Fronteiras simbólicas e reivindicação de representatividade: estudo sobre a construção de legitimidade das ONGs

June 5, 2017 | Autor: Emmanuel Rapizo | Categoria: Non-Governmental Organizations (NGOs), ONG
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

Emmanuel Antonio Rapizo Magalhães Caldas

Fronteiras simbólicas e reivindicação de representatividade: estudo sobre a construção de legitimidade das ONGs

Rio de Janeiro 2011

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Fronteiras simbólicas e reivindicação de representatividade: estudo sobre a construção de legitimidade das ONGs

Emmanuel Antonio Rapizo Magalhães Caldas

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Orientadora: Profª. Drª.Elisa Pereira Reis

Co-orientadora: Profª. Drª.Graziella Moraes Silva

Rio de Janeiro 2011  

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Caldas, Emmanuel Antonio Rapizo Magalhães Fronteiras simbólicas e reivindicação de representatividade: estudo sobre a construção de legitimidade das ONGs / Emmanuel Antonio Rapizo Magalhães Caldas. -- Rio de Janeiro: PPGSA-IFCS/UFRJ, 2011. 116 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2011 Orientadora: Elisa Pereira Reis Co-orientadora: Graziella Moraes Silva 1. ONGs. 2. Sociedade civil. 3. Legitimidade. 4. Representação I. Reis, Elisa Pereira (Orientadora) e Silva, Graziella Moraes (Co-orientadora). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia. III. Fronteiras simbólicas e reivindicação de representatividade: estudo sobre a construção de legitimidade das ONGs.

 

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Fronteiras simbólicas e reivindicação de representatividade: estudo sobre a construção de legitimidade das ONGs Emmanuel Antonio Rapizo Magalhães Caldas

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Banca Examinadora: ____________________________________________________________ Presidente: Profª. Drª. Elisa Pereira Reis (IFCS/UFRJ)

____________________________________________________________ Profª. Drª. Graziella Moraes Silva (IFCS/UFRJ)

____________________________________________________________ Profª. Drª. Cristina Buarque de Hollanda (IFCS/UFRJ)

____________________________________________________________ Prof. Dr. Rogério de Souza Medeiros (PPGS/UFPB)

Rio de Janeiro 2011  

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À minha amada mãe Rita, pois todo sacrifício valerá a pena.

 

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Agradecimentos Primeiramente, gostaria de agradecer ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia por ter me aceito em seu quadro discente. Estendo os votos aos funcionários e professores do PPGSA que me auxiliaram nas mais diversas situações administrativas. Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento a Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão de bolsa de mestrado, sem a qual não poderia ter dado continuidade aos meus estudos. Agradeço aos professores com quem tive aulas durante o mestrado e que foram fundamentais para o meu desenvolvimento intelectual. Agradeço aos colegas de turma que, além da companhia agradável, me proporcionaram ótimas discussões acadêmicas e políticas. Também sempre foram gentis ao lerem meus rascunhos e produzirem valiosos comentários. Agradeço a gentileza dos professores Cristina Buarque e Rogério Medeiros por participarem da minha banca de defesa de dissertação e ao professor Frédèric Vandenbergh pelas importantes contribuições na banca de qualificação. Aos amigos do NIED sou imensamente grato. As discussões de texto e leituras das inúmeras versões dos capítulos foram essenciais para que pudesse melhorar os argumentos presentes na dissertação. Agradeço a Fernando, Luciana, Mário, Ana, Marco, Gabriel Savelli, Gabriel Kubrusly, Julia, Juliana, Hugo, Fabiana e demais. Aos amigos Diogo Lyra e Matias Lopez sou grato pelo cuidado na leitura das versões dos meus capítulos, que ajudaram sobremaneira. Agradeço especialmente aos amigos Rafael Abreu e Maria Carolina Dysman. Com eles compartilhei toda experiência de iniciação científica e mestrado, com suas alegrias e angústias. Nossos estudos convergentes e grande capacidade intelectual dos dois me incentivaram a progredir nos estudos que resultaram nesta dissertação. O carinho e gentileza de ambos também foram importantes ao me ajudarem a superar os momentos difíceis de dúvidas e questionamentos. Agradeço aos meus amigos gonçalenses Bruno, Paulo Henrique, Gabriel, Márcio, Samuel, Anderson, Carlos Alberto, Marcel e demais. Embora não discutíssemos a dissertação, foram sempre gentis e compreensivos ao entenderem minha ausência e me ofereceram força e carinho necessários para continuar. Agradeço também aos amigos do ISP que souberam compreender minha situação de mestrando e me ajudaram sempre que possível: Renato, Thiago, Cláudia, João, Marcello, Andréia, Léo e Marcus. Agradeço especialmente à Thaís pela amizade e cuidado com a revisão final do texto. Agradeço ainda aos amigos que fiz durante minha estada no IFCS: Danilo, José, Marcos, Rafaela, Aninha, Pedro e tantos outros. A atenção e cuidado do meu amigo Marcelo Ribeiro foi

 

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fundamental em um momento complicado de minha vida, no qual a instabilidade emocional atrapalhava decisivamente a redação desta dissertação. À Maíra agradeço pelas inúmeras conversas sobre nossos medos e angústias diante da redação da dissertação, que me permitiram manter a calma necessária para continuar o trabalho. Ao amigo André Magnelli agradeço imensamente por me encorajar e incentivar para o caminho acadêmico e pelas inesquecíveis conversas francas e deliciosas sobre as mais diversas teses sociológicas, filosóficas, antropológicas e humanistas. À minha amiga Manuela, querida de tantas e todas as horas, envio agradecimentos mais que especiais. Sua delicadeza, cuidado e preocupação comigo não serão esquecidos. Terei sempre a certeza de encontrar amor e gentileza ao seu lado. Nossas muitas conversas neste ano foram indispensáveis para que pudesse produzir um bom trabalho. Agradeço ainda à minha amada amiga Juliana. Juliana, sua importância na minha vida e, por conseguinte, nesta dissertação não é possível de ser medida. Sua amizade, carinho e cuidado são sempre alento para mim e força para seguir adiante com meus planos e sonhos. Amiga, saiba que levarei você por todos os caminhos que percorrer, pois você já está em mim e eu não posso sem você. Agradeço ainda às minhas duas orientadoras, fundamentais para que esta dissertação ganhasse vida. Agradeço à Elisa Reis, que sempre me concedeu muito gentilmente importantes conselhos, sugestões e correções de rota. Sua firmeza e rigor com a redação serão guias para todos os trabalhos que farei daqui em diante. Agradeço também à Graziela Silva, sempre generosa e presente com um imenso sorriso. Leu muitas versões de cada capítulo, sempre com o mesmo apreço e zelo. Sua amizade, capacidade intelectual e incentivo foram determinantes para o êxito deste trabalho. Agradeço ainda aos meus parentes: tia Glória, tio Moisés e primo Deivson; tia Rosana e prima Carol; tia Rosali e prima Cristiane; vó Ruth. Agradeço aos irmãos amados Henrique e Toninho. Sei da responsabilidade que tenho para com vocês e nunca os deixarei sozinhos. Gostaria ainda de lembrar a memória e exemplo de meu pai Antonio, que me guiaram pelos caminhos que escolhi. Espero que você saiba, pai, das muitas vezes que junto à linda canção sussurrei que “o meu medo maior é o espelho se quebrar”. Por fim, agradeço à minha mãe Rita. Sem ela nada disso seria possível. Nunca esquecerei o seu sacrifício para que eu tivesse uma vida digna e pudesse sempre focar minha atenção nos estudos. Você me ensinou o que é o amor e como ser um homem bom. A sua importância na minha vida é ímpar e tudo que faço é para honrar e retribuir o que me fez. Mãe, espero que tenha orgulho do que sou e do que produzi neste trabalho.  

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Resumo

Fronteiras simbólicas e reivindicação de representatividade: estudo sobre a construção de legitimidade das ONGs Emmanuel Antonio Rapizo Magalhães Caldas

Orientadora: Profª. Drª. Elisa Pereira Reis Co-orientadora: Profª. Drª. Graziella Moraes Silva

RESUMO da dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Esta dissertação tem por objetivo examinar narrativas de dirigentes de organizações não governamentais (ONGs) no que tange à construção de legitimação dessas organizações. Para tal, utilizo dois eixos analíticos. O primeiro deles investiga como os dirigentes de ONGs constroem narrativas sobre o que distinguem suas instituições frente ao mercado e ao Estado. Nesses processos, reivindicam um status análogo ao do Estado e do mercado e identificam características próprias que colocam essas organizações em uma posição moralmente superior e operacionalmente mais eficaz. O segundo eixo analítico adotado se concentra nos discursos dos entrevistados que justificam a possibilidade de as ONGs poderem “falar ou agir no lugar” dos beneficiários em instâncias oficiais, como reuniões com ministros, conselhos e mesmo nas câmaras legislativas. Assim, o primeiro eixo se refere às fronteiras simbólicas entre ONGs, Estado e mercado, e o segundo, às reivindicações de representatividade. O estudo proposto parte da análise de 49 entrevistas com diretores de ONGs sediadas na região metropolitana do Rio de Janeiro nas áreas de saúde, educação, direitos humanos e meio ambiente. Palavras-chave: ONGs, sociedade civil, legitimidade, representação.

 

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Abstract Simbolic boundaries and representative claims: a study on the construction of legitimacy of NGOs

Emmanuel Antonio Rapizo Magalhães Caldas

Orientadora: Profª. Drª. Elisa Pereira Reis Co-orientadora: Profª. Drª. Graziella Moraes Silva

ABSTRACT da dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

This dissertation resorts to two analytical axes in order to analyze how people who chair non-governmental organizations (NGOs) seek to legitimize these organizations. In the first axis it focuses on how NGOs directors build narratives about the distinctions between NGOs, the state, and the market. It shows that in theses processes, they demand for their organizations a status equivalent to the ones of the other two spheres, and point to characteristics that put NGOs in a morally superior and operationally more efficient stand. The second analytical axis inquiries how the directors justify that NGOs can “speak or act for” the beneficiaries in official meetings with ministers, councils, etc. Thus, the first axis refers to the symbolic boundaries between NGOs, the state and the market, while the second one looks at representative claims. The study is based on the analysis of 49 in-depth interviews with directors of NGOs dedicated to health, education, human rights or environmental activities, in the metropolitan region of Rio de Janeiro.

Key words: NGOs, civil society, legitimacy, representation.

 

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Sumário  

1 – Introdução ............................................................................................................... 12 1.1 – Informações metodológicas................................................................................ 17

2 – Sociedade civil e representação política ................................................................. 21 2.1 – Introdução .......................................................................................................... 21 2.2 – Ressurgimento do conceito de sociedade civil ................................................... 23 2.3 – Teorias da sociedade civil .................................................................................. 26 2.4 – A sociedade civil real ......................................................................................... 28 2.5 – ONGs como proxy de sociedade civil ................................................................ 30 2.6 – As ONGs brasileiras........................................................................................... 32 2.7 – Representação política de organizações civis.................................................... 33 2.8 – Representação política como processo .............................................................. 37 2.9 – Da autorização à accountability: legitimidade e fronteiras simbólicas ............ 41 2.10 – Accountability delegativa ou procedimental .................................................... 43 2.11 – Accountability participativa ou moral ............................................................. 44 2.12 – Como estudar a accountability moral e por reputação das ONGs? ................ 45  

3 – Fronteiras simbólicas e morais................................................................................ 47 3.1 – Introdução .......................................................................................................... 47 3.2 – Narrativas e fronteiras simbólicas ..................................................................... 49 3.3 – Fronteiras simbólicas das ONGs ....................................................................... 52 3.4 – Fronteiras ante o mercado ................................................................................. 57 3.4.1 – As ONGs e o “bem comum” ....................................................................... 58 3.4.2 – O idealismo dos funcionários ....................................................................... 59 3.4.3 – As ONGs e o lucro ....................................................................................... 60 3.4.4 – O cruzamento das fronteiras – gestão empresarial das ONGs ..................... 62 3.5 – Fronteiras ante o Estado .................................................................................... 63 3.5.1 – Mais ágeis, criativas e flexíveis..................................................................... 64 3.5.2 – Complementar ou substituir o Estado?.......................................................... 65

 

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3.5.3 – Complementação do Estado ......................................................................... 66 3.5.4 – Substituição do Estado ................................................................................. 67 3.5.5 – Autonomia perante o Estado ........................................................................ 69  

4 – Narrativas públicas de legitimação ......................................................................... 72 4.1 – Introdução .......................................................................................................... 72 4.2 – O que dizem os diretores de ONGs sobre a representação política? ................ 73 4.3 – A representação e a proximidade de grupos específicos ................................... 78 4.4 – Proximidade com as bases e os modelos de representação ............................... 80 4.4.1 – Proximidade temática ................................................................................... 83 4.4.2 – Proximidade identitária ................................................................................ 84 4.4.3 – Proximidade física ........................................................................................ 85 4.5 – Proximidade para assessoria ou para prestar serviços? ................................... 88 4.5.1 – ONGs de assessoria de grupos populares ..................................................... 91 4.5.2 – ONGs que prestam serviços ......................................................................... 94

5 – Conclusão ................................................................................................................. 98 Referências Bibliográficas........................................................................................... 104 ANEXO A ..................................................................................................................... 110 ANEXO B ..................................................................................................................... 116  

 

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1 – Introdução Esta dissertação tem por objetivo examinar discursos de dirigentes de organizações não governamentais (ONGs) como estratégia de análise que permite identificar processos narrativos através dos quais se busca construir a legitimação dessas organizações. Esta introdução provê a contextualização necessária à análise visada, esclarece os recursos metodológicos utilizados e descreve como o trabalho será organizado. Muitos trabalhos e debates foram travados sobre as rápidas mudanças do final do último século. De modo geral, as décadas posteriores a 1960 podem ser entendidas como décadas de crise. São crises dos projetos desenvolvimentistas, da economia capitalista, do socialismo chamado “real”, do Estado de bem-estar social, dos Estados autoritários, da representação, da política, da ciência, etc. Transformações se avolumaram em todos os âmbitos: econômico, social, cultural e político. Algumas das expectativas do pós Segunda Guerra quanto à capacidade de regulação do mercado e da sociedade pelo Estado são postas em xeque.  Parte das críticas surge pela incapacidade que o Estado tem de solucionar problemas como a desigualdade social, falta de participação popular nos processos democráticos e da burocracia estatal ineficiente, além da crítica, nos países da Europa ocidental, da sua ingerência intervencionista e falta de liberdade criativa individual. Diante de tantos problemas, que vão desde a reestruturação do Estado até as novas configurações teóricas da ciência, passando pelos novos modelos de capitalismo, ganha destaque o que se convencionou chamar sociedade civil, independentemente da sua definição. Parece, enfim, que a sociedade civil é transformada em dimensão lógica e teórica autônoma equivalente à autoridade do Estado e aos interesses do mercado1. Nesse contexto, Estados concedem cada vez mais espaços oficiais à participação de agentes da sociedade civil. Nesses espaços, tais agentes ajudam a pautar a agenda política e mesmo a executar tarefas em parceria ou delegadas pelo Estado.

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A ascensão da sociedade civil é vista por Victor Pérez-Dias (1993) como parte dos ciclos de expansão e declínio do protagonismo do Estado. O retorno ou declínio da sociedade civil estaria atrelado a arranjos conjunturais dos projetos morais que privilegiam e favorecem soluções mais ou menos estatais. Outra abordagem da ascensão de uma nova forma de narrativa sobre a ordem social pode ser encontrada em Peter Wagner (1997), em sua análise de três formas de modernidade: a liberal restrita (predomínio do mercado), a organizada (predomínio do Estado) e a atual, que pode ser vista como modernidade liberal estendida.

 

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A pressão ou mobilização de organizações civis para influenciar decisões do Estado não são novas. Os sindicatos, em suas relações com os partidos políticos e outros movimentos populares, estão presentes desde muito. A partir da década de 1960, entretanto, outros tipos de movimentos começaram a se expressar e atuar politicamente de forma diversa da tradicional, que visava sobretudo, ao controle político dos órgãos do Estado. Dessa forma, a luta deixou de ser pelo Estado ou através dele. Os estudos sobre o que se chamou de novos movimentos sociais marcaram uma inflexão teórica nos debates acerca da sociedade civil2. As colocações acima sobre mudanças empíricas e teóricas servem para demarcar o contexto de surgimento de um tipo específico de organização civil que no Brasil tem tido grande visibilidade política e midiática. As organizações não governamentais (ONGs) aparecem cada vez mais participando em instâncias estatais como conselhos e fóruns. Além disso, promovem abaixo-assinados, mobilizações e pressões para aprovação de projetos de lei e para alteração ou inclusão de políticas públicas. Realizam também atividades junto a grupos excluídos ou discriminados. As ONGs são amplamente conhecidas no país, apesar do número relativamente pequeno de estudos sobre esse ator e a definição pouco clara de suas atividades, valores e identidade. Enunciações como “novos inimigos do capitalismo” (capa da Revista Exame de 2006) ou “a face social do neoliberalismo” (como encontrado em discursos mais radicais dos militantes de esquerda) indicam o quão discrepantes podem ser as caracterizações dessas organizações. Em meio às muitas definições e caracterizações correntes, é possível ver um ponto em comum às ONGs: elas servem prioritariamente a grupos específicos3. A ideia de servir, utilizada intencionalmente de modo abrangente, aponta para a diferença entre aqueles que prestam o serviço e os que o recebem – observado pelo sentido de servir como trabalhar em                                                              2

Essa inflexão é estabelecida também pelos escritos de Jürgen Habermas sobre a esfera pública e o mundo da vida, dois conceitos que buscam dar conta teoricamente de uma esfera que não se confunde com o Estado e o mercado.

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Certamente há ONGs que atuam prioritariamente na defesa de direitos humanos e do meio ambiente, os quais poderiam ser considerados como direitos difusos e não atrelados a grupos específicos. Entrentato, ONGs de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente comumente atuam a partir do contato com grupos locais ou áreas circunscritas, apesar da suposta universalidade das ações. Dessa forma, a defesa dos direitos humanos não é realizada de forma abstrata e universal, mas com foco em grupos discriminados, como mulheres, negros e moradores de favelas. De modo análogo, a maioria das ONGs de meio ambiente não costuma defender o meio ambiente de forma geral, mas tratam da proteção de ecosistemas ou espécies animais específicos.

 

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função do outro. Mais ainda, permite que se expanda a noção de servir, abarcando diferentes ações que, não obstante, têm como ponto consensual a compreensão de que há beneficiários que não são coincidentes com os membros da organização, ou seja, que se trabalha para outros e não para si próprio. Esse ponto ressalta a diferença das ONGs para outros tipos de organizações, como os sindicatos e movimentos populares, como o Movimento dos Sem-Terra, que atuam, prioritariamente, em benefício de seus próprios membros. As ONGs, via de regra, pretendem atuar em benefício de não membros. Dessa forma, são parecidas com os atores da esfera estatal e as empresas de mercado. Órgãos estatais, em princípio, agem em função de outros indivíduos, grupos e instituições, seja para auxiliar, prestar serviços, regulamentar as ações destes ou mesmo controlá-los e puni-los. Dificilmente agem apenas em causa própria. Da mesma maneira, as empresas atuam oferecendo serviços e produtos a indivíduos, grupos, outras empresas e governos. Entretanto, enquanto os primeiros [órgãos estatais], incorporados na forma de governo, agem por obrigações políticas constitucionais e interesses eleitorais, as empresas servem os demais em troca de lucro pecuniário ou outro tipo de ganho. As ONGs, por sua vez, trabalham em prol de outros grupos sem serem a isso obrigadas por dispositivos políticos ou motivações econômicas. É certo que as ONGs não são as primeiras a praticar tais ações independentemente de obrigações. Os grupos religiosos e filantrópicos que prestam apoio aos mais pobres são muito antigos, alguns com centenas de anos, como o caso de certas congregações religiosas. É possível, porém, observar que os fundadores e dirigentes de ONGs recusam uma associação desses grupos com suas organizações – apesar de alguns terem participado da gênese de muitas ONGs durante o período ditatorial no país. Na visão desses dirigentes, as diferenças residem precisamente nos objetivos subjacentes à atuação. Entre as ONGs, as ações não seriam caritativas, mas orientadas para a redução da desigualdade, inclusão social, participação política e, em certos casos, para a construção de uma nova relação com a natureza. Em vista do acima exposto, cabe perguntar como essas organizações, que não detêm autorização explícita dos beneficiários de suas ações nem possuem outros mecanismos tradicionais de legitimação, justificam suas ações. Que critérios são invocados para legitimar suas atividades e/ou prestações de serviços?

 

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Diferentemente de organizações representativas, como sindicatos e partidos, os integrantes de ONGs não são os beneficiários de suas ações. Dado que atuam em prol de outros, sem contudo receber autorização por mecanismos eleitorais, como legitimar sua atuação diante de instâncias oficiais e mesmo frente à sociedade? É importante observar que a questão mencionada aqui não diz respeito à efetiva legitimidade (ou ilegitimidade) das ONGs. O que se formula neste trabalho como questão de pesquisa é como as ONGs elaboram seu discurso, tendo em vista se legitimarem. Nesse sentido, o que se propõe investigar são as formas discursivas utilizadas pelos dirigentes de tais organizações para construir sua legitimidade. Para responder a essa questão, este estudo analisa 49 entrevistas com diretores de ONGs, partindo de dois eixos analíticos que serão objeto dos capítulos três e quatro desta dissertação. O primeiro deles examina como os dirigentes de ONGs constroem narrativas sobre o que as distingue frente ao mercado e ao Estado. Nesses processos, eles não apenas reivindicam um status análogo ao do Estado e do mercado para as ONGs, mas também identificam características próprias que colocam as ONGs em uma posição moralmente superior e operacionalmente mais eficaz. Como será visto mais à frente, é possível perceber que há processos concomitantes de diferenciação (quanto às características definidoras de cada esfera) e distanciamento (pela defesa da autonomia) do Estado e mercado. Com base na proposta teórica apresentada por Michele Lamont (1992) sobre fronteiras históricas e morais, este estudo examina as percepções dos entrevistados sobre as relações das ONGs com o Estado e com o mercado, tal como expressas em suas narrativas. O segundo eixo analítico adotado se debruça sobre as percepções dos dirigentes de ONGs a respeito da capacidade representativa dessas organizações. A noção de justificativa ou reivindicação de representatividade adotada aqui segue de perto a proposta desenvolvida por Michael Saward (representative claims) (2009). A análise se concentra agora nos discursos dos entrevistados sobre como as ONGs podem “falar ou agir no lugar” dos beneficiários em instâncias oficiais, como reuniões com ministros, conselhos e mesmo nas câmaras legislativas. O foco de atenção se concentra nas percepções dos dirigentes sobre as relações entre as ONGs e seus beneficiários, as quais podem ser entendidas como reivindicações de representatividade – ou seja, os argumentos que buscam justificar ou construir uma capacidade representativa das ONGs em relação aos beneficiários e que podem ser entendidos como parte de uma estratégia legitimadora.  

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A opção teórica pelos conceitos de fronteiras simbólicas e reivindicações de representatividade se deve a uma melhor adequação desses instrumentos analíticos ao objeto analisado, qual seja, as percepções dos diretores de ONGs. Ao se concentrar no discurso dos entrevistados, a análise evita posições normativas sobre a legitimidade efetiva dessas organizações. Assim, não se trata de responder se as ONGs são ou não legítimas para representarem seus beneficiários, mas compreender como os diretores de ONGs constroem a identidade e a legitimidade de suas organizações. Para empreender tal trabalho, a dissertação está organizada em quatro capítulos, além desta introdução. Nela estão contidas a apresentação do objeto e as opções teóricas feitas para abordá-lo, e também é descrita a metodologia utilizada na pesquisa. O segundo capítulo, intitulado “Sociedade civil e representação política”, parte da discussão do ressurgimento do conceito de sociedade civil e examina algumas das propostas teóricas mais relevantes para se captar sua dinâmica. Em seguida, é feita uma breve recapitulação do contexto de surgimento e expansão das ONGs no Brasil. Finalmente, para prover suporte teórico aos capítulos seguintes, discute-se o conceito de accountability (termo que poderia ser traduzido como prestação de contas ou responsividade), bem como alguns trabalhos que abordam a questão da representação política por parte de organizações civis. O terceiro capítulo parte do exame dos conceitos de narrativas e fronteiras simbólicas, para em seguida iniciar a análise das entrevistas realizadas com diretores de ONGs (a seleção e o modo de entrevista serão descritos na próxima seção desta introdução). O primeiro passo da análise é verificar como os dirigentes distinguem suas organizações do mercado e do Estado. Como será destacado, a maneira como fazem a comparação com um e outro ator é diferenciada. Se em relação ao mercado os discursos conferem prioridade à distinção de funções, objetivos, missões e valores, quando a comparação é com o Estado, o que é enfatizado são as distinções em relação às características operacionais, como maior agilidade, eficiência e menos burocracia (no sentido de ineficiência administrativa ou sobreposição e duplicidade de atividades com mesmo fim). Com isso, não se pretende dizer que não há menção a características que distingam ONGs e empresas ou que valores e objetivos de ONGs e Estado são idênticos. Há narrativas, por exemplo, que ressaltam como Estado e ONGs possuem diferenças de objetivos e missões decorrentes do escopo de suas atividades, universais para o primeiro, particulares para as segundas. A proximidade de ideais com o Estado, no entanto, é mais comumente ressaltada.  

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Para além das diferenças específicas frente às outras duas esferas analíticas, há um ponto que é normalmente utilizado para diferenciar as ONGs de quaisquer outros grupos: a proximidade com as bases. Diferentemente do Estado, que atua de maneira formal, distante e hierárquica, e do mercado, que trata com clientes, a ONG teria, na visão dos entrevistados, uma relação mais próxima, íntima e franca com os beneficiários dos seus projetos. É a partir da noção de proximidade com as bases que é feita a ligação para o capítulo quatro, visto que, nas falas dos entrevistados, a reivindicação de representatividade invoca essencialmente tal proximidade. O capítulo quatro versa sobre narrativas públicas de legitimação a partir da justificativa da capacidade de representação política exercida pelas ONGs. Parte-se da reconstituição da noção de proximidade com as bases utilizada pelos entrevistados. Tal como sugerido por Lavalle et al (2006b), argumenta-se que a ideia de proximidade com as bases é invocada como critério de legitimação por parte das ONGs. Embora levando em conta que Lavalle et al (2006b) distinguem o argumento da proximidade de dois outros, intermediação e prestação de serviços, a análise revela que a noção de proximidade perpassa tanto o discurso das ONGs que priorizam a prestação de serviços quanto o daquelas que assessoram ou fazem intermediação de demandas de grupos populares. Por fim, pode-se concluir a partir da leitura do capítulo quarto que, sem negar a existência de diferenças entre esses dois tipos de ONG – as de assessoria de movimentos populares e as de prestação de serviços –, os entrevistados lançam mão do argumento da proximidade com as bases como o principal elemento para reivindicar a capacidade representativa das ONGs.  Finalmente, o capítulo final desta dissertação faz uma síntese geral da dissertação, apresenta suas conclusões e também possíveis desdobramentos da pesquisa empreendida.

1.1 – Informações metodológicas Esta dissertação é um desdobramento da pesquisa Estado, Sociedade Civil e Mercado na redução da desigualdade do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Desigualdade (NIED), coordenado pela professora Elisa Reis. Dentre as muitas formas de estudar a relação entre Estado, sociedade civil e mercado na execução de políticas de redução da desigualdade, optou-se por considerar mais detidamente o relacionamento entre ONGs e Estado. A escolha das ONGs como objeto principal de pesquisa é resultado da percepção de que estas poderiam ser entendidas como uma proxy da sociedade civil (Reis, 2009). Na primeira fase da pesquisa,  

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intitulada Estado, mercado e sociedade na implementação de políticas sociais, foi realizado, em 2004, um survey com 301 ONGs das capitais de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, além do Distrito Federal, regiões que concentram a maioria das organizações no país. As ONGs foram escolhidas a partir de listas fornecidas pela Rede de Informação sobre o Terceiro Setor (RITS) e pela Associação Brasileira de ONGs (ABONG). O critério da pesquisa para que a entidade fosse considerada ONG4 foi o seguinte: organizações autogovernadas e independentes de governos; sem fins lucrativos; relacionadas à execução ou consecução de políticas sociais (em áreas como meio ambiente, direitos humanos e/ou de minorias, saúde, educação, etc); que utilizavam a fórmula de projetos para desenvolver suas ações e não eram representativas politicamente em seu sentido clássico e tradicional, ou seja, não recebiam autorização ou outro tipo de mandato para agir em nome dos representados5. O questionário6 foi construído tendo como modelo o survey aplicado na Hungria por David Stark como parte de sua pesquisa Organizational Innovation and Interactive Media among NGOs in Postsocialist Eastern Europe7. As questões do survey brasileiro versam sobre a missão da organização, seu histórico, seus valores, os processos de tomada de decisão e prestação de contas, seus projetos específicos, a captação de recursos financeiros e suas relações com empresas, governos e outras organizações civis. Alguns trabalhos já foram apresentados analisando os resultados deste survey (Koslinski, 2006; 2007; Reis e Koslisnki, 2009; Reis, 2009). Essa dissertação, entretanto, se fixa na análise dos resultados da segunda etapa da pesquisa, na qual foram entrevistados diretores e coordenadores de ONGs da região metropolitana do Rio de Janeiro. Ao todo, foram 49 entrevistas realizadas entre o final de                                                              4

Há, decerto, a possibilidade de considerar as ONGs apenas pelas definições legais, porém isso pode induzir a graves equívocos. No caso brasileiro, todas as organizações civis têm o formato de associação ou de fundação, o que torna o critério legal inútil ao nosso objetivo, pois não se distinguem legalmente as ONGs de outras organizações civis. 5

Foram excluídas organizações esportivas, recreativas, religiosas e sindicais. Esses tipos de organização estão no principal banco de dados sobre organizações do terceiro setor: o censo das “Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos” (FASFIL), construído pelo IBGE (2005). O IBGE utiliza como critérios para inclusão no censo: ser privada; não ter fins lucrativos; ser institucionalizada legalmente; autoadministrada e voluntária. Esse critério, por certo, inclui organizações diferentes das ONGs.

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O questionário encontra-se no Anexo A.

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Os resultados dessa pesquisa podem ser encontrados em Stark, Bruszt e Vedres (2006).

