isto, os bairros marginalizados – locais em que as estatís-

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ticas de violência contra a população se avolumam – são deixados à própria sorte ou submetidos a intervenções de natureza bélica, onde a população civil mais uma vez transforma-se em alvo fácil da violência e da barbárie. A gestão de segurança pública se colocou, desta forma – seja pela realidade das cifras, seja pela fantasia de sua distribuição na geografia –, como um dos maiores desafios aos governantes do Rio de Janeiro. A consequência foi que as políticas públicas de inclusão – educação, saneamento, saúde –, até então negadas às populações marginalizadas na cidade, foram deliberadamente negligenciadas em prol de uma agenda repressiva, calcada na ocupação e no gerenciamento policial de território. A Polícia Militar estadual e a Guarda Municipal do Rio de Janeiro – objetos deste artigo – se enquadram claramente neste projeto de controle social. No caso do Rio de Janeiro, a violência urbana e a segurança pública, apesar de experimentos variados, não são problemas equacionados de forma qualificada até o presente momento. Esta situação agrava-se com o processo de gentrificação da cidade, isto é, com a elitização radicalizada do espaço e a consequente segregação das populações por questões econômicas, sustentadas e justificadas pelos meios de comunicação de massa. Isto se dá, em especial, com o estímulo das grandes obras e eventos que aqui passaram a ocorrer, como os Jogos Pan-Americanos de 2007, a Jornada Mundial da Juventude em 2013, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Este artigo buscará apontar rapidamente alguns elementos sobre a segurança pública na cidade do Rio de Janeiro, afim de que se problematizem seus limites e possibilidades, analisando para isto duas de suas instituições centrais: a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora da Polícia Militar e a utilização da Guarda Municipal do Rio para atividades excepcionais de policiamento. Levaremos em consideração esse contexto ainda reinante de desigualdade, falta de investimentos sociais, formação limitada das polícias e de dissociação dos policiais de direitos sociais básicos, como o direito à greve e à jornada de trabalho.

As UPPs e os seus limites O principal e mais grave problema da segurança pública na cidade do Rio de Janeiro é o alto índice de letalidade, muitas vezes provocado pelas próprias polícias, especialmente a Polícia Militar, responsável pelo policiamento ostensivo. É a violência contra as populações pobres que representa a verdadeira endemia da cidade. E isto em especial se esta parte mais carente da população ocupa zonas territorialmente privilegiadas – as favelas encrustradas nos bairros nobres, que alteram a

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dinâmica de ocupação da cidade e de seus aparelhos públicos. Nas áreas onde prevalece o poder das milícias e/ou do tráfico, as polícias do Rio de Janeiro são chamadas à responsabilidade de garantir direitos básicos de cidadania, como a liberdade de ir e vir, a integridade física e a vida. Neste quadro, a utilização das Companhias de Policiamento Comunitário nasce como estratégia de contenção de homicídios e como método de organização da intervenção da polícia nas comunidades. Entretanto, o que ocorre de fato é completamente diverso do discurso de justificação. Especialmente concentrada na zona sul e zona norte – desprivilegiando a Baixada e a região metropolitana –, a política de ocupação armada estruturou um “cinturão higiênico” em torno das comunidades favelizadas, com o claro objetivo de afastar os inconvenientes do tráfico e das milícias. A política de instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) em diversas comunidades a partir de 2009, ao lado da implantação do Sistema Integrado de Metas (SIM) em 2010, alterou o cenário de mais de 200 favelas na cidade do Rio (cf. MISSE, 2014). Totalizando atualmente 38 unidades5, as UPPs buscam, ao menos no discurso oficial, tratar a segurança pública com uma nova perspectiva, menos de conflito, e mais de aproximação. O chamado Policiamento Comunitário foi o fundamento discursivo das UPPs. Calcado na lógica de aproximação, colaboração e responsabilidade compartilhada entre polícia e comunidade, o policiamento comunitário redundou, no Brasil, em alguns casos, numa estratégia de monitoramento moral e criminal da população favelizada. O problema básico é que não houve, por parte das polícias militares, alteração da estrutura organizacional ou mesmo das práticas operacionais conforme a demanda do modelo de polícia comunitária. Filosofia de trabalho questionada pelos próprios policiais, o novo modelo se acomodou rapidamente aos procedimentos repressivos e reativos tradicionais (cf. ALBERNAZ, E.R.; CARUSO, H.; PATRÍCIO, L, 2007). Policiais com remuneração diferenciada e recém-formados ocupam áreas em que as instalações e os equipamentos públicos não existem ou têm presença precária após as atividades de milícia e tráfico serem reprimidas pelo BOPE (Batalhão de Operações Especiais) e as áreas de instalação serem definidas pelo Batalhão de Choque (cf. MISSE, 2016). Primeiramente, se “pacificam” os morros da Zona Sul, Grande Tijuca e Centro. As UPPs, posteriormente, chegam também às Zonas Norte e Oeste da cidade. De fato, o número de confrontos armados acabou por diminuir nestas regiões, e também o número de vítimas letais advindas de armas de fogo. 5

http://www.upprj.com/index.php/historico

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Ocorre que as UPPs, em seu discurso oficial inicial, almejavam chegar às favelas para levar direitos básicos e condições estruturais historicamente negados às suas populações. O que se enxerga hoje é uma ausência nas mudanças estruturais das regiões ocupadas. As populações locais continuam sem acesso básico à saúde, educação, saneamento e transporte. A situação própria advinda de tanta desigualdade, que acabou por gerar violência e criminalidade, não foi em si combatida. A segurança pública não deixou de ser vista através de uma ótica militar. Investimentos que melhorem a vida das populações locais se tornaram muitas vezes ausentes, e, quando presentes, extremamente insuficientes. De outro lado, os policias da UPP se encontram sem a definição de um mandato – sem que as suas responsabilidades sejam definidas expressamente –, e submetidos a um violento sistema de exploração e punições. Assim, o que precisamos debater é que a mudança no discurso das autoridades em relação à segurança pública na cidade do Rio de Janeiro, assim como o controle de territórios antigamente dominados por facções criminosas, podem se mostrar medidas extremamente débeis se não se tratarem os fatores institucionais da violência que assola nossa cidade. Assim, embora as UPPs sejam de competência do Governo do Estado, a sua atuação se dá a partir de uma lógica de ocupação e controle dos territórios da cidade, dependendo ou fazendo depender suas ações de serviços e equipamentos públicos controlados pelo município, como escolas, as unidades básicas de saúde, etc. Podemos identificar, para tanto, duas razões centrais de manutenção e reprodução da violência – seja estrutural, seja institucional. Em primeiro lugar, como dito acima, as condições materiais e estruturais das populações moradoras das favelas, submetidas a uma vida de constante penúria, carência e violência. Vida esta compartilhada pela maior parte dos efetivos policiais do Rio de Janeiro, acabando por alimentar uma verdadeira “guerra de pobres contra pobres”. Esta guerra se mostra extremamente letal, mesmo após o advento das UPPs, como nos mostra pesquisa realizada pelo professor Michel Misse sobre os Autos de Resistencia da Cidade do Rio de Janeiro dos anos 2001 a 2011 e a pesquisa citada de Daniel Ganem Misse, sobre a implantação das UPPs a partir de 2009. Especialmente na pesquisa de Daniel Misse, fica claro que a entrada das UPPs se, por um lado, confirmou a diminuição de homicídios, roubos e “autos de resistência”, crimes com tendência de queda antes mesmo da entrada das UPPs (queda de 60%), por outro, aumentou fortemente a ocorrência de registros de lesão corporal grave (300%), furto e estupro (100%). Para Misse, isto se deve ao fato de que as comunidades dominadas pelo tráfico tinham a necessidade de obedecer a um conjunto de regras de convivência extremamente rígidas. Com a entrada das

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UPPs, crimes (furtos, estupros, roubos), brutalmente reprimidos pelo tráfico ou milícias, passaram a ocorrer também nas comunidades depois da “pacificação”. Embora seja clara a falta de registro nos anos que antecederam a instalação das UPPs, o fato é que historicamente os registros de homicídio estavam caindo em toda a cidade, desde 2007. Segundo os dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP) da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, os índices históricos da letalidade violenta são francamente decrescentes na cidade. Para o ISP, a Letalidade Violenta “é um dos indicadores estratégicos de criminalidade que compõem o Sistema Integrado de Metas e Acompanhamento de Resultados (SIM) desenvolvido pela Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESEG)” (ISP, 2016). Este índice é composto pelos seguintes registros: homicídio doloso, homicídio decorrente de oposição à intervenção policial (os denominados “autos de resistência”), latrocínio (roubo seguido de morte) e lesão corporal seguida de morte6.

6 Instituto de Segurança Pública. Série histórica de letalidade violenta. Rio de Janeiro: SSP-ISP, 2015. Acesso em: 5 jul 2016. Disponível em: http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/SerieHistoricaEstadoRegioes.pdf

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Pelo gráfico acima, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes atingiu o seu auge em 1994 (75,9 homicídios por 100 mil/ha), totalizando 4.192 registros de homicídio. Em 2013, a taxa de homicídios foi de 25,1 homicídios por 100 mil/ha (1.613 homicídios). Em 2015 está registrada uma das menores taxas de homicídios por habitante (24,1 por 100mil/ha), num total de 1.562 homicídios registrados. Entretanto, o ISP registra, em 2013, 1.346 pessoas desaparecidas na cidade e, em 2015, um total de 1.648 pessoas desaparecidas. Somando ambas as incidências, temos em 2013 um total de 2959 ocorrências e em 2015 um total de 3210 ocorrências. Assim somadas, temos um aumento de 7,81% de ocorrências. Se a hipótese de que a subnotificação de homicídios está maquiada pela ampliação de notificações de pessoas desaparecidas, temos uma situação bastante alarmante na cidade. Tanto mais quanto a série histórica de diminuição de ocorrências de homicídio começa em 2009, exato ano da implantação das UPPs, de um controle maior da atividade policial através do monitoramento e da cobrança regular de metas mensais para a atividade policial (através do SIM) e do início do aumento das ocorrências de pessoas desaparecidas.7 Correta a hipótese, a cidade continua com alta e crescente taxa de letalidade, tendo sido alterado apenas o protocolo de notificação, substituído o registro de homicídios pelo de pessoas desaparecidas. Este é apenas um dos aspectos do processo de movimentação institucional das polícias, no sentido da sua aparente modernização e adequação a objetivos mais aceitos socialmente – como o da pacificação de territórios ocupados pelo tráfico e/ou pelas milícias. Dimensiona-se, com o exemplo da letalidade na cidade, que esta movimentação das polícias, modificando suas atividades, não redundou necessariamente na melhoria da segurança pública, mas apenas na maquiagem de seus resultados. Percebe-se que questões mais nucleares, possíveis geratrizes do desacerto das políticas de segurança tentadas até então, ainda não foram devidamente enfrentadas. E percebe-se que as UPPs, da forma como se implantaram até aqui, justificam-se como política pública “para inglês ver”, não alterando o quadro endêmico de violência sofrida pela população pobre da cidade.

A atividade policial e os seus limites Um problema central que atinge a prestação dos serviços policiais é a legislação omissa na definição da atividade policial – isto é, o seu mandato. Os organis7

MISSE, Daniel Ganem. UPP e Sistema Integrado… Op. Cit.

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mos policiais no Brasil, seja em nível federal, estadual ou municipal, caracterizamse pela incerteza e falta de clareza em relação aos seus respectivos mandatos e aos protocolos de atuação. Por conta desses fatores, a atividade policial evidencia grande precariedade, o que traz excessiva exposição ao risco do prórpio agente policial. Além desse fator, o treinamento destes profissionais não é padronizado, regulamentado, adequado. Geralmente o policial “aprende” o seu ofício trabalhando, reproduzindo práticas não codificadas que o levam a um funcionamento paralelo e às vezes oposto às regras e normas. Isto coloca o policial em geral numa situação constante de operacionalidade à margem da lei, fragilizando a sua atuação e o colocando sempre contra a operação oficial do próprio sistema de segurança. Some-se a isto a ausência de acompanhamento institucional de seu trabalho cotidiano, o que amplia enormemente sua fragilidade. A inconsistência da atuação policial é tamanha que, para além das indefinições funcionais, não há sequer um rol de direitos sociais e políticos que garanta a proteção do policial contra o arbítrio e a exploração no trabalho. A consequência sistêmica deste quadro é que a culpabilização por erros de conduta ou procedimento é individualizada, e a responsabilidade dos organismos e comandos de polícia é substituída pela penalização ou mesmo exoneração do policial. Há a manutenção de uma irresponsabilidade funcional dos gestores da Segurança Pública que, pela ausência de um mandato e de um protocolo policial, faz recair a culpa sobre os policiais. Assim, a responsabilidade sobre políticas de segurança mal formuladas ou equivocadas tem penalizado sistematicamente indivíduos e não a administração. Em resumo, o policial não possui suas atividades atribuídas, não possui seus atos controlados por civis externos à sua atividade, e não possui uma regulamentação de direitos de trabalho. Vê-se, assim, que a segurança pública no Rio de Janeiro não passou por transformações realmente estruturais nas últimas décadas, apesar da enorme propaganda em torno de “novidades” como as UPPs. Os territórios marginalizados da cidade acabaram por ser ocupados militarmente, sem que chegasse a esses locais uma infraestrutura básica que garantisse uma melhor qualidade de vida às suas populações. Além disso, foram inseridos nesses locais profissionais que são brutalizados em seu trabalho e que atuam em um verdadeiro limbo jurídico. Jovens policiais que não deveriam ser responsabilizados pelas resultantes às vezes catastróficas de sua atividade, quando subsiste uma clara responsabilidade dos gestores de segurança. Torna-se fácil verificar um aumento da violência em regiões da cidade do Rio de Janeiro não atingidas pelas UPPs e na região metropolitana, notadamente São Gonçalo e Baixada Fluminense. Não parece que as causas reais geradoras de uma constante e sistemática violência foram combatidas, muito menos erradica-

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das. O objetivo de toda esta situação – especialmente da intervenção policial nas zonas marginalizadas e nos bairros populares da cidade – era criar uma noção de segurança no imaginário coletivo, para além de uma segurança real. As populações marginalizadas continuam largamente negligenciadas pelo Poder Público. De outro lado, o próprio Policial Militar é também uma vítima desse sistema.

Guarda Municipal A partir das mudanças apontadas na cidade do Rio de Janeiro, buscando colocá-la em um novo patamar econômico, tornou-se essencial para esse processo a atuação ostensiva da Guarda Municipal do Rio de Janeiro. A GM-Rio, como todas as Guardas Municipais, existe constitucionalmente para a proteção e manutenção do patrimônio público. Entretanto, a GM-Rio atua segundo uma função política não expressa de controle da circulação e repressão da população pobre nas zonas nobres da cidade. É uma instituição que basicamente reage à violência geralmente cometida por pobres (furtos, roubos, tráfico simples de drogas) e à existência de comércio informal e dos moradores de rua. Estes compõem os objetos prioritários de sua intervenção, como força de fato subsidiária às polícias estaduais, mesmo algumas destas atividades não sendo atribuições oficiais. A GM-Rio opera, portanto, como instrumento de Estado de profilaxia social, de limpeza urbana da pobreza, auxiliando as polícias estaduais na repressão. A GM-Rio funciona, portanto, reativamente a uma situação social e política para a qual não foi talhada. Diga-se de passagem e de saída que o princípio operativo básico da administração de um modelo reativo de política pública de segurança é o estado de exceção. As regras jurídicas – que garantiriam uma operação “normal” das instâncias repressivas do Estado – são substituídas por atos do Poder Executivo. O núcleo destes atos consiste na autorização da violação do direito — e dos direitos — para a suposta reposição de uma situação de ordem e normalidade, em detrimento de indivíduos considerados de segunda classe ou perigosos. A discricionariedade pública é substituída pelo arbítrio de decisões individuais, sob fundamentos estranhos ao ordenamento jurídico. Este tipo de prática é característico de um modelo jurídico-político de caráter ditatorial caro à história constitucional brasileira e que a cada dia vem se consolidando como uma realidade das ditas democracias contemporâneas (cf. SANTOS, 2006). Como já se disse, a cidade passa por um processo de privatização de seus espaços públicos, de expulsão de populações locais e tradicionais de suas residências,

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numa tentativa de reurbanização pautada pela gentrificação, acelerada pelos megaeventos que a cidade sediou e sediará. Nesse contexto, à GM-Rio foi atribuído um papel explicitamente truculento para consolidar o interesse do grande capital nesses espaços. Tacitamente a ela coube a função de combate a qualquer resistência de ocupação e ressignificação dos mesmos e de repressão a uma economia informal8. A origem deste “desvio funcional” – sempre negado pela sua administração – é que as Guardas Municipais foram criadas no Brasil sob a influência das policias militares estaduais, com a sua vocação de militarização, hierarquia e ostensividade. Embora tenha funções diferenciadas, pesquisas empíricas indicam que o guarda municipal introjeta operar como se fosse um policial militar. Assim, a lógica do conflito, inerente a organizações militarizadas, foi transplantada diretamente para as guardas: o cidadão em situação de rua, o adolescente que comete ato infracional, e mesmo o comerciante de rua são compreendidos como inimigos a serem combatidos fisicamente. Ocorre que um número expressivo de legislações pelo país afora passou a atribuir capacidade de policiamento para as guardas, com a anuência do Poder Judiciário. Esta situação anômala empurrou as guardas para a lógica de organização propriamente policial. Este fato pode ter o Rio de Janeiro como um dos grandes exemplos no cenário nacional, apesar de se propagandear o contrário9. Por outro lado, e contrastando com o dito acima, as guardas municipais têm a função muito mais restrita de proteção do patrimônio. O policiamento ostensivo, o patrulhamento de vias públicas, o auxílio ao público, a investigação e repressão a crimes, a ronda escolar, todas estas são competências exclusivas e constitucionais das polícias militar e civil. Assim, as guardas, pela nossa constituição, não têm função policial propriamente dita. Uma das questões a se debater sobre a operacionalização da GM-Rio é se a sua atuação de fato deve ser funcionar como polícia, de que seja submetida às diretrizes e normativas nacionais de Segurança Pública, como qualquer polícia, para a ampliação do controle sobre suas atividades10. E, numa situação funcional ainda mais precária que a dos policiais militares, descrita acima, o guarda municipal experimenta seu cotidiano sem nem mesmo garantias institucionais como a existência de um hospital exclusivo – 8 Nesse sentido, ver PIRES, Lenin dos Santos. Esculhamba, mas não esculacha! - Uma etnografia dos usos urbanos dos trens da Central do Brasil. 1. ed. Niterói: EdUFF- Editora da Universidade Federal Fluminense, 2011. 9 Lei Complementar Municipal nº 100/2009. 10 PATRÍCIO, Luciane. Guardas Municipais brasileiras: um panorama estrutural, institucional e identitário. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/anuario_ii_-_guardas_municipais_brasileiras_-_um _panorama_estrutural_institucional_e_identitario1.pdf Acesso em: 05 jul 2016.

