FUGA DO VIRTUAL OU A VELHA EDUCAÇÃO DE WIMILLE

May 24, 2017 | Autor: R. Venancio | Categoria: Sports History, Motorsports
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FUGA DO VIRTUAL OU A VELHA EDUCAÇÃO DE WIMILLE Rafael Duarte Oliveira Venancio O carro azul parecia uma flecha entre as árvores. No volante, um ídolo francês desafia os limites da velocidade do seu carro. No fim da reta, dentro de um parque lotado por amantes do automobilismo, um menino tropeça e fica no meio da pista. O reflexo do piloto é tamanho que o carro não atinge o menino, mas se choca contra a árvore, partindo-se em dois. Os olhos piscam. Uma injustiça do passado pode ser revertida com o desenvolvimento técnico do futuro? A pergunta ecoava na cabeça, sem conseguir resposta. O interessante é que tal injustiça nem era universal. Nada a ver com fome, pobreza ou desigualdade social. Nada a ver com assassinatos, crueldades e atentados à democracia. Para Jean-Pierre, a vida se resumia a carros. E não era por qualquer carro: sua paixão era por carros Grand Prix. Imaginar o cheiro da gasolina, a viscosidade da graxa, o vento no rosto diante do volante era um dos momentos mais felizes de sua vida. Um desejo bem estranho para um menino de 2249 em um mundo onde não há graxa, gasolina e carros, onde o século XX é uma Belle Epoque para humanos imersos em códigos binários. A paixão por carros era um arcaísmo gigantesco para a era do wetware. A máquina, enquanto oposto do humano, é algo retrô. No século XXIII, o humano se torna nada mais que uma biomáquina. Além disso, a preocupação ambiental faz a humanidade valorizar o transporte coletivo, regulado, deixando os entretenimentos e esportes que envolvem máquinas externas ao corpo biomecanizado do Homem enquanto um desafio para as realidades virtuais. No mundo de Jean-Pierre, não há autódromos, não há corridas, há apenas automobilismo virtual. Nesse mundo, o garoto deixa de ser apenas Jean-Pierre e vira Jean-Pierre Wimille, pilotando belíssimas baratinhas da Bugatti e Alfa Romeo. Em sua mente, sensibilizada por retinas emuladoras de virtualidade, ele vive nos anos 1940 em grandes servidores computacionais que sustentam qualquer aspecto mental da vida biomaquínica. Em seu físico, por sua vez, ele vive no fim dos 2240 com órgãos chipados para prolongar sua juventude, controlando índices de nutrientes e funcionamentos dos órgãos. Aliás, caso um órgão deixe de funcionar, outro totalmente artificial pode substituí-lo. Apenas algumas partes do cérebro que não podem ser substituídas por componentes de wetware no século XXIII, tal como a glândula pineal. Assim, a morte não foi superada, a humanidade apenas brinca com subterfúgios. Quem vê Jean-Pierre, mesmo em um mundo onde o virtual é mais atraente que o real, acredita que ele é um zumbi. Um menino que não brinca com sua época, mas sim fica aos cantos da tecnoescola conectado com outros tais como ele. Assim, a sua vida passa em seus olhos, virtualmente. Ele assume o volante como se fosse o Wimille, jogando um emulador de automobilismo virtual com os companheiros em um tempo onde não vive. E, entre sessão e outra, revê a reconstituição que ele fez do acidente que vitimou Wimille, no circuito montado nos bosques de Palermo, parque na capital argentina, em 1949. Certa vez, um velho professor o apanhara pelos cantos da escola, em estado contemplativo, murmurando o sobrenome. A pergunta saíra de sua boca com um som de sentimento de pena, de dó, produzido por uma faringe eletrônica, posta

após uma cirurgia para conter o desgaste da faringe biológica devido ao consumo excessivo de cigarros: — Qual é o motivo para você querer ser o Wimille, Jean-Pierre? A resposta saiu de maneira monotonal: — Não quero. Eu sou o Jean-Pierre Wimille. No entanto, Jean-Pierre sabia que não era verdade. Ele não era Wimille. Ele precisava ser Wimille para tentar corrigir uma injustiça histórica. Em 1949, o piloto francês era o principal piloto da Alfa Romeo e aquele que melhor se encaixava com o carro que a marca italiana recém-lançara: o 158. A corrida de Buenos Aires, com um Simca Gordini, era apenas um dos preparativos para a temporada do ano seguinte, a primeira vez que aconteceria a Fórmula 1. Sem Wimille, a Alfa Romeo chamou o italiano Nino Farina para o seu lugar e esse piloto, sem qualquer expressão anterior, seria o primeiro campeão da categoria. Mesmo com o fim da Fórmula 1 no século XXII, a lista de pilotos campeões ainda existia em qualquer registro em 2249. E ela era encabeçada por Farina, não Wimille. Essa era a injustiça que Jean-Pierre tentava consertar com horas emuladas de automobilismo virtual em suas retinas. Jean-Pierre, dessa forma, curtia sua solidão com carros virtuais de trezentos anos atrás. Porém, um dia, suas retinas falharam. Bug no wetware, nada mais do que simples visão. Diante dele, um mundo onde ninguém quer olhá-lo pelos próprios olhos. Sem o colorido das fantasias que cada humano biomaquínico constrói com suas tecnoretinas, o mundo do século XXIII é apenas a decadência de uma extrema urbanização mascarada por paliativos de preservação ambiental. Sem a ilusão do virtual, Jean-Pierre pode observar o entorno com um misto de insatisfação. Preciso consertar isso no médico logo após a escola, pensara. Só que sua irritação logo virara curiosidade após notar uma velha construção ao lado da escola. Parecia uma garagem, daquelas que vira simulando box de equipe de corrida no automobilismo virtual, que há muito estava abandonada. Como sempre estava ligado nos servidores, Jean-Pierre nunca notara no entorno de onde estudava diariamente. Nem precisava, afinal a possibilidade de colocar chips em órgãos também cria a oportunidade de criar rotinas neles. Assim, nas pernas de toda criança do século XXIII, o GPS a leva, graças à determinação da legislação vigente, para a escola de segunda a sábado. Apenas o domingo era livre para o descanso e a liberdade de caminhar para onde quiser. Uma ótima solução para acabar com a evasão escolar, de certo pensaram os políticos que virtualmente se encontravam uma vez por semana para decidir os rumos da nação global. Domingo, volto aqui e entro nessa casa. Preciso ver mesmo se é uma garagem, refletiu Jean-Pierre intrigado. Algo dizia que um mundo tão interessante como aquele que suas retinas emulavam podia residir atrás daquelas portas pesadas de ferro. Nunca o real superara o virtual. Nunca sua desatenção nas aulas do colégio fora por sua imaginação e não por um software rodando em seu wetware. Os dias passam, e a liberdade chega. A caminhada para a escola nunca fora tão prazerosa para Jean-Pierre. As retinas foram consertadas, mas não estavam conectadas. Ele não podia perder nenhum detalhe. Aquilo podia ser a descoberta de uma vida, afinal. Como que um lugar tal como esse podia existir?, questionava o garoto, sem entender. Chegando ao local, Jean-Pierre rapidamente quebrou uma janela lateral e seu magro corpo pôde entrar em um amplo galpão iluminado apenas pela pálida luz que passava pelos vidros gastos e pelo buraco que criou. Caminhou lentamente