 

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2007 e começo do segundo semestre de 2008. As ONGs pertenciam às seguintes áreas: educação, saúde, direitos humanos/minorias e meio ambiente, as áreas mais comuns de atuação das ONGs, de acordo com survey de 20058. Um dos principais objetivos das entrevistas era apreender as representações dos dirigentes acerca do relacionamento com o Estado na execução e formulação de políticas públicas. Optou-se por selecionar ONGs por meio da base de repasses e parcerias de 2006 da Controladoria Geral da União (CGU), que continha todas as organizações que receberam recursos do governo federal em 20069. Depois da exclusão dos repasses para realização de eventos pontuais ou compra de equipamentos e materiais, foram selecionadas ONGs que atendiam os seguintes critérios: recebiam repasse do governo federal, pertenciam às áreas predefinidas e eram baseadas no Rio de Janeiro. Foi privilegiada a diversidade quanto ao tamanho, a data de fundação da organização e o volume de recursos financeiros recebidos do governo. Aproximadamente um terço das organizações se recusaram a participar da pesquisa. A reposição foi realizada a partir do banco de dados do CGU. Quando não havia mais opção em tal banco, recorreu-se a outros critérios de seleção. Dessa forma, foram selecionadas, para a área de meio ambiente, ONGs que participavam do Conselho Nacional de Meio Ambiente e algumas ONGs indicadas pelos entrevistados. A partir desses critérios foram entrevistados 36 dirigentes de ONGs. As 13 ONGs que completam o total de 49 entrevistadas não recebiam repasse financeiro do governo federal. Esta foi uma escolha analítica, visando a contrastar as percepções de acordo com o recebimento ou não de verbas. As ONGs que não recebiam recurso governamental foram escolhidas a partir do survey anterior. O roteiro das entrevistas era dividido entre perguntas que abarcavam i) o histórico da organização; ii) a avaliação e informações gerais da organização hoje; iii) os projetos desenvolvidos e iv) as percepções sobre Estado, mercado e sociedade. As entrevistas duraram aproximadamente duas horas cada e foram analisadas com o apoio do programa de computador Atlas Ti. A codificação foi um trabalho coletivo realizado pelos integrantes do                                                              8

A lista das ONGs entrevistadas por área e ano de fundação se encontra no Anexo B. Foram omitidos os nomes das organizações. 9

Um trabalho mais geral sobre os repasses do governo federal para ONGs a partir do banco de dados do CGU pode ser encontrado em Dysman, Abreu e Rapizo (2009).

 

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Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Desigualdade. Primeiramente, uma dupla de pesquisadores marcava as entrevistas de acordo com os códigos preestabelecidos, e posteriormente havia discussão com os demais pesquisadores sobre a pertinência dos códigos e sua correta aplicação. As entrevistas não se pretendem representativas do universo total de ONGs no país, visto que não há censo disponível sobre essas organizações e nem mesmo uma definição precisa de ONG. Dessa forma, o objetivo não foi produzir inferências estatísticas ou estabelecer correlações. De acordo com o método qualitativo empregado, procurou-se encontrar um padrão de respostas no conjunto das entrevistas que sejam capazes de sugerir tendências gerais quanto à percepção dos diretores das ONGs sobre essas organizações, suas fronteiras em relação ao Estado e ao mercado, além de percepções sobre as formas e mecanismos de parcerias entre ONGs e Estado. A pesquisa contou ainda com outras duas fontes de dados, as quais, porém, não foram objeto de análise nesta dissertação. Uma dessas fontes são informações obtidas através da realização de dez grupos focais com beneficiários de ONGs que ocorreram em 2007 no Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre. Finalmente, a pesquisa contou também com um survey nacional feito em 2008, sobre percepção e avaliação da população quanto ao papel das ONGs e do Estado em diversas áreas. Os dados dos grupos focais foram analisados previamente por Lima Neto e Silva (2011).

 

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Capítulo 2 – Sociedade Civil e representação política 2.1 – Introdução Neste capítulo, busco discutir modelos teóricos que ajudem na compreensão do questionamento central da dissertação: como estudar a legitimidade de atuação das ONGs, evitando modelos normativos? Penso que é possível realizar tal tarefa tendo dois eixos principais de análise, tratados pormenorizadamente nos capítulos três e quatro, respectivamente: i) as relações e comparações com outras esferas e ii) as relações com os beneficiários de suas ações. Esses dois eixos são contemplados, respectivamente, a partir i) da consideração das fronteiras simbólicas erigidas pelos entrevistados para se diferenciar e distanciar do Estado e do mercado e ii) do estudo sobre a reclamação de representatividade (representative claim) em relação aos beneficiários pelos diretores de ONGs. Para desenvolver o primeiro ponto é necessário compreender o local que as ONGs ocupam. É certo que elas são indicadas como organizações da sociedade civil, mas o que significa essa expressão? Como tem sido estudada essa esfera da qual as ONGs fazem parte? E qual é a especificidade das ONGs entre as demais congêneres? A primeira tarefa para responder tal questionamento é apreender o debate sobre o ressurgimento do conceito de sociedade civil como uma terceira esfera, que complementa e contrabalança Estado e mercado. Esse debate, já bastante extenso nas ciências sociais, é importante para localizar as ONGs dentro do quadro geral da sociedade civil. Ao localizá-las, é possível identificar a centralidade que as ONGs assumiram nas propostas de democracia participativa e em outros desenhos institucionais que buscam privilegiar o envolvimento de atores da sociedade civil. No Brasil, torna-se clara a força e centralidade das ONGs no interior da rede de organizações civis. Durante a década de 1990 houve grande entusiasmo com as consequências democráticas advindas da forte presença da sociedade civil, o qual trazia implícitas compreensões normativas, que a consideravam homogeneamente e admitiam sua capacidade de contrabalançar os excessos do Estado e do mercado (Wolfe, 1989 e 1991). As dinâmicas internas da sociedade civil eram postas de lado na agenda de discussões. Para superar esse problema, é fundamental pensá-la como heterogênea.  

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Houve importantes reconsiderações quanto aos aspectos homogeneizantes das teorias da sociedade civil. Jeffrey Alexander (1998b) aponta para a necessidade de estudos sobre a sociedade civil real. Andrew Arato (1995), em revisão de seus primeiros textos, assinala a importância de esclarecer o conceito sobre essa esfera através da análise dos diferentes grupos e movimentos que a constroem, reforçando que “a unidade da sociedade civil só é óbvia quando considerada de uma perspectiva normativa” (Arato, idem: 21). O desenvolvimento dessa crítica permitiu a observação das diferenças e hierarquias. Parte-se dessas reflexões para considerar as ONGs como integrantes da estrutura ou rede de organizações civis, sem contudo abandonar o conceito de sociedade civil. Uma segunda tarefa se refere à discussão atual sobre a representatividade de organizações civis. Independentemente da avaliação da efetiva representação exercida por essas organizações, o que se propõe aqui é entender o discurso dos atores sobre a representação presuntiva, ou seja, que não depende da vontade expressa ou autorização do representado. O objetivo não é responder quem deveria estar inserido nos novos locais de participação ou avaliar se é ou não legítima a atuação das ONGs. Parto do fato, apontado por muitos estudiosos, de que as ONGs atuam ou argumentam atuar, em alguns casos, como representantes dos seus beneficiários e mesmo de toda a sociedade. Keohane e Grant, por exemplo, ressaltam que: “Increasingly, NGOs are formally represented at international meetings, often with specific rights and privileges. However, international NGOs are not legitimated by ties to a defined public” (Keohane e Grant, 2005: 38). Lavalle, Houtzager e Castello (2006a) e Leonardo Avritzer (2007) também consideram como diversas organizações civis participam de conselhos, fóruns ministeriais, mobilizações por criações e mudanças legislativas. Todos esses pontos corroborariam, na visão desses autores, que é possível falar em representação de organizações civis. Assim, as questões que perpassam o segundo eixo da dissertação, neste primeiro capítulo, são: o que significa falar de representação de organizações civis? Como estudar os discursos dos indivíduos que trabalham em ONGs sobre a atuação representativa? Procuro entender a reivindicação de representatividade a partir do que, nas entrevistas, surgiu como a principal distinção das ONGs com relação ao Estado e ao mercado: a proximidade com as bases. Essa opção, por sua vez, está de acordo com a proposta de estudar as fronteiras simbólicas sugerida por Michèle Lamont. Ao estudar as fronteiras traçadas pelas ONGs em relação ao Estado e ao mercado em termos morais e simbólicos (alvo do terceiro  

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capítulo), posso compreender as formas de legitimação que essas organizações constroem. Por outro lado, indico a existência de uma noção de accountability por proximidade no discurso dos entrevistados, fundamental para justificar e legitimar a atuação política das ONGs. Tendo como perspectiva inicial discursos sobre proximidade com as bases, proponho uma reconsideração do conceito de representação a partir da noção de representação como processo, tal como indicado por Michael Saward (2005). Considerando-se a representação como processo, é possível apreendê-la de modo dinâmico e não essencializado, indicado, no caso desta dissertação, pelos discursos que reivindicam a representatividade (representative claim, como designado por Saward (2009)). Esse tema é explorado no quarto capítulo. As duas tarefas descritas acima servem de norte para este capítulo. Na primeira parte, busco entender as teorias da sociedade civil, a ideia de sociedade civil real e o papel que as ONGs ocupam no Brasil. Na segunda parte, dedico algumas páginas à noção de representação política como processo e à passagem dos estudos sobre autorização para accountability. O intuito é o de indicar, no fim da seção, que o estudo da accountability moral ou por reputação parece ser o caminho mais frutífero para se entender o discurso dos dirigentes de ONGs sobre a reivindicação de representatividade.

2.2 – Ressurgimento do conceito de sociedade civil Nas últimas três décadas tem-se discutido com grande frequência a nova força política da sociedade civil, comprovada pela atuação de organizações civis em mecanismos participativos, como, por exemplo, orçamentos participativos, conselhos das mais diversas áreas, conferências e audiências públicas. Ocorre, consequentemente, a análise do ressurgimento do conceito de sociedade civil, como esfera societária com características próprias e mesmo status teórico que possuem mercado e o Estado. Muito do debate sobre o ressurgimento do conceito de sociedade civil está atrelado às mudanças ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 nos processos de transição democrática dos países do Leste Europeu e da América Latina. Manifestações públicas e atores ligados aos movimentos sociais reclamavam da incapacidade do Estado para solucionar problemas de desigualdade social, da falta de participação popular em processos democráticos e da burocracia estatal ineficiente. Na Europa Ocidental, as maiores críticas eram dirigidas à falta de liberdade individual e ao peso intervencionista do Estado de bem-estar. Nesses processos, duas perspectivas inter-relacionadas podem ser identificadas para avaliar o vigor do ressurgimento do conceito de sociedade civil. A primeira delas é a crítica ao  

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entendimento teórico do Estado, visto intrinsecamente vinculado à nação. O conceito de Estado-Nação teria associado de modo não problemático a sociedade (ou nação) à figura político-jurídica do Estado e do território controlado por suas instituições. Houve, nas últimas décadas, importantes trabalhos de crítica a esse modelo metodológico (Chernillo, 2006). Uma segunda crítica não partia de uma perspectiva metodológica, mas era baseada teórica e, por vezes, normativamente na percepção de queda do poder e força de atuação dos Estados, os quais seriam cada vez mais constrangidos pelas ações do mercado e da sociedade civil. Baseado em David Held, Leonardo Avritzer (2007) afirma que: No caso da soberania centrada no Estado moderno, tudo indica que a sua crise é inexorável, sendo causada por um enfraquecimento paulatino do Estado e pelo papel cada vez maior de instituições internacionais no campo da economia e das trocas internacionais. Em todos esses casos, a presença de atores com origem fora do Estado nacional é inevitável (Avritzer, 2007: 455).

Críticas similares pensando a força do Estado numa época de organizações globais ou cosmopolitas têm sido feitas por diversos autores, como, por exemplo, Albrow (2003) e Vandenberghe (2011). A segunda perspectiva que permite dimensionar a força do ressurgimento do conceito de sociedade civil enfatiza o impacto desta nos processos de redemocratização em países com ditaduras militares ou socialistas. A entrada de novos atores societários nas dinâmicas de reivindicação de direitos (e não mais a clássica relação trabalhador-sindicato-partido-governo) é indicada por Bernardo Sorj (2005) como criação de um vetor de solidariedade na construção de políticas públicas de bem-estar social e combate à desigualdade social. Esse processo de redemocratização assumiu a forma de “sociedade civil contra o Estado”, interpretação criticada como uma leitura mais apressada e glorificante da sociedade civil por autores como Elisa Reis (2004) e Kocka (2004). A noção de “vetor de solidariedade” nas políticas públicas, tal qual definido por Sorj, poderia ser associada aos debates de Jürgen Habermas sobre esfera pública10 e democracia                                                              10

Habermas, com o intuito de compreender as possibilidades normativas dessa esfera de discussão, realiza, primeiramente, análise do processo no qual o capitalismo mercantil permitiu a ascensão da esfera pública como espaço entre a esfera doméstica e o Estado. A separação entre os interesses privados ou domésticos e a subjetividade, bem como o domínio político de uma classe, a burguesia, que não controlava diretamente o Estado, foram as principais razões para o surgimento de uma esfera na qual os indivíduos poderiam opinar pública e livremente sobre o Estado, sem, contudo, fazerem parte do seu corpo institucional. Para maiores considerações, ver Jürgen Habermas (1962). Para uma análise das mudanças no conceito na obra de Habermas, ver Avritzer e Costa (2004).

 

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deliberativa11. O conceito de esfera pública, debatido extensamente na sua principal obra, “The theory of action comunicative” (1984), indica um lócus onde a ideia de consenso poderia emergir a partir da discussão racional sobre fins a serem almejados pela sociedade. O modelo de racionalidade pensado por Habermas, entretanto, não é o tradicional modelo de racionalidade cognitivo-instrumental e teleológico. Ele é fundado numa dimensão comunicativa da ação social racional. Dessa forma, a solução dos conflitos sociais e o desenvolvimento da democracia seriam confiados ao entendimento gerado no mundo da vida12. A esfera pública se torna o foco central da obra de Habermas a partir da década de 1980, do qual adviriam os consensos formadores da opinião da esfera pública. Durante as décadas de 1960 e 1970, Habermas se concentra na análise do processo de “refeudalização” da sociedade ou colonização do mundo da vida, percebida pelo esgotamento da distinção entre público e privado e incorporação pelo mercado e Estado de funções diversas de sua atribuição inicial. Entretanto, nas duas décadas seguintes, o autor desloca a compreensão histórica da esfera pública para a análise das condições de possibilidade da radicalização da democracia através da institucionalização do poder de integração social do mundo da vida. Se anteriormente o mundo da vida deveria ser protegido dos ataques sistêmicos da economia e política, agora, especialmente no livro “Fatos e Normas”, é o mundo da vida que pode transformar a política. Essa posição teórica e normativa de crença no poder transformador da sociedade civil influenciou diversos autores durante o final da década de 1980 e início de 1990, atrelada aos fatos históricos importantes do mundo, como a queda dos regimes comunistas e das ditaduras na América Latina.

                                                             11 O conceito de democracia deliberativa pode ser resumido como uma tentativa de integrar novos atores e práticas vindos do mundo da vida nas esferas político-administrativas. De acordo com Leonardo Avritzer (1996), a democracia deliberativa formulada por Habermas “se constitui em um fluxo de comunicação da esfera pública. Os acordos políticos resultantes desses processos são legalmente institucionalizados e administrativamente implantados. Diferentemente do elitismo democrático, a democracia, nessa acepção, é estruturalmente dependente das redes de comunicação existentes na esfera pública, redes essas que estabelecem a direção do processo de produção de poder nas sociedades democráticas” (Avritzer, 1996: 21). 12

Para Habermas (1984), o mundo da vida é “formed from more or less diffuse, always unproblematic, background convictions. This lifeworld background serves as a source of situation definitions that are presupposed by participants as unproblematic” (Habermas, 1984: 70).

 

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2.3 – Teorias da sociedade civil Os trabalhos que buscaram definir a sociedade civil tiveram Habermas como principal interlocutor para que pudessem estudá-la como elemento reformulador da dicotomia clássica entre Estado e mercado. Seria possível, nessa linha de pensamento, identificar no vértice da sociedade civil o ponto de equilíbrio que estabiliza o peso das demais esferas, através da função de mediação e harmonização (Wolfe, 1989) ou, como trabalha Jeffrey Alexander (2001), ao observar como a esfera civil pode lançar mão de reparos cívicos13 para reformular normativamente as esferas não civis (mercado e Estado). Uma das principais obras a tratar teoricamente da sociedade civil é “Civil society and politicial theory” (1995), de Jean Cohen e Andrew Arato. Nela, os autores organizam um compêndio do desenvolvimento da teoria da sociedade civil com base na teoria crítica habermasiana. Os autores consideram o conceito a partir das suas relações com o Estado, pretendendo, dessa forma, se afastar dos excessos antiestatais cometidos pela teoria dos movimentos sociais, dominante na década de 1980. Objetivam também não aprisionar a sociedade civil numa interpretação classista, o que a manteria na dicotomia entre mercado e Estado, na tradição de Hegel – de quem Cohen e Arato se apropriam da ideia de uma esfera intermediária entre a família e o Estado, que é reformulada a partir do conceito de esfera pública. Resumidamente, a partir de estudos históricos e teóricos, Cohen e Arato (1995) pretendem: […] To further develop and systematically justify the idea of civil society, reconceived in part around a notion of self-limiting democratizing movements seeking to expand and protect spaces for both negative liberty and positive freedom and to recreate egalitarian forms of solidarity without impairing economic selfregulation (Cohen e Arato, 1995: 18).

A sociedade civil seria entendida, na linha de Habermas, como uma esfera de interação diferenciada do Estado e do mercado por três parâmetros: pluralidade, publicidade e privacidade (Cohen, 2003). Além disso, Jean Cohen e Andrew Arato aceitam a visão normativa habermasiana ao endossar a ideia de que a sociedade civil não sofre das mesmas restrições que Estado (o exercício imperioso da decisão política) e mercado (a busca pelo lucro como fim).                                                              13

Os “civil repairs” atuariam como uma inversão do processo de colonização do mundo da vida, democratizando as esferas políticas e administrativas, ao considerar as demandas da sociedade civil.

 

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Jeffrey Alexander é outro autor que desenvolve uma teoria da sociedade civil. Para ele, no entanto, a defesa da autonomia da sociedade civil está relacionada à produção de significados culturais. Logo, sua construção teórica da sociedade civil se dá dentro da proposta de uma sociologia cultural como um programa forte14, partindo do seguinte suposto: em todo subsistema especializado da sociologia deve haver uma dimensão cultural explicativa, entendida como variável independente. A sociedade civil e suas construções culturais e morais são elementos-chave das narrativas sociais, que a análise sociológica deve interpretar. Não é por outra razão que sua principal obra ganha o título de “Civil Sphere”. A esfera civil é quase uma metaesfera que rivaliza e interfere no processo de colonização das “esferas não cívicas” do mercado e do Estado. No que diz respeito aos movimentos sociais que compõem essa civil sphere, seus principais interlocutores são Alain Touraine (1988) e Alberto Melucci (1980), que analisaram o que ficou conhecido como novos movimentos sociais. Esses autores deram mais peso aos papéis dos significados culturais, das identidades psicológicas e dos fatores institucionais na construção e atuação dos movimentos sociais. Touraine (1988; 1997) observa o papel da autonomia, subjetividade e reflexividade do ator individual ante as instituições. Relembra ainda aos cientistas sociais que não se deve compreender o movimento social apenas nas suas relações com o poder, mas também em relação ao sistema cultural. As relações sociais e culturais definem o jogo de interesses explicitado pelo conflito de poder. Dito de outra forma, um conflito social só poderia se realizar dentro de um determinado sistema cultural organizado por relações sociais específicas. Jeffrey Alexander (1998a; 1999) considera, entretanto, que faltou audácia para esses autores desenvolverem seus estudos para a formação de uma nova teoria baseada nos aspectos simbólicos e culturais, algo realizado por ele por meio da sua sociologia cultural. Touraine e Melluci atrelariam demasiadamente as posições sociais ao sistema de produção capitalista. Manteriam, dessa forma, o modelo mais comum dos estudos anteriores sobre movimentos sociais, a saber, a interpretação sobre a efetividade das organizações na “tomada do poder” por meio de orientações táticas. O modelo de movimento revolucionário, para Alexander, foi impregnado de empirismo filosófico (advindo da fixação pela sociedade industrial e suas mudanças) e de materialismo ontológico que, por sua vez, fortalecia o empirismo. O quadro                                                              14

A noção de programa forte é desenvolvida em Alexander (2000). Objetiva-se considerar a cultura como fator explicativo em si mesmo, descartando ideações que consideram a cultura apenas como objeto a ser explicado.

 

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de referência, sem dúvida, é Marx e sua narrativa meta-histórica dos conflitos sociais atrelados aos interesses econômicos distintos. Para Alexander, os trabalhos de Touraine inovariam ao incluir as ideologias e aspectos culturais no estudo dos movimentos sociais, mas pecariam por continuar a tratá-los como uma estratégia ou tática, não sendo significativos em si mesmos. Além da indicação da necessidade de considerar a sociedade civil pelos seus aspectos simbólicos, Alexander (2000) sugere que os sociólogos devem se preocupar em tratar da sociedade civil real (1998b). Ou seja, é preciso construir uma agenda de pesquisa calcada não mais em teorias normativas e estudos teóricos gerais sobre a sociedade civil, mas em estudos que respondessem quem são, como atuam e o que pensam os atores que compõem os novos movimentos sociais. Compartilho com Jeffrey Alexander a necessidade de considerar a centralidade da dimensão cultural da sociedade civil e dos aspectos simbólicos nas análises da sociedade civil real.

2.4 – A sociedade civil real Os estudos que tratam da sociedade civil real buscam compreendê-la de modo não normativo, considerando seus aspectos organizacionais, relação com Estado e entre as organizações civis. A ideia é mais bem resumida por Elisa Reis (1998): Em vez de acusar a hegemonia dos interesses políticos e econômicos de responsável pelo papel secundário da solidariedade fraternal e de atribuir ao imperialismo da economia política o fracasso da sociologia em tratar a sociedade civil segundo seus próprios termos, parece mais apropriado investigar as combinações históricas de mercado, Estado e solidariedade, buscando os modelos e as consequências dessas combinações (Reis, 1998: 101).

Duas ressalvas analíticas podem contribuir para uma melhor compreensão da sociedade civil. Primeiro, a ponderação da importância do Estado para se compreender as ações das organizações civis. Independentemente da participação da sociedade civil na execução de políticas públicas, observa-se ainda que estas continuam sendo definidas pelo Estado. Assim, o Estado demonstra a sua permanente condição de protagonista e a necessidade de pensar que “‘sociedad civil’ es um concepto relacional: su fuerza, sua forma, sus espacios de acción, todo ello queda vinculado con la actuación del Estado” (Hengstenber et al 1999: 12). A segunda ponderação diz respeito a se levar em conta a heterogeneidade da sociedade civil. Gurza Lavalle (1999; 2003) e Evelina Dagnino et al (2006) apontam, detidamente, os entraves decorrentes de uma literatura demasiadamente otimista sobre a sociedade civil na  

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década de 1990. Dagnino et al (2006) atribuem a leitura da sociologia brasileira sobre sociedade civil como resultado da luta unificada contra o autoritarismo, que teria plasmado uma visão homogeneizada na produção teórica e política. As produções recentes da literatura sobre sociedade civil matizam essas caracterizações demasiado otimistas ao olhar atentamente para as diferenças internas, conflitos e hierarquias na articulação desses atores. As análises da atuação, organização e legitimação da sociedade civil em suas diversas organizações transformam-se nesse momento em uma importante agenda de pesquisa para a sociologia, principalmente em locais onde a extrema desigualdade torna difícil postular uma sociedade civil no singular (Reis, 2003). A observação dos diversos tipos de atores da sociedade civil, suas redes, hierarquias, forças e recursos vale como ponto de equilíbrio para evitar análises sociológicas ingênuas e idealismos políticos. Houve, após a fase mais otimista quanto à virtuosidade da sociedade civil, um maior esforço de compreensão de seus atores. Mary Kaldor (2003), com o objetivo de sistematizar a produção na área, produziu um compêndio dos modelos teóricos sobre a sociedade civil, apresentando três versões contemporâneas. A primeira é a versão ativista, na qual podem ser incluídos Cohen e Arato. Esta recorre aos eventos das décadas de 1970 e 1980 na América Latina e Europa Oriental para construir a ideia de um espaço público autônomo no contexto de Estados autoritários. A segunda versão é a neoliberal. Aqui aparece mais frequentemente a ideia de terceiro setor, onde atores mais flexíveis e inovadores, como as ONGs, minimizam o papel do Estado, resultando em uma melhor governança e funcionamento apropriado do mercado15. A terceira versão é a pós-moderna, pela qual a argumentação se fixa nos grupos nacionais e religiosos, fundamentalistas ou não, de contestação de narrativas culturais hegemônicas. Para além dessas caracterizações normativas, é preciso observar que a sociedade civil é permeada por hierarquias e diferenças entre as organizações que a integram. Há diversos tipos de organizações, e algumas possuem maior centralidade, atuação e legitimidade que outras. Dessa forma, ao mesmo tempo em que considero as clivagens entre atores civis, penso                                                              15

Essa segunda versão parece ser a prevalecente na definição de uma confluência perversa para Evelina Dagnino (2002: 289), que ressalta a ligação entre a versão ativista e a neoliberal. Haveria uma complementaridade instrumental entre os propósitos de um Estado mínimo e os propósitos de uma sociedade civil ativa. Apesar de antagônicos, os projetos se alinhariam.

 

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ser possível falar sobre a sociedade civil. Em resumo, o termo “sociedade civil” não se tornou inócuo devido à profusão de considerações idílicas. Ainda é possível falar sobre a sociedade civil e debater o conceito, desde que tomados os devidos cuidados com os excessos normativos. Em resumo, compartilho a ideia de que, ao invés de encapsular as organizações civis em modelos fechados, o ideal é realizar pesquisas empíricas que tomem a unidade analítica da sociedade civil como ponto de partida e não como ponto final a demarcar uma esfera civil homogeneizada. Minha pesquisa, partindo desse suposto, considera as ONGs como uma proxy da sociedade civil, como definido por Elisa Reis (2009), sem, contudo, igualar as duas noções.

2.5 – ONGs como proxy de sociedade civil A partir de uma pesquisa sobre as redes sociais das organizações da sociedade civil, Lavalle et al (2007; 2008) classificam as organizações civis em centrais e periféricas de acordo com a centralidade nas redes de organizações civis, contabilizada a partir do número de vínculos enviados e recebidos nessa rede16, além de outras características. A partir da distinção entre organizações centrais e periféricas, eles tipificam os atores. As organizações centrais são: organizações populares, que têm como beneficiários uma unidade abstrata ou segmentos da população e que agem por mobilização e articulando atores (um exemplo é o MST); organizações articuladoras, que têm como beneficiários organizações e atores coletivos, realizando articulações e mobilizações/reivindicações (exemplos são a ABONG e Fundação Abrinq); e, por fim, ONGs, que têm como beneficiários segmentos da população e/ou público-alvo, agindo com reivindicações, intermediações e tematizações públicas de problemas. Os atores periféricos são: fóruns, instâncias de coordenação e agregação de interesses de grupos com afinidade temática; entidades assistenciais, com prestação de serviços e assistência direta ao público e, normalmente, com valores cristãos; associações de bairro, com atividades relacionadas com demandas urbanas específicas, trabalhando para e com uma comunidade, e, por fim, associações comunitárias, sociedades de ajuda mútua, cujos membros são os beneficiários.                                                              16

A pesquisa dos autores trabalha com a metodologia de análise de redes, em que, por meio de entrevistas com dirigentes, foi identificado o número de vínculos enviados (nomeação de ONGs com as quais trabalham) e recebidos (outras ONGs que afirmam trabalhar com a entrevistada).

 

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Independentemente de que tipologia se utilize, é possível perceber a distinção das ONGs em relação aos outros atores civis. Na classificação de Lavalle et al (2007), as ONGs são consideradas agentes centrais na esfera da sociedade civil, tanto pela sua relação com o Estado quanto pelos inúmeros vínculos enviados e recebidos de outras organizações civis. A centralidade política das ONGs é evidenciada por dois aspectos: i) sua participação na execução e formulação de políticas públicas e ii) sua atuação como representantes em instâncias participativas dentro do governo, como conselhos, conferências, orçamento participativo, etc. Essa presença coloca em questão a legitimidade das ONGs para atuarem perante o Estado como representantes de grupos beneficiários ou mesmo de toda a sociedade. Tal centralidade é uma primeira justificativa para utilizar as ONGs como proxy de sociedade civil. Além disso, as ONGs se tornam bons objetos de estudo, principalmente devido à sua heterogeneidade, que poderia espelhar a heterogeneidade da sociedade civil. São diversos atores, temas, discursos, objetivos e modos de pensar e agir, por vezes opostos. Os confrontos se dão no âmbito da execução e formulação de políticas públicas, na criação de modelos de assistência aos grupos beneficiários, na busca por financiamento e mesmo por maior ou menor reconhecimento na área de atuação. Essa heterogeneidade permite a compreensão, para fins analíticos, das ONGs como uma proxy da sociedade civil, ao repercutir as mesmas diferenças e debates. A centralidade e o sucesso de atuação das ONGs, além da presença importante nas esferas de participação do Estado e na formulação de políticas públicas, levaram outros tipos de atores civis a mimetizarem as suas estruturas e ações. O êxito do modelo de ação baseado em campanhas17, por exemplo, influenciou diversos movimentos sociais. Também se torna comum a associação direta entre sociedade civil ou terceiro setor e ONGs (Dagnino, 2002: 291-292). Na próxima seção, trato da história e papel dessas organizações no Brasil para contextualizar e localizar as ONGs nos debates sobre sociedade civil e indicar como a construção histórica de sua identidade é fundamento importante para o desenvolvimento de sua legitimidade.                                                              17

A campanha contra a fome, da ONG Ibase, coordenada pelo sociólogo Betinho, por exemplo, contou com a participação direta ou indireta de contingente expressivo da população. Para detalhes, ver Carlos Fico (1999).