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como ocorre com a PM. Amplificada de forma extrema e perversa, esta situação de sub-cidadania faz com que o guarda municipal acabe tratando a população da mesma forma, salvo exceções. Infelizmente, a situação de precariedade operacional, técnica e de política pública de segurança das polícias estaduais é realmente reproduzida nas guardas municipais. Desta maneira, para além da Polícia Militar, a GM-Rio realiza um trabalho ostensivo que tem se mostrado extremamente violento e truculento com relação à população mais vulnerável da cidade. Mal remunerados e mal treinados, são colocados sob um estresse constante que acaba por brutalizar suas ações cotidianas.

Conclusões O Rio de Janeiro é uma cidade marcada pela segregação racial, social e espacial de sua população e esta realidade se reproduz no modo como o Estado e o Município lidam com situações diferenciadas de violência urbana. As UPPs representam a ação do Estado contra as populações pobres e espacialmente marginalizadas. A GM-Rio se desenvolve como uma estratégia institucional de segurança pública de limpeza social das áreas nobres da cidade: dela se espera que retire de lá os pobres circulantes. De um lado, as UPPs vieram com um discurso de pôr fim a uma lógica de enfrentamento que durava anos na cidade, vitimando milhares de pessoas todos os anos. Após serem instaladas, entretanto, não se avança na alteração das condições a que estão submetidas as populações moradoras de favelas, que continuam a ter uma precária prestação de serviços. As UPPs não modificaram positivamente as estatísticas de letalidade nestes locais. Por outro lado, os policias e os guardas municipais continuam a ser brutalizados em seu cotidiano, mal remunerados e mal treinados, além de atuar em uma zona jurídica cinzenta, o que acarreta muitas vezes ações extremamente violentas e que não possuem o respaldo oficial de suas organizações, fazendo com que sejam culpabilizados individualmente, como se fossem desviadores de conduta, e não indivíduos inseridos em uma lógica que é institucional. As polícias estaduais e a GM-Rio transformaram-se nas verdadeiras responsáveis pela criminalização da pobreza, e, no caso da PM-Rio, por um número excessivo e inaceitável de mortes e execuções sem processo. Estas instituições encontram respaldo numa legislação que permanece fundada na lógica da guerra ao inimigo interno e em um Judiciário complacente, pouco democrático e majoritariamente conservador. Somado a isto, a Guarda Municipal do

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Rio de Janeiro passou a atuar de uma maneira fortemente repressiva contra os cidadãos pobres que circulam pela cidade, como se eles fossem os verdadeiros inimigos do processo perverso de elitização. O resultado é que temos uma política de segurança pública violenta, longe de ser democrática, que não reconhece direitos sociais dos seus agentes e com a necessidade de reformulação – no sentido da compreensão de suas práticas e de definição coletiva e democratizada de seus objetivos e limites – que ainda não se colocaram como pauta da agenda política do Município do Rio de Janeiro. As atuais políticas de segurança pública têm se mostrado apenas um instrumento de gerenciamento da população economicamente excluída. Nos últimos 30 anos, a opção constante do Ocidente tem sido a redução do Estado de bem-estar e a sua sôfrega permuta por mecanismos penais de controle das classes subalternas. No Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, o fenômeno do Estado policial se manifesta na opção pela política de matança generalizada da população negra e jovem dos morros cariocas. Como a capacidade repressiva do sistema é em tese infinita, estamos constantemente à mercê da exacerbação do morticínio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  ALBERNAZ, E.R.; CARUSO, H.; PATRÍCIO, L. Tensões e desafios de um policiamento comunitário em favelas do Rio de Janeiro: o caso do Grupo de Policiamento em Áreas Especiais. São Paulo em Perspec va, São Paulo, Fundação Seade, v. 21, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2007. Acesso em: 08 abr 2016. Disponível em: h p://www.uece.br/labvida/ dmdocuments/tensoes_e_desafios_do_policiamento.pdf  CERVINI, Raúl. Os Processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.  INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Série histórica de letalidade violenta. Rio de Janeiro: SSP-ISP, 2015. Acesso em: 5 jul 2016. Disponível em: h p://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/ SerieHistoricaEstadoRegioes.pdf

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 MISSE, Daniel Ganem. Cinco anos de UPP: um breve balanço. In: DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social Vol. 7 - no 3 - JUL/AGO/SET 2014 - pp. 675-700. ______. UPP e Sistema Integrado de Metas: impacto na redução da criminalidade violenta? Caxambú, MG: 37º Encontro Anual da ANPOCS, 2013. Acesso em: 4 jul 2016. Disponível em: h p://portal.anpocs.org/portal/index.php?op on=com_ docman&task=doc_view&gid=8584&Itemid=429  MISSE, Michel. “Autos de Resistência”: uma análise dos homicídios come dos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: h p://www.pm.es.gov.br/download/policiaintera va/ PesquisaAutoResistencia.pdf Acesso em: 30 maio 2016.  PATRÍCIO, Luciane. Guardas Municipais brasileiras: um panorama estrutural, ins tucional e iden tário. Disponível em: h p://www.forumseguranca.org.br/storage/download/anuario_ ii_-_guardas_municipais_brasileiras_-_um_panorama_estrutural_ ins tucional_e_iden tario1.pdf Acesso em: 05 jul 2016.  PIRES, Lenin dos Santos. Esculhamba, mas não esculacha! Uma etnografia dos usos urbanos dos trens da Central do Brasil. 1. ed. Niterói: EdUFF- Editora da Universidade Federal Fluminense, 2011.  SANTOS, Rogerio Dultra dos. As Controvérsias da criminologia, a penalização dos adolescentes e o sistema penal como ul ma ra o. In: Le cia de Campos Velho Martel. (Org.). Estudos contemporâneos de Direitos Fundamentais. 1ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, v. 1, p. 151-172.  ______. Algumas notas sobre o RDD e as polí cas públicas de exceção no Brasil. In: CEDES – Centro de Estudos em Direito e Sociedade. Bole m Dez 2006. Rio de Janeiro: PUC-Rio.  ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legi midade do sistema penal. Tradução Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

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CAPÍTULO 11 Politecnia e políticas públicas de educação no Rio de Janeiro

FRANCICLEO CASTRO RAMOS1 E THEÓFILO RODRIGUES2

H

á já algum tempo que a literatura especializada vem apontando para a separação entre educação e trabalho decorrente do desenvolvimento das sociedades de classe. Não só a escola seria apartada do mundo do trabalho, como também haveria escolas e estágios distintos para cada uma das classes de cada período 3 histórico. De um lado teríamos uma escola voltada apenas para a entrada na universidade, de outro teríamos escolas dirigidas ao mercado de trabalho. Um determinado tipo de escola para as elites, outro para as classes subalternas. No Brasil, uma leitura crítica do papel da escola como mera reprodutora das relações sociais de produção surge – sob um viés marxista – a partir da década de 80, com a obra do filósofo e pedagogo Dermeval Saviani. O autor retoma uma proposta derivada da obra de Karl Marx para a nova educação a ser construída e que assumiu um papel cada vez mais hegemônico na pedagogia brasileira, denominada educação politécnica. De acordo com Saviani, “na abordagem marxista, o conceito de politecnia implica a união entre escola e trabalho ou, Francicleo Castro Ramos é Mestre em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Theófilo Codeço Machado Rodrigues é Mestre em Ciência Política pela UFF e Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Rio. 3 Na década de 70, uma série de pensadores franceses, tais quais Louis Althusser (Aparelhos Ideológicos do Estado, 1985), Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron (A Reprodução, 1975), Claude Baudelot e Roger Establet (L’école capitaliste en France, 1971), trataram do tema ao perceberem a escola como reprodutora das relações sociais de produção no sistema capitalista. 1 2

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mais especificamente, entre instrução intelectual e trabalho produtivo” (2003). Contudo, embora seja um referencial importante para os educadores no Brasil, sua efetivação concreta na escola brasileira ainda encontra obstáculos. Neste capítulo, apresentamos algumas aproximações e dificuldades da implementação da politecnia no Brasil a partir do estudo de caso da educação básica na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo central é observar em que medida as políticas públicas educacionais implementadas no município caminham em direção à educação politécnica. O presente capítulo está dividido em duas seções. Na primeira, apresentamos o conceito de politecnia tendo como referenciais teóricos o filósofo alemão Karl Marx, o italiano Antonio Gramsci e o brasileiro Demerval Saviani. Por óbvio, não pretendemos esgotar aqui a contribuição do pensamento marxista para a teoria da educação, mas sim apresentar algumas linhas mestras que clássicos como Marx, Gramsci e Saviani delinearam e que ainda hoje são utilizadas como referencial.4 Na segunda seção apresentamos o formato da educação básica no Rio de Janeiro e suas críticas. Concluímos o texto com alguns indicativos de possíveis caminhos a serem seguidos tendo como norte a implementação da politecnia.

Politecnia e a questão da educação no marxismo O filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) dispensa apresentações mais detalhadas. Sua vastíssima obra vai de estudos da filosofia alemã até a crítica da economia política de sua época, passando por detalhadas análises históricas do conturbado processo revolucionário europeu de século XIX. Seu método original de investigação científica e filosófica, denominado materialismo dialético e histórico, rendeu-lhe críticas, mas também a criação de enorme, diversa e conflituosa corrente de pensamento denominada marxismo, que ainda hoje ocupa relevante espaço na agenda científica e na teoria social e política. No campo pedagógico e na sociologia da educação não foi diferente. Embora Marx jamais tenha escrito de forma sistemática um texto acerca da educação, é possível encontrar na totalidade de sua obra um conjunto amplo de fragmentos sobre o tema. Foi a partir desses fragmentos esparsos que a teoria marxista reteve o con4 Uma abordagem focada na apresentação mais ampla dos autores marxistas que trabalham a teoria da educação teria necessariamente que trazer à luz autores como Lenin, Krupskaia, Louis Althusser, Mario Manacorda, István Mészáros e Bogdan Suchodolski, entre tantos outros.

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ceito de ensino politécnico como modelo a ser construído em uma sociedade de novo tipo. Uma das passagens frequentemente utilizadas com tal propósito é aquela encontrada nas Instruções aos Delegados do Conselho Central Provisório, de 1868. Por educação entendemos três coisas: (1): Educação intelectual. (2): Educação corporal, tal como a que se consegue com exercícios de ginástica e militares. (3): Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais (MARX e ENGELS, 1992, p.60, grifos dos autores).

Para Marx, portanto, o ensino propedêutico – que o autor define como educação intelectual – e o ensino técnico – educação tecnológica, em seu linguajar – não poderiam estar separados. A escola politécnica é o locus marxiano onde educação intelectual e educação tecnológica estão juntas, imbricadas, conformando uma única práxis de ensino. Somente tal práxis de ensino poderá gerar um novo tipo de homem superior. Em suas palavras, os gastos com tais escolas politécnicas serão parcialmente cobertos com a venda de seus próprios produtos. Esta combinação de trabalho produtivo pago com a educação intelectual, os exercícios corporais e a formação politécnica elevará a classe operária acima dos níveis das classes burguesa e aristocrática (MARX e ENGELS, 1992, p.60).

De certo, o pensamento de Marx precisa ser compreendido em seu contexto histórico. No contexto de meados do século XIX, crianças de famílias operárias eram também mãos-de-obra do sistema produtivo. Diante disso, Marx identificava que a possibilidade dessas crianças terem acesso a uma educação politécnica na fábrica seria positiva para a transformação social. Já no século XXI, contexto no qual a garantia dos direitos a uma infância fora do mundo do trabalho é uma premissa básica, a transformação da realidade vivida depende, em grande medida, da aquisição de saberes difundidos pela socialização escolar. O que nos cabe observar não é a ideia de uma educação conjugada com o trabalho infantil nas fábricas, pois nosso contexto é claramente outro, mas sim um modelo educacional que coloque em prática a capacidade de apropriação das diferentes técnicas atuais a partir de um currículo específico. A partir de Marx, muitos foram os autores do campo marxista que formula-

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ram sobre o tema da educação. Para o nosso objetivo cabe destacar a obra do italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Embora não tenha publicado em vida uma obra sistemática propriamente dita, Gramsci ocupa ainda hoje posição destacada dentre os marxistas que melhor compreenderam o mundo contemporâneo. Seu legado teórico consiste em pequenos textos jornalísticos publicados da sua juventude até 1926 – ano em que foi preso pela ditadura de Mussolini – e nos famosos Cadernos do Cárcere5 escritos em seus dez anos de prisão entre 1927 e 1937, ano em que faleceu. Os temas desenvolvidos pelo sardo são múltiplos, passando pela filosofia italiana, pela cultura industrial fordista dos Estados Unidos, pelo processo de unificação da Itália do risorgimento e pela ciência política de Maquiavel, para ficarmos em apenas alguns tópicos. No que diz respeito à questão educacional, é no Caderno 12 que encontramos a mais bem acabada sistematização do tema. Nele, Gramsci apresenta sua visão de educação escolar em contraponto às reformas educacionais do ministro da educação fascista Giovanni Gentile.6 Assim como Marx, Gramsci também está preocupado com a construção de uma escola que não seja fragmentada e que possa ser o lugar do desenvolvimento de toda uma consciência emancipadora. Gramsci organiza as suas propostas educacionais em torno daquilo que ele denominou de Escola Unitária. Não obstante o fato de Gramsci não utilizar em nenhum momento o conceito marxiano de politecnia, percebe-se claramente na proposta de Escola Unitária a categoria basilar da politecnia, qual seja, a unidade entre educação intelectual e educação tecnológica. Para o autor, a escola unitária poderia ser definida nos seguintes termos: Escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual (GRAMSCI, 2006, p. 33).

5 No cárcere Gramsci redigiu 33 cadernos entre 1929 e 1935. Dos 33 cadernos, 4 foram utilizados para exercícios de tradução enquanto os outros 29 são de notas de autoria própria de Gramsci. 6 Por outro lado, Joseph A. Buttigieg argumenta que a utilização apenas do Caderno 12 é insuficiente para a compreensão da questão educacional em Gramsci, pois tal questão deveria ser interpretada junto ao tema da hegemonia que está presente disperso em toda sua obra. Para Buttigieg os críticos e comentaristas que utilizam apenas o caderno 12 “obscurecem e confundem as questões mais fundamentais e mais amplas que preocuparam Gramsci” (Buttigieg, 2003). De certo, a plena compreensão da teoria gramsciana requer o conhecimento de toda a sua obra. O que não significa dizer que a leitura do Caderno 12 não seja um bom indicativo sobre o que o autor entende por educação.

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Ou, ainda, da seguinte forma: A escola unitária ou de formação humanista (entendido este termo, “humanismo”, em sentido amplo e não apenas em sentido tradicional), ou de cultura geral, deveria assumir a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los elevado a um certo grau de maturidade e capacidade para a criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa (GRAMSCI, 2006, p. 36).

Gramsci observa na sociedade moderna uma característica deletéria cada vez mais presente em decorrência da divisão das especialidades, em última instância, da divisão do trabalho. Deste modo, “foi-se criando paulatinamente todo um sistema de escolas particulares de diferentes níveis, para inteiros ramos profissionais ou para profissões já especializadas e indicadas mediante uma precisa especificação” (GRAMSCI, 2006, p. 32-33). Em que pese as nuances próprias de cada pensamento, podemos notar aqui certa semelhança entre o sardo e Marx, tanto no diagnóstico – a divisão do trabalho, a especialização, a segmentação – quanto no tratamento – a criação de uma escola unitária que conecte a educação intelectual com a educação tecnológica. Para os dois autores, tal projeto, caso vitorioso, poderá vir a construir o novo homem de uma nova sociedade. Ou, de acordo com Gramsci, o advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social. O princípio unitário, por isso, irá se refletir em todos os organismos de cultura, transformando-os e emprestando-lhes um novo conteúdo (GRAMSCI, 2006, p. 40).

Como se verifica em Gramsci, a escola torna-se central na ampliação da capacidade de atuação da classe trabalhadora, pois “o acesso aos códigos dominantes dos quais a alfabetização é o primeiro passo, o conhecimento de direitos e deveres, e a capacidade de exigi-los podem educar também para a transformação da ordem” (MOCHCOVITH, 1988, pp. 64-65). Isso significa conferir à escola um lugar no qual se apresenta a possibilidade de elevar a cultura que forje uma consciência política capaz de mudar as circunstâncias dadas. Esse projeto iniciado por Marx e continuado por Gramsci não ficou contingenciado temporalmente e territorialmente, ou seja, não ficou restrito à Europa dos séculos XIX e início do XX. No Brasil, o conceito de politecnia foi amplamente

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apropriado pela pedagogia após a década de 80, em especial após a publicação de uma série de textos do pedagogo Dermeval Saviani7. Saviani compreende que “a noção de politecnia se encaminha na direção da superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre instrução profissional e instrução geral” (2003) e é a partir daí que constitui sua obra. De fato, Saviani vai muito além de apenas compreender a politecnia como modelo de ensino socialista. Sua teoria é ainda mais profunda fundando aquilo que denomina “pedagogia histórico-crítica” como concepção dialética e método marxista de compreensão da educação8. O autor busca demonstrar que, com o advento da sociedade moderna, ocorreu uma organização do ensino segundo uma lógica da diferenciação, de modo que para cada classe houvesse um tipo específico de educação escolar. Como bem nos diz Saviani, no contexto da sociedade moderna, “o ensino profissional é destinado àqueles que devem executar, ao passo que o ensino científico-intelectual é destinado àqueles que devem conceber e controlar o processo” (idem). Ou seja, dois tipos de escola precisavam ser constituídos, um para a classe trabalhadora, outro para a classe burguesa. Contudo, no entendimento de Saviani, a educação escolar não deve restringir o desenvolvimento das capacidades humanas, pois a realidade da vida é aquela em que o homem age modificando e adaptando a natureza, sendo inerente a esse processo o exercício intelectual. A politecnia articula as dimensões do trabalho manual e intelectual. A noção de politecnia contrapõe-se a essa ideia, postulando que o processo de trabalho desenvolva, em uma unidade indissolúvel, os aspectos manuais e intelectuais. Um pressuposto dessa concepção é que não existe trabalho manual puro e nem trabalho intelectual puro. Todo trabalho humano envolve a concomitância do exercício dos membros, das mãos, e do exercício mental, intelectual (Saviani, 2003).