pela escuridão, tateando o seu arredor. Ele poderia ter acionado o infravermelho presente no wetware de suas retinas, mas aquilo poderia estragar o momento. De súbito, ouvira um som metálico. Sua perna batera em uma estrutura de cor azul que parecia maior que ele. Ao direcionar os seus olhos para a direção, parecia não conter as lágrimas. Seu raciocínio ia interpretar tudo que via quando a luz exterior fortalece e um homem com um pouco mais de trinta anos de idade fala na direção de Jean-Pierre: — Bugatti Type 57G, versão Tank. Não se faz carros mais assim. É uma obra de arte. Tenho certeza de que você deve ter visto em um desses joguinhos que garotos da sua idade jogam – falou o estranho. — Sim, claro! Esse é um carro campeão! Qualquer um que conheça história sabe da sua importância e como a injustiça não o faz menor – exclamou o outrora zumbi Jean-Pierre, que parecia gritar cada letra do que havia falado. Ainda bem que seu coração não tinha um daqueles monitoramentos tal como sua vó implantara. O chip estaria louco com os batimentos que pareciam estourar o peito. — Então deixa de bobagem, rapagote. Tenho certeza de que você conseguirá dirigi-lo. Entre, vamos dar uma volta com ele pelo terreno – apontou o homem para as portas do fundo que pareciam levar para um amplo parque. Mas, antes, não se esqueça da vestimenta de piloto. Ela está no banco do motorista. Jean-Pierre saltou no conversível e colocou a touca de couro e os olhos de proteção. Com o portão liberado e seu novo amigo no banco do carona, ele pôde, pela primeira vez, sentir o cheiro da gasolina e o vento no rosto diante do volante. A emoção em seu cérebro era tamanha que ele se esquecera que vivia no século XXIII em um mundo onde não há graxa, gasolina e carros. Como isso seria possível? Será que ele voltara para o século XX? Tais questionamentos que o racional Jean-Pierre faria antes, ficavam ocultos, enquanto ele curtia a emoção de um automobilismo real. Pensamentos são tais como os carros do wetware de suas retinas: virtuais. O real é sempre mais atraente. Enquanto guardava o carro na garagem, Jean-Pierre voltava a si e arriscava a questionar o rapaz do carro. Antes que esboçasse o primeiro som, o homem virou-se para o garoto: — Esse carro foi de um grande piloto. Alguém que escolheu o seu caminho na diretriz da caridade e da coragem de servir a todos. Eu sei que você quer ser como ele, mas é hora de você seguir o seu caminho. Deseja ousar nesse caminho? – diziam os olhos daquele companheiro de pilotagem — Não sei. Há tantas dúvidas. Eu mal posso acreditar nos meus olhos. Parece que as novas retinas vieram com defeito e estou vivendo no meu videogame – choramingou Jean-Pierre. — Um grande piloto, certa vez, ao escrever sobre o amigo que morrera nas pistas questionou quem poderia dizer que ele não viu mais, fez mais e aprendeu mais em seus poucos anos que a maioria das pessoas o faz em uma vida. Para esse ás no volante, fazer algo bem é algo tão valioso que morrer tentando fazer melhor não pode ser considerado tolo. Assim, seria um desperdício de vida não fazer nada com a sua habilidade porque, vista assim, a vida é medida em conquistas, não em anos apenas – dissertou o moço. Após as últimas palavras ecoarem em sua mente, Jean-Pierre disse baixinho que aceitava o desafio.

— Muito bom! Precisamos desabilitar todo esse wetware em você para isso. Serei seu guia nessa caminhada. Mas há algo que você precisa saber logo de início – afirmou resoluto o novo amigo. — E o que seria? – falou Jean-Pierre com cara de interrogação. — Meu nome também é Jean-Pierre e eu fui e, de certa maneira, ainda sou o dono desse carro – falou o moço deixando o rosto aparecer melhor para o garoto que, levemente, parecia desmaiar.

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