 

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2.6 – As ONGs brasileiras

Leilah Landin (1993a; 2002) e Rogério Medeiros (2008) já apontaram como o contexto de surgimento das ONGs influenciou na construção de uma identidade própria baseada na assessoria e mobilização de grupos locais ou “de base”. As pioneiras, chamadas de pré-ONGs por Landin, encamparam, durante a ditadura militar, ações de fortalecimento de movimentos populares em diversos campos temáticos. A definição do governo militar e ditatorial como principal antagonista teve como consequência caráter antiestatal na formação dessa identidade. Os grupos “originais” (Landin, 2002) tinham contatos no exterior e no movimento eclesiástico brasileiro, o que lhes permitia relativo trânsito para auxiliar grupos sociais a se organizarem num momento de restrições aos direitos de associação. Quanto às pioneiras, Landin (2002) ressalta que: Essas organizações [ONGs] dedicadas a movimentos sociais de corte “popular” tiveram um papel único – e pioneiro no tempo – enquanto conformadoras de um conjunto particular de organizações da sociedade civil que vieram a se identificar publicamente enquanto tal, produzindo práticas, crenças, discursos e instâncias de consagração comuns a uma “novidade institucional”. Não só forneceram, portanto, uma base objetiva para o reconhecimento classificatório de uma categoria específica de entidades, como investiram na apropriação e publicização do nome ONG que por aqui chegava, via agências internacionais (Landin, 2002: 220).

O fortalecimento dessa identidade foi reforçado posteriormente por importantes eventos, como a luta pela democratização, as campanhas contra a fome no começo da década de 1990, capitaneadas pelo sociólogo Herbert de Souza, conhecido como Betinho, a ECO-92, todas culminando na criação da ABONG. Percebe-se, portanto, que a construção do campo das ONGs não foi apenas um processo nominalístico, no qual se definiu o termo para algo já existente. Ela resulta de uma conjunção de práticas e valores comungados em um longo processo de construção de identidade. Também já foi apontado pelos autores citados acima o movimento paradoxal, através do qual a consolidação dessa identidade é alcançada juntamente com o início de um processo de maior diferenciação das organizações18. Este é marcado pela forte expansão do número de ONGs e variação nos modelos de atuação e objetivos principais, tornando aquela identidade                                                              18

Havia, decerto, diferenças de valores e objetivos nas ONGs pré-criação da ABONG. Entretanto, é possível notar que o ideário de “sociedade civil contra o Estado” e a necessidade de se distinguir dos grupos religiosos e caritativos fornecia elementos para uma identificação mais consensual entre as organizações. Esse modelo quase consensual é base do “mito de origem” que Landim afirma existir entre as principais e mais antigas ONGs.

 

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inicial, que se fixava no termo ONG, menos homogênea. De acordo com os dados do IBGE (2004), cerca de 50% das organizações sem fins lucrativas foram fundadas na década de 1990. Esse crescimento durante as últimas duas décadas veio acompanhado de grande debate sobre sua atuação, organização e definição (Fernandes, 1994; Vakil, 1997; Attack, 1999; Roque, 2001; Sorj, 2005). Ao longo da década de 90, as ONGs deixaram de ser apenas grupos de suporte para movimentos sociais e assumiram outros papéis, especialmente nas instâncias participativas recém-criadas na Constituição de 1988. Nas últimas duas décadas, as parcerias com o Estado se tornam mais comuns não somente pelas oportunidades institucionais mas também pela crescente dependência financeira das ONGs de outras fontes que não as antigas parceiras internacionais. Na visão de Medeiros, as ONGs não tiveram somente que se adaptar ao novo cenário de doações e parceiros, a autonomia frente aos novos parceiros também é questionada. Primeiramente, foi necessário se afastar dos grupos religiosos e caritativos e, posteriormente, se distinguir dos movimentos sociais. Nesse momento, o embate maior é com o Estado, principal financiador de algumas ONGs. O que está em jogo é o que Sanyal (1997) chama de fetiche da autonomia. Esse contato com o Estado, na visão de Medeiros (2009), trouxe grandes desafios para a concepção que as ONGs traçam sobre seus papéis como atores políticos e sociais. Como resposta, elas tendem a enfatizar elementos de sua identidade histórica e capacidade de afetar o campo onde atuam. Uma vez feita a revisão acima, passo agora ao exame do debate sobre representação política de organizações civis. Nessa segunda parte, procuro apontar maneiras possíveis para se estudar discursos sobre representação política, que funcionariam como elementos-chave para a legitimação da atuação das ONGs.

2.7 – Representação política de organizações civis Nesta seção, abordo os principais modelos de compreensão dos discursos dos atores de organizações civis que argumentam possuir capacidade representativa. Opto por autores que tratam do caso brasileiro, Leonardo Avritzer e Gurza Lavalle, pois parte da literatura internacional (Keck e Sikkink, 1999; Wapner, 2002) sobre o tema tem como objeto empírico as grandes organizações não governamentais transnacionais, como Greenpeace ou WWF. Há muitos pontos de convergência entre estas e as ONGs brasileiras, visto que, inclusive,  

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algumas já operam em outros países, como é o caso da ONG Viva Rio no Haiti. Contudo, o padrão de atuação das organizações brasileiras não é transnacional e não visa à mobilização contra organizações transnacionais, como ONU, FMI ou Banco Mundial e países com claros déficits democráticos19. Quase todas as propostas de compreensão da representação política reivindicada por organizações civis acabam por se confrontar com a obra de Habermas, especialmente seus trabalhos sobre democracia deliberativa. Esses escritos têm como pressuposto teóriconormativo a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva, por meio dos canais políticos institucionais e discursivos. O modelo de democracia deliberativa20 enfatiza a legitimidade de decisões tomadas por coletividades, em que a esfera pública geraria um procedimento dinâmico, democrático e igualitário21 de identificação, interpretação e formação da opinião sobre temas a serem discutidos e das posições políticas a serem assumidas pelas instituições22, locais da administração dos problemas e das decisões coletivas obrigatórias23. É nessa linha que Leonardo Avritzer (1994) afirma a necessidade de articular o polo formal-institucional e o polo substantivo da política. Este último, referido à sociedade civil, atuaria como mecanismo de ajuste das distorções ocorridas nos processos eleitorais, numa ampliação da ideia dos checks and balances das instituições políticas. Na mesma linha de proposta, Michael Saward (2009) afirma que “electoral politics requires non-electoral action to shake-up and re-set its agenda on a regular basis – as new claims to authenticity challenge the products of established processes of authorization” (Saward, 2009: 22).                                                              19

Esse era o caso das organizações internacionais que fortaleciam suas parceiras brasileiras durante a ditadura (no que ficou conhecido como efeito bumerangue, pois as organizações brasileiras utilizavam as estrangeiras para pressionar o Estado brasileiro a acelerar o processo de redemocratização). Para mais informações, ver Koslinski (2007, capítulos 1 e 2) e Keck e Sikkink (1999). 20 A importância dessa proposta é tão grande no campo de estudos sobre a democracia que John Dryzek (2005: 218) chega a afirmar que a democracia é, atualmente, amplamente (mas não exclusivamente) uma questão de deliberação. 

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Os movimentos sociais, por serem capazes de articular essas propostas da esfera pública, tematizar novas questões e reinvidicar seus direitos por meio de ações que influenciem a deliberação política, são considerados como atores nucleares do conceito de democracia deliberativa (Luchmann, 2002: 10).

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Amy Gutman (1995) lembra da relevância da retórica e das posições sociais como variáveis importantes para a identificação e formulação das demandas sociais. Não obstante, a autora indica esse problema como mais controlável quando comparado aos problemas de legitimidade da democracia liberal. 

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Para uma crítica e análise mais aprofundada da democracia deliberativa, ver, além de Gutman (idem), Saward (2001) e Avritzer (1996).

 

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Observa-se que ambas as propostas destacam a importância da atuação política das organizações civis. Alguns trabalhos buscaram dar respostas teóricas para apreender o modo como as organizações civis atuam como representantes. No caso brasileiro, o debate entre Leonardo Avritzer e Gurza Lavalle resume as principais posições analíticas. Leonardo Avritzer e Adrian Gurza Lavalle partem da constatação da crise da representação política clássica. Ambos analisam a questão por meio da reconsideração do conceito de representação, tentando entendê-lo de modo diverso do tradicional. Com uma nova definição de representação, seria possível voltar a falar em representação política. Essa nova representação incluiria outros critérios de avaliação da representatividade. O maior foco de divergência entre os autores encontra-se na formulação desses critérios. Adrian Lavalle et al (2006a) afirmam que a representação monopolista moderna, ligada ao Estado e às eleições, e que inclui a autorização, o monopólio e a territorialidade, está em crise. Leonardo Avritzer (2007) realiza o mesmo diagnóstico. Baseados em Hanna Pitkin (1967), creem que as questões de monopólio e territorialidade só foram associadas à representação com o estabelecimento do Estado moderno. O Estado torna-se, então, único local com capacidade de ação representativa no interior do território. Há apenas uma única comunidade política representativa, que engloba todas as múltiplas e sobrepostas soberanias (do Rei, de outros entes da realeza, do feudo, da corporação de ofício, da igreja, etc) do Estado medieval24. Para Lavalle et al (2006a), a representação política moderna contempla tanto funções de legitimidade (representação perante o poder) quanto de governo (representação no poder, representantes como poder sobre a população). Ao apresentar essa dupla funcionalidade, os autores afirmam a dualidade constitutiva da representação política: a autonomia do representante versus o mandato do representado. A ignorância dessa dualidade implicou um olhar unidimensional para a teoria política. Ou voltava-se para o polo formal-institucionallegal do representante ou para o polo substantivo de formação da vontade do representado. Aceitar essa dualidade e fugir da dicotomia é tratar a problemática da representatividade ou legitimidade como ponto central da nova teoria da representação política. Essa indicação                                                              24

É nesse momento que surge o primeiro teórico moderno da representação política, Thomas Hobbes. Este centra todas as atenções no problema da autorização, que será o foco das teorias da representação na medida em que há progressão do uso das eleições como forma de escolha dos representantes. A partir dos problemas de definição do conceito de representação questiona-se se a ciência política e a sociologia política ficaram por muito tempo reféns das escolhas teóricas dos seus clássicos.

 

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teórica é seguida nesta dissertação, que considera que só é possível pensar a representação política de ONGs levando-se em conta a dualidade do conceito. Lavalle et al (2006a) recorrem ao conceito medieval de representação virtual para compreender essa nova representação, que seria constituída no mesmo ambiente de múltiplas e sobrepostas soberanias e representações. Edmund Burke, deputado inglês do século XVIII, é o autor do conceito de representação virtual. Ele afirma que o melhor dispositivo para garantir a representatividade é o compromisso representativo genuíno do representante. Esse sentimento ou compromisso de representação (idem sentire, animus, na expressão citada por Sartori (apud Lavalle et al, 2006a) é compreendido como a representação virtual, no sentido de "algo que é tal em essência ou efeitos, embora não formalmente reconhecido ou aceito". Lavalle, Houtzager e Castello (2006a) defendem a efetividade do conceito para entender as atividades englobadas na ampla expressão advocacy25 (entendida como chamar para si o interesse de algo ou alguém e também como a ação de dar voz a esse interesse). Nas atuações da sociedade civil onde ocorre advocacy, a intermediação é realizada por meio de uma representação virtual, ou seja, uma defesa real de interesses, fincada em compromissos de representação, porém sem autorização ou mecanismos de controle. Para Leonardo Avritzer (2007), a representação virtual, como formulada por Edmund Burke, vincula-se primordialmente à defesa da representação sem eleições. Dessa forma, ao tentar resolver os impasses da representação pós-eleitoral, Lavalle, Houtzager e Castello (2006a) resgatariam um argumento pela legitimidade da representação pré-eleitoral. Além desse problema, o conceito de representação virtual é pouco operacionalizável, não ajudando a responder o tipo e origem da legitimidade dos atores civis. Entretanto, como poderá ser visto no capítulo quatro, o compromisso de representação, para os dirigentes entrevistados, parte menos de um sentimento de identificação com o representado e mais do tipo de relacionamento que as ONGs têm com o beneficiário. Pode-se indicar, por meio da análise das entrevistas, que a representação virtual, no sentido de compromisso de representação, não basta para os próprios diretores de ONGs. A origem da representatividade – incapaz de ser respondida apenas por aquele conceito – parece ser a proximidade das ONGs de suas bases. Dessa forma, não assumo a noção de representação virtual, visto que há problemas no conceito, já apontados por Avritzer. Porém, considero, a partir da discussão acima, que é                                                              25

Prefiro manter o termo em inglês, pois suas traduções mais comuns (advocacia, militância e ativismo) valorizam, cada uma, um aspecto diferente da expressão, sem, contudo, abarcar a totalidade do significado.

 

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necessário levar em conta o desejo ou compromisso expressado pelos diretores de ONGs. Com isso, é possível tomar como pressuposto teórico a noção de representação como algo dialógico, observando a forma como a relação com o representado é constituída pelos representantes. A partir dessa perspectiva, pode-se pensar a busca de legitimação por parte das ONGs pela via da reivindicação de representatividade.

2.8 – Representação política como processo Nesta seção discuto algumas das possibilidades de reformulação do conceito de representação para dar conta das imbricações entre este e as questões da autorização e da legitimidade. Esse passo é fundamental para se entender o argumento da representação política sustentado pelas ONGs. Hanna Pitkin analisa, em seu livro “The concept of representation” (1967), a história do conceito de representação26, observando as mudanças de significado e sua relação com as diversas práticas políticas a ele relacionadas. Quanto ao desenvolvimento do conceito, Pitkin (2006) aponta que: “[...] Até o século XVI não se encontra um exemplo de ‘representar’ com o significado de ‘tomar ou ocupar o lugar de outra pessoa, substituir’; e até 1595 não há um exemplo de representar como ‘atuar para alguém como seu agente autorizado ou deputado’” (Pitkin, 2006: 20). O desenvolvimento do conceito ocorreu concomitantemente ao da teoria política e suas interpretações sobre mudanças práticas na organização e atuação do parlamento inglês durante os séculos XVI e XVII. O primeiro a teorizar sobre o conceito de forma mais detida é Hobbes (2003). Em seu Leviatã, publicado em 1651, a representação é definida a partir de aspectos formais de uma agência legal ou autorizada. Representante é aquele que recebeu autorização, aquele que tem autoridade (limitada ou ilimitada, de acordo com o caso) para agir por outro. Hobbes sugere o Leviatã, figura bíblica, como imagem do governante que, após receber autorização dos indivíduos da sociedade, os supera, tornando-se soberano e com autoridade para agir                                                              26

O conceito tem um mapa semântico distinto em diversas línguas, o que é indício da relação do termo com as instituições e cultura locais. Pitkin observa em termos históricos a relação entre cultura e definição teórica de representação. A origem do termo é a palavra latina repraesentare, que significa “tornar presente ou manifesto”, e era utilizado majoritariamente em relação a objetos inanimados. Utilizava-se o termo também como resposta a uma convocação, significando “tornar-se presente”. Nenhuma das interpretações iniciais, entretanto, está ligada ao Estado ou à representação de pessoas.

 

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independente da vontade individual daqueles que o autorizaram. Durante os séculos seguintes, a maioria das teorias da representação se emaranhou pelo debate infindável sobre esse ponto, do mandato e independência do representante. Este também poderia ser formulado pelo seguinte questionamento: o representante é livre para agir de acordo com seu julgamento ou, ao contrário, deve se subordinar às ordens do representado? A pergunta parece ainda mais complicada quando se observa o atual cenário político, no qual aparecem organizações como as ONGs, que atuam como representantes sem mandato. Antes do surgimento desse possível modelo de representação de organizações civis, houve, no começo do século XX, o surgimento dos partidos de massa, que desarticularam a interpretação anterior da representação, calcada na ligação local entre o eleito e seus eleitores e no modelo inglês de parlamentarismo. O surgimento dos partidos de massa se dá no final do século XIX e início do século XX. Com candidatos escolhidos por organizações políticopartidárias, havia a pressuposição de maior participação e manifestação de demandas dos militantes através dos núcleos locais dos partidos. O governo representativo, que até então era sinônimo do modelo de parlamentarismo inglês, ganha novas características. Nos debates contemporâneos ao surgimento dos partidos de massa, discutia-se uma nova fórmula para a representação, diferenciada daquela do parlamentarismo27. As mudanças nas práticas políticas levaram, portanto, a novas compreensões teóricas do conceito (Manin, 1999). Como Bernardo Manin ressalta: [...] Há uma notável simetria entre a situação atual e a do final do século XIX e início do século XX. Hoje, como então, a ideia de uma crise de representação é um tema usual, o que nos leva a crer que estamos diante de uma crise que é muito menos da representação como tal do que de uma forma particular de governo representativo (Manin, idem: s.p.).

O governo representativo, para Manin, tem quatro grandes princípios, que transpassam os modelos do parlamentarismo, do governo dos partidos de massa e do atual governo da democracia do público, conceito alcunhado por ele para designar o modelo de política midiática com foco no eleitor individual. Os quatro princípios são: 1) os representantes são eleitos pelos governados, resultando na diferenciação entre eleitos e eleitores; 2) os                                                              27

Vale notar que a relação entre o voto e o partido favorecia um controle dos representantes através dos programas partidários. Enquanto isso, no parlamentarismo, a relação era mais local e menos temática, havendo maior proximidade e relação direta entre representante e eleitores. Os representantes ainda tinham total liberdade, pois seus mandatos não eram destinados a realizar uma vontade política expressa pelas demandas dos representados. Ainda há a divisão mais óbvia entre o governo do parlamento e o governo do partido, onde há o expediente da oposição, ao contrário do anterior, que nasceu como poder de controle da monarquia e, posteriormente, de governo (Manin, 1999).

 

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representantes têm certa independência em relação às demandas dos eleitores28; 3) A opinião pública pode se manifestar livremente sobre os assuntos políticos, e, por fim, 4) as decisões políticas são tomadas após debate. As diferenças entre os três modelos de governo representativo apresentam-se apenas na operacionalização de cada um dos princípios. Portanto, com Manin temos uma clara distinção entre o governo representativo e a democracia, entendida como autogoverno do povo. A insistência na ideia de que existe uma crise de representação se deve à percepção de que o governo representativo vem se afastando da fórmula do governo do povo pelo povo. A situação corrente, no entanto, toma outros contornos quando se compreende que a representação nunca foi uma forma indireta ou mediada de autogoverno do povo. O governo representativo não foi concebido como um tipo particular de democracia, mas como um sistema político original baseado em princípios distintos daqueles que organizam a democracia (Manin, 1999: s.p.).

Contudo, o autor ressalta que, atualmente, a representação política não mais se concentra apenas nas atividades formais do governo representativo – essa seria a grande ruptura das organizações da sociedade civil29. Como apresentado anteriormente, decisões políticas são tomadas ouvindo mais vozes do que apenas aquelas registradas pelas urnas. O primeiro princípio, de eleição dos representantes, não é condizente com as atuais práticas, não obstante a manutenção da distinção entre os representantes e representados (condição necessária para haver representação, visto que a não distinção entre ambos é o cenário onde o indivíduo se faz presente e, portanto, não há representação, no sentido de “atuar no lugar de outro”). Diferentemente, ainda, da representação moderna, a representação realizada por atores da sociedade civil ou reivindicada por eles não estaria baseada em fatores tradicionais, a saber, autorização, monopólio e territorialidade. Ela não preenche o requisito da autorização dos representados; não detém monopólio da representação (o que é óbvio, visto que a representação eleitoral ainda é o elemento central da representação de interesses) e, por fim,

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Esse princípio não tem origem em necessidades práticas, ou seja, a representação não é ligada a independência dos eleitos. Houve modelos de revogabilidade de mandatos e/ou de mandatos imperativos (mandatos que poderiam ser finalizados a qualquer momento) em diversos sistemas de representação política. 

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Para Manin (1999), o senso comum e a maioria dos trabalhos acadêmicos tratam como sinônimos “democracia representativa” e “governo representativo”. O modelo de construção de um governo baseado na eleição de representantes através do voto (governo representativo) é distinto de democracias onde a representação é exercida de maneiras muito variadas, como por exemplo, pelo sorteio. Dessa forma, o “representativismo metodológico” (numa alusão ao nacionalismo metodológico) levou os estudiosos a considerarem as mudanças nas atuais práticas políticas como sinais de uma crise geral da representação.

 

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não coincide com um território30, sendo mais pluralista, apesar dos casos dos conselhos que se organizam territorialmente. Uma das propostas mais interessantes para compreender esse modelo de representação justificado pelos atores da sociedade civil é o de Michael Saward (2006; 2009). O autor trabalha com o conceito de “representative claims”¸ que poderia ser traduzido como reivindicação de representatividade. O argumento geral é “representation is not a fact, but rather a process that involves the making of claims to be representative” (Saward, 2005, s.p.). O autor objetiva superar o que ele critica como unidirecionalidade da interpretação convencional do conceito de representação. Para Saward, Hanna Piktin trabalhou o conceito de maneira a se observar apenas o representante e sua capacidade de refletir ou não o representado. Contudo, pensar no modo discursivo como os representantes se anunciam possibilita tratar a própria constituição do sujeito representado. Analisar os discursos de representação é também definir representação como um processo, e não um fenômeno acabado. Ela é mais a constituição de um retrato do representado e de suas demandas do que o reflexo delas (Saward, 2006). A representação, para Saward, não pode ser vista apenas como um ato de transferências de demandas, posto que essas demandas são construídas no próprio ato de representar. Com essa mudança, Saward argumenta ser capaz de pensar a dinâmica da representação ao trazer para a análise o lado performativo e os aspectos micro da ação. É com esse argumento que Saward critica a suposta unidirecionalidade de Hanna Pitkin, que pensaria a representação apenas como a transferência para o representante de demandas previamente construídas pelo representado. O lado performativo ou discursivo é importante para compreensão do processo de construção de legitimidade das ONGs. Se por um lado ela está fincada na edificação de fronteiras simbólicas ante o Estado e o mercado, por outro, ela também reside na reivindicação de representatividade. Esta é mais bem entendida a partir do deslocamento da atenção do rito de autorização para aquele da accountability (conceito em inglês que pode ser traduzido, ainda que com perdas semânticas, como responsabilização).

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As ONGs internacionais, que atuam em diversos países são o melhor exemplo da não territorialização da representação. Há ainda organizações que atuam como representantes de interesses difusos e que abrangem indistintamente muitos territórios, como as ONGs ambientalistas.

 

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2.9 – Da autorização à accountability: legitimidade e fronteiras simbólicas Na última seção, foram vistas algumas das propostas mais amplas de compreensão da representação política de organizações civis. Foi ressaltado que umas das possibilidades teóricas mais fecundas parece ser a abordagem da representação por parte de organizações civis a partir dos mecanismos de accountability. Nesta seção, trato especificamente do debate sobre accountability31, ou seja, das prestações de contas ou responsabilização daqueles que exercem atividades em nome de outros. Assim, indico um caminho teórico-metodológico para apreender a representação reivindicada pelas ONGs, tomando esse ponto como parte de uma estratégia de legitimação realizada por essas organizações. Teoricamente, os doadores, controladores ou representados julgariam a organização e seriam capazes de aplicar algum tipo de sanção quando as responsabilidades fossem descumpridas. A transição da autorização para a accountability parte da compreensão comum a Lavalle e Castello (2008) e Saward (2006 e 2009), que criticam os expedientes que cancelam o questionamento sobre representação de organizações civis, devido à falta de constituency ou autorização clara. Diferentemente de outras organizações, como, por exemplo, os sindicatos, os beneficiários das ONGs não são os membros ou financiadores e, portanto, não delegam poder às ONGs para falar por eles. Sikkink (2002), pensando sobre as ONGs que atuam mundialmente, lembra que essas organizações precisam provar sua legitimidade constantemente para que possam ser efetivas no questionamento das ações de empresas e Estados. A efetividade do questionamento do Estado e da representação dos beneficiários estaria calcada, dessa forma, na capacidade das ONGs se legitimarem a partir da accountability exercicida por pares, membros e doadores. Portanto, parece correto considerar a reivindicação de representatividade das ONGs a partir da legitimidade que essas organização obtêm após receberem accountability. Inspirado nos autores acima discutidos, a análise a seguir do discurso de dirigentes de ONGs vai explorar precisamente como esses dirigentes constroem a legitimidade de suas organizações. Essa análise adota o pressuposto teórico segundo o qual, ao “falar pelos” beneficiários, os discursos examinados permitem captar a relação de representação como                                                              31

O conceito de accountability é assim definido por Keohane e Grant: “Accountabilty, as we use the term, implies that some actors have the right to hold other actors to a set of standards, to judge whether they have fulfilled their responsibilities in light of these standards, and to impose sanctions if they determine that these responsibilities have not been met” (Keohane e Grant, 2005: 29).

 

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dialógica (representação como processo). Além disso, examinando-se os discursos dos atores em questão sobre suas fronteiras ante o Estado e ante o mercado torna-se possível compreender melhor os aspectos performáticos do processo de legitimação das ONGs. Em resumo, o que se propõe é uma [...] Operação de deslocar a atenção da autorização para centrá-la na accountability [que] abre passo para se pensar na legitimidade em função, não de um ato inicial de consentimento, mas dos processos mediante os quais as organizações civis internalizam, definem e depuram as prioridades e propósitos da representação por elas exercida (Lavalle et al, 2008: 69).

Para tanto, faz-se necessário primeiro considerar mais detidamente o conceito de accountability em relação à discussão sobre as ONGs. Observa-se que para muitos autores existiriam dois tipos básicos de accountability. Assim, por exemplo, Keohane e Grant (2005) distinguem accountability por delegação e por participação. A accountability de delegação é aquela relacionada às práticas de administração e gestão internas, em que é realizada uma resposta procedimental aos responsáveis pelos recursos destinados à organização32 ou por aqueles que concederam o poder de ação a tais organizações. A accountability de participação é a resposta dada ao beneficiário ou aquele afetado pelas ações da organização. De outra forma, a distinção se refere a quem é o ator capaz de avaliar as decisões tomadas pelo representante. No modelo delegativo, a accountability é direcionada àqueles que concederam o poder – no caso das ONGs, os doadores ou Estado, entre outras instituições que delegam poderes às ONGs para agirem em seus nomes. Já no modelo participativo, todos aqueles que são afetados pelas ações das ONGs seriam capazes realizar a accountability. Paralelamente, Wapner (2002), classifica de forma análoga a accountability como sendo interna e externa. Internamente, as ONGs, principalmente as maiores e que recebem grande volume de doações de pessoas físicas, são responsabilizadas pelos membros ou voluntários que participam de suas atividades. Externamente, seus pares ou atores ligados por redes de atuação podem sancionar as ONGs, dificultando a participação delas nas redes ou retirando seu apoio institucional. De modo análogo, Mary Kaldor (2003) utiliza os termos accountability procedimental e moral para dar conta da distinção entre a responsabilização pelos doadores ligada aos aspectos financeiros e burocráticos e a sanção pelo público mais amplo a partir da sua reputação.

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Um trabalho exemplar de estudo desse tipo de accountability para as ONGs é o de Mariane Koslinski (2007).

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2.10 – Accountability delegativa ou procedimental A accountability ou responsabilização por mecanismos de delegação operaria principalmente na relação das ONGs com a fonte doadora, os membros e outras organizações que as fortalecem politicamente. Em relação aos membros, há divergências quanto ao fato de a ONG ser passível de accountability, visto que normalmente elas não trabalham para os membros. De forma ampla, entretanto, Wapner (2002: 201) afirma que “when supporters no longer feel satisfied by the NGO, they are no longer available to be mobilized or otherwise advocate on behalf of the group”. Por outro lado, Keohane (apud Koslinski, 2007: 120) e Kaldor (2003) são mais céticos quanto a essa possibilidade, pois as ONGs seriam pouco afetadas pela saída de membros para outras organizações. Em relação à accountability para doadores, Keohane e Grant (2005), por exemplo, avaliam o tipo de resposta dada às relações internas à instituição, entre as organizações e aquelas provindas da entrega de relatórios financeiro-administrativos aos financiadores da organização ou pela obediência a regras formais determinadas pelo órgão doador ou por leis. A accountability procedimental ou externa de ONGs brasileiras é analisada por Mariane Koslinski (2006; 2007; 2010). A autora mostra como a dependência de recursos financeiros do Estado, do mercado, de organizações estrangeiras e o nível de institucionalização33 das ONGs influencia sua capacidade de prestar contas aos beneficiários, pares e população em geral. Ela conclui que as ONGs que dependem de recursos financeiros de “organizações internacionais ou governos estrangeiros e de recursos diversificados parecem ter maior capacidade organizacional e propensão a pressionar decisões de órgãos governamentais” (2010, s.p.). Como já dito anteriormente, a legitimidade das ONGs pode ser compreendida a partir do modo de construção dessa accountability dos beneficiários. Para apreender a narrativa sobre a relação entre ONGs e beneficiários, especialmente a diferenciação enfatizada frente à relação tradicional entre o Estado ou o mercado e o cidadão/beneficiário/cliente, é importante apreender um tipo específico de accountability, aquela de caráter moral tratada na seção seguinte.                                                              33

Para uma boa análise da institucionalização e profissionalização das ONGs no Brasil, ver Maria Dysman (2011).