O autor preocupa-se em explicar que a politecnia não significa um acúmulo de disciplinas que possam cobrir todos os conhecimentos da sociedade, mas

7 Cabe aqui apenas mencionar uma polêmica existente no âmbito do marxismo. Para alguns autores do campo, como Manacorda (1991), não seria correto para os marxistas utilizarem o termo Educação Politécnica, mas sim Educação Tecnológica. No entanto, como o termo Educação Politécnica tornou-se hegemônico no Brasil e o próprio Saviani (2003 e 2007) já deixou claro por diversas vezes que possuem a mesma essência, utilizaremos de forma normativa o termo politecnia. Ainda sobre a polêmica entre os conceitos de educação politécnica, educação tecnológica e escola unitária, ver Paolo Nosella (2007) e Rosemary Dore Soares (2000). 8 Sobre o conceito de “pedagogia histórico-crítica”, ver Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na educação escolar (SAVIANI, 2012).

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sim a realização de atividades concretas que contribuam para a assimilação do conhecimento real sobre o processo de trabalho. Segundo Saviani, Se se trata de organizar o segundo grau, o ensino médio, sobre a base da politecnia, não seria o caso de multiplicar as habilitações ao infinito para cobrir todas as formas de atividade na sociedade. Trata-se de organizar oficinas, processo de trabalho real, porque a politecnia supõe a articulação entre o trabalho manual e o intelectual. Isto será organizado de modo que se possibilite a assimilação não apenas teórica, mas também prática, dos princípios científicos que estão na base da organização moderna. A partir deste conceito, o aluno terá não apenas de compreender todos os princípios científicos que conhece e assimilou de maneira teórica desde o ensino fundamental - em suma, como a natureza e a sociedade estão constituídas -, mas também de ser capaz de aplicar o conhecimento de que dispõe (SAVIANI, 2003).

Por óbvio, a implementação da politecnia depende da existência de um ensino baseado no tempo integral nas escolas. Partindo do pressuposto normativo de que toda a educação nas escolas deveria estar alicerçada na politecnia, principalmente no ensino médio, tal qual a definimos até aqui, cabe averiguar como as políticas públicas de educação estão sendo implementadas na prática. É o que demonstramos a partir de agora com um estudo de caso sobre a educação básica no Rio de Janeiro.

A educação no Rio de Janeiro e suas críticas A cidade do Rio de Janeiro conta hoje com 654.454 alunos matriculados em 1.493 unidades escolares municipais. Dessas unidades, são 1.004 escolas de Ensino Fundamental e 489 de Educação Infantil. Essas escolas contam com 40.324 professores e 16.024 funcionários de apoio administrativo9. Se considerarmos que a cidade do Rio de Janeiro em 2014 contava com 6.453.68210 habitantes, então apenas as escolas da prefeitura são responsáveis por atender mais de 11% da população carioca. A escola é, portanto, o principal centro de relacionamento que a sociedade possui com o poder público. Mas ela tem cumprido essa res9

Ver em: http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros Dados do IBGE 2014.

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ponsabilidade a contento? Quais são os desafios colocados à educação carioca? Sabemos que o processo de desenvolvimento da aprendizagem requer enfrentar muitas questões de diferentes naturezas. E, de certa maneira, as políticas públicas ganham especial importância em ambientes profundamente complexos, como é o caso da instituição escolar. Às políticas educacionais são colocados os desafios de agir naquilo que é mais urgente, e isso exige de seus formuladores a capacidade de gerar diagnósticos plurais. A realidade da educação carioca é marcada por indicadores muito tímidos. Em 2009, de acordo com dados tabulados a partir da Prova Brasil, 55% dos estudantes do 5º ano (antiga 4ª série) apresentavam aprendizados “básico” e “insuficiente” em leitura e interpretação. Esse percentual apresentou uma pequena queda de 7%, ficando com 48% em 2013. Isto é, cerca de 50% dos alunos apresentam pouquíssimo aprendizado para o seu ano escolar. Esse percentual apresenta um aumento significativo no caso da disciplina matemática: em 2013, 55% dos alunos do 5º ano apresentavam índices básico e insuficiente11. Se a realidade de aprendizagem do primeiro segmento do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano) é desafiadora, a situação dos alunos do 9º ano (antiga 8ª série) denuncia o completo descaso da educação pública carioca. Em 2013, no caso da disciplina de Língua Portuguesa, o percentual de estudantes nos padrões de desempenho básico e insuficiente era de 66%. Essa situação de precariedade na aprendizagem aparece de forma mais evidente quando observamos a aquisição de saberes matemáticos: o percentual sobe para 84%. Apenas 16% dos estudantes do 9º ano estavam no padrão adequado em matemática, em 2013. Assim, como se vê, a escola das classes populares cariocas parece ter muita dificuldade de superar um modelo que oferta basicamente o mínimo. Evidentemente, essa dificuldade não diz respeito apenas às responsabilidades dos profissionais que estão cotidianamente na instituição escolar. Trata-se, sobretudo, de questionarmos o conjunto de diretrizes e práticas do Estado carioca a fim de obtermos um cenário escolar mais propício ao desenvolvimento de conhecimentos e habilidades que permitam a consolidação de uma formação voltada para a construção da cidadania e do trabalho. Talvez o momento seja o de redefinição dos projetos educacionais, com vistas ao alcance da qualidade escolar democraticamente estabelecida. Uma referência importante na educação pública carioca, como também um parâmetro na oferta da Dados tabulados pela Plataforma QEdu, disponível em http://www.qedu.org.br/cidade/2801-rio-de-janeiro/proficiencia. A plataforma é um observatório das diferentes realidades educacionais do Brasil, e classifica a aprendizagem com base na seguinte escala: insuficiente, básico, proficiente e avançado.

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escola integral, são os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPS). Os CIEPS foram criados pelo antropólogo Darcy Ribeiro durante as gestões do governador Leonel Brizola nas décadas de 80 e início de 90, que certamente se tornaram um modelo de educação popular. A ideia era simples: oferecer em tempo integral – das 8 às 17 horas – um ensino de conteúdos que agregasse educação esportiva e cultural, além da assistência médica e social que muitas vezes se coloca urgente no dia a dia escolar. Infelizmente, os governos que sucederam Brizola não deram prosseguimento ao projeto e desvirtuaram sua proposta inicial de tempo integral12. Apesar da descontinuidade pós-Brizola, o tema da educação em tempo integral voltou a fazer parte da agenda municipal nos últimos anos, ainda que de forma muito incipiente. De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, a prefeitura do Rio de Janeiro tem como meta chegar em 2020 com todas as escolas atendendo seus alunos em tempo integral com turno de sete horas. Ainda seguindo as informações da própria prefeitura, em 2013, cerca de 20% dos alunos matriculados na rede municipal já contavam com o tempo integral e a meta seria terminar o ano de 2016 com 35% de matrículas. Poderíamos dizer que após 8 anos de gestão contínua é muito pouco ter alcançado apenas 35% de matrículas em tempo integral. Ou que 7 horas é ainda pouco perto do tempo que era oferecido pelos CIEPs. Mas o problema vai além. Embora o turno tenha sido ampliado nessas escolas, muito dificilmente poderíamos considerar que haja algum grau de politecnia sendo implementado nelas. Ou que educação artística, técnica e esportiva estejam sendo lecionadas como deveriam com a complementariedade e o protagonismo necessários. Contudo, falar em educação exige observar também a passagem dos alunos do Ensino Fundamental para o Ensino Médio. Como foi colocado acima, os resultados educacionais demonstram uma baixa capacidade do Estado carioca de promover o fluxo escolar, além de que não se observam ações integradas entre prefeitura e estado para o alcance de melhorias educacionais. Por falar em rede estadual, não podemos concluir este ensaio sem deixar de tratar dos episódios recentes, protagonizados por estudantes, denunciando a má qualidade do ensino. As mais de 70 escolas estaduais de Ensino Médio no Rio de Janeiro foram ocupadas, no início de 2016, por alunos articulados na defesa 12 Em que pese a não continuidade do projeto, o prefeito Eduardo Paes sancionou em 7 de junho de 2010 a Lei 5183 que faz o tombamento para fins de preservação histórica e urbanística dos CIEPs localizados no Município do Rio de Janeiro. Vale lembrar que o responsável pelo projeto arquitetônico dos edifícios dos CIEPs foi Oscar Niemeyer.

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de suas escolas. Apesar de cada escola ter apresentado uma agenda específica, tratando de questões relacionadas principalmente à infraestrutura, sobressaiuse das diferentes ocupações uma pauta sistêmica, traduzida em: ampliação da carga horária das disciplinas de sociologia e filosofia; o fim do Sistema de Avaliação do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ); melhorias na estrutura das escolas; eleição direta para a direção das escolas e valorização dos professores. Essa pauta sistêmica colocada pelas ocupações representa um olhar crítico dos próprios estudantes em relação às políticas educacionais adotadas nos últimos anos. Ao defender a ampliação da carga horária de sociologia e filosofia, colocase para o nível central da administração escolar a necessidade de imprimir um modelo educacional que não seja puramente tecnocrático. O ambiente escolar marcado pela tecnocracia desvirtua a capacidade dessa instituição em forjar indivíduos para uma sociedade democrática. E democracia também se faz na escola, tanto que a dimensão participativa é destaque nas demandas dos estudantes, não apenas no quesito eleição direta para diretor(a) escolar, como também na preocupação de se ter escola com condições de aprendizagem mais adequadas. A despeito de os jovens estudantes terem feito uma das mais bonitas manifestações políticas da cidade nos últimos anos, ainda é preciso muita pressão da sociedade civil como um todo para a consolidação de uma agenda escolar democrática. Trata-se de um momento de abertura dessa caixa preta que é o ensino médio, e somente com muito debate e articulação será possível elevar o nível de melhoria das escolas dessa etapa de ensino. A agenda apresentada pelos estudantes deverá ganhar espaço nas discussões de reformas da educação pública, não apenas no Rio de Janeiro, como também em outros contextos educacionais brasileiros.

Considerações finais A sociedade brasileira, tardiamente, desafiou-se a universalizar a escolarização básica. Não à toa o saldo contemporâneo da questão educacional no Brasil é de um enorme déficit, menos de acesso e, sobretudo, de qualidade. Pensar em qualidade é se colocar uma pergunta central:para onde deve caminhar sua grade curricular? É verdade que, nos últimos doze anos, o sistema educacional brasileiro deu um importante salto quantitativo em seu ensino técnico profissionalizante. Basta dizer que entre 2003 e 2014 foram criadas mais de 400 escolas técnicas federais, triplicando o número total de estudantes matriculados neste tipo de ensino. Contudo, a mudança qualitativa na grade curricular tem sido insuficiente. A

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dicotomia entre ensino propedêutico e profissionalizante ainda é uma realidade13. Inspirada na teoria marxista, a literatura especializada aponta a educação politécnica em tempo integral como caminho para a superação da dualidade entre ensino propedêutico e profissionalizante. Todavia, sua implementação ainda encontra muitos obstáculos. Neste capítulo procuramos demonstrar como está o debate na cidade do Rio de Janeiro em torno dessa agenda. A nosso ver, as escolas no Rio de Janeiro deveriam caminhar no curto prazo para que todas ofereçam o turno único de oito horas, incorporando atividades culturais, artísticas e esportivas, bem como elementos da politecnia em sua grade curricular. A gestão da escola precisa ser participativa e sua direção eleita de forma direta por alunos, pais e funcionários. Mas não apenas isso. As escolas precisam ser centros de referência do poder público abertas para a sociedade usufruir de suas ações, programas e estruturas. Enfim, a escola precisa manter uma interação permanente com a comunidade que está à sua volta. Imagina-se que com esses passos, em um prazo curto de tempo, a educação politécnica estará mais próxima da realidade no Rio de Janeiro. A possibilidade de construção do fim da dualidade entre ensino propedêutico e profissionalizante e entre educação e trabalho em uma sociedade de transição é concreta. Neste caso, dependemos mais dos atores do que dos fatos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.  AMARAL, Daniela Pa do; OLIVEIRA, Renato José de. Na contramão do ensino médio inovador: propostas do Legisla vo Federal para inclusão de disciplinas obrigatórias na escola. Cad. CEDES, Campinas, v. 31, n. 84, Aug. 2011.  BAUDELOT, C.; ESTABLET, R. L’école capitaliste en France. Paris: Maspéro, 1971.

13 Uma boa análise das desigualdades de oportunidades geradas entre os jovens provenientes dos dois modelos de ensino no Brasil pode ser observada em Fresneda (2011).

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 BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução; elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.  BUTTIGIEG, J. Educação e hegemonia. In: COUTINHO, C. N.; TEIXEIRA, A. de P. (Org.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.  FRESNEDA, Be na. Ensino Médio Técnico e Desigualdades de Oportunidades entre os Jovens Brasileiros. In: Revista Juventude.BR. São Paulo, n. 11, 2011.  GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. _________________ Cadernos do Cárcere. Vol 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.  MANACORDA, Mario A. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez, 1991.  MARX & ENGELS. Textos sobre Educação e Ensino. São Paulo: Editora Moraes, 1992.  MOCHCOVITCH, Luna Galano. Gramsci e a Escola. Ed. Á ca: São Paulo, 1988.  MOZENA, Erika Regina; OSTERMANN, Fernanda. Integração curricular por áreas com ex nção das disciplinas no Ensino Médio: Uma preocupante realidade não respaldada pela pesquisa em ensino de sica. Rev. Bras. Ensino Fís., São Paulo, v. 36, n. 1, Mar. 2014.  NOSELLA, Paolo. Trabalho e perspec vas de formação dos trabalhadores: para além da formação politécnica. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 12, n. 34, Apr. 2007.  RAMOS, Marise Nogueira. O currículo para o Ensino Médio em suas diferentes modalidades: concepções, propostas e problemas. Educ. Soc., Campinas, v. 32, n. 116, set. 2011.  SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crí ca e luta de classes na educação escolar. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.  SAVIANI, Dermeval. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 12, n. 34, Apr. 2007.  SAVIANI, Dermeval. O choque teórico da Politecnia. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, Mar. 2003.  SOARES, Rosemary Dore. Gramsci, o estado e a escola. Ijuí: Unijuí, 2000.

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CAPÍTULO 12 O mundo do trabalho no Rio de Janeiro

LUISA BARBOSA PEREIRA1 “... é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana.” (Karl Marx)

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uana trabalha como soldadora na região do Caju. O bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, circundado por oito favelas e quatro cemitérios, já foi região cluster da construção naval no final do século XIX, início do século XX. Com a retomada recente deste setor no Brasil, o bairro viu renascer a planta de estaleiros tradicionais, como o Caneco e o Ishikawajima-Harima do Brasil, além de várias empresas ligadas ao setor de navipeças. A indústria naval, que empregou cerca de 39 mil trabalhadores no ano de 1979, sendo a grande maioria no Rio de Janeiro, chegou ao final da década de 1990 com apenas cerca de 1.880 operários e amargou duas décadas de desmonte e desarticulação (1980 e 1990). O quadro só apresentou sinais de mudança a partir dos

1 Luisa Pereira é doutora, pesquisadora associada do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, membro do Observatório para as Condições de Vida e do Projeto “In the Same Boat? Shipbuilding and ship repair workers: a global labour history (1950-2010)” do Instituto de História Social de Amsterdam. Autora de Justa Causa pro Patrão (Multifoco, 2012) e Navegar é preciso (Multifoco, 2014). Professora de sociologia e filosofia da rede pública de ensino de Armação dos Búzios-RJ-Brasil.

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anos 2000, principalmente em virtude da demanda da Petrobras por plataformas e embarcações e de seus programas de expansão e modernização da frota marítima2. O número de trabalhadores empregados no setor salta então para 40 mil em 2007 e fecha o ano de 2014 com 82.472 empregos diretos, sendo 30.085 somente no Rio de Janeiro.3 Luana aproveitou o momento aquecido do setor para se especializar na técnica da solda automática e em 2010 conseguiu emprego num estaleiro da região. Seu horário de entrada no trabalho é às nove horas, mas Luana acorda todos os dias às cinco horas da manhã para conseguir chegar a tempo. Não reclama. Reza para ter “sorte” e não acabar demitida, como muitos dos seus colegas de trabalho. Sabe que é mantida no emprego graças ao curso de qualificação que fez, com ajuda do sindicato. De acordo com a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) divulgada em janeiro de 2016 pelo Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE), a média de desemprego em 2015 foi de 6,8%.4 Já o setor naval, só no ano de 2015, perdeu cerca de 17.810 vagas.5 Luana tem razões de sobra para temer por seu emprego. Sustenta e cuida, com ajuda da mãe, de duas filhas pequenas. Está na fila para conseguir vaga na creche da Praça Seca. Preferia um emprego que não fosse tão distante e cansativo. Queria ter mais tempo para ficar com as filhas e poder aproveitar o dia de folga. Encara o trabalho como o fardo necessário para a sua sobrevivência e da sua família. Mas o trabalho – ainda que oriundo do latim tripalium, literalmente, “três paus”, uma ferramenta de três pernas que imobilizava cavalos e bois para serem ferrados, ou instrumento de tortura usado contra escravos e presos – pode significar muito mais do que indica tanto sua própria etimologia quanto a percepção de Luana. Para Karl Marx, em O Capital, o trabalho é a condição de existência, uma eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, por isso, da vida humana. Marx chega a afirmar que é o trabalho o

Para mais informações sobre a indústria naval no Brasil ver: PESSANHA, Elina. Operários navais: trabalho, sindicalismo e política na indústria naval do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012; PEREIRA, Luisa Barbosa. Navegar é Preciso: sindicalismo e judicialização ativa dos trabalhadores da indústria naval do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Multifoco, 2015; FILHO, Alcides Goularti. A Trajetória da Marinha Mercante Brasileira: administração, regime jurídico e planejamento. Revista Pesquisa & Debate, v. 21, n. 2 (38), São Paulo, p. 247278, 2010; entre outros. 3 Dados do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Naval e Offshore (2015) Disponível em: http://sinaval. org.br/empregos/. Acesso em 27 de março de 2016 4 Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/ Acesso em 27 de março de 2016 5 Dados do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Naval e Offshore (2015) Disponível em: http://sinaval. org.br/empregos/. Acesso em 27 de março de 2016 2

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elemento que pode nos diferenciar enquanto seres humanos. É a atividade que implica a existência de um projeto mental que modela uma conduta a ser desenvolvida para se alcançar um objetivo. É ela que permite a transformação da natureza pelo homem e a emancipação do ser humano. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. (MARX, O Capital, Seção III, cap. V.)