 

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2.11 – Accountability participativa ou moral Keohane e Grant (2005) classificam três tipos de accountability participativa: i) de mercado; ii) por pares e iii) pela reputação. A primeira não se refere ao mercado como esfera societária, mas ao modelo de competição entre provedores de serviços e consumidores. As ONGs mais ineficazes seriam penalizadas ao não continuarem a receber recursos dos doadores, diferentemente do que ocorreria com as eficazes. Dessa forma, a sanção financeira serviria como mecanismo de accountability para as ONGs. Esse mecanismo seria aplicado pelos doadores e público mais amplo, que julgariam as ações das ONGs. A responsabilização pelos pares34 é comum entre as ONGs, que participam, com frequência, de fóruns, campanhas coletivas e projetos conjuntos. Os fóruns, como organizações de ligação entre as organizações, permitem a influência mútua e a consecução de objetivos compartilhados, além de auxiliarem no estabelecimento de padrões de responsabilização horizontais (Koslinki, 2010). A atuação em redes é também ressaltada por Lavalle et al (2006a, 2006b), que apontam a centralidade das ONGs na rede de organizações civis paulistanas. Por fim, há a responsabilização ou accountability por reputação. Para Mariane Koslinski as “ONGs abusarão menos do poder se comparadas com Estados fortes, uma vez que não dispõem de poder coercitivo e de eleitorado e, portanto, dependem de sua reputação para obter recursos e apoio” (Koslinski, 2010, s.p.). Embora de grande importância, esse aspecto é pouco contemplado na literatura. Não há análises detalhadas sobre que tipo de reputação é construída pelas organizações e como essa reputação funciona como mecanismo de accountability. Mary Kaldor (2003) fala da reputação construída pelas imagens públicas difundidas nos diversos meios de comunicação. Dessa maneira, a exposição e o tipo de julgamento realizado pelos meios de comunicação seriam capazes de responsabilizar e                                                              34

Um exemplo claro dos mecanismos de responsabilização entre pares ocorre junto ao cadastro de entidades ambientalistas no Conselho Nacional de Entidades Ambientalistas (CNEA). Somente participando do CNEA é possível requerer vaga no Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). Há vinte e dois representantes da sociedade civil e dos trabalhadores no CONAMA. As vagas da sociedade civil são assim divididas: dois representantes de entidades ambientalistas de cada uma das regiões geográficas, um representante de entidade ambientalista de âmbito nacional e três entidades escolhidas pelo Presidente da República. Para uma ONG pleitear acesso ao cadastro, ela deve apresentar os documentos de fundação de associação e ter declaração ou atestado de atividades credenciado por autoridade judiciária ou três entidades ambientalistas da região já registradas no CNEA. Nota-se a importância que os pares têm no julgamento do valor da ONG requerente à vaga no cadastro. Esse critério faz com que ONGs ambientalistas deem valor ao modo com os pares as julgam. ONGs ambientalistas já cadastradas na lista do governo têm grande poder e podem ser consideradas parceiras prioritárias por outras ONGs

 

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sancionar as ONGs. Portanto, a reputação da ONG diante do público mais amplo atuaria como mecanismo de accountability. Este estudo argumenta que é possível avançar no entendimento da accountability por reputação através do exame das fronteiras simbólicas construídas discursivamente. A formulação de uma identidade própria por distinção frente ao mercado e ao Estado contribui para tornar as ONGs tão legítimas quanto os outros dois setores.

2.12 – Como estudar a accountability moral e por reputação das ONGs? A gênese histórica parece ser fundamental para compreensão da capacidade das ONGs se legitimarem. Esta é constituída no processo histórico de formação de sua identidade moral, que as diferencia de outros atores. Por outra parte, a reivindicação da capacidade representativa fortalece sua legitimidade. Com base nesses pressupostos, procuro analisar a formulação discursiva dessa legitimação das ONGs, tanto a partir da identidade, construída por delimitação de fronteiras simbólicas, quanto por reivindicações de representatividade. Sabendo que a legitimidade desses atores não é institucionalizada, sua constante recriação é fundamental. Essa reconstituição não se limita a invocar atos encampados pelas ONGs pioneiras que solidificaram a identidade das ONGs. Tampouco é suficiente contar a história de suas entidades precursoras. A criação discursiva da legitimidade das ONGs se vitaliza ao erigir fronteiras simbólicas35 frente às esferas36 do mercado e do Estado. A aproximação entre essas esferas reforça a necessidade das ONGs se distinguirem. Não há, como no caso das ONGs pioneiras, uma atividade “de costas” para o Estado. Da mesma forma, crescem as atividades conjuntas com empresas privadas. Desse modo, as fronteiras são constituídas a partir de um capital moral, que as identifica e distingue, não obstante a necessidade de ser retrabalhado constantemente de acordo com as mudanças nas fronteiras fluidas que existem entre as esferas.                                                              35

Utilizo a definição e sigo a indicação de trabalho de Michele Lamont (1992, cap. 7). Lamont e Molnár (2003) assim definem fronteira simbólica: “Symbolic boundaries are conceptual distinctions made by social actors to categorize objects, people, practices, and even time and space. They are tools by which individuals and groups struggle over and come to agree upon definitions of reality. Examining them allows us to capture the dynamic dimensions of social relations, as groups compete in the production, diffusion, and institutionalization of alternative systems and principles of classifications” (Lamont e Molnár, 2003: 168).

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A palavra “esfera” pode indicar algo fechado, parecido com uma mônada. Contudo, esta não é a intenção. Considero esfera apenas um indicativo da diferença em termos de valores, modelos organizacionais e objetivos entre Estado, mercado e sociedade civil.

 

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Neste capítulo parti do debate sobre sociedade civil e representação política sustentada por organizações civis. Em seguida, apresentei algumas sugestões contemporâneas que evitam a tendência normativa das abordagens das décadas de 1980 e 1990. Conforme deve ter ficado claro, o objetivo dessa empreitada foi não apenas realizar uma revisão da bibliografia, mas identificar caminhos mais promissores para a compreensão do objeto desta dissertação. O próximo capítulo trata mais detidamente do conceito de fronteira simbólica e moral. Detalha como o discurso dos diretores de ONGs entrevistados diferenciam essas organizações do Estado e do mercado e como avaliam o papel ideal e o efetivamente desempenhado pelas instituições das três esferas.

 

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Capítulo 3 – Fronteiras simbólicas e morais 3.1 – Introdução Este capítulo examina as percepções dos dirigentes de ONGs sobre as fronteiras simbólicas e morais que, segundo eles, diferenciam ONGs do mercado e do Estado. O conceito de fronteiras e as noções a ele relacionadas, como limites, distâncias e proximidades, serão utilizados para analisar as falas dos entrevistados. Compreendendo essas narrativas pelo prisma das fronteiras simbólicas, observo como certas características definidoras das ONGs, na percepção dos entrevistados, são articuladas de forma a legitimá-las para atuarem ao lado do mercado e Estado. A noção de autonomia de ação é fundamental para entender a percepção dos atores sobre a identidade das ONGs. As características citadas pelos entrevistados serão entendidas relacionalmente. Estado e mercado são o outrem através do qual as ONGs constroem sua identidade e legitimidade. Dessa forma, o capítulo trata das características apontadas pelos entrevistados como aquelas que definem as ONGs e, concomitantemente, discute como tais características são ressignificadas nas comparações com Estado e mercado. Os entrevistados caracterizam as ONGs como ágeis, inovadoras e criativas em comparação com o Estado; como idealistas e não determinadas pelo lucro em comparação com o mercado; e, de modo geral, como autônomas e próximas das bases. Essa dupla condição de autônomas em relação aos parceiros e próxima das bases ou beneficiários é entendida pelos entrevistados como condição necessária para legitimação política de suas organizações. A primeira seção deste capítulo discute os conceitos de narrativa e fronteiras simbólicas. Parto do exame das proposições de Margareth Somers, Gloria Gibson e Jeffrey Alexander para o conceito de narrativa. São também consideradas as sugestões de Alexander para o estudo da sociedade civil no que tange à importância que os códigos morais assumem nas disputas por definições identitárias. Finalmente, o conceito de fronteiras simbólicas, tal qual definido por Michèle Lamont, é introduzido na discussão e são explicitados os argumentos que justificam sua adoção para a análise. Como será explicitado a seguir, a tríade “narrativa - sociologia cultural - fronteiras simbólicas” oferece uma fórmula teórica profícua para a investigação dos critérios de legitimação buscados pelas ONGs para atuarem como representantes políticos.  

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O conceito de fronteira simbólica capta a dimensão relacional dos processos de construção de identidade, evitando, dessa forma, o risco de transformar instituições em noções essencializadas. Ele é facilmente operacionalizável, permitindo catalogar os mecanismos de produção das propriedades identitárias e distinções frente a outras esferas. A segunda seção do capítulo trata da catalogação dessas marcas definidoras e distinguidoras. Indico como certas características são apontadas pelos entrevistados como “marcas de distinção” das ONGs em relação ao Estado e, em outros momentos, como “ponto de convergência” no tocante ao mercado. O movimento inverso de se aproximar do Estado e se distanciar do mercado ocorre especialmente no que se refere aos valores e objetivos, e não em relação às características operacionais. Como será evidenciado mais à frente, há, decerto, uma porosidade no discurso sobre a identidade das ONGs, a qual permite que elas sejam consideradas pelos diretores ora por determinadas características, ora pelo contrário destas. O objetivo dessa seção, portanto, é indicar como a identidade das ONGs se constrói por constantes aproximações e distanciamentos do mercado e do Estado. Outro ponto destacado na segunda seção do capítulo é a importância da noção de autonomia para as ONGs. Visto que elas dependem financeiramente de empresas e governos para se manter (em consequência das dificuldades atuais de recebimento de financiamento de organizações estrangeiras, civis ou religiosas), o tema da autonomia é primordial. O trabalho de Rogério Medeiros (2008) é basilar na análise desse conflito identitário no seio das ONGs pertencentes à ABONG. Retomo o argumento de Medeiros para indicar como a “proximidade com as bases” deve ser considerada o “outro lado da moeda” dessa caracterização mais geral das ONGs. Enquanto o argumento de “autonomia” justifica a distância da ONG em relação ao Estado e mercado, a “proximidade com as bases” afirma a diferença em relação às outras esferas, ao apontar o local que mercado e Estado não alcançam. Desse modo, a percepção sobre a relação entre ONGs e financiadores e parceiros deve ser complementada pela relação que também existe com os beneficiários. A terceira seção empreende um resumo dos argumentos do capítulo e sugere como as análises precedentes contribuem para o entendimento da busca de legitimação expressa no discurso dos dirigentes de ONGs.  

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3.2 – Narrativas e fronteiras simbólicas Fronteiras simbólicas são construções discursivas, erigidas por meio de afirmações, contra-afirmações, acusações e defesas, de atores em conflitos pelo significado das ações e identidades. São comumente feitas caracterizações de si e dos grupos antagônicos sob influência de determinados contextos históricos e socioeconômicos (Barth, 1994). Dois eixos que se interconectam são, portanto, importantes para se apreender essas construções discursivas: o da narração histórica da constituição do grupo e aquele da disputa entre grupos por status moral. Grupos sociais e indivíduos narram suas histórias, conferindo-lhes um telos, imputando causalidades, relações e associações entre determinados fatos e características (Bourdieu, 1996). Dentre os autores que discutiram o conceito de narrativa, destacam-se Margareth Somers e Gloria Gibson (1994)37. Segundo elas, a narração foi tradicionalmente considerada apenas pelo seu viés representacional, ou seja, como uma forma de “contar”, “representar” o fato exterior ou a realidade social. As autoras sugerem que o conceito seja considerado em seu caráter ontológico38. Dessa forma, argumentam que ao invés de apenas contar histórias sobre a vida social, as narrativas são sua condição ontológica, pois se mostram capazes de guiar ações, constituir identidades e criar relações causais entre fatos vividos. Além de reconhecer tais características das narrativas, é crucial esclarecer que a análise empreendida a seguir entende que, no caso da fala dos dirigentes de ONGs, elas concorrem também para elaborar a legitimação das ONGs a partir da reivindicação de representatividade política e do status moral. Para Somers e Gibson (1994) há quatro grandes maneiras de enquadramento de fatos dentro de narrativas: 1) pelo relacionamento ou conexão das partes de determinada história; 2) pela imputação causal; 3) pela apropriação seletiva de determinados aspectos ou atos ao narrar a história; e 4) pelo modo de organizar e apresentar as disposições de tempo, sequência e lugar da história. De modo resumido:                                                              37

A centralidade dos conceitos ligados à narração pode ser comparada ao retornar aos argumentos fundamentais da sociologia cultural expostos no primeiro capítulo.

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Para Somers e Gibson “The new notion recognizes narrative and narrativity to be concepts of social epistemology and social ontology. These concepts posit that it is through narrativity that we come to know, understand, and make sense of the social world, and it is through narratives and narrativity that we constitute our social identities” (Somers e Gibson, 1994: 59).

 

50    The chief characteristic of narrative is that it renders understanding only by connecting (however unstably) parts to a constructed configuration or social network (however incoherent or unrealizable) composed of symbolic, institutional, and material practices (Somers, Gibson, 1994: 59).

A interpretação dessas conexões realizadas pelos indivíduos é tarefa que deve privilegiar aspectos culturais ou simbólicos (Polleta e Jasper, 2001)39. No que se refere à legitimidade política das ONGs, o caminho sugerido pela sociologia cultural de Alexander é promissor, propondo a “tradução” dos significados acoplados a determinados grupos e ações. Tal estratégia analítica permite evidenciar como grupos particulares agenciam características e contextos históricos para distinguir suas identidades coletivas frente a seus antagonistas. A percepção do “quem somos” e do “somos diferentes deles” – o compartilhamento de um mesmo status e identidade (Polleta e Jasper, 2001) – pode ser entendida, na chave de Alexander, pela “evaluación de lo bueno y lo malo de los objetos (códigos) y la organización de las experiencias en una teleología coherente y cronológica (narrativas)” (Alexander, 2000: 33). As sugestões de Alexander (2000) referentes às análises dos códigos e narrativas são consideradas aqui no sentido de experiências e discursos organizados logicamente. Essa análise não trata dos aspectos históricos, já que não se dispõe de dados longitudinais para realizar a comparação das falas dos membros de ONGs. Na visão de Fernando Lima Neto, com Alexander, observa-se que Os códigos simbólicos que especificam o bem e o mal nas sociedades atuam como gramáticas gerais de ordenação/classificação do mundo e, quando relacionadas a tradições históricas específicas, criam configurações particulares de significados (Lima Neto, 2007a).

Considero, entretanto, que a distinção de Alexander (2000) dos códigos morais por dicotomias, tais como bom/mau, sagrado/profano diminui a sensibilidade da interpretação aos sentidos dados pelos entrevistados às esferas sociais40. As características operacionais que                                                              39

Jeffrey Alexander (2000; 2006) oferece um enfoque profícuo para a interpretação dos argumentos simbólicos. Outros autores como Alain Touraine (1997) e Alberto Melucci (1988) são também relevantes nesse contexto, na medida em que consideraram a chave cultural para interpretar os novos movimentos sociais. Craig Calhoun (1994) resume essas diversas ferramentas teóricas construídas recentemente para dessencializar e descontruir (e, também, reconstruir e, por vezes, reessencializar) identidades sociais.

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Para críticas à sociologia cultural quanto ao seu enfoque idealista, ver Wolfe (1989) e Vandenberghe (2008). Para uma análise mais pormenorizada da sociologia cultural, debatendo com os críticos de Alexander, ver Lima Neto (2007a; 2007b). Deste último parte a interessante crítica de que, “em certo sentido, pode-se dizer que Alexander faz justamente o contrário: ao invés de estudar as práticas à luz da codificação cultural (como faz

 

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separam ONGs do Estado, por exemplo, podem aproximá-la do mercado. Entretanto, em outros momentos, os diretores utilizam certas características morais para se afastar do mercado e se aproximar do Estado. Certas características, como a “proximidade com as bases”, ganham ambos contornos, morais e operacionais. Não é possível, dessa forma, “encaixar” as organizações a partir das estruturas discursivas identificadas nas entrevistas em polos dicotômicos de códigos baseados em “bom/mau” ou “democrático/antidemocrático”. Primeiro, os códigos são ressignificados de acordo com o outrem da comparação. Segundo, nem todos os códigos distintivos são dicotomizados. Dessa forma, não compreendo os argumentos morais através de dicotomias valorativas. Considero as narrativas sobre as ONGs a partir dos códigos morais e operacionais – tal qual indicado por Alexander (2000) – utilizados pelos entrevistados para conectar práticas, posições simbólicas e características institucionais. Entretanto, como dito acima, procuro não dicotomizá-los e os analiso empregando a noção de fronteiras simbólicas. Essas são conceituações feitas por atores sociais para categorizar e distinguir objetos, práticas, pessoas e instituições ao mesmo tempo que favorecem sentimentos de similaridade entre membros de um determinado grupo (Lamont e Molnár, 2003). Michèle Lamont desenvolve o conceito de fronteiras simbólicas realçando que essas não são criações ex nihilo de atores atomizados. Os contextos e repertórios culturais a que têm acesso os indivíduos são fundamentais para compreender como essas fronteiras são conformadas ao serem narradas41. O conceito de fronteira preserva a dimensão relacional do processo de construção de identidade e classificação de si e dos outros, o que é explícito no caso das ONGs, exemplificado pela nomeação do grupo de “não governamental”. Como conceito relacional e móvel, visto que as fronteiras não são fixas e podem ser reestruturadas, as fronteiras simbólicas também permitem pensar a relação com o Estado de forma mais                                                                                                                                                                                            Robertson e também Sahlins), ele estuda os códigos culturais à luz das práticas sociais (os exemplos do Watergate e Holocausto são ilustrativos disso)” (Lima Neto, 2007a: 13). 41

Aqui está a principal diferença quanto à teoria de Alexander. O autor indica que as estratégias de alocação dos códigos morais aos participantes da disputa são contingentes. Entretanto, “las estructuras simbólicas no son contingentes. Por el contrário, em las sociedade democráticas constituyen um ‘discurso de la sociedade civil’ que se ha mantenido notablemente constante durante prolongado espacio de tiempo. Este discurso define cualidades enormemente simplificadas de bien y mal, ‘essencías’ que separan la forma pura y la impura, los amigos de los enemigos y lo sagrado de lo profano” (Alexander, 2000: 256). A meu modo de ver, ao indicar os mecanismos de ativação das fronteiras simbólicas, Lamont escapa à tentação de compreender discursos morais através de um metadiscurso moral da sociedade civil.

 

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dinâmica, com margens fluidas e em disputa, fugindo de concepções essencializadas ou homogeneizadoras do Estado e da sociedade civil. Michèle Lamont e Virág Molnár (2003) sugerem três grandes estratégias de pesquisa das fronteiras simbólicas: através do estudo das suas propriedades, dos seus mecanismos e do modo de participação dos seus membros. Quanto às propriedades, pode-se avaliar o grau de permeabilidade ou porosidade, ou seja, a facilidade de acesso de outros indivíduos ou grupos naquela esfera; sua visibilidade é indicada pelo nível de reconhecimento dos membros e pessoas pertencentes àquela esfera e das principais características e marcas que os definem; e durabilidade e condições nas quais certas fronteiras se modificam podem ser verificadas pela percepção da mudança em relação às características definidoras do grupo. Quanto à catalogação dos mecanismos42, as autoras apontam a necessidade de estudar os modos de ativação, manutenção, transposição, cruzamento, dissolução e criação de pontes entre as fronteiras simbólicas. Ou seja, as duas estratégias permitem a compreensão da morfologia e da fisiologia de tais limites erigidos por determinado grupo. Lamont sugere ainda um terceiro movimento: o estudo da participação dos membros desse grupo cultural e/ou simbólico. Entretanto, neste trabalho, enfatizo principalmente os mecanismos discursivos utilizados pelos entrevistados para marcar diferenças e proximidades entre as ONGs e o Estado e o mercado.

3.3 – Fronteiras simbólicas das ONGs Nessa seção, trato da catalogação dos mecanismos de construção das fronteiras simbólicas das ONGs a partir das narrativas dos entrevistados sobre suas organizações. Por construção das fronteiras entendo a diferenciação das ONGs através de características definidoras, tais como agilidade, inovação, idealismo e, especialmente, proximidade com as bases. Por mudança relativa das fronteiras compreendo as formas como as ONGs ressignificam certas características, contextualizando-as a partir da esfera da qual querem se diferenciar. Por exemplo, algumas características, como organização e gestão do trabalho, são tratadas como positivas na comparação com o mercado (e ressignificadas como agilidade e                                                              42

Charles Tilly é o principal estudioso dos mecanismos sistemáticos de produção de fronteiras sociais. Conquanto, aqui me detenho nas fronteiras simbólicas. De maneira resumida, enquanto as primeiras são uma forma objetificada de diferenças sociais manifestadas por distribuições desiguais de oportunidades, as segundas são uma distinção conceitual feita por atores (Lamont e Molnár, 2002).

 

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flexibilidade), mas negativas quando referentes ao Estado (identificadas como burocracia ineficiente). Observo, assim, que a fórmula de diferenciação do Estado e mercado não é a mesma. Em relação àquele, critérios de eficiência e características organizacionais são priorizadas, quanto a este último, objetivos gerais e os valores norteadores da ação são apontados como as principais diferenças. Paralelamente, outros mecanismos de criação e transformação de fronteiras simbólicas são a politização ou o cruzamento de fronteiras. Por politização entendo as narrativas dos diretores de ONGs sobre a manutenção de uma identidade própria e da autonomia política. Exemplos são os perigos de isomorfismo e da perda de autonomia na relação com empresas e governos, indicados por Medeiros (2008). Cruzamento de fronteiras são os momentos em que estas se tornam mais porosas. Exemplos são os casos nos quais os diretores afirmam que ONGs compartilham objetivos e missões com o Estado. Esse compartilhamento ocorre, para alguns entrevistados, pelo fracasso do Estado na execução de certas políticas sociais e pela necessidade de participação da sociedade civil nesses processos. Assim, as ONGs começariam a assumir funções antes destinadas ao Estado, cruzando com ele, dessa maneira, as fronteiras. Uma primeira maneira de analisar a construção de fronteiras é pela definição dada pelos dirigentes para suas organizações, a qual é baseada nas funções e características principais das ONGs. Considero que funções são as atividades ou papéis executados ou idealizados pelas ONGs de acordo com os entrevistados. Exemplos são a substituição, fiscalização ou complementação do Estado. Em relação aos beneficiários, a articulação, intermediação de suas demandas ou a prestação de serviços, ou ainda, num registro mais amplo, a transformação da sociedade. As características são traços ou propriedades distintivas fundamentais das ONGs. De imediato, fica clara a perspectiva relacional em que essas características e funções são acionadas. A forma relacional de construção de identidade se faz presente nas narrativas sobre o processo histórico de gênese das ONGs. De modo geral, é possível identificar nas entrevistas a vinculação de um histórico minimamente consensual das ONGs, para além da sua diversificação temática e organizacional atual. Mesmo as ONGs mais recentes e que não “se veem” nas pioneiras encampam uma série de argumentos destas, o que permite aglutiná-las em uma única esfera simbólica autodenominada ONG. O relato mais geral das narrativas públicas de construção de fronteiras simbólicas das ONGs as distancia do mercado e do Estado geneticamente, pelo modo como nascem em processos de redemocratização;  

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sociologicamente, com uma visão menos estrategista e mais culturalista das relações sociais e políticas; e normativamente, como nova solução moral aos problemas contemporâneos. Quanto ao argumento genético, é possível identificar que, ao construírem uma “narrativa do social”, os diretores ONGs também criam um modelo de compreensão do seu próprio papel no processo democrático. Essa narrativa reivindica a sociedade civil como ator crucial e legítimo para a democracia moderna, colocando-a ativamente no processo no qual governos e partidos ampliam os partícipes no desenho e aplicação das políticas públicas. Salazar (1999: 23) argumenta que as promessas não cumpridas pelo autoritarismo, no caso da América Latina e do Leste Europeu, e aquelas relativamente cumpridas (industrialização, urbanização, modernização) permitiram essa reivindicação. Entendo, contudo, que a centralidade das ONGs não é apenas advinda dos problemas e vícios do Estado, mas está baseada, na visão dos diretores, em características próprias e distintivas. Os diretores de ONGs, no contexto de crise da capacidade executiva apontado por Salazar, não apenas indicariam os limites que as separam do Estado, mas realizariam também o cruzamento das fronteiras em direção às ações monopolizadas por este43 e pelos partidos, de forma a reivindicar para si a articulação da sociedade e a formulação e implementação das políticas sociais. Esse tipo de argumento é enviesado por uma defesa normativa da sociedade civil como solução moral e mais eficaz para resolver os principais problemas sociais. Os argumentos genético e normativo, por fim, se assentam numa visão sociológica de que os novos movimentos sociais possuem um tipo de atuação menos voltado para a tomada de poder político, o que impediria, a princípio, que essas novas organizações repetissem os erros e vícios daqueles grupos ligados ao Estado44. 

                                                             43

Bresser-Pereira (1998), por exemplo, apoia o fim do monópolio do Estado na execução de políticas sociais para que associações civis com maior experiência e qualidade técnica possam oferecer serviços mais eficientes. No final do capítulo aponto como alguns entrevistados encampam essa ideia. 44

A noção de ator necessário para o desenvolvimento de políticas sociais parece se basear nas experiências participativas ocorridas após o advento da Constituição de 1988, no qual as ONGs tiveram papel fundamental. Como analisa Medeiros (2008: 146-150), os debates e votações da Constituinte podem ser vistos como sinais de força das ONGs na  definição de novos mecanismos institucionais de solução de conflitos, sendo o mais importante deles a construção dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas, responsável pela definição de prioridades e monitoramento de políticas públicas. Foram, decerto, essas novidades institucionais de natureza deliberativa, posteriormente analisadas por Avritzer (1997), que levaram muitos autores a verem as ONGs como elemento fundamental no desenvolvimento da democracia brasileira (Wolfe, 1989). Além disso, as ONGs serviram nesse momento como mediadores das demandas dos movimentos sociais que perdiam espaço político e

 

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Outro modo que os entrevistados utilizam para se distinguir é a catalogação de características marcantes das ONGs. As mais recorrentes nas entrevistas foram: i) idealismo dos seus funcionários, exemplificado por receber salários menores do que aqueles pagos por empresas privadas para a mesma função; ii) proximidade com a base, visto que seus funcionários têm contato cotidiano com os beneficiários e percepção mais refinada das demandas do público-alvo; iii) autonomia ou independência em relação aos interesses políticos governamentais ou partidários e à busca por lucros das empresas, que restringem suas possibilidades de ação; iv) agilidade na execução e formalização de ações ou políticas e, especialmente, na mudança de foco, tornando-as menos engessadas; v) inovação nas propostas e modelos de enfrentamento dos problemas sociais. A fala abaixo, de um dirigente de uma ONG voltada para meio ambiente, resume como as características são conectadas e se reforçam mutuamente. O idealismo dos funcionários e a noção de “espírito do voluntariado” marcam as ações das ONGs, enquanto a proximidade com as bases é indicativa de outra relação com a sociedade, fundada em confiança, intimidade e conhecimento. A independência fica a meio-termo de considerações morais e operacionais e serve como fiador do idealismo e da capacidade de inovação das ONGs. No terceiro setor, quando você tem uma organização bem estruturada e que tem uma atuação, você tem uma independência, porque é uma atuação baseada no compromisso que é individual e se torna coletivo naquele grupo que atua. Acho que a independência das organizações do terceiro setor é uma marca muito forte. Uma outra marca forte é a agilidade, a capacidade de tomar decisões, de desenvolver iniciativas sem muita burocracia, sem muitas amarras, sem muitas dificuldades de corrigir rumos, de mudar rumos, de ousar, de identificar oportunidades de ser mais criativa (ONG48).

A prestação de serviços serve, para os entrevistados, como bom exemplo de confirmação do status moralmente superior e operacionalmente mais eficaz descrito aqui. A prestação de serviços é a principal atividade comum ao Estado, mercado e ONGs. Para os entrevistados, a prestação de serviços ganha outros contornos ao ser associada às características caras às ONGs, como o idealismo, a inovação e a proximidade com as bases. O que poderia ser visto como uma atividade menos prestigiosa (apenas realizar atividades culturais, educacionais ou profissionalizantes, sem maiores objetivos políticos) é                                                                                                                                                                                            visibilidade midiática (Gohn, apud Medeiros, 2008: 145), indicando um tipo de função das ONGs que se estenderia pelas décadas seguintes. 

 

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ressignificado a partir da distinção dessa atividade em relação à análoga realizada pelas empresas e governos. Na visão deles, o idealismo das ONGs muda o registro no qual a prestação de serviços se encontra. Diferencia-se por ser mais barata e feita com mais “boa vontade” do que no mercado e, na outra ponta, mais eficiente e inovadora do que as ações realizado pelo Estado. A ideia de inovação também é importante, pois ressalta a superação do viés caritativo dos serviços prestados por outras organizações civis. Para alguns entrevistados, inclusive, a inovação está intimamente ligada à possibilidade de esses serviços serem utilizados como testes para avaliação de futuras políticas públicas. Quanto às características morais, os entrevistados as utilizam para se separar tanto do mercado quanto do Estado. Uma das principais bases argumentativas dessa superioridade moral advém do seu relacionamento diferenciado com os beneficiários ou clientes das políticas sociais. Dessa forma, compreendo que, para os entrevistados, a “proximidade com as bases” tem duplo efeito: operacional, ao melhorar o atendimento e torná-lo mais célere e capilarizado, e moral, pois a proximidade com os beneficiários é vista como inerentemente desejável. Assim, a noção de proximidade ativa a percepção de ONG como ator íntimo do beneficiário, diferenciando-se da maneira formal e impessoal com que mercado e Estado atuam. A própria nomeação desse beneficiário, não identificado como cliente (no caso das empresas), serve como marcação de um caráter essencialmente diferente. A atuação em proveito da sociedade é comum entre ONGs e Estado na percepção dos entrevistados. Contudo, a forma como ela se realiza é diferente, pois se constitui como uma ação independente, ou seja, não atrelada aos objetivos partidários, e eficiente, consequência da agilidade e inovação presentes nas ONGs e na possibilidade de reajustar as ações de acordo com os beneficiários, algo somente possível devido à proximidade com as bases. O que define uma ONG, uma organização da sociedade civil, é ter um objetivo de interesse público, fazer um pouco de política pública sem ser política governamental, e isso implica em não distribuir lucro [sic], não ter interesses em grupos específicos dominando a ONG, e ter uma missão, que é uma missão fundamentalmente social (ONG 10). Eu acho que as ONGs têm uma maior capacidade de desenvolver projetos inovadores, testar esses projetos e isso se transformar em política pública. Então eu olho por esses dois aspectos, tanto na sociedade civil organizada prestando um serviço, ou algum tipo de trabalho que deveria o governo providenciar e não providencia, e por outra também, uma possibilidade dessa inovação acontecer de uma maneira mais rápida pela... por ter menos burocracia, vamos dizer, dentro de uma ONG, maior agilidade, do que um governo (ONG 25).

 

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O quadro 1 resume os principais termos indicados para aproximar e distanciar as ações das empresas e governos daquelas das ONGs. Quadro 1 – Características indicadas pelos entrevistados para avaliar a atividade de prestação de serviços das ONGs em comparação com o mercado e Estado Mercado

Estado

Eficiência

Política social

Inovação

Não lucrativas

Idealismo

Eficiência

Não lucrativas

Inovação

Proximidade com as bases

Proximidade com as bases

Proximidades

Distâncias

3.4 – Fronteiras ante o Mercado Durante as entrevistas foi pedido aos dirigentes das ONGs que indicassem o que diferenciava as empresas de suas organizações específicas e das ONGs de modo geral. Os critérios mencionados circundavam ideias segundo as quais as ONGs são mais ligadas ao bem comum, visam à diminuição da desigualdade e da discriminação, contam com funcionários mais comprometidos com o trabalho e são identificadas com a “causa social”. Classifiquei as principais diferenças entre ONGs e empresas mencionadas pelos dirigentes em três categorias. Os argumentos utilizados pelos dirigentes são: i) as ONGs trabalham para o bem comum ou geral, enquanto empresas são voltadas para seu público-alvo; ii) idealismo de seus funcionários, materializado na preferência pelo emprego no terceiro setor, não obstante a defasagem salarial; iii) o lucro não é o objetivo principal, pois as ONGs não condicionam as ações aos resultados financeiros. Essas categorias aparecem com diferentes ênfases nas entrevistas. Alguns dirigentes, no entanto, afirmaram inexistência de

 

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distinções fundamentais entre ONGs e empresas. Nesse caso, a divergência de objetivos é eclipsada por características organizacionais ou de planejamento similares.

3.4.1 – As ONGs e o “bem comum”

Quanto ao objetivo de atingir o bem comum, os entrevistados creem que esta não seja somente uma diferença moral, no sentido de preocupação com toda população, mas uma diferença de abrangências das ações. A empresa necessita sempre especificar seu públicoalvo, para melhor adequar os produtos e propagandas aos consumidores. Segundo a fala dos dirigentes, as ONGs, mesmo quando atuam em relação a um grupo específico (mulheres, negros, homossexuais, portadores de HIV ou outros), têm suas ações repercutidas em toda sociedade. O bem comum almejado pela ONGs faz com que suas atividades tenham impacto diferenciado na sociedade em comparação com o setor privado. Segundo afirmou o dirigente de uma ONG ambiental de preservação da mata atlântica, a mesma ação realizada por uma ONG e por uma empresa tem significados diferentes: Bom, nossa meta é uma meta que ela é um bem difuso [sic], a gente trabalha, dedica e investe todo o nosso tempo, nosso conhecimento, os recursos que a gente consegue alavancar, captar, a gente investe tudo isso para um bem difuso, um bem coletivo, um bem da sociedade em geral, uma empresa, por mais que ela possa ser social e ambientalmente responsável, aquele não é o business dela, o business dela é gerar lucro pra seus acionistas e seus proprietários, ponto. Por mais que façam isso de maneira mais responsável, mais adequada, mais amigável... tudo bem, estão fazendo, é importante, mas o principal [objetivo] deles é justamente a geração de lucros, de dividendos (ONG 49).

O dirigente afirma que a empresa tem uma relação diferenciada com a proteção ambiental. Pode-se captar essa diferença como interesse inautêntico, utilizado como plataforma para melhorar a “imagem” da empresa e aumentar a arrecadação, ou seja, haveria falta de comprometimento genuíno da empresa com o problema em si. Na visão dos entrevistados, as ações de responsabilidade social corporativa que almejariam o bem comum são possivelmente não legítimas, pois não haveria um “verdadeiro” objetivo público. As ações pertenceriam, prioritariamente, a planos de marketing ou não se oporiam ao objetivo principal da empresa de garantir lucro. Um dos entrevistados, ao falar sobre as atividades de responsabilidade social das empresas, assim argumenta:  

59    Não sei, pode até ter experiências relevantes e que fazem diferença. Mas na maioria das vezes, a experiência que a gente tem é que é uma coisa super marqueteira, voltada para melhorar a imagem da empresa em um determinado setor e com pouca preocupação realmente com o que aquilo dá resultado, que impacto aquilo vai ter numa comunidade, num determinado grupo. Eu acho que as ONGs tentam, pelo menos teoricamente, nas suas aspirações, ter um pouco mais de proximidade e de preocupação com esse impacto (ONG 4).

Alguns entrevistados, por outro lado, aceitam as preocupações sociais e ambientais das empresas como verdadeiras. Entretanto, nesse caso, as ONGs surgem como fator de mudança de mentalidade dos dirigentes das empresas. Ao se relacionar com as empresas, as ONGs acabariam por “ensiná-las” sobre a necessidade de ações voltadas para a redução de desigualdades. Mantém-se, dessa forma, o monpólio legítimo das ONGs para realização de projetos sociais. Ainda é comum, nessa linha de argumentação, apontar que, sendo o bem comum o objetivo principal da ONG, ela se torna especialista nesse domínio. As empresas, independentemente das intenções dos seus acionistas, não detêm expertise em ações de proteção ambiental ou desenvolvimento social. Nessa primeira avaliação das diferenças das ONGs, na qual se destaca a ideia de proteção do bem comum, vê-se uma tendência que se repetirá nos discursos de outros dirigentes em relação a outros temas: os aspectos morais e operacionais caminham juntos na diferenciação entre empresas e ONGs. Dessa forma, as atividades finais das ONGs em si não são vistas como diferentes daquelas das empresas. O que difere são os objetivos e significados dessas ações. Os dirigentes, por exemplo, consideram que a preocupação com o bem comum e a desconsideração pelo lucro têm consequências práticas e organizacionais para as ONGs. Esse ponto fica mais claro quando estes discutem como a presença do lucro interfere no planejamento das ações das empresas, limitando-as.

3.4.2 – O idealismo dos funcionários O segundo marcador apontado pelos dirigentes é o idealismo dos funcionários. Ao contrário da ideia de bem comum visado nas ações, a diferença quanto ao idealismo tem indicadores concretos. A defasagem salarial para os mesmos postos no terceiro setor e nas empresas é utilizada recorrentemente pelos entrevistados para evidenciar o idealismo dos funcionários e marca seu comprometimento, tornando-se efeito potencializador das qualidades profissionais.

 

60    O que as ONGs têm de vantagem é aquele capital humano treinado, ou capital humano sensibilizado, comprometido com a questão inicial. Isso que é o grande diferencial (ONG 11). Eu faço isso por amor. A gente está militando por amor. Essa é a maior vantagem e ponto final. O nosso produto é a felicidade de alguém (ONG 44).

Na visão deles, o “capital humano sensibilizado” é aquele que permite às ONGs superar dificuldades financeiras e ter sucesso nas ações e projetos. A ideia do comprometimento está, então, atrelada ao esforço e ao “espírito do voluntariado” dos profissionais assalariados. Além disso, para alguns dirigentes, o idealismo dos funcionários e esforço pessoal permitem que características supostamente negativas, como informalidade e flexibilidade das relações trabalhistas, possam ser vistas positivamente45, como promotoras de agilidade à ONG. De forma resumida, a sensibilidade dos funcionários é percebida como tendo um duplo caráter: permite um trabalho mais eficaz, posto que mais dedicado, e carrega valores morais importantes, como o “amor pela causa”, indicativo da identidade das ONGs.

3.4.3 – As ONGs e o lucro Por fim, o terceiro argumento dos entrevistados refere-se à relação com o lucro pecuniário. É importante frisar a referência ao dinheiro, posto que é comum a diferenciação entre o lucro pecuniário, objetivo das empresas, e o lucro social, de interesse das ONGs. Esse é o argumento mais presente nas falas dos dirigentes e serve também como apoio aos outros dois argumentos. De certa forma, ele é visto como uma premissa, ou seja, num nível acima dos demais. Nesse sentido, a falta do lucro nas ONGs ajuda a entender o papel do idealismo e da busca pelo bem comum. Quanto ao idealismo, diz-se que a ausência da necessidade de lucro permite que a ONG não transforme o funcionário em uma “engrenagem para gerar lucro”. O trabalhador é considerado integralmente e ele, por sua vez, se dedica mais ao trabalho ao perceber que é valorizado. Alguns dirigentes destacam como as empresas vêm “aprendendo” com as ONGs a valorizar o funcionário. Observa-se que o bem comum é                                                              45

Ressalte-se que a característica agilidade é mais comumente utilizada para definir a ONG em relação ao Estado e governo. Contudo, em alguns casos, diretores de ONGs também utilizam secundariamente esse argumento para se diferenciar do mercado, como na fala de um dirigente de ONG ambiental: “Acho que a vantagem da ONG é que ela não tem a rigidez que o privado tem. Ela não tem essa rigidez, essa formalidade toda, isso facilita, porque senão a gerência seria quase que impossível, porque a ONG, ela é baseada no esforço, na capacidade pessoal, voluntariado, sem salários, a maioria das pessoas que estão envolvidas na ONG, haja visto [sic] que ninguém da diretoria pode receber um centavo do dinheiro” (ONG 22).

 

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normalmente visto como uma antítese ao lucro – que é alcançado individualmente ou por grupo específico. O bem comum é percebido como resultado da ação da ONG, que independentemente de ser voltada para determinado grupo beneficiário, auxilia no desenvolvimento da sociedade. Os entrevistados ressaltam que, ao contrário das empresas, as ONGs podem se permitir realizar atividades sabidamente deficitárias, centrar ações em públicos mais pobres e não levar em conta o retorno financeiro no planejamento de ações e projetos, o que certamente seria um “limitador” para as empresas: Pra início de conversa, como o objeto dele é o lucro, ele vai se colocar... ele vai fazer opções em função de onde esse lucro é possível ser conseguido. Nós não temos absolutamente nada a ver com isso. Se tivesse [sic], nós não estaríamos trabalhando com o público que a gente trabalha. Esse público não é capaz de nos pagar, por exemplo (ONG 8). A empresa, por mais que se fale em responsabilidade social agora, não é o objetivo central dela. O objetivo central dela é dar dinheiro para quem fundou a empresa. E é um objetivo legítimo, de empresa. Se ela é uma empresa, então o negócio dela é ganhar dinheiro e fazer lucro. É claro, é um objetivo claro, ela só vai investir em coisas que dão lucro (ONG 10).

Essa última frase reflete o pensamento de alguns entrevistados, que sugerem que ONGs e empresas têm objetivos diferentes, hierarquizando esses objetivos de acordo com critérios morais. Secundariamente ao debate sobre o lucro aparece a falta de “capital de giro”. Tal questão se relaciona com o principal modelo de atividade das ONGs: os projetos46. O “projeto” trata de um problema ou tema específico que mereça atenção, e comumente é um documento no qual a ONG apresenta os motivos, objetivos, ações e resultados esperados da proposta. O projeto pode ter dois caminhos: ser dirigido a organizações estatais e privadas para captação de recursos ou se adequar aos editais de empresas e governos que oferecem recursos para promoção de parcerias ou consecução de atividades ligadas ao tema do edital. Como as ações das ONGs não dão lucro, não há retorno financeiro que possa ser aplicado em novas ações. Dessa maneira, o fim de um projeto significa a necessidade de buscar novos financiamentos para o próximo. A construção de novos projetos seria a “outra face da moeda” da não orientação para lucros das ONGs, como aponta um entrevistado:                                                              46

A utilização do modelo projetos pelas ONGs foi um dos critérios de elegibilidade para a amostra do survey de 2004.

 

62    O trabalho de uma ONG é pautado pela capacidade que ela tem de elaborar novos projetos e sustentar as suas ações. A continuidade das ações que uma empresa pode promover, ela é infinitamente maior se comparada a uma ONG, porque ela tem um produto, enfim. Ela pode gerar recursos próprios para a ação que ela desenvolve, ao passo que a ONG não. Ela tá sempre precisando estabelecer uma relação (ONG 13).

3.4.4 – O cruzamento das fronteiras – gestão empresarial das ONGs Por fim, um quarto argumento utilizado por alguns entrevistados é que não há grandes diferenças entre ONGs e empresas. Aponta-se que a forma de organização das empresas começa a ser reproduzida pelas ONGs. Em um processo de mão dupla, as empresas também imitam as ONGs, ao começar a tratar de questões de responsabilidade social47. Contudo, o melhor gerenciamento das ONGs – característico das empresas – é visto com cuidado, pois é necessário manter o “espírito de voluntariado”, tão importante para superação das dificuldades e, em termos de fronteiras simbólicas, para marcação do status diferenciado dessas organizações. O cruzamento da fronteiras é realizado, assim, com cuidado para que a gestão empresarial não as transforme em ONGs empresariais, ou seja, em organizações que teriam perdido o idealismo das suas ações. A gestão empresarial é vista com bons olhos pela maioria dos entrevistados, como ressalta um diretor de ONG de defesa da cidadania: “O modelo de empresa multinacional é o modelo ideal de organização” (ONG 5), especialmente no que tange ao planejamento de ações. Outro diretor afirma que a parceria com empresas foi benéfica, pois “através delas a gente começou a se estruturar muito melhor nessa questão de gestão, gestão de recursos financeiros, administrativos, inclusive de projetos, que é do que a gente vive” (ONG 40). Porém, o cuidado para não se tornar uma ONG empresarial é ressaltado: “Não pode pegar o bruto do segundo setor e adaptar no terceiro setor” (ONG 3). Esse é o ponto em que a porosidade das fronteiras entre mercado e ONGs é disputada. Há atualmente uma aproximação entre empresas, especialmente as fundações ligadas a elas, e ONGs. O ponto de diferenciação e distinção necessário para identificar os perigos e benesses desse momento, no qual “a empresa privada vem tentando ter uma visão de terceiro setor, o                                                              47

O tema da responsabilidade social nas empresas é alvo de diversos trabalhos específicos (Kirschner, 2002). Ressalte-se que normalmente não são diferenciadas, entre os entrevistados, ações sustentáveis ou sociais das empresas e fundações vinculadas às empresas que fariam trabalhos análogos aos das ONGs. A vinculação dessas atividades com o propósito de lucro empresarial (mesmo que indiretamente, através da melhoria da imagem das corporações) acaba por ressignificar as ações.

 

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terceiro setor vem tentando ter uma gestão de segundo setor” (ONG 42), parece ainda em aberto para muitos entrevistados. As respostas atuais aparentam se situar em termos não formais, como apresenta um dirigente de uma ONG ligada ao meio ambiente: Eu acho que as ONGs, as que estão bem estruturadas, elas já estão muito parecidas com empresas privadas, no sentido assim, como eu diria para você, de organização, documentação, de contabilidade. Estão bem parecidas. Volto a repetir, a diferença é a questão da leveza (ONG 26).

Entretanto, as características “empresariais”, que podem levar à perda da “leveza” das ONGs, são utilizadas para diferenciá-las do Estado, indicando como a proximidade com certo setor pode ser ressignificada quando o objeto de comparação é outro. Em relação às empresas, as ONGs não se diferenciam por certas características, mas pelos significados que essas características ganham dentro de uma organização de interesse público. Assim, na visão dos dirigentes, tanto ONGs quanto empresas são ágeis, criativas e flexíveis. Contudo, essas qualidades são potencializadas pelo argumento do "espírito do voluntariado" que há nos profissionais. Não obstante as qualidades similares pertencentes às empresas, as ONGs têm maiores dificuldades de gestão, advindas da falta de lucro nas suas atividades. O “espírito do voluntariado" ou idealismo dos funcionários serve, dessa forma, como contrapeso aos problemas comuns às ONGs. Na próxima seção, analiso como os entrevistados demarcam as fronteiras das ONGs ante o ator com o qual mais se relacionam, o Estado.

3.5 – Fronteiras ante o Estado Como já apresentado, a diferença entre a fronteira simbólica construída pelos dirigentes de ONGs ante Estado e mercado está no modo de apreensão das características e funções principais das ONGs. Em relação ao Estado, a operacionalização da construção das fronteiras se concentra no contraste entre as características principais de gestão e organização do trabalho das ONGs. Por outro lado, os objetivos e funções desempenhados são considerados semelhantes pelos entrevistados. Tendo em vista a compreensão dos dirigentes das ONGs sobre a proximidade de funções entre suas organizações e o Estado, é preciso compreender o que isso significa. Trata-se do velho tema da substituição? Ou, pelo contrário, essa proximidade demonstra um novo tipo de relação entre esses atores, marcada pela complementaridade?

 

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Nesta seção trato da comparação realizada pelos entrevistados entre as características do Estado e das ONGs. Abordo também o questionamento sobre as possíveis semelhanças de objetivos e funções.

3.5.1 – Mais ágeis, criativas e flexíveis Segundo os entrevistados, ONGs e Estado têm funções públicas parecidas. Eles atuam no aliviamento da pobreza, diminuição das desigualdades e no combate à discriminação por fatores identitários ou outros. Os objetivos, nessa visão, são congruentes em muitos casos, assim como as atividades realizadas. O que diferenciaria ONGs e Estado, assim, não seriam as funções, atividades ou objetivos, mas as formas de execução dessas atividades e funções. Um entrevistado resume: “A grosso modo [sic], acho que elas [ONGs] se diferenciam [do Estado] pela natureza jurídica, vamos colocar assim. É muito mais do que pela natureza política” (ONG 11). De modo geral, os entrevistados veem as ONGs como mais ágeis, criativas e inovadoras do que o Estado. O suporte para essa afirmação é a crítica consensual da burocracia estatal, vista como pesada e, por conseguinte, ineficiente. Abaixo, um entrevistado resume o argumento sobre a vantagem das ONGs em comparação com o Estado. O trabalho num órgão governamental, ele é revestido de tamanha burocracia que numa ONG eu chego muito mais rápido, com menos pessoas, menos estrutura, menos recursos, e eu posso atingir um objetivo muito mais rápido do que o próprio governo (ONG 39).

A característica central mencionada pelos entrevistados, em contraposição ao Estado, é a flexibilidade das ONGs. A capacidade de alterar planos, rever metas, modificar objetivos seria sinal de agilidade, que não é identificada na imagem criada pelos entrevistados sobre o Estado. Tal flexibilidade decorreria, segundo eles, do fato de as ONGs não serem obrigadas a seguir modelos de políticas tradicionais, como aquelas adotadas pelo Estado. Dessa forma, as ONGs poderiam buscar formas mais criativas ou inovadoras que as do Estado para realizar certas atividades e políticas sociais. Os limites do Estado quanto à inovação das políticas públicas, diferentemente do que ocorre com as ONGs, pode ser notado na fala de um dos dirigentes entrevistados: Quando você atua com público determinado, você pode estar descobrindo soluções que servem só para aquele público, mas quem trabalha com uma perspectiva de influenciar soluções mais macro... você está apontando, você está praticamente trabalhando com experiências piloto que apontam caminhos que podem ser generalizáveis (ONG 8).

 

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A citação acima aponta ainda para outra característica comum às ONGs, na opinião dos entrevistados: o trabalho com um público delimitado. Diferentemente do Estado, que busca universalizar suas atividades, as ONGs atuam em nível micro. Não obstante, muitas organizações procuram transformar essas atividades em políticas públicas universalizadas. Diz-se que o sucesso de uma determinada atividade pode transformá-la em uma política pública executada pelo Estado48. Haveria, portanto, uma diferença de escala entre as atividades do Estado e das ONGs. A atuação local das ONGs também é responsável por outras duas características que as distinguiriam do Estado: a proximidade com as bases e a agilidade. A atividade localizada, próxima dos beneficiários e ágil (pois capaz de se adaptar rapidamente às demandas) faria com que os serviços prestados pelas ONGs fossem melhores do que aqueles do Estado.

3.5.2 – Complementar ou substituir o Estado?  

A identificação de um conjunto de atividades semelhantes entre ONGs e Estado e a percepção de que aquelas são mais eficazes do que este na realização dessas atividades leva os entrevistados a questionarem o papel das ONGs na execução de políticas públicas. O que se questiona aqui é: as ONGs estariam substituindo o Estado na execução de certas tarefas ou, por outro lado, elas estariam somente auxiliando-o na provisão desses serviços? Pode-se resumir as posições quanto às questões sobre os papéis das ONGs diante da execução de políticas públicas em dois grandes tipos: i)

aqueles que apontam as ONGs como complementares ao Estado e

ii)

aqueles que as colocam como substitutas.

Entretanto, essas posições não devem ser compreendidas como dicotômicas. A questão de fundo parece ser se a atuação das ONGs em áreas antes monopolizadas pelo Estado é ou não compreendida por meio de chave clássica negativa – da substituição do Estado. Por outro                                                              48

No discurso dos entrevistados, a comparação entre características das ONGs e do Estado se baseia principalmente na avaliação da prestação de serviços realizada por estes dois atores. A prestação de serviços se dá de forma mais frequente num tipo específico de ONGs, que nomeio de ONGs de prestação de serviços. Entretanto, mesmo as ONGs que atuam prioritariamente na assessoria aos movimentos populares e que encampariam um segundo tipo geral fazem prestação de serviços.

 

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lado, questiona-se se há indícios de que, na percepção dos entrevistados, essa atuação seja compreendida por uma nova chave positiva – de complementação. Os que argumentam que há, de fato, substituição do Estado se apoiam i) na crítica ao fracasso do Estado com as suas obrigações constitucionais ou ii) numa interpretação de organização societária segundo a qual o Estado não deveria atuar em áreas nas quais não é detentor de conhecimento especializado. As percepções dos dirigentes entrevistados sobre a relação de complementaridade/substituição em relação ao Estado serão analisadas nas subseções seguintes.

3.5.3 – Complementação do Estado

Quando a resposta é pela complementação, os entrevistados afirmam que as ONGs experimentariam políticas públicas em nível micro, para que após comprovação da sua eficácia elas possam ser universalizadas pelo Estado. Nesse sentido, as ONGs serviriam, quando atuam na prestação de serviços diretos à população, como um laboratório de políticas públicas. A complementaridade ao Estado também é considerada como uma característica típica das ONGs, dada sua expertise em determinados temas. Os que entendem que as ONGs apenas complementam o trabalho do Estado assumem os argumentos de que o fracasso relativo deste na atuação em determinadas áreas e uma maior expertise daquelas em certas temáticas justificam a atuação das organizações não governamentais. Entretanto, afirmam que: i) o Estado continua a ter obrigação constitucional em prover esses serviços; ii) somente o Estado tem capacidade de garantir direitos, objetivo principal da atuação de muitas ONGs; iii) o objetivo maior da ONG é influenciar políticas públicas estatais – a execução de serviços seria apenas um meio para que a atividade se torne política pública. Esses elementos são evidenciados no discurso dos dirigentes entrevistados: Então são atribuições completamente diferentes [das ONGs e do Estado], o que acontece que dentro dessas obrigações constitucionais do poder público constituído, ele tem determinadas deficiências, às vezes pontuais, que podem ser complementadas pelas ONGs (ONG 7). [Atuando:] um, no controle social de políticas públicas, dois, contribuindo na formulação de políticas públicas, contribuindo numa coisa que a gente chama de gestão participativa de políticas públicas (ONG 13). Isso [parcerias entre ONGs e governos] necessariamente não é ruim, o ruim é a confusão de papéis, entendo que o governo tem por dever fazer políticas públicas universais e às vezes têm que ser focalizadas, e as ONGs deveriam propor alternativa das políticas ineficientes, cobrar que essas políticas sejam eficientes pra

 

67    quem delas precisa, pra garantir os direitos básicos de cidadania, e eventualmente executar ações que mostrem alternativas práticas, não só ficar no discurso (ONG 5).

Os benefícios mais citados para a complementação da atuação são a pluralização da oferta de serviços públicos, a flexibilização e desburocratização da gestão de políticas sociais, a experiência especializada e a capacidade de chegar a cidadãos difíceis de serem alcançados. Esse último ponto está ligado à ideia de políticas públicas em escala reduzida e localizada, o que permitiria ainda uma compreensão mais refinada das demandas dos beneficiários. Veja-se a fala abaixo, por exemplo: A ONG, ela tem uma proximidade com o público que o governo não tem. Como a ONG normalmente é formada por pessoas que estão vivendo aquela situação, elas têm uma visão mais próxima da realidade, e por ser desburocratizada, e as pessoas se conhecerem, ela tem mais penetração dentro das comunidades, dentro dos grupos sociais. Coisa que o governo também não consegue ter. Chamo de capilaridade (ONG 10).

A capilaridade, no sentido de alcançar os mais pobres ou aqueles que não são contemplados por políticas sociais, acontece, na percepção dos entrevistados, porque as ONGs

não possuem a obrigação de universalizar suas ações. Enquanto o Estado tem

responsabilidade com a prestação de serviços e execução de políticas públicas em geral, as ONGs trabalhariam somente em locais e com temas predefinidos.

3.5.4 – Substituição do Estado

Há dois principais argumentos para os que dizem que as ONGs estão substituindo o Estado. O primeiro é da crítica à ineficiência deste, ao seu fracasso em cumprir suas obrigações, o que leva as ONGs a atuarem. O segundo é de que o conhecimento especializado em certos temas faz com que a ONG seja o ator privilegiado para executar determinadas tarefas. Esse ponto se coaduna com os argumentos normativos que expressam a legitimidade da incorporação da sociedade civil na execução de políticas sociais, as quais não deveriam ser monopolizadas pelo Estado. O primeiro argumento utilizado pelos entrevistados é que o Estado fracassa no seu objetivo de proteger e dar suporte a determinados grupos e, portanto, as ONGs se veem obrigadas a atuar. Dessa forma, o que ocorre é uma “reação” das ONGs para suprir as deficiências do Estado, o qual, pela visão dos entrevistados, deveria assistir aos grupos necessitados. Veja-se, por exemplo, esta fala:  

68    Primeiro que eu acho que os órgãos governamentais são responsáveis pelas execuções das políticas públicas da população como um todo. [...] O Estado cada vez se retira muito mais da sua responsabilidade de Estado, acaba que muitas vezes as ONGs hoje estão fazendo papel de Estado. Em alguns momentos, ela tem uma diferença muito pequena entre uma entidade da sociedade civil de uma estrutura estatal (ONG 39).

Quanto ao segundo argumento, observa-se proposição por parte dos entrevistados próxima daquela sugerida por Bresser-Pereira (1998), na qual as organizações com perfil público não estatal (Fernandes, 1994) deveriam assumir serviços sociais antes prestados obrigatoriamente pelo Estado. Essa formulação, para Bresser-Pereira, está baseada na ideia de um Estado social liberal, no qual o financiamento das organizações públicas não estatais geraria maior competição entre elas e, consequentemente, maior eficiência no serviço. Por conseguinte, o Estado não deveria monopolizar atividades de provisão de serviços sociais nos quais não é o ator mais capacitado. Isso se liga ao argumento utilizado pelos diretores de ONGs que afirmam que realizam as atividades antes exclusivas do Estado devido à sua melhor capacidade técnica e conhecimento da área. Alguns dirigentes informam, inclusive, que governos buscam as ONGs para realizar atividades nas quais não têm grande conhecimento, especialmente nas áreas de meio ambiente e direitos humanos49. Nota-se, assim, que há certa convergência entre os argumentos dos entrevistados e de Bresser-Pereira. Veja-se, por exemplo, o que falam dois entrevistados: Eu defendo uma posição de que, na verdade, o estado tem responsabilidades com a normatização dos serviços que são dirigidos a população mas ele não é obrigado a ser executor de nada. Pode ser um agente orientador de serviços que são prestados por terceiros, prestados por ONGs ou por empresas, ou por quem quer que seja. Na verdade, em partes já é assim, tem uma série de serviços que são assumidos por empresas. Os serviços assumidos pelas ONGs, eles têm um campo menos definido, menos claro. Na própria legislação, o que é responsabilidade, o que é que poderia ser repassado para as ONGs e o que não é. [...] Eu diria que, numa situação ideal, você deveria poder colocar mais diferentes tipos de organizações não governamentais prestando um conjunto dos serviços, sobretudo os serviços sociais, que são de atribuição do governo. Sob, evidentemente, orientação, normatização do próprio governo, que define os interesses maiores da sociedade a partir das opções eleitorais que foram feitas pelo povo. Não vejo nenhuma necessidade, por exemplo, que a extensão e assistência técnica à agricultura sejam feitas só por entidades estatais. Nós fazemos isso, defendemos há muito tempo que nós não só fazemos isso como fazemos melhor do que as organizações estatais. No entanto, não faço questão que sejamos só nós. Que se abra espaço pra que o Estado faça seu trabalho e a gente faça o nosso e vamos ver quem é capaz de ter mais eficiência (ONG 9). Porque o governo sozinho não dá conta. Não que seja engessado ou burocrático a esse ponto, mas, por exemplo, o gerenciamento costeiro do estado do Ceará, existem

                                                             49

Para uma análise mais pormenorizada sobre os aspectos que influenciam o estabelecimento e desenvolvimento de projetos em parceria entre ONGs e Estado a partir da visão dos diretores de ONGs, ver o trabalho de Rafael Abreu (2011), pesquisador do NIED.

 

69    ONGs trabalhando nisso. Então, deixa o governo mais leve. Porque passam a assumir que é quem realmente está lá na ponta em contato com a comunidade. É quem sabe o que está acontecendo mesmo com relação ao meio ambiente. Isso eu acho bacana, até. É você deixar pra quem tem a expertise, e o governo está distante da população, sim. Está distante do que está rolando dentro das comunidades. E as ONGs não, elas estão bem mais próximas dessa realidade do dia a dia (ONG 40).

É comum, entretanto, considerar a convergência dos interesses das ONGs e do Estado na provisão de bens de cidadania por ONGs como uma “confluência perversa” (Dagnino, 2002). Ou seja, a política de redução das atividades controladas e exercidas pelo Estado seria convergente com a intenção que têm as ONGs de participar na provisão dos serviços, além de estas possuírem melhor capacidade técnica em comparação com o Estado. Esse tipo de crítica aparece na fala de alguns entrevistados que condenam as ONGs que atuam unicamente na provisão de serviços de responsabilidade do Estado.

3.5.5 – Autonomia perante o Estado

As polêmicas em torno da complementação ou substituição do Estado estão no cerne do debate sobre autonomia das ONGs brasileiras descrito por Medeiros (2008). O medo da perda de autonomia das ONGs ao se relacionarem com Estado e mercado é compreendido por Bishwapriya Sanyal (1997) como um fetiche da autonomia. Esse fetiche realça o medo de que: If NGOs were dependent on the state, they would be controlled or co-opted, thereby losing their legitimacy. Likewise, if NGOs were to be directed by market institutions, they would be influenced by profit-seeking motives, which would cause community solidarity bonding to degenerate into market-based exchange relationships (Sanyal, 1997: 28).

Contudo, o autor aponta que, antes de ocorrer a perda de autonomia pela proximidade perigosa com o Estado (como no too close for confort, de Hulme & Edwards, 1996), é o fetiche da autonomia que atrapalha a efetividade das ações das ONGs, ao impedir que se amplie o leque de parceiros. Dessa forma, o medo generalizado de perda de autonomia que levaria ao fetiche não encontra sustenção empírica. Sanyal (idem: 31-32), por exemplo, conclui que somente as maiores ONGs, sem muitos vínculos com outras instituições e com problemas internos têm sua autonomia comprometida com a realização de parcerias com o Estado ou empresas. A importância dos aspectos materiais, tais como nível de dependência financeira e tipo de relação com outras instituições, para a análise da autonomia e relação com beneficiários também foi estudada para o caso brasileiro (Koslinski, 2005, 2006; Reis e Koslinski, 2009; Reis, 2009).  