Mas infelizmente não é só Luana que está longe de desfrutar do trabalho enquanto realização ou emancipação humana. O labor na cidade do Rio de Janeiro é cada vez mais lembrado como o instrumento feito dos três paus aguçados. Um instrumento de tortura de bicho ou de gente. Este artigo pretende analisar como o trabalho, em sua ontologia e prática, tem se desenvolvido na cidade do Rio de Janeiro. Para isso conta com quatro partes, além desta introdução. Na primeira, apresentamos uma discussão sobre o conceito de trabalho, a partir das contribuições de diferentes pensadores. Na segunda apresentamos uma reflexão, pautada em um estudo de caso, sobre uma operária fictícia do setor naval do Rio de Janeiro, que estamos chamando de Luana. Na terceira, apresentaremos dados sobre a situação do emprego no Rio de Janeiro e nas principais regiões metropolitanas do Brasil nos anos 2015 e 2016. Por fim, lançamos desafios para o desenvolvimento do trabalho na cidade, como forma de contribuir para que nos tornemos mais humanos e menos animais e máquinas.

O que é trabalho? A palavra “trabalho”, nas diferentes culturas ocidentais, possui geralmente mais de uma significação. O grego a diferencia em fabricação (εργασία) e esforço (έργο), termo que seria o oposto da palavra ócio (αργία). Na Grécia Antiga, a primeira tinha função nobre, ligada à atividade intelectual. Já a segunda possuía

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um tom pejorativo, pois estava relacionada ao esforço físico e ao trabalho braçal. O filósofo Aristóteles (384-322 a. C.) versava sobre o tema defendendo o trabalho intelectual como próprio dos homens que poderiam se dedicar à cidadania: Os cidadãos não devem viver uma vida de trabalho trivial ou de negócios (estes tipos de vida são ignóbeis e incompatíveis com as qualidades morais); tampouco devem ser agricultores os aspirantes à cidadania, pois o lazer (ócio) é indispensável ao desenvolvimento das qualidades morais e à prática das atividades políticas (ARISTÓTELES, Política, Cap. VIII, 1329.)

Escravos e animais eram considerados semelhantes, pois partilhavam da mesma atividade. Ambos desempenhariam um serviço corporal para atender apenas às necessidades da vida6. O ócio, por outro lado, era atividade digna, pois isentava os homens das atividades que apenas garantiriam a subsistência7. Aristóteles insiste na importância do ócio para que o homem pudesse atingir a virtude e acrescenta: A guerra deve existir em função da paz, a atividade em função do ócio, as coisas necessárias e úteis em função das coisas belas... é verdade que é preciso desempenhar uma atividade e combater, ainda mais necessário é permanecer em paz e gozar do ócio, assim como é preciso fazer coisas necessárias e úteis, mas mais ainda fazer coisas belas (ARISTÓTELES apud DE MASI, 2000, p. 404).

Tal ponto de vista se manteve até a Idade Média, ainda que a perspectiva medieval cristã buscasse associar o trabalho manual ao ato de provação à Deus. Para São Tomás de Aquino (1221-1274), filósofo e teólogo cristão do período, o trabalho manual era um “bem árduo” onde o indivíduo poderia vir a se tornar um ser humano melhor através do fortalecimento de seu espírito. O trabalho manual seria uma forma de colaboração com Deus no aperfeiçoamento do mundo.8 Com o advento da modernidade, a partir da decadência da Idade Média, o desenvolvimento das cidades e, principalmente, da ascensão da burguesia como classe dominante, a partir do século XVI, a concepção católica sobre o trabalho Aristóteles, Política, Cap. VII, 12546b. Entre os romanos a palavra ócio (do latim otium) manteve o mesmo sentido grego, tanto que o trabalho para sustentar a vida era expresso pela palavra negócio, ou seja, a negação do ócio (nec-otium, não ócio). 8 São Tomás de Aquino. STh II-II, q. 187, a. 3. 6 7

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foi fortemente contestada, e o trabalho ressignificado. O sucesso econômico passa a ser associado a um sinal divino, benção de Deus, tomando como base as teorias calvinistas.9 Na visão de João Calvino, importante filósofo e teólogo francês da Reforma Protestante, trabalho era sinal de graça, capaz de libertar o homem do sofrimento. Assim, a teoria calvinista pôde vir a contribuir significativamente com o desenvolvimento da economia moderna. Max Weber, através de seus estudos comparativos, vai ainda associar a valorização do trabalho e a busca da riqueza com o desenvolvimento do capitalismo em países onde o protestantismo era dominante. Para o autor a doutrina calvinista contribuiu decisivamente para a desenvoltura deste sistema econômico, especialmente nos países de maioria protestante. Sobre o tema, Weber destaca: o homem deve, para estar seguro de seu estado de graça, trabalhar o dia todo em favor do que lhe foi destinado. Não é, pois, o ócio e o prazer, mas apenas a atividade que serve para aumentar a glória de Deus (...) É condenável a contemplação passiva, quando resultar em prejuízo para o trabalho cotidiano, pois ela é menos agradável a Deus do que a materialização de Sua vontade de trabalho (...) o mais importante é que o trabalho constitui, antes de mais nada, a própria finalidade da vida” (WEBER, 1967, p. 112-113).

A valorização do trabalho, então, muda de papel. O ócio, a preguiça e a contemplação passam a ser considerados ações não desejadas por Deus. Já o trabalho, uma homenagem a esse ser maior. A valorização do trabalho torna-se, a partir de então, base do sistema capitalista. Mas, como se sabe, este trabalho gerador de riqueza e de sucesso econômico individual ficou restrito a uma determinada classe, que conseguiu acumular capital a partir da exploração daqueles obrigados a vender sua força de trabalho como única mercadoria. Neste contexto, alguns autores vão defender que se passa a viver numa sociedade absorvida pela epidemia trabalho, onde homens e mulheres se tornam cada vez menos humanos. Para o sociólogo Domenico de Masi, “transmite-se aos mais jovens um estilo de vida baseado no excesso de esforço e subordinação, em vez da dignidade, e também uma gestão arcaica e opressiva dos tempos e dos espaços” (2000, p. 288) Para Henry David Thoreau, em seu ensaio sobre a O Calvinismo é um movimento religioso protestante e um sistema teológico bíblico com raízes na Reforma Protestante iniciada por João Calvino em Genebra no século XVI. 9

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desobediência civil, o homem que trabalha exaustivamente nada mais faz do que gastar a vida, tentando ganhá-la. Se um homem gasta metade do dia a passear pelas florestas, simplesmente por gostar delas, arrisca-se a ser considerado um preguiçoso; mas se ele gasta o dia inteiro como especulador, devastando a floresta e provocando a calvície precoce da terra, aí então ele ganhará a admiração dos seus concidadãos como uma pessoa ativa e empreendedora (THOREAU, 1986, p. 59).

Mas não deveria ser assim. Friedrich Hegel, pensador chave para a filosofia contemporânea, vai defender que o trabalho é elemento da autoconstrução do ser-humano, não de destruição do homem e do ambiente que o cerca. O indivíduo se aperfeiçoa e se liberta pelo domínio que exerce – através do trabalho – à natureza. E este trabalho deveria servir ao bem comum, não o contrário. Karl Marx, influenciado pela filosofia hegeliana, vai dizer que o trabalho como trabalho útil, é condição de existência, independente da forma de sociedade na qual ele se desenvolve. No entanto, destaca que, se por um lado podemos considerar o trabalho como um momento fundante do processo de humanização, por outro lado, a sociedade capitalista o transforma em trabalho assalariado, alienado e fetichizado. O que deveria ser fonte de humanidade, se converte em desrealização do ser social, alienação e estranhamento. 10 Em carta ao pai, o jovem Marx enfatizou sua concepção do que deveria ser o trabalho e como deveria ser feita a escolha de uma profissão: O principal guia que deve nos orientar na escolha de uma profissão é o bem estar da humanidade e o nosso próprio aperfeiçoamento...a natureza humana é de tal modo constituída que o homem só atinge a própria perfeição trabalhando pelo aperfeiçoamento, pelo bem de seus semelhantes... Se ele trabalha só para si mesmo, pode vir a ser um erudito famoso, um grande sábio, um excelente poeta, mas jamais será um homem perfeito, um grande homem de verdade. Se escolhemos a posição na vida que possamos trabalhar principalmente pela humanidade, nenhum fardo nos há de derrubar, pois serão sacrifícios pelo benefício de 10 Fetichismo é o processo pelo qual a mercadoria adquire vida própria, já que os valores de uso passariam a determinar as relações humanas, e não o contrário. Já a alienação estaria relacionada à ideia de espoliação do operário em sua relação com os produtos de seu trabalho. Os produtos passam a ser estranhos ao trabalhador.

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todos, de modo que não sentiremos uma alegria mesquinha, limitada e egoísta, mas nossa felicidade será a de milhões, nossas proezas viverão em silêncio mas eternamente atuantes, e sobre nossas cinzas serão derramadas lágrimas de pessoas nobres (MARX in GABRIEL, 2013, p. 39).

Mas no capitalismo o trabalhador não tem essa opção. Frequentemente não se satisfaz no trabalho, detesta a segunda-feira e chama de “hora feliz” (happy hour) o momento imediatamente posterior ao da jornada. Se degrada e se torna a expressão de uma relação social fundada na propriedade privada, na reprodução e na exploração. Tal como ocorre com Luana.

A vida de Luana Luana mora na Praça Seca, Jacarepaguá, grande bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Trabalha, como já dito, do outro lado da cidade: na região do Caju, Zona Norte. É operária da indústria naval e suporta, de segunda a sábado, uma jornada de 44 horas semanais. Mas, para a sua categoria, nem sempre foi assim. Como mostram Pessanha (2012, p. 54-55) e Barsted (1982, p.190-191), ainda na década de 1960, os operários navais conquistaram – através de inúmeras mobilizações e lutas – um contrato coletivo de trabalho que garantia uma jornada de 40 horas semanais e o fim do trabalho normal aos sábados.11 A manutenção e a ampliação desses direitos conquistados, entretanto, foram interrompidas pelo golpe militar de 1964. Atendendo a uma reivindicação antiga dos patrões, os militares realizaram, numa das suas primeiras ações após o golpe, o enquadramento sindical dos operários navais na categoria metalúrgica. Assim, dividiu a unidade desses trabalhadores, classificados até então como marítimos, e tirou a validade do Contrato Coletivo de Trabalho de 1963, bem como todas as conquistas acumuladas por décadas pela categoria. Como operários navais se mantiveram apenas os trabalhadores em empresas de navegação, como a Lloyd e a Costeira.12 No contexto de repressão política da ditadura militar, esses trabalhadores foram 11 O contrato de trabalho a que nos referimos é o de 1963 e foi publicado na íntegra por Dennis Barsted. Para ver mais: BARSTED, Dennis William V. Linhares. Medição de forças: o movimento de 1953 e a época dos operários navais. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1982. 12 Para ver mais: BARSTED, Dennis William V. Linhares. Medição de forças: o movimento de 1953 e a época dos operários navais. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1982; PESSANHA, Elina. Operários navais: trabalho, sindicalismo e política na indústria naval do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

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induzidos a estabelecerem contratos individuais com os patrões, que se aproveitaram disso para dividir ainda mais a categoria em termos salariais.13 O horário que Luana inicia seu trabalho no estaleiro é às nove horas, mas ela acorda todos os dias às cinco horas da manhã. Quando o sol ainda nem nasceu, prepara a marmita, toma banho, arruma as duas filhas e as leva para a casa da mãe. Mais ou menos às seis horas começa a caminhar cerca de três quilômetros para o ponto de ônibus. No início do mês, prefere pagar o serviço de mototáxi, que a leva mais rápido e a poupa do cansaço já nos primeiros momentos do dia. Mas quando as finanças “apertam”, prefere economizar. Nunca sabe se conseguirá fechar as contas no fim do mês. Nem se terá emprego até o fim do parcelamento da televisão e da máquina de lavar, que adquiriu através de crédito. O ônibus de Luana passa normalmente por volta de sete horas da manhã. Ela já conhece os trabalhadores que seguem diariamente no mesmo meio de transporte: o office boy, o atendente de telemarketing, a colega também operária naval que lhe indicou o trabalho. Estão todos no mesmo barco, apertado e quente já às oito da manhã. Luana quase nunca vai sentada. Mas ao menos tem sempre quem lhe segure a bolsa pesada, com marmita, carteira, telefone e batom. No caminho, troca de ônibus duas vezes, mas o trânsito a acompanha.14 Demora cerca de duas horas para chegar ao estaleiro. Mas ela não mora tão longe assim. São apenas cerca de 22 quilômetros entre os pontos de ônibus do bairro de sua casa ao bairro do seu trabalho. Ela preferia não ter que se deslocar à zona central do município do Rio de Janeiro, chamada por sua mãe de “cidade”, em virtude da estranheza e lonjura do local. Procurou ocupação em local mais próximo à sua residência, mas não conseguiu. Luana também não volta cedo para casa. De segunda a sexta deixa o trabalho por volta das sete ou oito horas da noite, mesmo tendo seu horário estipulado das nove da manhã às seis da tarde. Aproveita assim para fugir do trânsito, bem mais intenso neste horário. Não ganha hora extra para isso. Prefere demonstrar “assiduidade” e “compromisso” com o serviço e ter, assim, a esperança de garantia do emprego. Apesar da categoria, representada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, ter conquistado a garantia progressiva da implementação de PLR (Participação nos Lucros e Resultados) nas maiores 13 Luisa Barbosa Pereira. Navegar é preciso: sindicalismo e judicialização ativa dos trabalhadores da indústria naval do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Multifoco, 2015. 14 Luana tem três opções para ir ao trabalho. Todas ruins: pode pegar o BRT Praça Seca [Madureira - Alvorada (Parador)], o Trem Ramal Deodoro, e por fim o ônibus 440, opção em que gasta cerca de R$10,80.

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empresas do município e da região, bem como o pagamento de hora extraordinária 50% a mais sobre a hora normal trabalhada de segunda a sábado e a 100% da hora normal nos domingos e feriados,15 Luana não é beneficiada pela conquista e se submete às pressões da empresa. Também nunca ouviu falar em Participação nos Lucros e Resultados da empresa. Seus direitos conquistados são flexibilizados a frio, na prática cotidiana do trabalho.16 Ela chega em casa por volta das dez horas da noite e retoma as atividades domésticas que sempre estão “por fazer”. Aos sábados, após o trabalho, procura organizar a casa, ficar com os filhos, e aos domingos prepara a comida e a roupa da semana, para a jornada que já “recomeça” na segunda e nunca finda. O pesquisador Márcio Pochmann, quando presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, apresentou um estudo em que destacava a triste realidade do descanso semanal de um(a) trabalhador(a) comum no Brasil. Apenas no sábado, à tarde, é possível se desligar um pouco da agenda laboral, pois já no domingo a rotina volta a pairar em seu “dia de descanso”. A história de Luana, longe de figurar apenas no imaginário dos textos e reflexões, é realidade de grande parte dos trabalhadores do Rio de Janeiro. Como destacava Marx e Hegel, ainda que o trabalho seja elemento de autoconstrução, ou uma atividade de potencial emancipador e tipicamente humana, ao longo da história, a dominação de uma classe social sobre outra desviou sua função positiva. O trabalho, ao invés de servir ao bem-comum e de se consolidar como ato de criação, no capitalismo transformou-se em mera reprodução do trabalho e enriquecimento de uma parcela específica da sociedade: aquela que detém os meios de produção. Não à toa, nos momentos de retração econômica, são os trabalhadores os primeiros a pagarem por tal enriquecimento.

Situação do Trabalho na cidade A crise econômica e financeira que atinge o Brasil principalmente nesta segunda década do século XXI tem trazido implicações substantivas ao cenário do trabalho e emprego. O número de carteiras assinadas no conjunto das Conquista garantida através da Convenção Coletiva dos Trabalhadores no ano de 2011. Adalberto Cardoso, analisando o descumprimento dos direitos sociais por parte dos empregadores no próprio ambiente de trabalho, sem precisar para isso mudar a legislação, cunhou o termo “flexibilização a frio” para qualificar esta prática recorrente no Brasil. Para mais ver: CARDOSO, Adalberto. A década neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2003. 15 16

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regiões metropolitanas analisadas pelo IBGE em pesquisa apresentada em fevereiro de 2016 foi estimado em 11,6 milhões em janeiro. Ou seja, 336 mil pessoas a menos em um ano. Tal taxa representa uma queda de 2,8%. Já o número de pessoas com emprego foi estimado em 23 milhões, caindo tanto na comparação com dezembro (menos 230 mil pessoas, ou 1%), quanto em relação a janeiro de 2015 (menos 643 mil pessoas, ou 2,7%).17 O rendimento médio real dos trabalhadores também caiu, considerando para isso um ajuste salarial que reponha as perdas da inflação. A queda foi de 7,4% em janeiro de 2016 em relação à janeiro de 2015, quando o rendimento médio era de R$ 2.421,51. O IBGE, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), também mostrou que o número de desempregados no Brasil aumentou 41,5% em um ano, chegando a 9,1 milhões no trimestre entre setembro e novembro de 2015. Salvador é a cidade que tem maior taxa de desemprego (11,8%), Rio de Janeiro é a que possui a menor (5,1%). Outras cidades oscilam entre 10% e 5% sendo Recife 10,5%; São Paulo, 8,1%; Belo Horizonte 6,9% e Porto Alegre: de 3,8%.18 Em comparação a dezembro, o desemprego aumentou principalmente em duas regiões: São Paulo (de 7% para 8,1%) e Belo Horizonte (de 5,9% para 6,9%). Os principais setores que sofreram com o desemprego, de acordo com o IBGE, foram educação, saúde, serviços sociais, administração pública, defesa e seguridade (-2,8%, ou 111 mil pessoas) e serviços domésticos (-6,4%, ou 93 mil pessoas). Em relação a janeiro de 2015, o número caiu também na Indústria (-8,5%, ou 298 mil pessoas) e em outros serviços (-3,4%, ou 155 mil pessoas). O número de desempregados nas regiões metropolitanas de Recife, Belo Horizonte, São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre subiu para 1,9 milhão. A alta foi verificada tanto na comparação com dezembro (mais 156 mil pessoas, ou 8,4%), quanto em relação a janeiro de 2015 (mais 562 mil pessoas, ou 42,7%). Na região metropolitana do Rio de Janeiro, a taxa de desemprego passou de 3,6% em janeiro de 2015 para 5,1% em janeiro de 2016. Mas nenhuma indústria no Rio de Janeiro sofreu tanto neste ano quanto o setor naval, fonte de renda de Luana. De acordo com dados do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Naval e Offshore (Sinaval) 2015, o Sudeste registrou o maior número de perdas: A sequência de dados do IBGE pode ser encontrada em http://www.ibge.gov.br/home/ Acesso em 10 de março de 2016. 18 Informações disponíveis também no caderno de economia do portal Uol. Disponível em http://economia.uol. com.br/empregos-e carreiras/noticias/redacao/2016/02/25/pme.htm Acesso em 10 de março de 2016 17

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cerca de 16 mil empregos, a grande maioria no Rio de Janeiro. A região possuía 42.474 empregos no setor em janeiro de 2015, sendo que deste total 30.014 eram apenas do Estado do Rio de Janeiro. Em dezembro de 2015 o número de empregos na região caiu para 26.566, quase a metade do número de vagas. Neste contexto de cortes e demissões, são os trabalhadores e as trabalhadoras que, como Luana, pagam proporcionalmente a conta mais cara da crise, apesar de não ter culpa alguma dela.