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Quantos aos aspectos simbólicos da defesa da autonomia, o trabalho de Medeiros traz importantes considerações. Em relação às ONGs, Medeiros afirma que: Since the creation of these organizations in Brazil, the notion of autonomy has been the most persistent symbolic element in their discourse and their practice. Given the emphasis that they have constantly put on this concept, keeping their autonomy in many different ways means keeping their very reason to exist (Medeiros, 2008: 123).

Na análise desse autor, durante o regime militar, essa noção de autonomia das ONGs é fortalecida pelo contexto de efetiva ausência de relações com o Estado. Nesse cenário, a sustentabilidade financeira era garantida por organizações estrangeiras. Na década de 1990, a diminuição dos financiamentos estrangeiros e a aproximação com o Estado e com empresas inserem o debate sobre a autonomia em novos parâmetros: a manutenção da autonomia num contexto de dependência financeira do Estado e empresas. Um exemplo claro dessa defesa da autonomia quanto ao Estado é dado pela rejeição à aproximação com o governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) quando da criação do programa Comunidade Solidária e da Lei das OSCIPS. A rejeição à participação pelos membros da ABONG (grupo específico com o qual trabalha Medeiros) ocorre por críticas ao modelo de participação que, supostamente, restringiria as ONGs à prestação de serviços. Essa ênfase na distância ou autonomia frente a outras esferas, porém, não encontra correlato numa avaliação exclusivamente negativa por parte dos entrevistados quanto às características e valores e modos de agir das empresas e ONGs: Um [setor] tenta pegar a coisa do outro. Quando se junta os três, o primeiro, segundo e terceiro setor, aí que é tudo de bom. Você vem com a empresa privada com todos os seus métodos e processos, as ONGs com toda a sua agilidade, mobilização e penetração, e o governo federal com a estrutura. É tudo o que você precisa. A melhor parceria é dos três setores juntos. É o ideal (ONG 42).

As características de mobilização e penetração social são indicativos daquela que parece ser uma das marcas distintivas das ONGs, de acordo com os entrevistados: a proximidade com a base. Para eles, essa proximidade diferencia as ONGs tanto do Estado quanto do mercado. Além disso, há uma percepção implícita de que a aproximação serviria como confirmação da boa avaliação das ações pelos beneficiários. Ambos os fatores sugerem que essa característica marca a identidade das ONGs no sentido de permitir que elas se assumam não apenas como “não governamentais” ou “não mercadológicas”, mas como organizações próximas dos mais pobres ou dos temas mais candentes. Parece, portanto, que a proximidade é percebida como necessária no discurso de legitimação das ONGs.  

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Ao longo deste capítulo indiquei as características mais comumente relacionadas às ONGs pelos seus dirigentes para diferenciá-las e marcar sua distância frente ao Estado e ao mercado. A autonomia, o idealismo e a proximidade com as bases são as principais características das ONGs, na visão dos entrevistados. Para se distanciar, os entrevistados buscam afirmar sua autonomia e independência política e de ação. Assim, as ONGs não seriam meros “braços do governo” ou “ONGs mercadológicas” (no sentido de possuírem os mesmos valores das empresas). Entretanto, se distanciar simbolicamente do Estado e mercado não significa desconsiderar suas características comuns. As ONGs são percebidas pelos entrevistados como uma dimensão peculiar, a meio-termo entre os dois extremos, ao deter o sentido público do Estado e ter o modelo organizacional das empresas. Os diretores de ONGs afirmam também que o idealismo dos funcionários e a proximidade com grupos de difícil acesso para Estado e mercado são marcas que as distinguem do mercado e do Estado. Entretanto, como vimos ao longo do capítulo, autonomia e proximidade com as bases não são características essencializadas, ou seja, não são utilizadas discursivamente da mesma forma, tanto em termos temporais quanto nas comparações específicas com mercado e Estado. Tratei neste capítulo mais da relação entre as esferas do que da relação entre as organizações e seus beneficiários. No próximo capítulo indico como a proximidade com as bases é definida como fator de legitimação política, comparando essa proposta com as apresentadas por outros autores.

 

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Capítulo 4 – Narrativas públicas de legitimação 4.1 – Introdução  

No capítulo anterior, analisei como, na visão dos dirigentes, as funções das ONGs, mesmo quando percebidas como análogas às de empresas ou do Estado, guardam características distintivas. Assim, os entrevistados ressaltam que as funções exercidas pelas ONGs: i) são ligadas a características morais, tais como idealismo e independência política; ii) mais bem desempenhadas porque dotadas de mais agilidade; iii) são mais inovadoras, tornando possível, por exemplo, a adoção de políticas públicas que não fazem parte do repertório de políticas tradicionalmente assumidas pelo Estado; e iv) permitem maior proximidade com as bases, aspecto esse que é invocado tanto como moral quanto operacional. Neste capítulo detenho-me precisamente na análise da última das características acima mencionadas. Ao traçar as fronteiras simbólicas entre as ONGs, o Estado e o mercado, o discurso dos diretores de ONGs parece fazer da proximidade com as bases o elemento fundamental para legitimar a atuação dessas organizações. Nas páginas que se seguem, discuto as percepções mais gerais dos entrevistados sobre a representação política, para salientar que os diretores de ONGs reivindicam representar seus beneficiários especialmente através da noção de proximidade com as bases. Conforme já antecipado utilizo aqui a noção de reivindicação de representatividade desenvolvida por Michael Saward (2009), segundo o qual os representantes também conformam, em certa medida, o representado e a relação entre eles. Como também já mencionado, aproximo essa noção a um dos elementos da tipologia que Gurza Lavalle, Houtzager e Castello (2005b) constroem para classificar os critérios de justificação de representatividade elaborados por organizações civis, no estudo que fazem sobre entidades da sociedade civil em São Paulo. Em seguida, analiso os discursos dos entrevistados sobre representação política e a partir dela classifico três tipos básicos utilizados por estes em sua defesa do argumento da maior proximidade com as bases. Os tipos são: i) proximidade temática, subdividida em a) temática por conhecimento especializado adquirido e b) temática por interesse das ONGs; ii) proximidade identitária; e iii) proximidade física.

 

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O passo seguinte distingue dois tipos de ONGs que se apropriam de modo diverso do argumento de proximidade: i) aquela que reivindica a assessoria de movimentos populares, ou o discurso sobre as ONGs que estão “a serviço”; e ii) o discurso que argumenta prestar serviços a grupos ou indivíduos – em outras palavras, o discurso sobre as ONGs que se colocam como “de serviço”. Ao distinguir esses dois tipos, mostro as variações do argumento de proximidade de acordo com tipos de ONGs diferentes.

4.2 – O que dizem os diretores de ONGs sobre a representação política? Nas entrevistas perguntava-se aos diretores se acreditavam que suas organizações representavam algum grupo específico. Caso a resposta fosse positiva, era indagado se o papel de representante poderia ser indicativo de um processo de substituição dos sindicatos e partidos políticos. Primeiramente, os entrevistados, em sua maioria, afirmaram não existir um processo de substituição dos partidos. O que estaria em curso seria a entrada de novos atores no cenário político que, em certos momentos, atuariam como representantes de grupos minoritários, identitários ou mesmo beneficiários. Essa possível atividade de representação é diferente daquela realizada por partidos políticos, os quais, na visão dos entrevistados, tendem a representar interesses mais gerais. Além disso, é possível observar uma rejeição quase consensual entre os entrevistados de possíveis relacionamentos com partidos políticos, vistos como parceiros menos legítimos50. Ressalta-se nas entrevistas a preocupação dos entrevistados em evitar um “contágio moral”, entendido como uma aproximação com políticos tradicionais que poderia denegrir a imagem da organização. Assim, por exemplo, eram citados casos de organizações ligadas a políticos, que as utilizavam para se promover de modo populista51. Pode-se dizer que há, portanto, por                                                              50

Em pesquisa a respeito da percepção de diretores de ONGs sobre parcerias com partidos e políticos, Lopez, Grangeia e Leão (2010) lembram que se a aproximação com o Estado é considerada legítima por muitos diretores de ONGs: a “interação com a esfera política encontra menor legitimidade. As ONGs se opõem à manutenção de relações duradouras com políticos e partidos, a não ser quando elas se orientam para ações conjuntas em lobbies ou para definição de leis que atendam issues que lhes digam respeito. As principais razões para essa rejeição são o risco percebido de contaminação negativa de sua imagem, a proximidade de práticas corruptas e a redução do seu grau de autonomia” (Lopez et al, 2010: 21).

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Muitas dessas organizações foram enquadradas pelos entrevistados como Centros sociais dos políticos, que seriam uma forma degenerada de organização civil, visto que seu objetivo principal é o ganho político do “dono” do centro social. Estudos mais aprofundados sobre os centros sociais podem ser encontrados na pesquisa desenvolvida pela professora Karina Kuschnir. 

 

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parte dos diretores de ONGs, um trabalho de “limpeza” ao distinguirem suas organizações daquelas ligadas a grupos políticos ou mesmo denunciadas em esquemas de corrupção no repasse de verbas públicas52, tal como ilustrado na fala abaixo: A questão é que a relação entre partido político e ONG também é uma relação tensa. Porque muitas vezes passa pela questão da manipulação e do uso. Então eu vejo cada vez mais ONGs com pudores de aproximação com qualquer partido político, porque não quer ser usada como joguete. Não quer ser usado enquanto na sua expertise [sic], quanto à sua missão, quanto à sua visão, quanto à sua formulação de agenda política no sentido mais amplo, não política partidária, mas na criação da sua agenda política (ONG 28).

O argumento acima ilustrado pode ser compreendido a partir do critério de legitimação de representatividade sugerido por Michael Saward como untaintedness. O termo poderia ser traduzido como uma independência política e moral ou, de modo mais geral, falta de contato com o governo ou instituições estatais. O argumento de independência ou não relacionamento com o sistema representativo eleitoral não se finca apenas na crítica aos possíveis efeitos deletérios da aproximação com atores corruptos. Apontam-se também os próprios limites desse sistema, indicando como os partidos não conseguem “alcançar” certas demandas e interesses, que por serem muito particulares não se coadunam com o possível propósito dos partidos em “representar interesses gerais”. Ambos os pontos identificados nos argumentos dos entrevistados (corrupção e limites de alcance dos partidos) convergem para a crítica aos limites estruturais da representação político-partidária, como caracterizada por Saward: Untaintedness is a serious criterion which taps into the very real constraints that party-based and territory-based state structures of representation operate within. Dissenting activism can be conceived in terms of major social movements that seek to force a system to live up to its own ideals. A key argument here is that democracy is not just about deliberation within established forums. Those forums can become sclerotic if they are not subject to pressure and renewal through outsider activism and dissent (Saward, 2009: 20).

Pode-se compreender que, entre os entrevistados, havia uma distinção entre o trabalho de representação realizado por partidos e por ONGs. Essa diferença é ressaltada pelos entrevistados quando estes se referem ao tipo de atuação específica de cada organização, e ao                                                              52

Vale lembrar que na época das entrevistas com os diretores haviam sido denunciados recentemente desvios de recursos federais destinados a ONGs. Após discussão na Câmara durante todo o ano de 2006, em outubro de 2007 uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é finalmente instalada. Sua influência na preocupação dos entrevistados em se desassociar das organizações corruptas é clara. A CPI foi encerrada em 1o de novembro de 2010 por falta de pedidos para prorrogação. O relatório, elaborado pelo Senador Inácio Arruda (PCdoB), não foi apreciado e votado, sendo arquivado junto com o restante da documentação. 

 

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dizerem que a ampliação da voz dos beneficiários não pode ser entendida como política no sentido partidário. Nas palavras de um dos entrevistados: Não, é outra coisa completamente diferente. Os partidos têm a questão da política partidária. As ONGs tratam de política? Tratam o tempo inteiro. O tempo inteiro eu estou envolvida com política sim, só que a política social. As pessoas têm dificuldade de separar o que é política social do que é política partidária. Muitas vezes as ONGs dão voz para as pessoas da comunidade junto ao poder público, mas isso não tem nada a ver com a política partidária. Não é porque um grupo tá numa ONG que vai fundar um partido. Uma coisa não substitui a outra (ONG 9).

Desse primeiro aspecto analisado vê-se que, antes de uma comparação entre a representação exercida pelos partidos e a reivindicação de representatividade das ONGs, os entrevistados apontam para a impossibilidade da comparação. Essa impossibilidade ocorre, pois as atividades representativas de “agir no lugar de” ou “falar por” são baseadas em objetivos e justificativas diferentes. Dessa forma, os entrevistados reforçam a ideia já apontada em trabalhos como os de Avritzer (2007), Lavalle, Houtzager e Castello (2005; 2006a; 2006b) e Saward (2006a; 2006b) de que a representação exercida ou reivindicada por organizações civis deve ser estudada por caminhos diferentes daqueles clássicos. No caso das ONGs, reitero que o ponto principal é a análise dos discursos de reivindicação de representatividade e não um estudo sobre a efetividade dessa representação, que poderia cair numa seara normativa. Entretanto, é importante notar que essa reivindicação não se dá num vazio de ações. Os entrevistados apontavam atividades que aproximavam as ONGs das funções de representação, tais como participação em conselhos, mobilização e pressão sobre organizações governamentais para suprir demandas dos beneficiários e participação na redação de determinados projetos de lei53. A participação das ONGs em conselhos é uma das atividades mais citadas pelos entrevistados. Ela é entendida, na maioria das vezes, como canal formal ideal de participação capaz de influenciar políticas públicas, exemplificado na fala abaixo.

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Essas atividades são coincidentes com as utilizadas como parâmetro de avaliação de representatividade por Lavalle et al (2006b) em estudo sobre organizações civis paulistanas. Eles consideram como atividades possivelmente representativas de organizações civis: a participação em conselhos gestores; exercício de intermediação em agências específicas; apoio a candidatos políticos e ação política por meio do uso do legislativo.

 

76    Os canais formais são as nossas representações em fóruns, porque eles têm essa representatividade junto ao estado, em conselhos de saúde, em conselhos de educação e adolescente, e em comitês de mortalidade materna (ONG 10).

Esse tipo de participação no Estado é visto como consequência da força política que possuem e da demanda dos beneficiários por intermediação junto ao Estado. Outro exemplo dessa força política, de acordo com entrevistados, é o uso do Legislativo, como no caso da criação da Lei Maria da Penha. Um dos entrevistados resume o caso: A 1ª reunião pra essa lei foi feita aqui nessa mesa, na [ONG 15]. Houve a criação de um consórcio de cinco ou seis ONGs que trabalham com a temática da mulher. Chegamos a um acordo de que da maneira como estava sendo tratada a questão da violência contra a mulher não poderia seguir porque era necessário uma nova legislação. E a partir daí começamos a fazer todo um trabalho e que finalmente resultou na lei Maria da Penha (ONG 15).

Portanto, a reivindicação representativa não se origina num vácuo de relações com os supostos representados. Entretanto, quais são os argumentos utilizados pelos diretores de ONGs para justificar a reivindicação de representatividade? É possível identificar dois argumentos básicos, um minoritário, outro majoritário, apresentados pelos entrevistados. Eles explicitam: (a) que a situação crítica de legitimidade dos partidos leva as ONGs a serem invocadas como representantes complementares e (b) que os próprios beneficiários “exigem” das ONGs a intermediação de demandas. O primeiro argumento, o do fracasso dos partidos, é menos frequente entre os entrevistados. Credita-se às ONGs funções representativas como decorrência da baixa credibilidade dos partidos e políticos. Ou seja, as ONGs ocupariam de forma espontânea o espaço deixado pelos partidos. Observa-se que a ideia de função não prevista ou não prioritária ocorre em ambos os argumentos. Seja o argumento invocado a pressão dos beneficiários, seja o fracasso dos partidos (os argumentos naturalmente não são excludentes), evita-se admitir que a representação seja um objetivo estratégico para o fortalecimento das organizações. Não tá representando, mas a fala dela [da ONG] é tão forte que você acaba de algum modo representando (ONG 11). Eu acho que essa é mais uma consequência do que uma intenção propriamente dita. Se você for avaliar o índice do nível de credibilidade dos partidos políticos atualmente, de quem faz a política, e pela nossa legislação você só pode ser candidato a alguma coisa com cargo eletivo através de uma representação partidária, então a nossa representação partidária está muito mal avaliada pela sociedade, tanto que há algumas ONGs que, ao contrário, têm dado respostas mais satisfatórias à sociedade (ONG 7 – grifo meu). Quando a gente chega num governo pra fazer algum tipo de intervenção, fazer algum tipo de solicitação, a gente fala muito no nome do hip-hop, em nome da

 

77    cultura hip-hop. A gente fala em nome da cultura negra, da valorização das pessoas de afrodescendência. Então acho que acaba acontecendo sim [a representação], a gente acaba fazendo um papel político. Não digo que esteja errado não, mas... se os partidos políticos não fazem o seu papel adequadamente, alguém tem que fazer, alguém acaba assumindo essa responsabilidade pra si (ONG 16 – grifo meu).

O segundo argumento subjacente à reivindicação de representatividade é o da maior proximidade com as bases. Esse ponto, que distingue as ONGs do Estado e do mercado, é bastante revelador do tipo de relacionamento com os beneficiários que os entrevistados acreditam ter. Na visão desses, essa proximidade tem como consequência – e esse é um dos pontos principais para o argumento de representatividade – a exigência da base para que as ONGs “lutem” por eles. É recorrente nas entrevistas citações das cobranças dos beneficiários para que as ONGs atuem politicamente, resolvam as suas demandas e os auxiliem na reivindicação de direitos nos órgãos governamentais. As “exigências da base” serviriam, na visão dos entrevistados, como prova de uma relação horizontal, franca e direta, diferenciandose da relação vertical, hierárquica e marcada por promessas não cumpridas entre os atores estatais e os cidadãos. Às vezes isso acontece [a representação política], tem organizações que são mais especializadas nisso, são uma ONG de advocacy, de advogar o direito de um grupo, etc. Eu acho que, por um lado, isso é bom, até certo ponto é bom, até quando você entende que você não tem um mandato, mas se você defende uma causa que protege e promove um grupo de pessoas, se você tem força política, você não pode se omitir, acho que é nesse sentido, é uma coisa que a base exige da gente, isso que é louco. Não é só uma questão de a gente querer ou não, porque, toda estratégia da [ONG] veio nesse sentido, as pessoas chegaram na gente... “as famílias não estão sendo cadastradas, não estão aceitando”, aí a gente entrou, com o peso que a gente tem para fortalecer a base, aí o pessoal vem e agradece, claro que não é todo mundo, ainda faltam 60% das famílias, é um processo de luta, nesse sentido eu acho bom (ONG5 – grifo meu).

A obrigação apontada pelos entrevistados indica um tipo de relacionamento fincado no apoio mútuo entre beneficiários e ONGs. Enquanto a base dá legitimidade para a atuação política das ONGs, estas fortalecem politicamente as demandas dos beneficiários ao entrar em contato com mecanismos formais e informais da máquina administrativa governamental. O exemplo abaixo resume a ideia de mútuo fortalecimento entre ONGs e beneficiários. Então, por exemplo, quando o governo Lula entrou em 2003, que a gente participou do processo de reelaboração do programa nacional de agricultura familiar, programa de crédito, o Pronaf, havia os agricultores que estavam vinculados com a gente, estavam participando das negociações, mas eu tinha muito mais experiência do que eles. Então, na verdade, eu dei muito mais palpite na negociação do que outros. Agora, se eu estivesse dando palpite sozinho, provavelmente eu não seria escutado. Eu estava escutado pelo Estado porque aquilo que eu tava falando tinha um respaldo social. Para construir uma expressão, digamos, técnica da proposta, eu tinha um respaldo político muito maior [do que] se eu estivesse simplesmente apitando sozinho (ONG 9).

 

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É interessante notar o modo circular do argumento dos entrevistados. Primeiramente, apontam para a proximidade com as bases e o modo como elas fortalecem politicamente as ONGs. Com essa força política, as ONGs seriam capazes de influenciar o Estado na adoção de certas políticas públicas. Porém, esse contato privilegiado com o Estado é usado para ressaltar a capacidade de intermediação e, por sua vez, é desejado pelos beneficiários, que ao recorrerem às ONGs estariam fortalecendo-as politicamente. Observa-se que o apoio mútuo, consequência da proximidade entre ONGs e beneficiários, é, na visão dos entrevistados, o que permite a intermediação das demandas ante as esferas estatais. Assim, levando em conta a tipologia de Lavalle et al (2006b)54, parece que a proximidade não é somente um argumento de congruência no mesmo nível daquele de intermediação ou de serviços. Para os entrevistados, a proximidade atua antes, pois é a partir desse contato horizontal que os beneficiários sentem confiança para “exigir” que as ONGs os auxiliem a alcançar suas demandas. Mas como os dirigentes retratam a relação com esses beneficiários que demandam que as organizações atuem em sua defesa? As próximas seções buscam responder essa questão.

4.3 – A representação e proximidade de grupos específicos Os entrevistados, ao serem questionados sobre quem representariam, apontam quase consensualmente que suas organizações representam grupos específicos, compreendidos como aqueles que recebem seus serviços ou que são mais diretamente afetados pelas suas ações. Partindo de uma perspectiva que pensa os partidos como aglutinadores das demandas de diversos grupos e que deveriam, por esse entendimento, representar toda a população ou sociedade, os diretores de ONGs as diferenciam dos partidos pelo tamanho do seu “eleitorado”. Cada um tem um papel importante a cumprir, e as ONGs não podem representar a todos os segmentos, acho que ela pode representar um pensamento, ela pode representar uma ideia, ela pode representar uma proposta, mas não representar todas as propostas, todos os movimentos sociais e nem a agenda deles (ONG 39).

                                                             54

Lavalle et al (2006b) citam seis argumentos de congruência utilizados por organizações civis paulistanas para justificarem a representação política exercida. Três deles são argumentos clássicos à representação: identidade (identidade igual ou similar entre representante e representado), filiação (como exemplo, sindicatos) e eleição. Os outros três, mais comuns entre ONGs, são distantes dos modelos tradicionais: serviços (por oferecerem serviços ao representado), intermediação (por levarem as demandas dos representados aos órgãos estatais) e proximidade (por serem próximos dos representados).

 

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A ideia de diferença de escala é utilizada também na comparação entre os serviços prestados pelas ONGs e pelo Estado. Enquanto o último tem a obrigação de agir e almeja atingir todos os cidadãos, sustenta-se que a ONG age seletivamente e foca em grupos específicos55, que são escolhidos com base no conhecimento especializado da organização (caso daqueles que representam portadores do vírus HIV, por exemplo) ou pela proximidade física (caso daqueles que “falam pelos” moradores de favelas ou outras regiões pobres, por exemplo), ou mesmo pela identidade comum (caso daqueles que defendem os interesses das mulheres negras, por exemplo). Vejam-se os exemplos abaixo: Eu acho que assim, que elas representam grupos específicos, eu acho, eu não vejo mal em representar grupos específicos. Por exemplo, as ONGs que trabalham com AIDS representam grupo específico. Eu não vejo mal nisso, acho que não é um partido, é uma demanda e uma necessidade daquele grupo (ONG 48). Falando agora da nossa, o nosso papel é representar o grupo GLBT quando se trata de relações com o governo. E trabalhar pra orientá-los, encaminhá-los e apoiá-los, no caso, a gente trabalha com a população GLBT, e a gente representa eles na comissão GLBT (ONG 24). A gente luta por um grupo específico, que são crianças e adolescentes em situação de risco social. A gente luta por esse grupo, crianças e adolescentes e seus familiares. Esse é o grupo que a gente luta (ONG 31). Por exemplo, aqui eu acho que a gente luta com uma minoria. Acho que a gente tá lutando pela comunidade do São Carlos, pela comunidade Fogueteiro... (ONG 32). As ONGs foram criadas para representar grupos específicos. Quando a gente começa, por exemplo, com movimento negro, esse papel do movimento negro foi criado para representar toda uma população negra. E dali foi [sic] se separando públicos específicos da população negra que seriam representados. Então, as mulheres negras começaram a se organizar para representar as mulheres negras. Aquilo que as mulheres negras precisavam, que tinham direito e que não estava acontecendo na saúde. Então, se organizaram as organizações de mulheres negras (ONG 43).

Uma das principais características da proximidade física é a criação de uma relação de intimidade entre membros da ONG e beneficiários, o que favorece o conhecimento das demandas e necessidades dos beneficiários. Identificado o principal argumento de reivindicação de representatividade e os possíveis representados pela ONG, faz-se necessário compreender mais detidamente o tipo de proximidade que liga a ONG ao beneficiário e a importância dessa característica para a construção discursiva da legitimidade de atuação dessas organizações.                                                              55

Não desconsidero, entretanto, que a atuação com temas e grupos específicos não leve à produção (ou busque influenciar a produção) de políticas públicas universais. Na fala de alguns dirigentes fica claro que um dos objetivos das ONGs é pautar a agenda pública. Porém, na visão dos entrevistados, as ONGs procuram fazê-lo seletivamente ou nas áreas de atuação.

 

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4.4 – Proximidade com as bases e os modelos de representação Enquanto outras características apontadas pelos entrevistados para definir as ONGs, como idealismo, independência, agilidade e inovação, possuem caráter endógeno e se referem somente às capacidades da organização, a proximidade com as bases possui matiz relacional. Assim, torna-se fundamental o entendimento do tipo de relação que se estabelece entre as ONGs e os grupos beneficiários. Há dois principais argumentos quanto à importância da proximidade com os beneficiários. Primeiramente, alega-se a capacidade que teriam as ONGs de alcançarem os “mais distantes”, aqueles não atendidos pelo Estado ou mercado. Dessa forma, sua capilaridade é percebida como um alongamento ou braço do Estado, que o complementa ou substitui de acordo com a perspectiva do entrevistado. Ou seja, a capacidade de “chegar onde o Estado não se encontra” serviria para justificar tanto a prestação de serviços direcionada àquele grupo quanto para articular as pessoas para reclamarem seus direitos. A noção de “braço do Estado” pode ser encontrada nas falas abaixo. Mas as ONGs são braços do governo, elas são as próprias políticas públicas. Elas transformam o trabalho que elas fazem, a maioria delas, em políticas públicas. O governo acaba aproveitando muita coisa disso (ONG 16). Acho que o governo necessita das ONGs para implementar os seus planos em si. Porque eles traçam seus objetivos, suas diretrizes, e não têm os braços, como a gente pode falar, para alcançar todos os objetivos, todas essas diretrizes. E aí necessitam das ONGs para implementar as suas ações (ONG 19).

O segundo ponto refere-se à afirmação dos entrevistados de que as ONGs também fazem o trabalho inverso daquele de “braço do Estado” ao levarem as demandas dos beneficiários às instâncias estatais, representando-os a partir da defesa no Estado das suas demandas. Dessa forma, a ONG atuaria como um mediador entre o Estado e os grupos não alcançados. Em alguns momentos, a ONG leva as políticas públicas até os grupos mais afastados; em outros, encaminha os desejos e reclamações destes ao Estado, como exemplificado a seguir. Eu acho que o principal [objetivo da ONG] é o alerta das necessidades, das demandas reprimidas, da situação social do povo brasileiro. Isso que eu acho principal. Muita coisa que a gente sabe que acontece e a gente acaba de ver mais pela ONG que foi lá e levantou os dados, levantou a situação e sai na busca de solucionar (ONG 45). Nas ocasiões em que é possível, leva governo na comunidade. Tem que ir lá, tem que ver a cara das pessoas (ONG 11).

 

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Mas que tipo de proximidade é essa? Não haveria diferenças de percepção quanto à proximidade entre as ONGs, tão diversas temática e organizacionalmente? É possível identificar três modelos de proximidade nas falas dos diretores de ONGs. Há aquelas que se notabilizam pelo conhecimento especializado ou expertise, e que assim se enquadrariam no que aqui será considerado como o tipo baseado na proximidade temática. O segundo grupo se refere a uma proximidade identitária, na qual a identidade dos representados é importante para a compreensão da relação entre ONG e beneficiário. Por fim, há a proximidade física, mais frequente nas entrevistas. Antes de adentrar nas falas ilustrativas sobre cada um desses tipos, vale indicar por que todas essas categorias podem ser compreendidas dentro da noção mais ampla de proximidade. Nos discursos afinados com o modelo de representação baseado na autorização é fundamental a presença de um mecanismo que ligue ou trace um elo entre o representante e o representado. O mais comum desses mecanismos de ligação é a eleição, quando o voto é materializado como o ato autorizador. Entretanto, o mesmo não ocorre em relação à possível representação política por organizações civis. Não há um momento ou ato que acione a representação. É comum que se fale em representação presuntiva como uma representação autoassumida para além da vontade, do conhecimento ou mesmo da presença do representado56. Entretanto, para o caso das ONGs do Rio de Janeiro, pode-se dizer que dificilmente os entrevistados assumiriam um “falar por” ou “agir no lugar dos” beneficiários apenas pelo sentimento de identificação com os problemas deste grupo. Entre os entrevistados, a proximidade com o beneficiário aparece como elemento fundamental, e a defesa dos direitos é

                                                             56

Veja-se, por exemplo, o que fala Avritzer sobre a representação: “Em todas essas circunstâncias [de representação], não é a autorização, e sim a afinidade ou identificação de um conjunto de indivíduos com a situação vivida por outros indivíduos que legitima a advocacia. [...] Nesse sentido, o elemento central da advocacia de temas não é a autorização, e sim uma relação variável no seu conteúdo entre os atores e os seus representantes. Se voltarmos a Cícero e sua descrição do papel do procurador, percebemos que a identificação com a causa se tornou mais importante que a autorização explícita para representá-la” (Avritzer, 2007: 457). Talvez a identificação com a causa independentemente da relação com o representado seja mais comum para organizações transnacionais, com os quais Avritzer exemplifica sua tese. Ele afirma, por exemplo, que as ONGs internacionais, nos casos de defesa da extensão de certos direitos às mulheres em países mulçumanos, estariam representando o discurso sobre os direitos das mulheres em geral e não as mulçumanas do país em questão. Dessa forma, o autor aponta para uma representação que independe do tipo de relação entre representantes e representados.