Considerações finais Trabalhar no município do Rio de Janeiro é tarefa de bravos e bravas. Desde o momento do deslocamento até o retorno à casa, o trabalho na cidade é fonte de tortura e desprazer. O Rio de Janeiro não consegue garantir aos seus cidadãos nem o mínimo necessário para sua condição de reprodução no emprego, já que não disponibiliza creches para os filhos da classe trabalhadora nem condições básicas de locomoção. Além de uma estrutura de transporte desintegrada e cara, que obriga o cidadão a trocar várias vezes de condução, seja para o trabalho ou para o lazer, o trânsito rouba o tempo de não-trabalho, do cuidado doméstico e da vida humana. Impõe a todas as classes sociais, mas principalmente à classe trabalhadora, um cotidiano de nervosismo, depressão e penúria. A cidade também não oferece uma estrutura integrada de moradia e emprego, nega à população os serviços básicos de sobrevivência (creche, postos de saúde e escolas públicas de qualidade), além de perpetuar uma forte estrutura de concentração de renda, que permite a existência de Índices de Desenvolvimento Humano completamente opostos no mesmo raio de 10 quilômetros. Também não garante uma estrutura de fiscalização efetiva do cumprimento dos direitos trabalhistas garantidos constitucionalmente, obrigando os trabalhadores e trabalhadoras a se submeterem aos desmandos do patronato, principalmente quando é dada uma condição de crise econômica, tanto comuns quanto cíclicas no sistema capitalista. Valorização do trabalho e do trabalhador, distribuição de renda, empregos de qualidade, melhores salários, igualdade salarial entre homens e mulheres, formalização do mercado de trabalho, investimento em tecnologia e mobilidade são questões fundamentais para que possamos garantir uma vida digna para os trabalhadores da cidade. Se a vida humana depende do trabalho e este causa tanto desprazer, é fundamental reverter esse quadro, para que o trabalho esteja a serviço de homens e mulheres e possa nos tornar seres humanos de fato.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  AQUINO, São Tomás de Aquino. STh II-II, q. 187, a. 3.  ARISTÓTELES, Polí ca, Cap. VII, 12546 b.  BARSTED, Dennis William V. Linhares. Medição de forças: o movimento de 1953 e a época dos operários navais. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1982.  CARDOSO, Adalberto. A década neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2003.  GABRIEL, Mary. Amor e Capital: A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução, Rio de Janeiro, Zahar, 2013.  MASI, Domenico Di. O ócio cria vo, Rio de Janeiro, Sexante, 2000.  Ins tuto Brasileiro de Geografia e Esta s ca, dados de 2016, disponível em h p://www.ibge.gov.br/home/esta s ca/indicadores/ trabalhoerendimento/pme_nova/ Acesso em 27 de março de 2016.  FILHO, Alcides Goular . A Trajetória da Marinha Mercante Brasileira: administração, regime jurídico e planejamento. Revista Pesquisa & Debate, v. 21, n. 2 (38), São Paulo, p. 247-278, 2010; entre outros.  MARX, Karl. O Capital, São Paulo, Boitempo Editorial, 2011.  PESSANHA, Elina. Operários navais: trabalho, sindicalismo e polí ca na indústria naval do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.  PEREIRA, Luisa Barbosa. Navegar é Preciso: sindicalismo e judicialização a va dos trabalhadores da indústria naval do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Mul foco, 2015.  Sindicato Nacional da Indústria da Construção Naval e Offshore (2015) Disponível em: h p://sinaval.org.br/empregos/. Acesso em 27 de março de 2016.  THOREAU, Henry. Desobedecendo a Desobediência Civil & Outros Escritos. São Paulo: Editora Círculo do Livro, 1987.  WEBER, Max. A é ca protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1967.

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CAPÍTULO 13 A Saúde Pública e o Direito à Cidade no Rio de Janeiro ANA PIMENTEL1, DANIELA TRANCHES DE MELO2 E GISELE SILVA ARAÚJO3

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Sistema Único de Saúde (SUS), tal como desenhado na Constituição Federal de 1988, representa uma mudança paradigmática de grandes proporções: de um serviço público fragmentado, hospitalocêntrico e orientado pelo tratamento da doença instalada, o Brasil optou por uma política pública de saúde (e não de doença), universal, com foco na prevenção e na atenção básica integral, assentada no mapeamento de todo o território brasileiro e na saúde da família, na descentralização administrativa e na participação ativa da comunidade. Para os não especialistas, talvez passe despercebido o quão impactante é esta reorientação. Não apenas os dispositivos da infraestrutura têm que ser modificados, mas também o rol e a lógica da formação, a cultura profissional, a consciência cívica de direitos e deveres, o conjunto dos programas específicos, a prevalência do primado da medicalização e da internação, entre outros. Tudo isso a partir de diretrizes nacionais a serem implementadas no âmbito de todos os entes federativos, com protagonismo reservado às localidades, isto é, aos mais de cinco mil municípios do país. É nesse contexto que se compreende que, em pleno ano de 2016, dois anos antes da Constituição de 1988 fazer seu trigésimo aniversário, a implementação

1 Ana Pimentel Possui é graduada em medicina pela UFJF, Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ e doutoranda do Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz. 2 Daniela Tranches de Melo é graduada em Ciências Sociais pela UFJF, Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e Doutora em Ciência Política pelo IESP/UERJ. 3 Gisele Silva Araújo é graduada em ciências sociais pela UFRJ e mestre e doutora em sociologia pelo IUPERJ.

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do SUS seja todavia um processo em andamento, sem curso linear, variando em intensidade e extensão conforme as disputas políticas na União, nos Estados e nos diversos municípios. Devido a seus próprios princípios de descentralização, atenção integral e participação, o SUS consiste hoje num dos principais pilares da política municipal, situando-se, ao lado de temas como mobilidade, moradia e saneamento, no centro do que se costumou chamar “direito à cidade”. Este artigo tem o objetivo de refletir sobre a política de saúde no município do Rio de Janeiro como núcleo do projeto de uma cidade inclusiva e solidária e, neste sentido, inserir-se no debate das eleições locais vindouras. Não se trata de um artigo acadêmico – há excelentes à disposição – mas de uma convocação ao diálogo sobre as relações entre a saúde pública e a vida cotidiana de todos na cidade.

Saúde e cidade O paradigma da saúde pública atualmente em vigor na legislação brasileira derivou das famosas Conferências da Saúde realizadas ainda durante a ditadura civil-militar de 1964 – e como resistência a ela.4 Na 8ª Conferência, que ocorreu em 1986, consolida-se o projeto de “Reformulação do Sistema Nacional de Saúde”, que, a partir de intensa mobilização de profissionais e usuários, resultaria nas cláusulas pétreas hoje constantes da Constituição. Considerado por especialistas nacionais e internacionais o maior e mais inclusivo sistema de saúde do mundo5, o SUS adiantou em alguns anos o debate sobre a necessidade de construir sociedades e cidades sustentáveis, fundadas na solidariedade, no diálogo e no respeito à diversidade. A saúde, tal como ali qualificada, não se resume a tratar e evitar a doença, mas destina-se a qualificar a existência das pessoas e das coletividades e está relacionada ao bem viver presente e futuro, afirmando a pertinência dos distintos modos de vida, maneiras de produzir e reproduzir a vida em suas mais variadas potencialidades. Assim diz o Relatório de 1986: Em primeiro lugar, ficou evidente que as modificações necessárias ao setor da saúde transcendem os limites de uma reforma administrativa e

Os Relatórios Finais das Conferências Nacionais de Saúde podem ser obtidos neste link: http://conselho.saude. gov.br/14cns/historias.html. Acesso em 24 de março de 2016. 5 Ver excelente entrevista-balanço de Eugênio Vilaça Mendes, disponível em: http://saude.estadao.com.br/noticias/ geral,sus-e-a-maior-politica-de-inclusao-social-na-saude,1530727. Acesso em 24 de março de 2016. 4

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financeira, exigindo-se uma reformulação mais profunda, ampliando-se o próprio conceito de saúde e sua correspondente ação institucional, revendo-se a legislação no que diz respeito à promoção, proteção e recuperação da saúde, constituindo-se no que se está convencionando chamar a Reforma Sanitária. (...) Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. A saúde não é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento do seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas. (BRASIL, 1986: 2-4)6 (grifo nosso)

Com a constitucionalização do SUS,7 o direito à saúde foi elevado à categoria de direito fundamental de acesso universal e dever do Estado. Seus princípios e diretrizes incluem: universalidade do acesso; igualdade da assistência sem preconceitos ou privilégios; integralidade, que significa articulação contínua das ações e serviços individuais e coletivos para uma cobertura ampla e integrada; autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral, incluindo o direito à informação sobre sua própria saúde; dever de divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário; e descentralização político-administrativa com ênfase nos municípios e participação da comunidade. As políticas públicas de saúde Brasil, 1986. Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Disponível em: http://www.conselho.saude. gov.br/biblioteca/Relatorios/relatorio_8.pdf. Acesso em 24/03/2016. 7 Brasil, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 196: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. A “igualdade”, no âmbito do SUS, vem sendo interpretada como “equidade”, de modo a privilegiar os setores mais necessitados da população. 6

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em consonância com tais princípios não podem se resumir, portanto, à “administração de corpos” doentes; devem gerir a participação saudável e democrática na cidade, integrando todos os aspectos da vida cotidiana dos cidadãos, num dado momento histórico. No Brasil do final do século XX e início do XXI, essa perspectiva integral e inclusiva da gestão da saúde implica uma visão diretamente relacionada ao tema da urbanização. Em 1940, 31% da população brasileira residia em zonas consideradas urbanas, enquanto na década de 1970 esta proporção se inverteu. Em 2006, 85% dos brasileiros residem em cidades (Brasil, 2009). É o espaço urbano – e não mais o rural –, portanto, a referência da vida cotidiana dos cidadãos, o local de trabalho, moradia e lazer. Além disso, o envelhecimento da população e mudanças sociais e econômicas alteraram tanto o modo de viver dos brasileiros quanto o perfil das demandas de saúde pública. Desde a década de 1940, a mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias (DIP) tem declinado enquanto crescem as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Em 2010, as DCNT responderam por 73,9% dos óbitos no Brasil em 2010, dentre eles 80,1% devido a doença cardiovascular, doença respiratória crônica, diabetes ou câncer, configurando o que se costumou chamar de transição epidemiológica (Brasil, 2005). A implementação de políticas públicas de saúde no Brasil não descuidou, seguindo as diretrizes e princípios constitucionais, da atenção ao contexto da urbanização. Os esforços para regulamentar e regularizar a descentralização do sistema aconteceram já nos primeiros anos da década de 1990, a partir da 9ª Conferência Nacional da Saúde, cujo título sugestivo foi “a municipalização é o caminho”. Normas de 1991, 1993 e 1996 organizaram deveres e repasses aos municípios, mas foi apenas em 2006, com o Plano pela Saúde – que incluiu o Pacto pela Vida, Pacto em Defesa do SUS e o Pacto de Gestão do SUS – que foram estabelecidos metas, compromissos e repasses mínimos para todos os entes da federação. Ao longo dos últimos anos, projetos, programas e ações governamentais têm contribuído no sentido de melhorar as condições de vida da população brasileira e ampliar o acesso à saúde, sendo propostos e normatizados pelo Governo Federal, e cuja implementação efetiva está a cargo dos municípios. Daí que, como já se disse, a consolidação do SUS seja um processo em andamento, muito desigual no território nacional em função das variações políticas locais. Alguns dos projetos principais nascidos desse esforço de implementação do SUS são: PSF/ESF Saúde da Família (lançado em 1994 como programa e tornado estratégia prioritária da Atenção Básica em 2006, e integrando a Po-

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lítica Nacional de Atenção Básica em 2011); SAMU, o atendimento móvel de urgência (2003); Brasil Sorridente, para demandas odontológicas (2003); Humaniza SUS, para qualificar a relação profissional-usuário (2003); Pró-Saúde, para Reorientação da Formação Profissional em Saúde (2005); Política Nacional de Assistência Farmacêutica e Farmácia Popular (2006); Saúde na Escola (2007); QualiSUS-Rede, para qualificação do atendimento hospitalar de urgência (2008); Academia da Saúde (2011); Melhor em Casa, para atendimento domiciliar (2011); Olhar Brasil, para tratar demandas oftalmológicas (2012); Mais Médicos (2013); Mais Especialidades (prometido em campanha presidencial de 2014 para o quadriênio 2015-2018); e outros, focados na Gestante, Aleitamento materno, Saúde da Criança e do Idoso. Cada um destes programas implica uma relação específica do município com os Estados e com a União. A consolidação do SUS, assim, depende fortemente das cidades, não apenas porque são elas as principais executoras de ações de saúde, mas porque é nelas que se desenrola a vida cotidiana, com todos os aspectos que promovem – ou não – a saúde em toda sua amplitude. “Condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra”, como fatores de promoção e proteção da saúde, se realizam na cidade, a partir das demandas e da vigilância do cidadão. É aí, na ocupação democrática do espaço da cidade, que podem ser fortalecidos os princípios de solidariedade e respeito à diversidade que informam o SUS, de modo a cultivar a saúde e não apenas remediar as doenças. O desafio de articular a gestão de saúde com uma plataforma de democratização da cidade e do acesso igualitário aos serviços e bens que ali se produzem não significa negligenciar as especificidades das políticas públicas de saúde. Ao contrário, trata-se de integrar perspectivas, avaliar tecnicamente e orientar a organização da saúde para as condições oferecidas pela cidade e a melhoria contínua dessas mesmas condições. Trata-se de, por exemplo, pensar o transporte como fonte de saúde ou doença, e o acesso à saúde dentro da malha de transporte urbano; pensar a educação como insumo para boas práticas de vida, e a participação no SUS como forma de educação cidadã; pensar o convívio com a diferença nos espaços públicos como articulador da saúde das populações de rua, e a saúde na rua como modo de inclusão social; pensar o trabalho como ação coletiva na cidade e a saúde coletiva como contribuição ao desenvolvimento econômico e social; pensar a democratização dos meios de comunicação como condição para um diálogo franco e participativo dos cidadãos quanto às questões da cidade e da saúde. A seguir, alguns desses elementos são tratados com mais detalhes.

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A organização dos serviços de saúde e a democratização da cidade A universalização do acesso à saúde demonstra, e ao mesmo tempo reforça, o grau de democratização da cidade. Uma oferta de saúde segmentalizada, seja geograficamente, seja por classe social, gênero, etnia, orientação sexual, etc., ao mesmo tempo em que expressa a fragmentação da cidade, alimenta essas mesmas fraturas e preconceitos sociais, consolidando uma cidade repartida em uma multiplicidade de guetos desiguais entre si, com consequências que vão muito além do sistema de saúde. A desigualdade no acesso à saúde é política, social e economicamente inaceitável. Seja por nível socioeconômico, por restrições geográficas ou quaisquer daquelas outras clivagens, não há argumento ético que sustente que um ser humano deva ter uma atenção de saúde superior à de outros. A garantia do acesso universal e igualitário deve ser portanto uma preocupação prioritária e permanente, e ela só é viável através do caráter público das políticas de saúde. Dentre as diversas formas utilizadas para a universalização do acesso, a maioria é formada por programas que buscam a provisão de serviços de cuidados primários, uma vez que estes têm sido considerados a porta de entrada aos sistemas de saúde. Além disso, os serviços de atenção primária à saúde têm se mostrado efetivos em reduzir as injustiças relativas ao acesso (STARFIELD, 2005; 2006). Entre as estratégias para organizar a porta de entrada do SUS destacam-se a criação do Programa Saúde da Família (PSF) e a descentralização dos serviços para garantir o acesso em todos os níveis de atenção, ações que se iniciaram já na década de 1990. Somente em 2006, entretanto, a Saúde da Família perdeu o caráter de mero “programa” para ganhar a condição de estratégia prioritária para a organização da atenção básica (BRASIL, 2006). Subjaz ao modelo adotado pelo SUS, e que visa cobertura universal e integral na cidade, um debate acerca do próprio conceito de “acesso”, e cuja compreensão condiciona variações locais na sua implementação. Alguns autores definem “acesso” como a simples disponibilidade dos serviços e recursos, desvinculando-o da efetiva “utilização”. Outras concepções têm uma abordagem mais ampla. Para Donabedian (2003), acesso indica o grau de facilidade ou dificuldade com que as pessoas obtêm serviços de saúde. Para Travassos e Viacava (2007), o acesso reflete as características do sistema de saúde que atuam aumentando ou diminuindo obstáculos à obtenção de serviços de saú-

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de pela população. Para Aday e Andersen (1974), as distintas características do sistema de saúde e da população podem determinar a possibilidade de ingressar ou não no serviço de saúde, e a prova do acesso consiste no fato de que os serviços sejam utilizados por quem os necessite. Trata-se, nestes três casos, de uma concepção segundo a qual o conceito de acesso pode ser centrado no grau de ajuste entre as características do sistema e do usuário, no processo de busca e obtenção de assistência quando e onde for necessário. Este conceito complexo de “acesso” que vincula a oferta de serviços à possibilidade efetiva de utilizá-los já demonstra como a saúde se imiscui no direito à cidade, e exige que o Município implemente os Programas promovidos pela União num sentido determinado: A Organização Mundial de Saúde (OMS) entende a saúde como um produto de vários subjacentes Determinantes Sociais da Saúde. Como no caso do Rio de Janeiro, problemas de saúde são frequentemente associados com condições de vida desfavorecidas. O espaço urbano é, então, um Determinante Social da Saúde, uma vez que produz certos resultados de saúde proporcionados e previstos por determinadas circunstâncias sociais. Seguindo a argumentação da OMS, é aqui onde as disparidades de saúde são transformadas em desigualdades, porque elas são sistemática e socialmente produzidas. O espaço pode ser um produto das desigualdades sistemáticas pré-existentes que são geradas por uma complexa interação de padrões políticos, econômicos e sociais.8

Prioridade à Atenção Básica, Universalidade, Publicidade e Acesso ao sistema de saúde, implementados de forma Descentralizada e Democrática, exigem que o Município organize o SUS observando fundamentalmente a “territorialidade”. Trata-se, em termos simples, do mapeamento completo do território da cidade, seguido da designação de equipes da estratégia da família (atenção básica) para cada parcela da população conforme seu lugar de moradia. O serviço fica, assim, inserido no cotidiano da comunidade, vinculado a suas demandas e especificidades locais, garantindo ainda ao cidadão um acesso menos dependente de traslados longos e com transporte muitas vezes deficitário. Além disso, a proximidade tem o objetivo de promover a participação de“Desigualdade ao Acesso à Saúde e suas implicações políticas no Rio de Janeiro”. RioOnWatch, 2016. Disponível em: http://rioonwatch.org.br/?p=15168 8

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mocrática na própria formulação das ações que a comunidade necessita, o que não se realiza de modo automático e demanda envolvimento com a educação, o lazer e os equipamentos da comunidade. A territorialidade é o que garante a alta capilaridade do SUS no município, cumprindo sua potencialidade de resolver mais de 80% das demandas de saúde. Subsidiariamente, o “referenciamento” conecta as unidades básicas territoriais a serviços mais específicos: secundários, tais como exames e médicos especializados, ou terciários, como os hospitais. Nestes casos, não cabe à equipe territorial de saúde da família o atendimento, mas a ela compete, quando não se tratar de serviço de urgência, o encaminhamento qualificado. As Unidades Básicas de Saúde são o ponto de partida da rede e estas devem estar articuladas, do ponto de vista funcional e tecnológico, com centros de saúde especializados, ambulatórios hospitalares, serviços de diagnósticos e centros de atenção psicossocial. Embora o acesso aos serviços de saúde seja reconhecido internacionalmente como um direito fundamental do cidadão e a OMS tenha conferido prioridade à atenção básica (Declaração de Alma-Ata, 1978), grande parte dos recursos para a saúde continua sendo absorvida pelos grandes hospitais e o hiato entre os que recebem e os que não recebem cuidados básicos se ampliou nos últimos anos em alguns serviços (WORLD BANK, 2006). De acordo com O’Donnell (2007), milhões de pessoas sofrem e morrem em todo o mundo por condições para as quais já existem intervenções efetivas. O Brasil, apesar de ter constitucionalizado o SUS em 1988 (BRASIL, 1988) e desenvolvido a partir de 2003 um rol significativo de programas e políticas dentro dos princípios supracitados, não foge à regra. Segundo Oliveira et al. (2004), é indiscutível o avanço do setor de Saúde no país no que se refere à ampliação da cobertura e dos níveis de atendimento, ainda que a efetiva implantação da universalização do acesso tenha sido prejudicada por condições políticas e econômicas. Para Gerhardth (2006), embora pareça ter havido uma melhora do acesso aos serviços básicos, questões importantes, como a assistência adequada, não parecem ser extensivas a toda a população. Há quem sustente, não sem bons dados e argumentos, que o país passa mesmo por um “ataque ao SUS”, ou um processo de “contrarreforma” sanitária.

A saúde na cidade: o caso do Rio de Janeiro De acordo com a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Saúde, em seu estudo produzido a partir de uma missão realizada no Rio de Janeiro em 2008, há

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uma constante violação do direito à saúde na capital fluminense9. O desrespeito pode ser constatado por meio do acesso às ações de vigilância sanitária que ocorrem com mais frequência nas periferias da cidade; e em questões relativas ao acesso à assistência propriamente dito. Dentre os fatores, destacam-se: a) organização da rede de atendimento; b) problema de deslocamento até os serviços de saúde; c) falta de programas de promoção de saúde pela secretaria municipal e a falta de educação em saúde. Além destes, o atendimento apresenta problemas, como a falta de médicos e outros profissionais de saúde, o sucateamento da rede instalada, a falta de humanidade no atendimento aos usuários dos serviços públicos e as crônicas filas10. Todas essas adversidades esbarram no problema da gestão, o que demonstra a negligência que o poder público local tem dispensado às demandas da população. Rede de serviços desarticulada, problemas de contratação de profissionais do setor, falta de integração das redes municipal, estadual e federal e problemas de resolutividade estão fortemente presentes. A desatenção do poder municipal quanto ao projeto de implementação do SUS não se explica pela exiguidade orçamentária. O próprio mapeamento da cidade e a elaboração de análises diagnósticas da situação da saúde – condição prévia para o correto endereçamento dos problemas, gerando inclusive economia de recursos – não se realiza senão através de relatórios esparsos, sem continuidade avaliativa e por meio do fornecimento de dados com ampla falta de transparência. Tanto é assim que todas as pesquisas no setor se ressentem da dificuldade de acesso a informações. Sem que esteja em questão a qualidade do relatório, não se explica por que a “Avaliação dos Primeiros Três Anos de Clínicas da Família na Cidade do Rio de Janeiro” tenha sido confiada a uma Universidade do Rio Grande do Sul, afastando-se frontalmente dos princípios de descentralização e integração com a comunidade que informam o SUS. Adicionalmente, se o DataSus contém um bom conjunto de dados, não são produzidos relatórios específicos para o município do Rio de Janeiro com frequência, e os portais de “transparência” são precários, incompletos e de difícil acesso11. AITH, Fernando; GILBERTO, Camila Marques. “Relatório de Missão realizada no Rio de Janeiro (RJ) entre os dias 19 e 22 de outubro de 2008”. Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil. Disponível em: http://www. cedaps.org.br/wp-content/uploads/2013/07/Plataforma-DhESCA-Direito-a-Saude.pdf. Acesso em 05/07/2016. 10 AITH, Fernando, GILBERTO, Camila Marques.Relatório Missão Acesso aos Serviços Públicos de Saúde no Município do Rio de Janeiro/RJ. DHEsca, Brasil, 2008. Disponível em: http://www.cedaps.org.br/wp-content/ uploads/2013/07/Plataforma-DhESCA-Direito-a-Saude.pdf. Acesso em 24 de março de 2016. 11 Dados oficiais do município do Rio de Janeiro podem ser observados em http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/ exibeconteudo?id=871475. Acesso em 24 de março de 2016. Uma avaliação qualitativa mais abrangente, embora limitada à Estratégia de Saúde da Família, se encontra em HARZHEIM, Erno (org.). Reforma da Atenção Primária à Saúde na Cidade do Rio de Janeiro – Avaliação dos primeiros três anos de Clínicas da Família. Porto Alegre, 2013. Disponível em: http://apsredes.org/wp-content/uploads/2014/11/Clinicas-Saude-da-Familia-Rio-deJaneiro.compressed.pdf. Acesso em 24 de março de 2016. 9

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Não obstante a evidente necessidade de atualização e de uma análise sistemática da situação atual da saúde no Rio de Janeiro, com forte envolvimento da comunidade acadêmica, profissional e usuária local, sabe-se que houve piora em alguns índices entre 2012 e 2014, após as melhoras observadas nos anos anteriores. Destaca-se aqui a implementação do Programa Estratégia da Saúde da Família. Tornado estratégia prioritária em 2006 pelo Governo Federal, teve sua implantação iniciada em 2009 na prefeitura de Eduardo Paes (PMDB). A pertinência do desenho do programa (e dos princípios e diretrizes do SUS como um todo) pode ser aferida pelos primeiros dados de sua execução, que demonstram uma melhoria significativa na cobertura dos serviços de saúde. Não obstante, após seis anos de implantação, apenas 50% da população possui cobertura de equipes de atenção básica; menos de 30% possui cobertura de equipes de saúde bucal; óbitos em UTI neonatal estão em 2014 em nível equivalente a 2008; a taxa de mortalidade infantil cresceu em 2012, voltando a recuar timidamente em 2014; e a cobertura de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) cresceu apenas 10 pontos no período, não atingindo metade da população. Adicionalmente, a qualidade do atendimento e o referenciamento para serviços especializados e hospitalares não atende a demanda da população. O gráfico a seguir, extraído do DataSus, demonstra alguns índices selecionados:

Fonte: Ministério da Saúde

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Estudos quantitativos e qualitativos do sistema de saúde do Rio de Janeiro sugerem um conjunto de fatores que contribuem para resultados precários e de avanço tímido. Segundo Marques e Mendes (2009), o tema do financiamento do SUS esteve em debate desde o seu nascedouro nos anos 1990, e está no centro da questão. No bojo das críticas à amplitude dos direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988, também o caráter público do SUS foi alvo de ataque, como se o dever do Estado em atender compromissos financeiros fosse superior ao dever de cuidar da saúde do cidadão. Assim, desenhou-se um modelo público-privado, em que o sistema de saúde valer-se-ia de organizações de direito privado sem fins lucrativos para sua operação: as Organizações Sociais (OSs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), Fundações Estatais de Direito Privado (FEDPs) e, mais recentemente, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Em 1997, o então governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) regulamentou a participação das OSs na gestão e operação do SUS, tendo o Partido dos Trabalhadores (PT), em 2001, proposto uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) contra esta terceirização junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Somente em 2015, a ADIN foi julgada pelo STF, resultando na autorização para privatizar quaisquer serviços essenciais do Estado brasileiro,12 sem contestação unificada do partido autor da ação. No Rio de Janeiro, o modelo das OSs começou a ser implementado pela prefeitura de Eduardo Paes (PMDB) através da Lei municipal nº 5026/2009, na sequência da transformação do PSF em estratégia prioritária pelo governo federal em 2006. Até o ano de 2013, 13 (treze) OSs foram qualificadas para atuar da área da saúde. De 2009 a 2012, as OSs receberam da prefeitura do Rio de Janeiro mais de 1 bilhão de reais apenas nos contratos principais, ou seja, sem considerar os aditivos13. Além disso, tanCf. STF, 2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=289678. Acesso em 05/07/2016. E “Organizações Sociais: Serviços essenciais podem ser executados por meio de convênios, decide Supremo”. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-abr-16/servicos-sociais-essenciais-podem-privatizados-decide-stf. Acesso em 05/07/2016. 13 “Destas, sete foram qualificadas em 2009, a saber: Associação Marca para Promoção de Serviços (A. Marca); Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM); Centro Integrado e Apoio Profissional (CIAP); Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (FIOTEC); Instituto de Ação Básica e Avançada a Saúde (IABAS); Viva Comunidade. Em 2010, foram qualificadas duas: Centro de Estudos e Pesquisas 28 (CEP-28) e Fibra Instituto de Gestão e Saúde (FIBRA). E, em 2013, uma, Centro de Estudos e Pesquisas “Dr. João Amorin” (CEJAM). Há três em que não se identificou o ano da qualificação: Instituto SAS; Instituto Unir Saúde e Sociedade Espanhola de Beneficência.” MENDES, Áquilas, MARQUES, Rosa. “O financiamento do SUS sob os “ventos” da financeirização”. Ciênc. saúde coletiva. Vol. 14, nº 3. Rio de Janeiro, Maio/Junho 2009. Em maio de 2013, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou a Lei 5.586/2013 que instituiu a empresa pública “Rio Saúde”. Trata-se de uma sociedade anônima de capital fechado, integralizado 100% pelo município do Rio de Janeiro, que realiza, no entanto, contratações através da Consolidação das Leis Trabalhistas e não pelo regime estatutário, mantendo estatutos diferenciados entre profissionais de uma mesma unidade de saúde e instabilidade laboral. 12

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to o descumprimento de metas estabelecidas nos contratos quanto os escândalos de corrupção marcam a participação das OSs na prestação do serviço público de saúde. Há investigações do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Município evidenciando sobrepreços, desvio de recursos, valores salariais exorbitantes aos diretores de OSs, entre outras fraudes. Vale ressaltar ainda que tais organizações podem contratar pessoal sem concurso público, os empregados são celetistas sem qualquer plano de carreira ou estabilidade, e a compra de insumos prescinde de licitação, alimentando uma rede de interesses privados no interior do Estado. Trata-se de um modelo que implica, por desenho, na privatização do público. Estas questões internas à formatação da prestação do serviço público não ficam sem efeitos para além dos muros das unidades de saúde. Toda a interligação entre elas e a cidade se vê prejudicada quando a própria gestão do sistema está terceirizada e submetida ao interesse privado. Assim, a integração com o transporte e a educação, a concepção de saúde pública indissociada do direito à cidade e de participação democrática sucumbe aos “contratos” de metas estabelecidos entre a prefeitura e as OSs, as contratações e compras se dão em relações privadas, o corpo de empregados não se vincula aos princípios do SUS e a comunidade não implementa a solidariedade característica de um serviço não-fragmentado. É este vínculo interno entre o SUS e a cidade que deve informar a proposta de estruturação e funcionamento dos serviços em saúde, considerando o momento e o contexto social e histórico do país e da localidade em que se institui. A prioridade da atenção básica em sua relação interna com a constituição de uma cidade solidária se completa com a dinâmica do “referenciamento”, a partir da qual a estrutura municipal formada em rede se articula intra e interfederativamente14 através de conexões rápidas entre órgãos e instâncias do sistema, visando uma cobertura integral da vida saudável do cidadão. Não é o que se observa no município do Rio de Janeiro, onde há falta de informação, provocando sobrecarga nos dispositivos hospitalares, além de fluxos incorretos, gerando deslocamentos e esperas desnecessários. Não sem frequência, a população recorre diretamente aos hospitais, pelas lacunas da atenção básica ou por não participar do SUS. Para esses níveis superiores à atenção básica, ou seja, para os serviços especializados e hospitalares, os desafios da implementação do SUS no Rio de Janeiro são ainda superiores. Além da falta de informação já mencionada, há efetivamente problemas na interligação de dispositivos do município com os do estado e os 14 Cf. BRASIL, 2014. “A Regionalização da Saúde”. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/regionalizacao_saude_decreto_7508.pdf. Acesso em 24 de março de 2016.

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da união (hospitais estaduais e federais). Ademais, a mobilidade é aqui um fator essencial, exigindo uma cidade apta a acolher o cidadão que necessita. Se é na comunidade territorial que as ações de proteção e prevenção devem se realizar, com a devida participação democrática, é no âmbito de todo o município e de toda a rede interfederativa que o serviço de saúde se torna integral. Evidentemente os hospitais e serviços especializados têm suas deficiências próprias. Entretanto, a elas se soma a falta de integração do sistema como um todo, incluindo a participação democrática da comunidade na sua gestão. Forma-se então um ciclo vicioso que alimenta ainda mais as causas estruturais: a percepção equivocada de que todo o problema está centrado na alta demanda não atendida pelos hospitais dá margem às propostas de privatização do sistema; e é precisamente a privatização que, avessa à universalidade e à territorialidade, provoca o retorno a uma perspectiva de saúde como mera “cura da doença”, hospitalocêntrica, lucrativa e descomprometida com o bem viver na cidade.