 

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quase sempre direcionada a um conjunto específico de pessoas e não a grupos gerais ou universais. Assim, se por um lado não funcionam os mecanismos de autorização institucionalizados para legitimar as ONGs, por outro, as próprias entrevistadas afirmam que não basta apenas “um sentimento de identificação ou afinidade com o representado”. Ao analisar as entrevistas com diretores de ONGs, observa-se que a legitimidade dessas organizações está marcada pela capacidade que possuem de se apresentarem coladas, ligadas ou próximas de alguma forma aos seus beneficiários. A aproximação entre os beneficiários e os possíveis representantes é tão importante que, quando não se realiza, é criticada pelos entrevistados. O ideal, nesse tipo de percepção, é que as ONGs sempre tenham algum tipo de contato com os beneficiários, de modo a permitir que suas demandas sejam “defendidas” pelas ONGs. Eu acho que o ideal é esse, que o público beneficiário é quem traga as demandas (ONG 9). Cara, eu acho que seria muito bom se cada lésbica, cada gay, cada travesti, cada transexual se dessem conta que existem essas ONGs que tentam representá-los, que tentam falar por eles junto ao governo e nos procurassem. Não querem trabalhar como voluntários, não querem estar dentro da militância, mas conversar com a gente. Conversar mais: “Eu preciso disso - Isso não foi legal”, falta mesmo um contato melhor (ONG 24).

Manter o termo proximidade mesmo para argumentos que prescindem de indivíduos ou grupos com os quais se afirma estar próximo, por fim, parece ser importante pois realça a necessidade de as ONGs se apresentarem como ligadas ou íntimas do grupo ou tema com que trabalham. Esse ponto é bem marcado por Saward (2009), que afirma que, enquanto a representação eleitoral é baseada na autorização, a realizada por organizações civis se fixa em critérios de autenticidade. De forma resumida, as diferenças entre a autorização e autenticidade são assim descritas por Saward: The distinctive strengths of electoral claims tend to be closely linked to underlying values of authorization, or apparent and episodic prior consent. The distinctive strength of key types of non-elective claims tends to be closely linked to underlying values of authenticity, or what we might call apparent and constant responsive consent (Saward, 2009: 21)

O consentimento constante e aparente dos beneficiários é fundamental para as ONGs manterem a capacidade de reivindicação de representatividade, diferentemente daquela baseada na autorização, que é episódica e anterior à representação. Embora não haja quem possa consentir a representação em áreas como a do meio ambiente, o elemento da constância  

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da responsividade existe. A ONG de meio ambiente só conseguirá se manter capaz de falar sobre determinado tópico no caso de continuar sendo reconhecida como próxima à temática. Assim, a proximidade não serviria apenas para indicar a agilidade e celeridade na prestação de serviços, indicando também um outro tipo de relação mais direta, sem intermediários ou gestos autorizadores. Nesse caso, se não há a autorização pelo voto, a conversa direta, franca e aberta parece permitir às ONGs se construírem legitimamente como representantes dos seus interlocutores diários. O mais comum é a lembrança da proximidade física entre os atores, enquanto para as organizações de defesa do meio ambiente a proximidade temática é mais utilizada. Trato melhor dessas diferenças na próxima seção.

4.4.1 – Proximidade temática A noção de representação temática não aparece com frequência nas questões mais diretas sobre representação. É possível interpretar essa ausência como um indicador da compreensão mais comum sobre a representação, de que esta é restrita aos mecanismos de “agir no lugar de” ou “falar por”. Porém, quando questionados sobre papéis comuns às ONGs, atividades rotineiras e objetivos, os entrevistados afirmam constantemente que suas organizações ajudam a formar a agenda pública através da fala “empoderada” sobre determinados temas. Há exemplificação de muitas situações nas quais as ONGs foram chamadas a participar da construção de políticas públicas devido ao seu conhecimento especializado em temas específicos. Em alguns – como nos casos das relações de gênero, violência contra a mulher, HIV/AIDS –, a distinção entre representação temática e representação de pessoas é pouco frequente, já que há uma “clientela” clara. No caso da área de meio ambiente, porém, o argumento de proximidade com o tema é mais claro e direto – como se vê, por exemplo, na fala de um dos entrevistados: Hoje há um papel importante de impulsor, como por exemplo, no caso da composição de uma nova legislação. Há um papel interessante de catalisador também dessas organizações não governamentais. Há um papel de vanguarda, há certas temáticas, como violência sexual, sexualidade, direitos sexuais, direitos reprodutivos que são alavancados por organizações não governamentais; a própria agenda racial e étnica. Você sempre tem a possibilidade no campo também do meio ambiente, você tem o conjunto de organizações não governamentais com papel importante na preservação ambiental. [...] As ONGs ditas formadoras de opinião, etc e tal, continuam no campo de direitos humanos, direitos das mulheres (ONG 15).

A diferença entre as áreas acima mencionadas pode ser categorizada por duas subcategorias que chamo de proximidade temática por conhecimento especializado e por interesse. A primeira refere-se à representação que não necessita que o indivíduo ou grupo  

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seja considerado como representado. Leonardo Avritzer (2007) e Michael Saward (2006b) se referem ao modelo como representação por expertise. O que está em jogo é a defesa de determinada política por grupos que detêm grande conhecimento na área relacionada à política. A segunda é indicada por Avritzer (2007) como representação por advocacy e seria fundada no interesse do representante pelas condições de vida do representado. De forma semelhante, Saward (2006b) aponta como o interesse de certos grupos por populações “não ouvidas” pelos órgãos estatais poderia servir como base da justificação da representação. Em ambos, o interesse do representante precede e transcende o desejo dos representados. Entretanto, no caso das ONGs entrevistadas, observa-se que a capacidade de representação é justificada, na maioria dos casos, pela recorrência ao argumento de proximidade. Na proximidade por conhecimento e interesse são as aproximações ou afinidades dos representantes com as temáticas e discursos ligados ao representado que possibilitam esse tipo de representação, que não é especificamente da pessoa. Entretanto, é possível dizer que a proximidade temática por conhecimento é mais restrita às organizações ambientalistas. Enquanto isso, os argumentos de proximidade temática por interesse sobre o assunto ou grupo defendido não são utilizados isoladamente pelos entrevistados. O interesse em determinado grupo é citado normalmente junto com argumentos que apontam para uma proximidade identitária ou física com esse grupo. Dessa forma, parece difícil que ocorra entre as ONGs do Rio de Janeiro uma justificação da representação a partir do que o Leonardo Avritzer sustenta: “A pragmática da legitimação é diferente, na medida em que a legitimação se dá pela relação com o tema. É ela que gera a legitimidade e não o contrário, como na representação eleitoral” (Avritzer, 2007: 458). A relação com o tema não parece ser condição suficiente para a criação de legitimidade, como apontado este autor. O que se encontra nas falas dos entrevistados é a necessidade de conjugar a relação com o tema com a proximidade com os possíveis representados.

4.4.2 – Proximidade identitária A noção de proximidade identitária aparece com frequência em alguns tipos de ONGs específicas, ligadas aos direitos de minorias. ONGs que atuam na luta contra a discriminação e preconceito contra negros, mulheres, homossexuais e deficientes físicos costumam apresentar respostas que relacionam a construção da organização e a defesa do grupo do qual, em muitos casos, os fundadores fazem parte. O exemplo mais emblemático entre os  

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entrevistados é de uma ONG que luta pelos direitos dos ostomizados, criada por pessoas ostomizadas. Outros exemplos são ONGs de defesa de negros e/ou favelados, construída por um grupo pessoas que se identificam com essas categorias, e ONGs de apoio às mulheres negras, como exemplificados nessas falas: É longa essa história. Mas rapidinho, é uma ONG que foi fundada por sete mulheres, éramos sete mulheres, duas já faleceram. Mas o objetivo mesmo é ser uma ONG de mulheres negras. [...] A ideia inicial era essa, e principalmente a luta contra a opressão que as mulheres negras sofrem em todos os níveis nesse país (ONG 36). [...] Nesse caso, nós nos enquadramos também. Como nós temos uma característica e uma história muito relacionada ao movimento de favela, então pode ser que em algum momento a gente acabe falando através de uma declaração (ONG 11).

Esse tipo de argumento não é novidade. Muitas associações civis nasceram e se legitimaram dessa forma57. O excepcional desses casos é serem ONGs e não mais associações ou movimentos sociais que buscam se tornar expressão e representação de grupos específicos. Parece plausível que muitas organizações ligadas à defesa de minorias que antes se identificavam como associações ou movimentos sociais tenham passado a se autodenominar como ONGs. Entretanto, essa é uma observação de difícil confirmação, e aparece aqui apenas como hipótese. Observa-se que, diferentemente do próximo modelo, o de proximidade física, a identidade pressupõe certa indistinção ou coincidência de determinadas características entre beneficiários e membros de ONGs. Haveria, dessa forma, coincidência plena entre representante e representado, entre a identidade do representante e aquela que será representada.

4.4.3 – Proximidade física A representação justificada pela proximidade física se baseia na capacidade que teriam as ONGs de estarem perto dos beneficiários e, dessa forma, poderem escutar suas demandas. A noção de proximidade física coloca em evidência a distinção entre os grupos que entram em contato. A aproximação física desses grupos distintos marca a distinção entre os beneficiários (receptores do serviço ou beneficiados da advocacy) e as ONGs (prestadoras do serviço ou agentes de advocacy).                                                              57

Entre os modelos tradicionais de argumentação sobre a representação, citados por Lavalle (eleitoral, por afiliação e identitária), a lembrança da identidade comum entre beneficiários e membros das ONGs é a mais recorrente nas entrevistas, especialmente para o grupo de ONGs ligados aos direitos de minorias.

 

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Essa qualidade é vista como primordial para que possam atuar mais eficientemente, conhecer as demandas desses grupos ou mesmo começar a ter contato com grupos necessitados para os quais a organização criará projetos. Entretanto, a proximidade não tem caráter apenas técnico como meio para alcançar determinados objetivos. A proximidade física com as bases é atrelada à capacidade de ouvir os grupos mais distantes, ter tratamento mais cuidadoso e personalizado e relações mais horizontais. A ligação íntima e direta como beneficiário, na visão dos entrevistados, é o cerne da identidade das ONGs, como se vê nesse discurso de um dos entrevistados: O governo quer números, ele quer a estatística. Ele não está preocupado de fato com a pessoa. Ele tem uma política pras pessoas, mas age como se só fossem números (ONG 50). Agora a relação com as comunidades, com a base, não necessariamente uma base fixa, no sentido clássico, de uma, duas comunidades que você conhece; às vezes uma base fragmentada, uma base extensa, é fundamental. Porque é onde estão as pessoas. Costumo sempre falar assim: “Se você não vai para a favela, você não trabalha em organização social, você não conhece pobre”, você fica na abstração. [...] E tem uma frase de Paulo Freire, que Frei Beto colocou no ultimo livro dele, “A Mosca Azul”, que eu achei uma síntese perfeita: “A cabeça pensa onde os pés pisam”, se você pisa na lama, pisa no barro, você vai pensar aquilo que você tá vivendo, se você pisa num carpete, você pisa num cimento, você vai conseguir pensar a partir daí. Então, a organização não governamental que não se articula com a base ou que é uma base de iluminados, é outro problema, outro vício, que muitas organizações tiveram no decorrer dos anos (ONG 5).

Como já apontado por Landin (2002), os integrantes de ONGs buscaram se distinguir daqueles que “permaneceram” na academia. Nas entrevistas, a ideia de “estar onde os beneficiários estão” separa esses grupos daqueles que apenas estudam a mesma temática ou grupo. Entretanto, não parece que há uma via única de atuação, na qual as ONGs empoderam os beneficiários. O que aparece nas entrevistas é um trânsito de mão dupla, em que tal empoderamento tem como contrapartida a legitimação das ONGs. Esse mecanismo de mútuo afetamento dá apoio à ideia de dupla legitimação, na qual a atuação das ONGs fortalece politicamente as demandas dos beneficiários, que por sua vez legitimam a advocacy  das ONGs58. Os entrevistados dão tanta importância ao argumento de intimidade que chegam a citar                                                              58

 

Ver o exemplo dado pela ONG 9 nas páginas 77-78.

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casos nos quais os beneficiários ligam para a ONG reivindicando sua presença no local de atuação. É possível identificar nas falas dos diretores de ONGs referências ao possível reconhecimento dos beneficiários do trabalho exercido pelas ONGs. Esse reconhecimento reafirma a relação de intimidade e franqueza destas com os beneficiários, o que é, novamente, contrastado com o Estado. As relações entre o Estado e os beneficiários são, na visão dos entrevistados, marcadas pelo formalismo, impessoalidade e distância, o que impediria um conhecimento mais profundo dos problemas e demandas do grupo necessitado. As qualidades creditadas às ONGs sugerem que elas têm um contato humanizado com os beneficiários, diferente daquele realizado pelo Estado. Vale lembrar que a identidade contrastiva com o Estado é o recurso mais utilizado para a autodefinição das ONGs e que, dessa forma, a proximidade com as bases é quase sempre citada em contraste com a distância do Estado para esses grupos.

Eu acho que a gente tem uma política de ouvir, de escutar, de acompanhar, de saber, de ter um retorno dos grupos, das comunidades maior do que o governo faz normalmente (ONG 4). Eu acho que a gente tem uma relação mais permanente, mais de perto, não tratamos nosso público-alvo como um pacote de pessoas com as mesmas necessidades, como se fosse tudo igual, na verdade, com esse distanciamento, acho que a gente tem uma relação mais cuidadosa, mais permanente, uma relação que vai sendo fortalecida, vai sendo fortificada, permitindo maior acompanhamento (ONG 39). Eu acho que a nossa relação aqui em [ONG 43] é uma relação muito aberta. Tanto que quando a gente some pouco, elas ligam pra saber porque desaparecemos. A gente tem um contato direto com a população que a gente atende (ONG 43).

Além da crítica ao tipo de contato que o Estado tem com seus cidadãos, as ONGs ressaltam a importância da proximidade para duas atividades principais dessas organizações: a prestação de serviços e a assessoria de grupos populares. Essas duas formas diferentes de ação perante o beneficiário são discutidas na próxima seção. A representação dos beneficiários pode vir, ou não, junto da prestação de serviços aos grupos. Normalmente, as falas dos diretores das ONGs que assumiam posicionamento de assessoria de grupos criticavam a atuação daquelas que somente prestavam serviços. Porém, em ambos os tipos gerais de ONGs – de assessoria e de prestação de serviços –, o argumento de proximidade tem bases consensuais, que podem ser resumidas de acordo com Lavalle, Houtzager e Castello (2005): The proximity argument has an underlying implicit criticism of traditional forms of political representation, thus explaining the emphasis on the proximity or horizontalness of the relationship between the corresponding civil organizations and their beneficiaries, as well as the recognition of the work of the former by the latter. At the centre of the argument is a criticism of the distortions institutional structures

 

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Observa-se, nas entrevistas, essa ênfase na proximidade e horizontalidade da relação entre as ONGs e os beneficiários, tal como apontada por Lavalle, Houtzager e Castello (2005). Vê-se como a proximidade com a base permite a ideia de “exigência da base”, como uma forma de accountability. É plausível nomear essa noção como uma accountability por proximidade. Assim, é factível identificar a partir do conjunto de colocações dos entrevistados sobre proximidade e relacionamento com os beneficiários certo equacionamento entre proximidade, accountability e legitimidade. Retomando as divisões analíticas do conceito de accountability descritas no segundo capítulo, percebe-se a ligação com o tipo de accountability de participação tal como apontada por Keohane e Grant (2005). A possível accountability por proximidade, identificada nas entrevistas, aparece como consequência da “exigência da base”, possível somente pela liberdade e intimidade que os beneficiários têm para “falarem francamente” com os diretores de ONGs. Esse ponto é paradoxal com a quase ausência de referências nas entrevistas a mecanismos formais de prestação de contas aos beneficiários. De forma oposta, são indicadas diversas maneiras de accountability para os doadores e outros parceiros institucionais. Assim, não somente o alvo da accountability é diferente, mas também a forma da responsabilização pelas ações. A dúvida que surge desse contexto é se a falta de procedimentos institucionalizados pode ser compensada por estruturas informais e pessoais, pelas quais seria possível a responsabilização da ONG pelos beneficiários. Na próxima seção, indico como a noção de uma identidade construída pela proximidade com a base perpassa diferentes modelos de ONGs. Tratarei especificamente de dois modelos gerais de ONGs – as de assessoria de movimentos sociais e as de prestação de serviços – e como eles utilizam os argumentos de proximidade para legitimar seus objetivos.

4.5 – Proximidade para assessoria ou para prestar serviços?

É possível observar nas entrevistas que a noção de serviço é central para a identidade das ONGs. Como dito por um membro de uma organização de apoio à agricultura familiar (ONG 9), “as ONGs, em princípio, por definição, são organizações de serviços. São  

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organizações que prestam serviços aos movimentos sociais, ou prestam serviços à sociedade”. Essa frase talvez resuma a dualidade da compreensão do termo “servir”. Ele pode assumir o caráter de assessoria aos movimentos populares ou, por outro lado, de prestação de serviços (normalmente ligados à educação, cultura e profissionalização técnica). O modo como o termo é interpretado, por sua vez, depende especialmente do posicionamento político do entrevistado sobre os papéis que as ONGs devem cumprir. Quanto ao primeiro tipo – de assessoria aos movimentos sociais –, ele tem sido mais estudado na sociologia (Landin, 1993a; 2002; Fernandes, 1994; Medeiros, 2008). No capítulo dois foram apresentados trabalhos sobre a história das ONGs no país, que se concentraram na observação da construção de uma identidade comum que começa a partir da década de 1970 e tem seu auge na criação da ABONG no começo da década de 1990 (Landim, 2002). Aqui, vale lembrar que a atuação dessas organizações, naquele momento de gênese, estava muito vinculada à assessoria de movimentos populares, apoiando a criação de grupos que se mobilizavam para reclamar seus direitos. Mesmo as ações de prestação de serviços, como aquelas de educação, eram relacionadas a um projeto maior de educação popular. Esse tipo de organização, fundada na assessoria de movimentos populares, apresentava uma identidade comum que se expressa, de acordo com Landim (2002) na Criação de redes de relações horizontais entre determinados agentes na sociedade brasileira; o estabelecimento de relações com organizações internacionais, basicamente também não governamentais (as quais, por sua vez, terão um papel na estruturação daquelas relações pelo país); e a existência de relações diretas com grupos sociais nas bases da sociedade (Landim, 2002: 223).

O grupo de ONGs que encampa esse “mito de origem”, nas palavras de Landim, parece se situar junto à ABONG. Porém, como já apontado no segundo capítulo, outros modelos de atuação se tornaram constantes a partir da década de 1990. Tendo em vista o incremento das parcerias com o Estado a partir dos anos 90 e o ideal forjado pelas primeiras ONGs no Brasil, ampliou-se o debate sobre a identidade dessas organizações. No estudo de Rogério Medeiros (2008) realizado com organizações vinculadas à ABONG, vê-se o esforço das ONGs em defenderem sua autonomia como estratégia de manutenção de uma identidade comum. Essas parcerias, a princípio, as colocariam em posição de executoras de serviços, o que poderia diminuir sua capacidade de influência política e de crítica ao Estado. Medeiros nota que a partir da criação do Programa Comunidade Solidária, no governo Fernando Henrique Cardoso, as ONGs são instadas a participar mais frequentemente como executoras de políticas. A prestação de serviços para os membros da ABONG é vista como  

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um avanço das medidas neoliberais para o campo da política social, e não como um projeto democrático-participativo. A recusa da ABONG em participar do Programa Comunidade Solidária poderia ser entendida como um esforço para manter a capacidade crítica e autonomia. A posição das organizações com relação às parcerias com o Estado, entretanto, parece vir sofrendo modificações. O financiamento de projetos pelo Estado passa a ser cada vez mais importante para essas organizações. Nesse cenário, Medeiros ressalta que ocorre uma aceitação condicional da prestação de serviços: Every time they find themselves in the position of delivering services they seek to safeguard their autonomy by framing their actions in reference to a bigger objective or to a commitment with sociopolitical transformations. It is not a matter of finding the right rhetorical justification for doing something that they 'should not' be doing, but rather a matter of finding the opportunities for exercising power in spite of all the limitations presented by their condition (Medeiros, 2008: 247-248).

As ONGs que têm como objetivos principais a articulação e assessoria de grupos populares – e que integram a ABONG e as entrevistadas de Medeiros (2008) – tendem a ser críticas àquelas que apenas prestam serviços. A discussão normalmente se baseia numa visão pela qual a prestação de serviços serve apenas aos interesses do Estado, que busca se isentar de suas responsabilidades. Esse tipo de crítica se coaduna com aquela que questiona o papel de substituição do Estado que algumas ONGs estariam exercendo, como apresentado anteriormente. As organizações que apenas prestam serviços não atuariam, segundo essa ideia, para salvaguardar a autonomia, nem referenciariam suas atividades a objetivos políticos maiores. De maneira geral, é dito nas entrevistas que as ONGs do modelo de prestação de serviços costumam não encampar com a mesma frequência a tensão entre autonomia e parceria com o governo. Porém, essa ausência de crítica não é consensual entre aqueles que prestam serviços. Em alguns casos, os entrevistados lembram que essa atividade pode servir como um laboratório de políticas públicas, indicando as melhores possibilidades e estratégias de desenvolvimento social e diminuição das desigualdades. Assim, parece que a falta de defesa da autonomia política serve mais como argumento de acusação de algumas ONGs. Foi incomum nas entrevistas a afirmação de que a ONG não encampe a luta pela autonomia política. Dessa forma, independentemente da real ou não ausência de autonomia, as ONGs ainda consideram importante se apresentar como autônomas.

 

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Esse ponto fica mais claro nas duas próximas seções, quando trato mais pormenorizadamente de cada um dos modelos de ONGs – assessoria de grupos populares e prestação de serviços – e comparo suas apropriações do argumento de proximidade das bases.

4.5.1 – ONGs de assessoria de grupos populares Nas entrevistas, poucos dirigentes de ONGs indicaram que suas atividades se destinavam exclusivamente à assessoria de grupos populares. Os que mencionavam esse tipo de atividades geralmente indicavam que elas eram exercidas em conjunto com outras ações de prestação de serviços. Um exemplo dessa mescla de funções pode ser visto na fala do diretor de uma ONG, membro da ABONG, criada na década de 1980. O entrevistado, membro fundador, relata que, além de assessorar grupos para formarem associações de moradores de locais de baixa renda e afins, a ONG disponibiliza cursos de informática, ensino profissionalizante e outros. Esse tipo de mudança ou alargamento dos propósitos iniciais não é exclusividade dessa organização. Como forma de apreender melhor o desenvolvimento do argumento sobre a assessoria de grupos populares, me fixarei nos próximos parágrafos na entrevista de um indivíduo em particular, pois ela ilustra resumidamente argumentos desenvolvidos por outras ONGs. É um diretor de uma das mais antigas e conhecidas ONGs brasileiras. Suas falas resumem bem esse movimento ocorrido entre as ONGs, que passam de uma identidade comum baseada quase que exclusivamente na assessoria de movimentos populares para uma míriade de formas de atuação. Veja-se o que diz o entrevistado: Porque no seu início, o [ONG 21] tinha uma perspectiva de apoio aos movimentos sociais. Podia apoiar que era pesquisa e construção de argumentos [sic], trabalhava fornecendo isso a partir de demandas dos movimentos sociais. Mas depois ele foi assumindo mais a cara de um ator próprio. Ele começou partindo... ele tinha um engajamento muito grande em determinadas campanhas e se destacou sobretudo por isso. E agora ele [a ONG] tá numa fase que diz mais respeito a projetos, a esse aspecto da capacidade propositiva que eu tinha falado, e ações assim de sociedade, como é o Fórum Social Mundial, que passam a repercutir esses aspectos da democracia, da democracia participativa (ONG 21).

A ideia da passagem para outras atividades aparece, como se vê, atrelada ao momento no qual as ONGs começam a se tornar “atores próprios”, não mais vinculados necessariamente aos grupos de base que auxiliavam. Frisa-se, entretanto, que a relação não cessa, ela é apenas modificada ou ressignificada. Se antes o objetivo era permitir que grupos pudessem se articular e mobilizar, com o sucesso dessa empreitada fazia-se necessário, para esses atores, buscar outras atividades. Segundo essa narrativa, as ONGs, já depositárias de  

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confiança e legitimidade dos beneficiários e mesmo do público mais amplo, começam a participar na construção da pauta pública, influenciando as políticas aplicadas pelos governos. Na continuação do argumento, o entrevistado ressalta o momento de inflexão no perfil de atuação da organização. Essas pessoas que fundaram o [ONG 21] que eram do exterior, elas tinham já pessoalmente uma entrada dentro dos movimentos sociais, elas conseguiam fazer uma interlocução forte. E o [ONG 21] dava então essa contribuição e essa relação deles com os movimentos sociais, era uma relação na qual a instituição não tinha uma agenda própria. Era uma agenda muito guiada por esses movimentos. A partir de um determinado momento, digamos assim, aproximadamente fins da década de 80, esses movimentos começam criar os aparatos próprios de... para atender essas demandas. E começa então a haver uma separação, e ao mesmo tempo algumas ONGs começam a constatar que podem ter uma incidência maior sobre as políticas públicas. Então muda de alguma maneira o foco sobre... de que elas estavam dedicadas. Políticas e situações públicas. O próprio Betinho se engajou em campanhas para o Rio de Janeiro... campanhas diversas, então não se restringia através... somente as políticas (ONG 21).

A ideia aqui não é apontar para uma mudança obrigatória no modelo de ação das ONGs, nem dizer que sua divisão geracional é correlacionada com o modelo de atuação. Ao contrário, há ONGs antigas que priorizavam a assessoria de movimentos sociais e passaram a ter outros objetivos (como no exemplo acima), assim como ONGs mais novas, criadas a partir da década de 1990 e que, em alguns casos, também buscam auxiliar as bases para reclamar seus direitos. O que se destaca é a incorporação de novos objetivos pelas ONGs. Em relação a estes, contudo, elas não deixam de invocar a proximidade com o beneficiário como ponto principal da legitimidade da atuação. Pode-se observar, ainda na fala do mesmo entrevistado, a recorrência da noção de “parceiro” para se referir ao beneficiário. Esse e outros termos buscam marcar simbolicamente uma relação diferente daquela formal, hierárquica e, por vezes, autoritária entre beneficiário e Estado. Dessa forma, pode-se dizer que, mesmo sendo expandido o escopo de atuação das ONGs, essas ações continuam tendo como elemento fundacional a proximidade com a base, seja ela física, temática ou identitária. Quanto à assessoria de grupos, observe-se, por exemplo, o que dizem dois entrevistados: Órgãos governamentais trazem com eles uma expectativa que essa população se desenvolva, de que reivindicações delas possam ser atendidas. No caso da relação com o [ONG 21], a expectativa que se constrói é que o [ONG 21] seja parceiro na construção dessas reivindicações e no encaminhamento dela (ONG 21). E aí eu acho que a ONG muitas vezes consegue é fazer essa ponte. Levar [...] a expectativa dessa população até quem está no poder (ONG 9).

 

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Essa intermediação das demandas dos beneficiários está na base do que Lavalle et al (2005, 2006b) chamam de argumento de congruência de intermediação. A assessoria dos grupos populares permitiria aos beneficiários, de acordo com o argumento, se organizarem de modo tal a ter capacidade de reivindicar seus direitos ao Estado. De acordo com esse argumento, a possível dificuldade de acesso ao Estado por determinados grupos é compensada pelo auxílio que recebem das ONGs. A temática do acesso ao Estado era polêmica para as ONGs pioneiras. A participação em instituições do Estado era dificultada pelo contexto de ditadura militar e a identidade dessas organizações, como já dito, foi consolidada através da ideia de “sociedade civil contra o Estado”. Portanto, é sintomático da mudança de posicionamento das ONGs a maior frequência em projetos em parceria com o Estado e a tentativa de aproximar esse ator dos grupos mais distantes ou sub-representados. É certo que a mudança não ocorreu somente no entendimento que as ONGs têm do Estado. Este último, efetivamente, também muda: a redemocratização no país, a criação da nova Constituição em 1988 e a inclusão de diversos mecanismos de participação social nas decisões do Estado foram importantes para permitir a aproximação desses atores59. Pode-se acompanhar a referência resumida de Lavalle, Houtzager e Castello (2005) sobre o argumento de mediação: The mediation argument refers to acting in someone’s name, but it does not refer to a substantive concept of representation associated with any particular activity or specific benefits. Rather, the argument is focused on the importance of the political representation of poorly represented sectors of the population on its own terms. That is, the mediation argument explicitly recognizes the importance of mediating interests with the State, in opening up channels through which claims can be made which normally do not have a channel through which they can be expressed to public authorities (Lavalle, Houtzager, Castello, 2005: 40).

A reivindicação de representação por intermediação é calcada no reconhecimento da representação política de suas próprias organizações, não como alternativa à tradicional, porém como complementar a essa. A representação dessas organizações civis não ocorre contra o Estado, portanto, mas em estreita interação com as instituições tradicionais. A maior recorrência do argumento de intermediação nas entrevistas evidencia a importância da questão da redução da desigualdade de acesso ao poder público.

                                                             59

Um estudo interessante sobre a atuação conjunta de instituições estatais, no âmbito de reforma do Estado pós Constituição de 1988, e ONGs pode ser encontrada na dissertação de Mario Grangeia (2010), na qual são apresentados estudos de caso de parcerias entre ONGs e o Ministério Público.

 

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4.5.2 – ONGs que prestam serviços Nesta subseção, trato da interpretação que os entrevistados fazem da prestação de serviços. Em relação a essa atividade, é possível notar a demarcação de dois tipos básicos de significado: i)

a utilização da prestação de serviços como laboratório de políticas públicas,

ii)

apoio comunitário.

Frisa-se que não é necessariamente uma diferença na natureza das ações. A mesma ação pode ser rotulada como “política pública para minorias” ou “apoio comunitário”, de acordo com a ideia do entrevistado sobre o papel das ONGs. O que está em jogo, dessa forma, é a definição simbólica das ações das ONGs. A diferença, já apontada por Medeiros (ver citação na página 85), se refere ao enquadramento do serviço. Aquelas que perfazem o primeiro tipo tentam relacionar a prestação de serviços à noção de laboratório de políticas públicas. Outros, entretanto, não têm essa preocupação, ressaltando que o fundamental é o atendimento das necessidades dos mais pobres e minorias. Se esse auxílio não é prestado pelo Estado, faz-se necessário que outros o prestem. Em relação ao segundo tipo de argumento, os entrevistados assumem que os serviços não necessariamente têm relação com objetivos políticos. Assim, a intenção não é universalizar qualquer ação ou projeto, mas levá-lo aos que necessitam. Como aponta o entrevistado abaixo, independentemente da área ou tema do projeto, o principal objetivo é auxiliar os grupos mais necessitados. [...] É um dos papéis [prestação de serviços], é você dar algum tipo de apoio comunitário, seja no que for. Educação, saúde, conscientização, acesso à informação sobre programas governamentais, enfim. Milhares de coisas. Apoio jurídico, um monte de coisas. Meio ambiente e tal (ONG 4).