Um SUS para um Rio em comum Este artigo cuidou, em linhas gerais, da concepção do Sistema Único de Saúde no Brasil, seus princípios, sua trajetória histórica e sua implementação na cidade do Rio de Janeiro. Não se trata, evidentemente, de proceder aqui uma revisão do modelo deliberado nas Conferências da Saúde dos anos 1980 e constitucionalizado no Brasil em 1988. Ao contrário, reconhece-se que o SUS é um dos maiores e melhores sistemas de saúde do mundo, potencialmente cobrindo 80% das demandas da população através da atenção básica e da territorialidade, deslocando o foco da doença para a saúde e referenciando o cidadão para um atendimento integral em níveis superiores quando necessário. A capilaridade implicada na descentralização e municipalização do SUS e a participação da comunidade, ademais, portam consigo a de uma cidade integrada, solidária e viva, em que mobilidade, trabalho e lazer não se dissociam de uma concepção de saúde como bem viver e desenvolver contextualizado. Um tal objetivo, decerto, depende da garantia da destinação de recursos próprios, o que, como se viu, sempre esteve sob ameaça. Ademais, depende da decisão política de sustentar a saúde do cidadão e a democratização da cidade como elementos prioritários da gestão. O caso do Rio de Janeiro demonstra como a constituição do SUS é bem sucedida, mesmo tendo estado permanentemente sob ataque, a ponto de alguns autores falarem de uma “contrarreforma sanitária”. De fato, embora a implemen-

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tação SUS e, especialmente, do Programa de Saúde da Família apresentem resultados grosso modo positivos, princípios centrais têm sido negligenciados, o que anuncia o risco de se implementar um sistema estruturalmente distinto do prescrito pela Constituição. Como se viu, há evidências de informação precária, fraca integração com equipamentos urbanos em geral, como escolas e transporte, ausência de efetiva participação da comunidade nas decisões, precarização das relações de trabalho por meio da terceirização indiscriminada, sobreposição de interesses privados, acarretando o desperdício de recursos, e a derrocada do caráter público e universal do SUS. Apesar de questões candentes dependerem de instâncias do governo federal, dos estaduais e do judiciário, no nível municipal há o que fazer para que o SUS não se reduza a uma simples prestação de serviços precários, sem universalidade, focalizados na população mais carente, submetido aos interesses envolvidos na contratação de serviços privados. No que se refere aos processos de trabalho, a gestão municipal do SUS precisa considerar os aspectos políticos, pedagógicos e subjetivos que os constituem nas especificidades do contexto local, e elaborar processos comuns que interfiram nas instituições de modo a efetivar uma gestão democrática e de qualidade. O reconhecimento e a garantia igualitária dos direitos dos trabalhadores são condições necessárias para a efetivação desta política de saúde. Para tanto, a gestão do trabalho deve atentar para pelo menos três dimensões, quais sejam: a) educação permanente dentro e para o próprio serviço, como dispositivo de mudança das práticas de saúde; b) contratualização digna, incluindo plano de cargos, carreiras e salários, como garantia de uma atenção e cuidado de qualidade; c) práticas de autogestão do trabalho, compartilhando decisões da gestão e integrando metas federais, estaduais e municipais à participação específica da comunidade. Este último item consiste num outro exemplo de área na qual a gestão municipal tem grande autonomia: a participação democrática da comunidade no SUS. Há uma rede de Conferências de Saúde e Conselhos em vários níveis da federação cuja visibilidade, efetividade e envolvimento com a cidade perdeu expressão nos últimos anos, dando lugar a uma gestão tecnificada e fechada nos escritórios burocráticos ou nos gabinetes da política. Cabe ao município dar a conhecer aos cidadãos seus direitos quanto aos conselhos relativos à rede de saúde, além de criar mecanismos para que a população vá além do “aconselhamento” e participe efetivamente da tomada de decisão. A gestão radicalmente democrática da saúde é fundamental para garantir um sistema integrado à cidade, já que é a partir das experiências cotidianas dos cidadãos, profissionais e usuários que as conexões entre unidades de saúde e demais condições urbanas e rurais se expli-

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citam e ganham a devida prioridade. É a própria concepção de saúde como bem estar na cidade que está aqui em questão. Ademais, quanto mais ampla e diversificada a participação, maior o entendimento sobre as ações em saúde, a inclusão de novos atores e a escuta das necessidades da cidade em geral. A democratização da gestão do SUS implica, destarte, a abertura de espaços para que as demandas integradas de toda a cidade venham à tona. Dito de outro modo, conhecer e falar do SUS – de seus princípios e de seu conceito de “saúde na cidade” – implica avaliar e formular políticas para o tema da saúde nas escolas, repensando a própria pedagogia tradicional; elaborar propostas para a formação adequada de profissionais da saúde e outra áreas correlatas; discutir e deliberar sobre o sistema de transporte da cidade; criar e reforçar meios democráticos de comunicação, para informar e ouvir sobre tudo o que interpela a vida cotidiana; envolver-se ativamente nas discussões e deliberações que envolvem o lazer, o trabalho, a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento da cidade. A implementação da democratização do SUS, seja por fóruns temáticos, de bairro, presenciais ou virtuais, ou outros dispositivos, pode ser o centro do próprio pertencimento à cidade. Não é descabido que, no final deste artigo, as atenções se voltem às ameaças que continuam pairando sobre o SUS. Meios de comunicação oligopolizados produzem discursos centrados nas deficiências do sistema e apontam como única solução o que é um dos fatores de sua fragilização, a privatização. As opções políticas das gestões municipais, como no caso do Rio de Janeiro, negligenciaram formas de participação da comunidade e optaram pela terceirização sem critério com o aval do STF. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 451, neste momento em tramitação, torna obrigatória a contratação de Planos de Saúde privados, quebrando em definitivo o caráter universal do SUS. A Emenda Constitucional (EC) 86/15, conhecida como do “orçamento impositivo”, limita o orçamento destinado ao SUS (que saltou de 30 bilhões por ano para mais de 100 bilhões entre 2003 e 2016), garantindo mais recursos para as emendas particulares de senadores e deputados federais. Por fim, a Desvinculação das Receitas da União (DRU), vigente e recentemente ampliada, desobriga a União a alocar recursos suficientes ao SUS. Como sabemos, o atendimento às necessidades de saúde permanecem enquanto uma das maiores reclamações das pessoas. Diante dos percalços na implementação e dos constantes riscos ao sistema de saúde acima esboçados, a sociedade civil se organiza para reagir. Há vários exemplos de resistência ao desmonte do SUS que se manifestam nos vários Conselhos e Conferências de Saúde. Há frentes constituídas em defesa da saúde pública e universal que, a despeito de defenderem diferentes nuances do modelo, se alinham contra as

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ameaças supracitadas. Há o movimento “saúde + dez”, que apresentou Projeto de Lei Popular (PLP) prevendo a aplicação de 10% da receita bruta da União no financiamento da Saúde. Há, ainda, eleições periódicas, quando se pode escolher prefeitos(as) e vereadores(as) que darão prioridade ao cidadão e à sua potencialidade para desenvolver outra experiência sobre as possibilidades de se viver a cidade, fundada nos laços de solidariedade social com vistas ao bem viver.

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CAPÍTULO 14 Uma breve história política: a maldição de Chagas e a hidra carioca MAYRA GOULART1

Rio Maravilha ou a história de uma decadência

A

história do Rio de Janeiro desde a metade do século XX pode ser resumida a uma palavra: decadência. Em termos econômicos, o município nunca exibiu qualquer tipo de vocação produtiva, excetuando o turismo. Porém, até 1960, o fato de sermos a capital do país nos garantia prestígio, além de uma situação fiscal privilegiada e postos de trabalho no aparato estatal aqui instalado. Estes foram os tempos de glamour. Daí para frente, fomos ladeira abaixo. A derrocada não foi abrupta, pois foi amortizada durante os 14 anos em que fomos uma cidade-estado – paliativo esdrúxulo, que, na prática, funcionou para isolar o tesouro carioca do restante dos municípios fluminense, consideravelmente mais pobres2. A alegria durou pouco. Em 1974, Ernesto Geisel pôs fim aos nossos privilégios, sentenciando-nos a compartir nossos recursos com o restante do estado. Na primeira década do século XXI, parecia que os anos de decadência iriam ter fim. O boom petroleiro da Bacia de Campos alimentou o orgulho do carioca.

1 Professora de Teoria Política e Política Internacional e vice-coordenadora do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), coordenadora do Observatório dos Países de Língua Oficial Portuguesa (OPLOP/UFF) e pesquisadora visitante do CIES (ISCTE/IUL). E-mail: [email protected] 2 Ao final do século XX, a região metropolitana do Rio de Janeiro ainda era responsável por 72% do PIB fluminense, situação que foi ligeiramente suavizada pela exploração de petróleo na Bacia de Campos, município que, em seu auge, chegou a aportar 18,96% deste montante (FERNANDES, 2007, p. 27).

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Era o Rio Maravilha, adjetivo utilizado em vários programas que marcam a administração do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) no Rio de Janeiro. Dentre eles, o mais importante é o Porto Maravilha, que visa uma faraônica reforma em uma área de mais de cinco milhões de metros quadrados circundando a Zona Portuária da cidade3. Há, contudo, outras empreitadas que levam o nome como o Polo Maravilha, destinado ao setor turístico4, e o Bairro Maravilha5, destinado à recuperação de áreas da cidade através de obras de urbanização. O boom petroleiro, as reformas e os grandes eventos (Copa do Mundo e Olimpíadas) culminam a era de ouro do PMDB-RJ, estruturada discursivamente em torno dos temas do desenvolvimento econômico, da urbanização e da segurança pública. A hegemonia da agremiação no estado é objeto deste texto que buscará suas raízes em dois fatores distintos, porém interligados. O primeiro é o legado de Chagas Freitas, governador da Guanabara (1971-1975) e do Rio de Janeiro (1979 - 1983), que dominou a cena pública carioca até o início da década de 1980, quando foi surpreendido pela ascensão de Leonel Brizola, eleito governador do estado duas vezes (1983-1987 e 1991-1994) pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). O segundo fator é, por conseguinte, o declínio do brizolismo, que, até o final do século XX6, manteve-se como principal força política no estado.

Os herdeiros de Brizola e a maldição de Chagas Como lemos em Sento-Sé (2002, 1999), durante duas décadas, a política carioca girou em torno de discursos brizolistas, categoria criada pelo autor para designar posicionamentos pró e contra o ex-governador, ainda que originalmente tenha sido constituído com o propósito de pavimentar seu percurso até a Presidência da República (SENTO-SÉ, 2002, p. 87). Nas palavras do autor: A filiação ao passado mediante a criação de uma narrativa sobre o Brasil republicano foi uma marca do discurso brizolista. Além disso, foi uma tônica daquilo que veio a se tornar o brizolismo. Tal pertencimento foi Ver: http://www.portomaravilha.com.br/portomaravilha. Ver: http://www.acrj.org.br/noticias/polo-maravilha-aguarda-licenca-da-prefeitura-do-rio-2015-11-17. 5 Ver: http://www.rio.rj.gov.br/web/smo/exibeconteudo?id=1030913 6 Em 1999, Anthony Garotinho foi eleito governador pelo partido. Em 2000, ele se desfiliou do PDT para concorrer à Presidência da República pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Em 2002, sua esposa Rosinha Garotinho é lançada pelo PSB e vence a disputa pelo governo do estado. 3 4

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repetidamente esgrimido, não somente por brizolistas, mas também por não-brizolistas e anti-brizolistas, já a partir de fins de 1978, quando a lei da anistia ainda era objeto de debates e representantes da chamada linha dura do regime militar advogavam uma anistia seletiva, que excluísse alguns exilados considerados perniciosos e indesejáveis. Evidentemente, os sinais, positivo ou negativo, aduzidos a esse legado, variavam de acordo com o lugar ocupado por aqueles que o enunciavam. A polêmica foi possível em função da ambivalência que atravessava as percepções do período em questão (1930/1964) e das causas que levaram ao golpe militar. (SENTO-SÉ, 2002, p. 89)

Nesta medida, para compreendermos a origem da polarização entre PDT e PMDB, é preciso resgatar o processo de formação dos partidos políticos ao final do regime militar, atentando para o modo como as novas agremiações se distribuíram no imaginário carioca. Criado em 1966 para abrigar a oposição consentida ao regime, o MDB foi extinto em 1979, quando decretado o fim do bipartidarismo no país. Neste ano foi criado o PMDB para abrigar a maioria de seus egressos, liderados por Ulysses Guimarães. Alguns dissidentes, em especial aqueles que mantinham boas relações com os militares, se vincularam ao Partido Popular (PP), liderado por Tancredo Neves. Nesta conjuntura, o PMDB fluminense reivindicou o papel de força de resistência contra a ditadura. Por este motivo, embora tenha sido eleito governador em 1979 pelo MDB, Chagas Freitas teve seu ingresso no PMDB vetado exatamente em virtude de suas relações com o antigo regime. Não obstante, diante do insucesso do PP, que não conseguiu estabelecer-se no plano nacional, Freitas e seus demais membros são incorporados ao PMDB em 1981. O PDT, por sua vez, surge marcado por uma dupla disputa: com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), lutava pelo legado nacionalista, republicano e trabalhista associado à memória de Getúlio Vargas, e, com o recém criado Partido dos Trabalhadores (PT), disputava o papel de representante dos excluídos e dos movimentos sociais (SENTO-SÉ, 2002, p. 89-90). O discurso brizolista, portanto, se identifica com a social democracia e com o novo trabalhismo, porém desenvolve também uma feição identitária, mediante referências “às causas dos negros, dos favelados, dos habitantes das periferias, das nações indígenas, das mulheres pobres, às causas, enfim, das massas desorganizadas e excluídas da sociedade formal” (idem, 94). Sua memória, por conseguinte, está associada a “iniciativas de governo que, bem ou mal sucedidas, reiteraram esse vínculo, e

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sua implementação foi sempre cercada de imagens que o reforçassem” (ibidem). Sendo assim, ainda que inicialmente centrada na figura de Leonel Brizola, a disputa entre PDT e PMDB ultrapassa seu sepultamento físico e político, uma vez que diz respeito ao confronto entre dois discursos acerca do papel da administração pública na região. Por um lado, o PDT surge com um forte discurso social e trabalhista, voltado para habitantes das áreas populares que caracteriza o brizolismo (FIGUEIREDO; VEIGA; ALDE, 2000). Por outro, há o PMDB e os demais partidos que circundam em seu espectro, com um perfil mais conservador, direcionado aos eleitores das áreas mais nobres da cidade e centrado nas ideias de eficiência, gestão, urbanização e segurança pública (DOS SANTOS; TRAVAGIN, 2014, p. 122). Não obstante, embora tenham sido eleitos com discursos críticos ao antigo líder, o Rio de Janeiro esteve sob a égide de egressos do PDT nas duas décadas que sucederam o último governo de Brizola: Cesar Maia – eleito prefeito do Rio por três mandatos (1994-1997, 2001-2005 e 2005-2009), intervalados pelo governo de Luiz Paulo Conde, seu então secretário de urbanismo – e Anthony Garotinho, governador entre 1999 e 2002, quando foi sucedido por sua esposa, Rosinha Garotinho (2002- 2007)7. Desde então, cariocas e fluminense convivem com uma incontestável hegemonia do PMDB, partido no qual iniciaram suas carreiras os governadores Sérgio Cabral (2006-2010, 2010-2014) e Luiz Fernando Pezão (2014-), além do prefeito Eduardo Paes (2008-2012, 2012-2016). Como afirmam Figueiredo, Veiga e Alde (2000), as eleições de 1992 e de 1994 marcam o fim da clássica divisão eleitoral do Rio de Janeiro, tendo em vista a emergência de novos discursos. Pela esquerda surge o PT, cujos votos vinham inicialmente da Zona Sul e que hoje se espalham por toda a cidade, especialmente sob a liderança de Benedita da Silva. Pelo centro surge César Maia, eleito prefeito em 1992, pelo PMDB, vencendo Benedita da Silva no segundo turno, com apoio não formal do prefeito Marcello Alencar (então PDT). Esta foi a primeira derrota do trabalhismo brizolista, da qual não se recuperou mais até hoje (FIGUEIREDO; VEIGA; ALDE, 2000, p. 16).

Para além do sepultamento da herança brizolista, o triunfo do PMDB-RJ representa a vitória de um estilo de governo, isto é, a derrota do carisma pela máquiSegundo Sento-Sé, uma das razões para a diáspora de líderes pdtistas está na centralização do partido nas mãos de Brizola, agravada conforme malogravam suas investidas eleitorais (SENTO-SÉ, 2002, p. 102). 7

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na. De acordo com Sento-Sé, tal sepultamento também tem como marco o ano de 1994, quando Brizola teve um desempenho pífio na eleição presidencial. Nesta altura, “não apenas o discurso brizolista perdeu boa parte de seu vigor como também a própria figura de Brizola passou a não mobilizar tanto aqueles que o rejeitaram, o que equivale a dizer que o brizolismo, como fenômeno político, deixou, pouco a pouco, de ser central nos debates públicos cariocas” (SENTO-SÉ, 2002, p. 99). Para compreendermos este processo, é preciso, todavia, retornar ao antigo estado da Guanabara, palco de uma das mais interessantes disputas políticas de todos os tempos, travada entre Carlos Lacerda e Chagas Freitas. Precisamente analisada por Marly Motta (1999, 2000 e 2001), o confronto entre as duas figuras é útil para compreender os modos de estruturação da política no estado, que, de acordo com a autora, tem sido marcada por três elementos: nacionalização, personalização e polarização e pela constituição de uma identidade política ambígua, dividida entre as lógicas federal e local; autonomista e intervencionista; política x administrativa (MOTTA, 1999, p. 3). De seu período como capital do país, o município herdou uma imagem de vitrine da nação e baluarte da unidade nacional, que, supostamente, pairaria sobre as dinâmicas localistas e clientelísticas da política provinciana (idem, p. 4), servindo de cenário para as disputas entre as ideologias e elites capazes de conduzir a nação. De fato, em nossa história recente, observamos que a política carioca tem sido utilizada como plataforma por parte de lideranças desejosas de serem catapultadas ao governo federal, o que supostamente aumenta o peso das coligações determinadas em nível nacional. Porém, quando a análise leva em consideração o restante do estado, é possível observar uma certa autonomia das articulações e lideranças locais, estabelecidas através de dinâmicas territoriais, corporativas e religiosas restritas espacialmente. Por esta razão, em um contexto no qual as eleições para o Legislativo e o Executivo Nacionais se encontram polarizadas pela disputa entre as coligações capitaneadas pelo PT e pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), é possível observar que nos planos municipal e estadual não vigoram os mesmos condicionantes ideológicos. Ao contrário, PT e PSDB poucas vezes destacaramse na política fluminense. Os tucanos elegeram apenas um governador, Marcello Alencar (1995-1999), e um vice-prefeito, Otávio Leite (2005-2009), enquanto o PT elegeu uma vice-governadora, Benedita da Silva (1999-2002), e o atual vice -prefeito da capital, Adilson Pires (2012-) (DOS SANTOS; TRAVAGIN, 2014, 122). O alto nível de fragmentação das coligações, por sua vez, pode ser explicado pelo caráter pragmático e ad hoc das alianças estabelecidas no plano local através

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de redes de “obrigações recíprocas” e assimétricas, formando o que se pode chamar de eleitorado cativo, que vota em determinados candidatos” (MOTTA, 1999, p. 5). Por outro lado, sobressai a falta de alinhamento entre as coligações formadas em âmbito municipal, estadual e nacional, o que se pode observar por meio de uma breve análise dos processos eleitorais ocorridos nos últimos dois anos. Nas eleições para a Prefeitura, em 2012, PMDB, PDT e PT estavam unidos em uma frente de centro-esquerda denominada Somos todos um Rio, integrada também pelo Partido Social Democrático (PSD), pelo Partido Social Liberal (PSL), pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)8. No entanto, dois anos depois, o PMDB capitaneou duas alianças passíveis de serem situadas no espectro da centro-direita. A primeira, formada para o lançamento de candidatos a Deputado Federal, era integrada por PP, PSD, PTB, PSC. A segunda, voltada ao executivo estadual, era formada por PSDB, DEM, PPS, PTB, PSD, PHS, PP, PTN, PEN, PSL, PMN, PTC, PRP, PSDC, PRTB, Solidariedade (SDD) e PSC. Esta aliança, denominada “O Rio em Primeiro Lugar”, foi apresentada em oposição à “Frente Popular” formada em apoio ao candidato petista Lindbergh Farias9. Ainda em 2014, porém nas eleições para o executivo nacional, PMDB e PT integravam uma mesma coligação formada em apoio à reeleição da presidente Dilma Rousseff. Denominada “Com a Força do Povo” e incluindo PSD, PP, PR, PDT, PRB, PROS e PCdoB, esta frente se opunha àquela lançada em torno do candidato oposicionista Aécio Neves, denominada “Muda Brasil” e integrada por PSDB, SDD, PMN, PEN, PTN, PTC, DEM, PTdoB e PTB, à qual, no segundo turno, se somaram os principais partidos que integravam a coligação formada em torno da candidatura de Eduardo Campos e Marina Silva, denominada “Unidos pelo Brasil” (PSB, PPS, PSL, PHS, PPL e PRP). A falta de coerência ideológica e o caráter arbitrário das coligações diminuem a representatividade do Legislativo brasileiro, na medida em que sua dinâmica fica à reboque da disputa eleitoral para o Executivo. No plano subnacional, observa-se que a articulação dos interesses se volta sobretudo às eleições para prefeito e governador, “tendo em vista a característica da carreira política no país ter como prêmio maior o executivo, esfera que administra a maior parte dos re8 Também formavam a frente Somos todos um Rio: Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido da Mobilização Nacional (PMN), Partido Humanista da Solidariedade (PHS), Partido Popular Socialista (PPS), Partido Progressista (PP), Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), Partido Republicano Brasileiro (PRB), Partido Republicano Progressista (PRP), Partido Social Cristão (PSC), Partido Social Democrata Cristão (PSDC), Partido Trabalhista Cristão (PTC), Partido Trabalhista do Brasil (PTdoB) e Partido Trabalhista Nacional (PTN). 9 Além do PT, integravam a frente popular o Partido Verde, o PSB e o PCdoB.

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cursos públicos” (DOS SANTOS; TRAVAGIN, 2014). Por outro lado, a reprodução do presidencialismo de coalizão10 no plano subnacional aumenta o caráter pragmático dessas articulações, nas quais os cargos legislativos são usados como instrumentos de barganha. Longe de ser produto do gênio humano de Chagas Freitas, esse sistema tem suas raízes em uma legislação eleitoral que combina um sistema de eleições proporcionais para o Legislativo, sem estabelecer barreiras significativas à fragmentação (NICOLAU, 1996). Como salienta Jairo Nicolau (1996), as regras eleitorais determinam o espectro de oportunidades no qual são estabelecidas as alianças políticas, servindo como variável capaz de distorcer ou estimular a representatividade política e o debate ideológico. Porém, na medida em que inexiste uma regra que organize a distribuição das cadeiras entre os partidos com base estritamente na votação alcançada (NICOLAU, 2002), partidos que nacionalmente são pouco representativos da opinião pública se encontram sobrerrepresentados no Congresso Nacional, por integrarem coligações vitoriosas. Ademais, a escassez de limites à fragmentação partidária eleva o custo politico para a formação de coalizões (DOS SANTOS; TRAVAGIN, 2014, p. 125), diluindo seu conteúdo ideológico.

Hércules e a Hidra Voltando ao duelo do homem contra a máquina, encenado primeiramente por Carlos Lacerda e Chagas Freitas e reeditado, após a reunificação do estado, com Leonel Brizola no papel de líder carismático, é interessante observar como o Rio de Janeiro tem sido utilizado na construção de debates nacionais, por parte de políticos que têm como ambição a Presidência da República. Com o declínio do brizolismo, o script do cavaleiro solitário continuou sendo encenado, porém, de modo mais discreto e menos exitoso. Por outro lado, atuando nas sombras e sem grandes arroubos retóricos, Chagas Freitas segue como chave explicativa para a compreensão dos processos políticos no estado, haja vista seu papel como artífice da política provinciana das alianças, configuradas a partir de vínculos de pertencimento menos abstratos e ideológicos, porém capazes de formar uma máquina eleitoral imbatível. 10 Entendido como uma forma histórica de relacionamento entre Executivo e Legislativo através da formação de grandes coalizões. Ver: ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, (31). Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988.

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Neste esquema, a governabilidade do estado não é produto do carisma do líder e de seu encantamento sobre os subordinados. Ela é garantida pela máquina que se apresenta como uma rede de clientela sustentada pelo acesso aos bens públicos e articulada em torno de diferentes lideranças locais, que podem surgir das associações de moradores, de grupos religiosos, de representantes corporativos (taxistas, cabelereiros, médicos) etc. O êxito dessa estratégia, cuja origem está no investimento prioritário de Freitas na representação estadual, permitiu que ele deixasse como legado ao MDB uma sólida, robusta e fiel bancada parlamentar na Câmara dos Deputados e na Assembleia Legislativa que, na altura, chegou a eleger 75% dos seus integrantes11. Trinta anos depois, após ter triunfado sobre a ameaça brizolista, o PMDB volta a ser hegemônico no Legislativo fluminense, possuindo a maior bancada da ALERJ, que reúne deputados de 24 partidos diferentes e se caracteriza pela fragmentação e pela presença de figuras locais, eleitas por partidos pequenos, sem interlocução nos debates ideológicos nacionais12. A maldição de Chagas se traduz, portanto, em um bloqueio das forças de esquerda no estado que tem dificuldade de acessar os eleitores nos municípios menores. Diante disso, ou os partidos fazem uma opção pelos grandes centros, como tem sido o caso do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), ou se aliam ao PMDB, como tem feito o PT, pagando o preço da diluição ideológica e das dinâmicas de barganha determinadas pela máquina. Dessa forma, como alertam Marcus Figueredo e etc: Se nos anos 90 a cidade incorporou novos atores e práticas ao debate sobre o urbano, é forçoso perceber que a esquerda não conseguiu interpelar produtivamente esse cenário. Em 1996, 2000 e 2004 nenhuma candidatura identificada com esse campo sequer chegou ao segundo turno, disputado invariavelmente entre Cesar Maia, seus seguidores posteriormente convertidos em dissidentes e eventuais lideranças alternativas. A modernidade urbana foi discurso orientado sob condução liberal-conservadora, incorporando pontos da agenda progressista (a urbanização 11 O período em questão é 1970-1974. Ver: SARMENTO, Carlos Eduardo (org.). Chagas Freitas. Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999 (coleção Perfil Político). 12 Na legislatura 2011- 2014, o PMDB possuía 16 dos 70 deputados da ALERJ. Em segundo lugar, estava o Partido Social Democrático com 9 deputados, seguidos de PDT e PT, com seis deputados cada, além de 12 partidos com representação de apenas 1 deputado. Na legislatura de 2015-2019, o PMDB passou a ter 15 deputados, porém continua sendo a maior bancada da ALERJ (Ver: http://www.alerj.rj.gov.br/deputados2.htm).

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de favelas e o fim das remoções, por exemplo) e modos de gestão tecnicistas e pouco afeitos à democratização mais ampla da vida social e política (FIGUEIREDO; VEIGA; ALDE, 2000, p. 16).

A despeito de sua composição, que inclui o crime organizado na sua rede de obrigações13, a máquina é capaz de manter a fidelidade de seus membros formais e informais, garantindo apoio legislativo e eleitoral ao governador, que, por sua vez, coordena a rede de clientela, operacionalizada pelos líderes locais. Essa estratégia, que inclui também as prefeituras dos demais municípios do estado, está em constante aperfeiçoamento. Em 2012, o PMDB integrava metade das chapas vitoriosas nas eleições para o executivo municipal, muitas vezes abrindo mão da escolha do candidato em favor de partidos menores (Santos e Travagin, 2006), que, em troca, garantem apoio aos projetos do partido nas Câmaras de Vereadores e na Assembleia estadual. A ideia de que a máquina PMDBista no estado funciona como um autômato monstruoso capaz de prescindir do carisma do líder – cuja cabeça pode ser cortada sem ameaçar sua sobrevivência – nos ajuda a compreender a improvável sucessão entre Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão. Tendo militado no PMDB durante sua juventude, Cabral migrou para o PSDB durante a década de 1990, quando foi eleito deputado três vezes (1990-1994-1998), duas delas com votações recordes no estado. Em 1999, Cabral volta para o PMDB e se elege senador e, em 2006 e 2010, governador. Era uma estrela ascendente, com ampla projeção nacional até junho de 2013. Nesta ocasião, em um fenômeno cuja compreensão desafia até hoje os analistas14, cidadãos de diferentes estados do país foram às ruas manifestar sua indignação com a qualidade dos serviços oferecidos pelo poder público, em especial, no que diz respeito ao espaço urbano. No longo prazo, essa insatisfação foi direcionada ao governo federal servindo de estopim para uma radicalização da oposição e para uma debandada geral na heterogênea base aliada do PT, em especial no que diz respeito ao PMDB. Entretanto, no momento em que se deflagraram, 13 Em 2008, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para averiguar a ação das milícias no estado do Rio de Janeiro. Durante o processo observou-se o apoio dos grupos criminosos a diferentes parlamentares. O relatório final da CPI pode ser acessado em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/relatorio_milicia.pdf 14 Há uma vasta bibliografia sobre o assunto, dentre ela cabe destacar os textos veiculados na Revista Escuta e no Observatório dos Países de Língua Portuguesa (OPLOP). Ver: https://revistaescuta.wordpress.com/2016/02/15/asressacas-de-junho/;http://www.oplop.uff.br/relatorio/anonimo/2769/relatorio-oplop-27-leituras-das-manifestacoes-de -junho-de-2013-no-brasil-I; http://www.oplop.uff.br/relatorio/anonimo/2770/relatorio-oplop-28-leituras-das-manifesta coes -de-junho-de-2013-no-brasil-ii; http://www.oplop.uff.br/relatorio/anonimo/2771/relatorio-oplop-29-leituras-das -manifestacoes-de-junho-de-2013-no-brasil-iii.

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tais protestos se dirigiam às administrações locais, responsáveis por gerenciar os serviços públicos relativos à ordem urbana. Esses cidadãos resolveram expressar coletivamente sua indignação com o tratamento abjeto a eles oferecidos pelo poder público. Pouco estruturada em termos de liderança e ideologia, a raiva dos manifestantes se dirigia aos políticos locais e exigia sua cabeça. No Rio de Janeiro, contudo, havia duas opções para a guilhotina: o prefeito, Eduardo Paes, e o governador, Sérgio Cabral15. O primeiro, por ter sido recém-reeleito e ainda gozar dos efeitos de uma caríssima e eficiente campanha publicitária, foi poupado. O segundo, por estar há mais tempo no governo e por ser mais conhecido entre a população, foi o escolhido16. Após dias convivendo com dezenas de manifestantes cercando sua residência, exigindo sua destituição, em um movimento autodenominado Ocupa Cabral17, o governador renunciou. Era de se esperar um abalo nas estruturas do PMDB-RJ, afinal, a máquina havia perdido sua cabeça. Pequeno foi o impacto sofrido. Pouco mais de um ano depois, a hidra já havia substituído o membro decepado. O vice-governador, que assumira o cargo após a renúncia de Cabral, foi eleito com 55,78% dos votos válidos. Foi a derrota da política dos homens e a ratificação do sepultamento do legado brizolista, uma vez que o anônimo Pezão derrotou Anthony Garotinho e Lindbergh Farias, rivais carismáticos e amplamente conhecidos pela população. Foi uma vitória da máquina e não do homem. Figura dos bastidores, negociador, pouco carismático, taciturno e até então desconhecido do restante da população, Pezão é um produto da maldição lançada por Chagas Freitas, que assume a forma de um autômato político capaz de prescindir dos indivíduos que o constituem, reduzidos à função de peças substituíveis em uma engrenagem. Não obstante, é preciso salientar que, a despeito de suas singularidades reAmbos tiveram sua popularidade impactada pelos eventos de junho. O primeiro perdeu 20 pontos percentuais enquanto o segundo perdeu 30. De acordo com a série do instituto Datafolha, atualizada em pesquisa realizada nos dias 27 e 28 de junho de 2013, Paes tinha 38% de aprovação em março de 2009, chegando a 50% em agosto de 2012. Após as manifestações que tomaram conta da cidade, o índice baixou para 30%. Cabral, que em novembro de 2010 tinha 55% de aprovação, caiu para 25%. (Ver: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/07/ aprovacao-de-sergio-cabral-cai-de-55-para-25-aponta-datafolha.html). 16 A primeira e principal demanda dos manifestantes dizia respeito ao alto preço e à péssima qualidade dos transportes públicos. Sendo assim, também pesou contra Cabral o fato de sua esposa, Adriana Anselmo, ser sócia do escritório de advocacia que presta serviço para algumas das concessionárias encarregadas do transporte no Rio de Janeiro: a Supervia e o Metrô Rio. 17 Em referência ao Occupy Movement, iniciado em 2011, com uma série de manifestações contra as grandes corporações e a desigualdade econômica, em um movimento a princípio conhecido como Occupy Wall Street, porém que foi atingindo um caráter global, sendo disseminado por 82 países. 15

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gionais e de seu enraizamento local, tal maldição não se limita às fronteiras fluminenses. O monstro tem seus tentáculos, ou melhor, suas cabeças espalhadas por todo o território nacional, sendo a maior força política do país. Igualmente descartáveis quando necessário à sobrevivência da hidra, essas lideranças regionais, em contrapartida, gozam de um grau considerável de autonomia, sendo essa a chave do sucesso do PMDB. Pois, apesar da projeção alcançada por alguns de seus quadros, o partido funciona como uma hidra18, capaz de repor suas cabeças quando decepadas, diferentemente de outros partidos, que sangram e definham quando suas lideranças são atingidas. É o caso do PDT, que jamais foi capaz de se reinventar após o ocaso de seu patrono. Na conjuntura atual, todavia, sobressai o declínio do PT, cuja imagem foi irremediavelmente maculada pelo envolvimento de seus líderes em denúncias de corrupção. Enquanto isso, o PMDB permanece incólume ao desgaste político dos seus mais emblemáticos membros e, impassível, instala-se na Presidência da República19.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Dados, v. 40, n. 2, 1997.

A hidra é um animal da mitologia grega com várias cabeças de serpente. O seu sangue, assim como o seu hálito, era venenoso. Se suas cabeças fossem cortadas, elas voltavam a nascer. (http://www.dicionariodesimbolos.com.br/hidra/) 19 Em referência ao governo interino formado em 11/05/2016, após afastamento provisório da presidenta Dilma Rousseff, em função da abertura do processo de impeachment no Senado Federal. Durante este período, que pode se estender por até 180 dias, o vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP) assume a Presidência da República, mantendo-se no cargo caso o impeachment seja definitivamente aprovado. 18

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 DOS SANTOS, Rodrigo Dolandeli; TRAVAGIN, Le cia Bona. As eleições para prefeito no estado do rio de janeiro de 1996 a 2012: uma análise sobre nacionalização, par dos polí cos e coalizão governista subnacional. Texto apresentado na II Semana de pós graduação em ciência polí ca: Repensando a trajetória do Estado Brasileiro, 1-21, 2014. Disponível em: h p://www.semacip.ufscar.br/wp-content/uploads/2014/12/Aselei%C3%A7%C3%B5es-para-prefeito-no-estado-do-Rio-de-Janeiro-de1996-a-2012-uma-an%C3%A1lise-sobre-nacionaliza%C3%A7%C3%A3opar dos-pol%C3%AD cos-e-coaliz%C3%A3o-governista-subnacional..pdf. Acessado em 24/02/2016.  FERNANDES, Camila Formozo. A Evolução da Arrecadação de Royal es do Petróleo no Brasil e seu Impacto sobre o Desenvolvimento Econômico do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro: Ins tuto de Economia, 2007.  FIGUEIREDO, Marcus; VEIGA, Luciana Fernandes; ALDE, Alessandra. Rio de Janeiro: César versus Conde e a nova polí ca carioca. Estratégia, mídia e voto: a disputa eleitoral em 2000. Porto Alegre: Editora Edipuc, p. 49-89, 2000.  MOTTA, Marly Silva da. Carisma, memória e cultura polí ca: Carlos Lacerda e Leonel Brizola na polí ca do Rio de Janeiro. Locus (Juiz de Fora), Juiz de Fora, v. 7, n.2, p. 73-84, 2001.  MOTTA, Marly Silva da. Frente e verso da polí ca carioca: o lacerdismo e o chaguismo. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 13, n.24, p. 351-376, 1999.  MOTTA, Marly Silva da. Mania de estado: o chaguismo e a estadualização da Guanabara. História Oral (Rio de Janeiro), São Paulo, v. 3, p. 91-108, 2000.  NICOLAU, J. Mul par darismo e democracia: um estudo sobre o sistema par dário brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.  SENTO-SÉ, João Trajano. “O discurso brizolista e a cultura polí ca carioca.” Varia História: 85-104, 2002.  SENTO-SÉ, João Trajano. Brizolismo: este zação da polí ca e carisma. Espaço e Tempo, 1999.

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NPC PIRATININGA CURSOS LIVRES E EDITORA LTDA Prefixo Editorial: 63004 Número ISBN: 978-85-63004-23-9 Título: O Rio que queremos: propostas para uma cidade inclusiva

Este livro foi impresso no Rio de Janeiro em agosto de 2016 pela gráfica Stamppa com tiragem de 200 exemplares. A fonte utilizada no miolo é Adobe Devanagari, corpo 11/13.2, Calibri, corpo 9/13.2 e Arial Narrow, corpo 8/9.6. O papel do miolo é off-set LD 75 g/m2 e da capa é couche brilho LD - IMP 250 g/m2.

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Theófilo Rodrigues (Organizador)

Produção

O RIO QUE QUEREMOS: PROPOSTAS PARA UMA CIDADE INCLUSIVA

Theófilo Rodrigues é graduado em ciências sociais pela PUC-Rio, mestre em ciência polí ca pela UFF e doutorando em ciências sociais pela PUC-Rio. Coordenador do Centro de Estudos da Mídia Alterna va Barão de Itararé e coordenador do comitê estadual do Fórum Nacional pela Democra zação da Comunicação (FNDC).

O RIO

que queremos: propostas para uma cidade inclusiva

ISBN 978-85-63004-23-9 Agosto 2016

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ão há muitas dúvidas de que o peso de ter sido a capital do Brasil por quase duzentos anos deixou sua marca no Rio de Janeiro. Cidade onde todos pensam a questão nacional e internacional, como atestam os tulos de seus principais jornais - O Globo e Jornal do Brasil são exemplos -, durante muito tempo o Rio deixou de olhar para si mesmo. O Rio que queremos: propostas para uma cidade inclusiva é uma contribuição para a reversão do problema. Trata-se de um debate cole vo construído por 31 autores, entre sociólogos, economistas, cien stas polí cos, juristas e historiadores que voltaram seus olhos para temas profundos da cidade. Entre eles um fio comum que costura a discussão do início ao fim: o direito à cidade. Não se trata apenas de um livro acadêmico, como poderia fazer imaginar a formação de seus autores. Os textos apresentados são de fácil acesso para todo o público e profundamente marcados pelo compromisso com a construção de uma cidade mais justa e igualitária. Não fosse assim, não haveria sen do em tamanho esforço cole vo. Boa leitura!

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