O que aparece nessas falas é um conjunto de valores que poderiam ser resumidos na expressão “fazer alguma coisa”. A ideia de responsabilidade social e de extensão de deveres frente à população mais pobre, antes reservados ao Estado, surge como elemento aglutinador dessa noção maior. O “fazer alguma coisa” denota justamente essa abertura de possibilidades de ações e temas, não importando tanto o arcabouço político da proposta. Diferentemente daquelas que buscam alinhar suas ações a um plano maior de influência nas políticas sociais, esse tipo de argumento recorre às necessidades urgentes dos beneficiários, aqueles que “não

 

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podem esperar” pela universalização ou transformação de determinada ação em política pública. Focadas no ganho individual dos beneficiários, essas ações, tal como vistas pelos entrevistados, não necessitam grande abrangência para se legitimarem. Qualquer organização realizando qualquer tipo de atividade em qualquer local é legítima. O serviço não é medido por indicadores ou estudos de avaliação, mas pela percepção cotidiana das mudanças na vida de cada uma das famílias beneficiadas. Se cada beneficiado é tão importante quanto o conjunto de beneficiados, a mudança de vida de apenas um deles já indica o sucesso da atividade. Essas noções podem ser encontradas, por exemplo, na fala abaixo: A gente tem organizações que são a creche da titia fulana dentro do morro, que tem um impacto social muito grande. Se ela não tem aquela atividade ali, um monte de mães não podem estar trabalhando, a qualidade de vida daquela família vai cair, e que as vezes não é nem registrada, nem existe formalmente. A gente tem pequenas organizações, como é o caso do [ONG 9] e de tantas outras, que fazem muita diferença na questão da complementação do horário escolar, do acompanhamento das famílias (ONG 9).

Como se depreende das narrativas, a vantagem dessas organizações pequenas é o seu contato com as bases, que permite que desenvolvam atividades mais bem direcionadas às demandas dos beneficiários. Observam-se, assim, falas que denotam uma maior preocupação com as escolhas das atividades que serão oferecidas. Dessa forma, há certo refinamento do argumento de que “qualquer atividade é válida”. Se é certo que quaisquer atividades ofertadas pelas ONGs são úteis para aquela população, elas não são úteis na mesma medida. Assim, o interesse da organização em prestar qualquer ajuda a determinado grupo recebe seguidos ajustes, se tornando coerente com os interesses da base. O discurso sugere que esse exercício de “sintonia fina” entre a ONG e os beneficiários só é possível dada a proximidade com a base. A fala abaixo ilustra esse argumento: A [ONG 16] é uma organização sem fins lucrativos que visa [a] atender jovens, na maioria negros, provenientes, oriundos, moradores de comunidades populares, periferias de todo o Brasil. E ela consegue fazer isso usando como atrativo a música, o hip-hop e suas artes integradas. Isso não mudou. Mas o que a gente começou a fazer... oferecer dentro das nossas atividades coisas além da música, como aula de informática, esporte, diz que até oficina de flauta, não tem nada a ver com hip-hop, mas são coisas que vieram ou por demanda da comunidade local. Que às vezes você tem um curso de artesanato pros pais na Cidade de Deus, mas isso não funciona em Pedra do Sapo. Então a demanda local também importa muito (ONG 16).

De acordo com a análise das entrevistas realizada nesse capítulo foi possível apontar como se estrutura a percepção dos diretores de ONGs quanto ao modo dessas organizações se  

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relacionarem com os beneficiários. O argumento fundamental dos entrevistados é a distinção da atuação em comparação com a do Estado. As atividades cotidianas serviriam, na visão dos entrevistados, para assegurar aos beneficiários a possibilidade de garantir accountability, exigindo mudanças, reclamando serviços e cobrando presença das organizações. Vê-se que, mesmo em atividades que aparentemente não são relacionadas às políticas públicas e que são justificadas através da noção do “fazer alguma coisa”, são equacionadas pelos entrevistados na tríade proximidade, accountability e legitimidade. Esse aspecto é, em certo sentido, paradoxal, já que, como foi visto anteriormente, quase não há referências nas entrevistas a mecanismos formais de prestação de contas ou a espaços para sugestões e reclamações dos beneficiários. Neste capítulo analisei também como os entrevistados utilizam a reivindicação de representatividade para legitimar a atuação das ONGs, tal qual indicado no segundo capítulo. Inicialmente, comentei sobre a compreensão dos entrevistados sobre a representação possivelmente exercida pelas ONGs. Eles assumiam a representação de beneficiários através da listagem de diversas ações (participação em conselhos, criação de leis, etc). Os argumentos para justificar essas ações e se dizerem representativos passavam pela afirmação de que somente as ONGs estão próximas de certos grupos específicos. O capítulo se deteve, em seguida, na discussão desse aspecto da proximidade. Observei que a proximidade com a base se traduz em “exigência da base”, por um lado, e “luta pelos beneficiários”, por outro. Esses dois pontos fortalecem, na visão dos entrevistados, a relação de intimidade entre representados e representantes, utilizada para indicar que há um processo de accountability contínuo que os legitima politicamente. Entretanto, não são indicados pelos entrevistados quaisquer mecanismos de accountability formais para os beneficiários. Parece, dessa forma, que a responsividade das ONGs para com os beneficiários se baseia unicamente na capacidade dos membros das ONGs se tornarem íntimos dos beneficiários a tal ponto de permitir que as críticas surjam. A análise ressalta que essa proximidade pode aparecer de outras maneiras além da proximidade física. Nesse sentido, observa-se que a proximidade temática e a identitária também são ressaltadas nas entrevistas. O capítulo discutiu ainda como esse argumento de proximidade é trabalhado através da definição da função da principal atividade da ONG,

 

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permitindo assim diferenciar ONGs que assessoram grupos populares e ONGs que prestam serviços. A intenção deste capítulo foi ressaltar como a legitimidade das ONGs é justificada por sua capacidade de reivindicar a representatividade de suas ações. Os discursos analisados revelam um tipo de accountability por proximidade, no qual a interferência das preferências dos beneficiários nas decisões das ONGs é interpretada como evidência da sintonia entre ambos. Essa sintonia, nas percepções dos dirigentes de ONGs, não seria possível na relação dos cidadãos com o Estado. Isso evidenciaria a importância das ONGs, já que elas seriam as “únicas” aptas a captar as demandas de grupos não alcançados pelo Estado.

 

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5 – Conclusão

Esta dissertação buscou apreender o modo como diretores de ONGs constroem a legitimidade de suas organizações. Como se observou, os diretores de ONGs contrapõem e comparam suas organizações ao Estado e ao mercado o tempo todo. É certo que definições identitárias passam normalmente por artifícios comparativos. Entretanto, no caso das ONGs, os processos de comparação e contraste com outros atores parecem estar no âmago da sua identidade. Foi necessário, a cada momento, se distinguir simbolicamente do ator com o qual interagia. Dessa forma, parecem coerentes as análises que apontam como o fortalecimento institucional e simbólico das ONGs se deu num processo de diferenciação, tanto das organizações caritativas e religiosas que davam suporte durante a ditadura às atividades de certas organizações que se tornariam ONGs posteriormente quanto das organizações populares que eram auxiliadas. O esforço de se diferenciaram diz respeito não somente aos grupos com os quais atuavam. Na fase de aproximação com o Estado pós-ditadura e da Constituição de 1988, quando o governo começa a financiar e aparecer como parceiro em projetos, as ONGs tenderam a manter o ideal da autonomia, independentemente disso ser ou não observado na realidade. O mesmo se pode verificar com relação às empresas que as financiavam. Assim, a postulação era que a dependência financeira não implicaria ausência de autonomia de decisão. O modo como esses dois processos de distinção se deram – em relação às organizações religiosas e grupos populares e em relação aos financiamentos do Estado e mercado – é bem apresentado pelas teses da “história militante” e do “dilema entre o conflito e a cooperação”, de Leilah Landim e Rogério Medeiros, respectivamente. Seguindo esses indícios, que apontam como o tema da autonomia e da distintividade são importantes para as ONGs, investigou-se como a autoidentidade, considerada em seus aspectos relacionais, é fundante da construção da legitimidade das ONGs. Tendo em vista essa questão, foi feito um esforço analítico em duas frentes inter-relacionadas. Na primeira delas, foram apreendidos no discurso de dirigentes de ONGs modos de distanciamento e diferenciação dessas organizações em relação às organizações das outras duas esferas societárias, Estado e mercado. Na segunda, a análise recaiu sobre os argumentos apresentados pelos informantes para justificar a representatividade das ONGs.  

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O segundo capítulo foi dedicado à discussão teórica que serviu de base para a análise das narrativas desenvolvida nos capítulos seguintes. Com esse intuito, dois grandes tópicos foram abordados nesse capítulo inicial. Assim, na primeira parte, foram resumidos os argumentos na literatura sobre o ressurgimento do conceito de sociedade civil, as críticas ao idealismo presente em alguns dos autores que trataram do tema e proposta uma abordagem centrada nos atores “reais” dessa esfera. Na segunda parte do capítulo discutiu-se o tema da representação política exercida por organizações civis, a noção de representação como processo e a conveniência de estudá-la através de noção de accountability. A primeira parte do capítulo dois dialoga com a ideia de fronteiras simbólicas, desenvolvida no capítulo três, e a segunda, com a noção de representative claims, desenvolvida no capítulo quatro. Caso essa estratégia tenha dado certo, é possível concluir que muito do virtuosismo apregoado por alguns estudiosos à sociedade civil está presente no discurso dos diretores de ONGs, aparecendo mesmo como marca de distinção dessas organizações. O capítulo três partiu do esclarecimento do conceito de fronteiras simbólicas proposto por Michèle Lamont. Verificou-se que esse conceito é frutífero para a análise da argumentação sobre a legitimidade das ONGs, pois oferece a oportunidade de se captar a fluidez e a relacionalidade das identidades construídas discursivamente. No caso das ONGs, esse ponto é fundamental, posto que na própria forma como se autonomeiam, o aspecto relacional se faz presente, já que, afinal, as ONGs são aquelas que não são governamentais. A segunda parte do capítulo três teve como objetivo não essencializar ou aprisionar as identidades das organizações de cada esfera societária em categorias estanques. Com esse cuidado, foi possível identificar como as narrativas revelam que a diferenciação das ONGs frente às empresas e frente a governos é diferente. Em relação às primeiras, evidenciou-se que as principais diferenças, na visão dos entrevistados, concentram-se no compromisso público das ONGs, aspecto ausente no caso das organizações de mercado. Ou seja, a missão e o objetivo desses dois tipos de atores os distinguiriam. Entretanto, para os entrevistados, ONGs e empresas se aproximariam no que se refere às características organizacionais. Quanto ao Estado, observou-se que são as características operacionais aquelas decisivas para a comparação. Por outro lado, os objetivos das ONGs seriam próximos aos do Estado ou tenderiam a influenciar as decisões deste.

 

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Tratei, por fim, da mobilização, pelos entrevistados, de mecanismos discursivos de i) construção das fronteiras: pela diferenciação através de características definidoras, tais como agilidade, inovação, idealismo e, especialmente, proximidade com as bases; ii) mudança relativa das fronteiras: pela forma como indicam que as ONGs ressignificam certas características, ora como positivas na comparação com o mercado, ora negativas quando analisadas em relação ao Estado. Esse último ponto pôde ser exemplificado pelo aumento da complexidade da gestão administrativa das ONGs, compartilhada como eficiência com as empresas e entendida como diferente da burocracia governamental (vista negativamente). Essas mudanças de características ou funções prioritárias para a comparação mostram como as fronteiras entre os três setores são percebidas como fluidas e marcadas por realocações e ressignificações. Pode-se dizer que esses são modos de se diferenciar as ONGs, que são complementados por narrativas que procuram distanciá-las das outras esferas. O distanciamento é melhor compreendido pela força que a noção de autonomia teve na construção da identidade das organizações. Atualmente, essa defesa da autonomia passa por considerar, na visão dos entrevistados, a possibilidade de ampliação ou mesmo universalização (transformação em política pública) da ação desenvolvida pela ONG e pela possível não submissão aos desígnios dos doadores, sejam eles empresas ou governos. Especificamente em relação ao Estado, a questão que se coloca é a possibilidade de a ONG se tornar mero executor de serviços de responsabilidade do Estado. Muitos entrevistados enxergam esse tipo de prestação de serviços como algo que leva as ONGs a atuarem como substitutas do governo. Entretanto, no caso do discurso dos dirigentes de ONGs que realizam tal tipo de atividade, o que ocorreria seria uma complementação de ações, no sentido de organizações mais bem preparadas assumirem a execução de certas iniciativas. Dessa forma, indiquei como as características mais comumente relacionadas às ONGs servem aos dirigentes para se diferenciar e distanciar do Estado e mercado. A ONG é percebida pelos entrevistados como um meio-termo entre os dois extremos, ao deter o sentido público do Estado e ter o modelo organizacional das empresas. Os diretores de ONGs afirmam também que o idealismo dos funcionários e a proximidade com grupos de difícil acesso para Estado e mercado são marcas que as distinguem tanto do mercado quanto do Estado. No quarto capítulo, analisei como os entrevistados utilizam a reivindicação de representatividade para legitimar a atuação das ONGs. Essa representatividade é reclamada  

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pelos entrevistados por meio do argumento da proximidade das ONGs com a base. Essa proximidade é considerada pelos entrevistados como uma das características principais para se diferenciar as ONGs do Estado e do mercado. A consequência da proximidade, no raciocínio dos diretores, é a “exigência da base” para que as ONGs “lutem” pelos seus beneficiários. A incorporação por parte das ONGs das demandas dos beneficiários através de contatos pessoais estreitos e horizontais, de acordo com a descrição dos entrevistados, fortalece a necessidade de afirmação de representatividade das organizações. Antes, porém, de afirmar que a proximidade com as bases leva à possibilidade de agir em nome e atuar em prol desses beneficiários, os diretores de ONGs tentam realizar uma “limpeza ética” da organização, afastando-a de grupos hipoteticamente corruptos. Dessa forma, é sintomático como há quase um consenso em se negar qualquer contato com partidos políticos. Essa maneira de afastar o perfil e a atuação das ONGs dos partidos políticos, corresponde à forma de legitimação que Michael Saward descreve como untaintedness, termo aqui traduzido livremente como “independência política e moral”. Distanciando-se da imagem das organizações corruptas e da política tradicional, os diretores das ONGs assumem a representação de beneficiários através da listagem de diversas ações, como participação em conselhos públicos, criação de leis, reuniões com instituições estatais e agentes públicos. Os grupos percebidos como representados foram aqueles com os quais as ONGs trabalhavam cotidianamente. A análise constatou a recorrência de elementos que apontavam para uma cotidianidade e naturalidade da relação entre as ONGs e os beneficiários. Esses grupos beneficiários eram especificados, pois os diretores marcavam constantemente que suas organizações agiam seletivamente e não pretendiam universalizar suas ações (a não ser pela adoção por parte do Estado da atividade como política pública). Segundo eles, a proximidade e a exigência da base “obrigam” as ONGs a “lutarem” pelos beneficiários que convivem com elas no dia a dia. A relação de intimidade entre o grupo local e os representantes pode indicar, por esse raciocínio, que há um processo de accountability contínuo que legitima as ONGs politicamente. A proximidade pode aparecer de outras maneiras além da física. A proximidade identitária e a temática também são verificadas nas entrevistas. No primeiro caso, são priorizados os elementos clássicos de igualdade identitária entre o representado e o representante, tal como ocorre em certos movimentos sociais. Aqui, o mais interessante – e resta apenas como indicação de pesquisa não desenvolvida neste momento – é pensar como  

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certas organizações passam a se nomear como ONGs. Exemplos dessa passagem de uma autoidentidade configurada como “movimento social” para outra afirmada como “ONG” são as organizações entrevistadas que se dedicam à luta contra a discriminação racial. Quanto ao segundo caso, da proximidade temática, esta é bem ilustrada pelos autores como Avritzer (2007) e Saward (2009), que trabalham com a representação política de organizações civis. Foi possível identificar, a partir do conjunto de colocações dos entrevistados sobre proximidade e relacionamento com os beneficiários, certo equacionamento entre proximidade, accountability e legitimidade. Retomando as divisões analíticas do conceito de accountability, observa-se a ligação com o tipo de accountability de participação tal como apontado por Keohane e Grant (2005). As respostas são dadas àqueles afetados pelas ações da organização. Tais respostas, nas entrevistas, aparecem como consequência da “exigência da base”, possível apenas em função da liberdade e intimidade que os beneficiários têm para “falarem francamente” com os diretores de ONGs. Existiria, assim, um mecanismo de accountability por proximidade. Esse ponto contrasta com a quase ausência de referência nas entrevistas a mecanismos formais de prestação de contas para os beneficiários, diferentemente do que ocorre com doadores e parceiros institucionais. Assim, não somente o alvo da accountability é diferente, mas também a forma de responsabilização pelas ações. Seria possível perguntar nesse contexto se a falta de procedimentos institucionalizados pode ser compensada por estruturas informais, baseada em contatos pessoais. Ou de outra forma, até que ponto a accountability por proximidade, indicada por contatos pessoais e não institucionalizados, pode prescindir de mecanismos mais formais. As consequências para o desenvolvimento da democracia desse tipo de responsabilização ainda carecem de investigações mais detidas. Por fim, é possível afirmar que a legitimação das ONGs é um constructo discursivo complexo, em que diferenciações e distanciamentos em relação ao Estado e ao mercado são realizados de diversas formas. Entretanto, é presumível indicar que, se a luta por autonomia frente a esses outros atores marca a identidade das ONGs, esse aspecto deve ser complementado pelo incessante esforço dos diretores em afirmar que suas organizações estão próximas dos beneficiários e, por conseguinte, são capazes de ouvir e levar as demandas destes para as instâncias estatais. Espera-se que o exercício empreendido nessa dissertação no sentido de compreender o modo discursivo de construção da legitimidade das ONGs possa, de alguma forma, auxiliar no entendimento de como os membros de ONGs avaliam o papel e a  

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importância dessas organizações para a sociedade brasileira. Espero, ainda, ter podido contribuir para o entendimento de como as ONGs justificam sua atuação como uma nova forma de participação política.

 

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ANEXO A ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM ONGS Nome da ONG: Data de Fundação:

1. Identidade das ONGs: 1.1 Na sua opinião, o que define uma ONG? 1.2 O que diferencia as ONGs em geral de organizações governamentais? 1.3 O que diferencia sua organização de agências públicas? 1.4 O que diferencia as ONGs em geral de empresas privadas? 1.5 O que diferencia sua organização de uma empresa?

2. Sobre Avaliação e Idealizações 2.1 Quais as principais vantagens de uma ONG? 2.2 Quais as principais desvantagens de uma ONG? 2.3 Na sua opinião, quais as principais vantagens das ONGs em relação a órgãos governamentais? E as principais desvantagens? 2.4 E em relação às empresas? Quais as principais vantagens e desvantagens? 2.5 Na sua opinião, idealmente, como deveria atuar uma ONG? O que uma ONG jamais deveria fazer?

3. Fundação da ONG 3.1 Fundação e Objetivos: Quem ou que grupo de pessoas fundou esta ONG? Por que esta organização foi fundada? Quais eram os objetivos mais amplos desta organização no momento de fundação? 3.2 Público-alvo: Qual era o público-alvo desta organização nesse momento? Qual era a relação entre dos fundadores desta organização com esse público? Tinha alguma relação com grupos de base? Com quais grupos? Como era essa relação? 3.3 Área: Qual(is) eram, no momento de fundação, a(s) área(s) de atuação desta organização? 3.4 Região: Qual(is) regiões atuavam (países, estados, municípios e/ou bairros)? 3.5 Apoio: Contou com o apoio de alguma outra organização no momento de fundação? Quais (outras ONGs, Igreja, Mídia...)? Que tipo de apoio?

 

111   

3.6 Pessoal: A organização tinha uma sede física? Contava com trabalho voluntário ou tinha pessoal remunerado? Quantos voluntários e quantos funcionários remunerados? 3.7 Recursos financeiros: Contavam com algum recurso financeiro fixo? Quais eram os principais doadores? 3.8 Status legal: Qual era a razão social da ONG no momento de fundação? Por que a ONG optou por esse status legal? 3.9 Relação com órgãos governamentais: No momento de fundação, esta ONG tinha alguma relação com órgãos governamentais? Como você descreveria essa relação (conflituosa, de cooperação...)? Se não tinha relação, por que motivo?

4. A organização hoje: 4.1 Objetivos: Os objetivos desta ONG mudaram desde a sua fundação? Quais principais objetivos hoje? Caso tenham mudado, por que motivo? 4.2 Público-alvo/Clientela: (i)

Quem é o público-alvo desta organização hoje? Mudou? De que forma? Por que motivo?

(ii)

Como esta organização se relaciona com esse público-alvo? Leva em conta a opinião? Como?

(iii)

De que forma a relação desta organização com esse público específico se diferencia daquela estabelecida entre esse público e órgãos governamentais?

(iv)

Na sua opinião, idealmente, como deveria ser a relação entre as ONGs e seu público-alvo?

4.3 Área de atuação: E a área de atuação mudou desde a fundação? De que forma? Por que motivo? 4.4 Região: E a região de atuação mudou desde a fundação (países, estados, municípios, bairros)? De que forma? Por que mudou?

4.5 Pessoal: (i)

E hoje, a organização conta com trabalho voluntário? Quantos voluntários? Tem algum trabalho voltado especialmente para recrutar voluntários?

(ii)

E funcionários remunerados? Aumentou a quantidade? Caso tenha aumentado, por que motivo aumentou?

(iii)

Na sua opinião, a ONG funciona melhor com trabalho voluntário ou pessoal remunerado? Por quê?

4.6 Redes com outras organizações:  

112   

(i)

A organização participa de redes ou fóruns temáticos? Quais? Qual o foco de cada uma dessas redes ou fóruns (discussão de agendas na área, procedimentos, regras e formas de agir, compartilhamento de experiências)?

(ii)

Esta ONG costuma cooperar em projetos e/ou campanhas com outras ONGs ou outras organizações cívicas ou não cívicas? Quais projetos e campanhas? Quais os principais parceiros?

4.7 Recursos financeiros: E hoje, quais são os principais doadores desta ONG? Mudaram desde a fundação? Se mudaram, por que motivo? 4.8 Relação com doadores: (i)

Quais as principais vantagens de receber recursos financeiros dessas fontes (perguntar sobre cada doador mencionado no item 4.7)?

(ii)

Esta organização precisa prestar contas para essas organizações doadoras? De que forma? Com que frequência?

(iii)

Esses doadores influenciam organização? De que forma?

na

tomada

de

decisões

desta

4.9 Organograma:

4.10

 

(i)

Como é a organização interna desta ONG (possui um diretor ou conselho diretor, um conselho externo, conselho fiscal, líderes de projetos)?

(ii)

Quem é responsável nesta organização pelo planejamento, alocação de recursos, decisões sobre projetos? O conselho externo é consultado?

Accountability: (i)

Tomada de decisões: Na hora de tomar decisões sobre projetos, além dos grupos já mencionados, a quem esta ONG consulta ou a opinião de que grupos ou instituições esta ONG leva em consideração (consulta doadores, público-alvo, outras ONGs, público mais amplo...) ?

(ii)

Prestação de contas: A que grupos ou instituições esta ONG presta contas de suas atividades (doadores, conselho externo, público-alvo, outras ONGs, público mais amplo...)? Com que frequência (para cada grupo ou instituição mencionada)? De que forma (reuniões, relatórios...)?

113   

4.11 Relação com órgãos governamentais: Como você descreveria a relação desta ONG com órgãos governamentais hoje? Mudou desde a fundação? Se mudou, por que motivo?

5. Relações com o Estado/Histórico dessas relações:

5.1 Parcerias anteriores com órgãos governamentais: Esta organização participou de projetos em parceria com órgãos governamentais nos últimos 5/6 anos? Quais os principais projetos (ano/nome/área/principais objetivos)? 5.2 Tipo de parceria: Como você descreveria essa parceria? Esses órgãos governamentais se envolveram no desenvolvimento dos projetos? De que maneira?

5.3 Participação em elaboração de agendas e políticas públicas: (i)

Canais formais: Esta organização participa de conselhos temáticos? Quais? Com que frequência? Quais foram as principais contribuições dessa organização para decisões desse(s) conselho (propostas acatadas, denúncias, proposta de pauta)?

(ii)

Canais informais: Realiza mobilizações, pressões sobre órgãos governamentais? Por que motivo? Quais foram as consequências?

5.4 Relação partidária: Esta organização possui vínculos com algum partido político ou com algum político? Que tipo de vínculo? Com qual partido/político?

6. Sobre o projeto específico: 6.1 Dados sobre o projeto: Nome do projeto: Início: Final: Quantidade de recursos recebida: Tipo de contrato: Participantes: (Outras ONGs, ou outras organizações da sociedade civil, ou empresas...)

6.2 Concepções sobre a área:  

114   

(i) Experiência: Há quanto tempo esta organização trabalha nessa área? Quais outras experiências esta ONG já teve no desenvolvimento de projetos nessa área? Contou com parceria de órgãos governamentais? Contou com a parceria de outras organizações? Quais? (ii) Concepções: Como a organização compreende os principais problemas dessa área? De acordo com esta organização, quais seriam os principais meios para resolver esses problemas? Como a organização definiria o públicoalvo das ações propostas? (iii)Surgimento do Programa e expectativas: Como surgiu esse programa? a) O Governo Federal (órgão responsável) promoveu alguma licitação? Ou a ONG apresentou um projeto seu? Foi chamada por alguém que já conhecia no governo? b) Houve pressão de setores organizados da sociedade sobre o governo para incluir em sua agenda esse tipo de projeto? Que tipo de pressão? c) Por que essa organização se envolveu com esse projeto? Quais motivos (recursos financeiros, extensão de influência da organização, reforma dos serviços...)? d) Quais eram as expectativas quanto à parceria com esse órgão governamental no início do projeto?

6.3 Relação com estado durante o desenvolvimento do projeto: (i)

Parceiros: Quem participou desse projeto? Que órgãos governamentais estavam envolvidos? Outras ONGs também participaram desse projeto? Quais?

(ii)

Divisão de tarefas: Quem era responsável por que tarefa? Qual o papel desta ONG? E das outras ONGs/organizações envolvidas? E dos órgãos governamentais envolvidos?

(iii)

Decisões sobre principais diretrizes: a) Como foram estabelecidas prioridades, formas de ação? Como foi definido o público-alvo das ações deste projeto? Quem participou dessas decisões (a população-alvo ou grupos específicos da sociedade civil foram consultados/participaram)? Como ou através de que canais (discussões, reuniões, consultas, eventos específicos)? b) Houve conflito de concepções, interesses entre esta organização, outras ONGs envolvidas e o órgão governamental parceiro? Sobre que aspectos? Como conflitos foram resolvidos ou qual concepção prevaleceu? Em que aspectos houve convergência entre concepções entre Estado-ONG e/ou ONGs e outros parceiros?

(iv)

Implementação: a) Como foi a implementação desse projeto? Quem participou da implementação desse projeto? A população-alvo teve alguma participação nesse momento? De que forma?

 

115   

b) Houve algum tipo de conflito entre Governo-ONG ou ONG e outras organizações participantes? Em que questão(ões)? Como conflito foi resolvido? Alguma outra dificuldade na implementação do projeto? Qual(is)?

6.4 Avaliação: (i)

Houve avaliação deste projeto? Como foi feita? Quem estava encarregado da avaliação do projeto? Houve participação do público-alvo? De que forma?

(ii)

Qual foi a avaliação do impacto? Que fatores contribuíram para o sucesso ou fracasso do projeto?

7. Avaliação geral sobre colaboração entre ONG e órgãos governamentais:

7.1 Avaliação da parceria: (i)

Como você caracteriza a parceria com o governo no desenvolvimento desse projeto (muito positiva, positiva, negativa...)? Por quê?

(ii)

O que a ONG ganhou com a experiência dessa parceria (recursos, knowhow, conhecimento sobre estrutura do Estado, visibilidade...)?

(iii)

Quais as principais dificuldades encontradas para desenvolver esse projeto com a parceria de órgãos governamentais?

7.2 Como você avalia a participação de outras ONGs nesse projeto? Quais as principais dificuldade encontradas para desenvolver esse projeto em parceria com essas ONGs? 7.3 Esta organização repetiria essa parceria/ou parceria com outros órgãos governamentais? Em que circunstâncias? Por quê? 7.4 Quais as principais vantagens e desvantagens da colaboração com órgãos governamentais em geral?

 

116   

ANEXO B Lista de ONGs entrevistadas por área e ano de fundação

ONG Área Ano de fundação

ONG Área Ano de fundação

1

Saúde 1986

26

Meio Ambiente 1994

2

Saúde 1985

27

Direitos Humanos/Minorias 1993

3

Educação 1997

28

Saúde 1997

4

Direitos Humanos/Minorias 1970

29

Meio Ambiente 1988

5

Educação 1993

30

Saúde 1991

6

Direitos Humanos/Minorias 1980

31

Educação 1984

7

Meio Ambiente 1999

32

Educação 2003

8

Meio Ambiente 1990

33

Educação 1987

9

Educação 2001

34

Educação 1995

10

Saúde 1965

35

Saúde 1976

11

Educação 1986

36

Saúde 1994

12

Educação 1988

37

Meio Ambiente 1989

13

Saúde 1993

38

Meio Ambiente 1996

14

Direitos Humanos/Minorias 1988

39

Direitos Humanos/Minorias 1990

15

Direitos Humanos/Minorias 1990

40

Meio Ambiente 1997

16

Educação 1998

41

Direitos Humanos/Minorias 1988

17

Meio Ambiente 1988

42

Educação 1993

18

Meio Ambiente 1986

43

Direitos Humanos/Minorias 1992

19

Saúde 1989

44

Direitos Humanos/Minorias 1993

20

Saúde 1999

45

Saúde 2000

21

Saúde 1981

46

Direitos Humanos/Minorias 1997

22

Meio Ambiente 2002

47

Educação 1986

23

Direitos Humanos/Minorias 1981

48

Saúde 1992

24

Direitos Humanos/Minorias 1993

49

Meio Ambiente 2002

25

Saúde 1994

 

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