Fulgores de Fátima, I (o rosário e o escapulário)

June 14, 2017 | Autor: Pedro Sinde | Categoria: Rosario, Filosofia da Religião, Religião, Fátima
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Cultura > “Calcedónia ⁄ Gerês” – 2014 [Foto de Avelino Lima

QUARTA-FEIRA • 14 DE OUTUBRO DE 2015

Diário do Minho Este suplemento faz parte da edição n.º 30826 de 14 de outubro de 2015, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente

Diário do Minho

Cultura

QUARTA-FEIRA, 14 de outubro de 2015

III

Fulgores de Fátima (I)

O escapulário e o rosário POR

PEDRO SINDE

– Duas armas para a “grande guerra santa” Para J.-C. P.

As palavras que se seguirão procurarão reflectir sobre alguns aspectos, eventualmente menos notados, das aparições de Fátima. Estes textos não têm nenhuma ordem explícita, são apenas reflexões que procuram olhar para o tema das aparições a partir de diferentes ângulos, de modo a ir extraindo vários aspectos que nem sempre aparecem explicitamente; trata-se, afinal, de uma das grandes manifestações dos céus: as primeiras aparições do século XX e as maiores de que se tem conhecimento.

O leitor achará natural a referência ao rosário no título de um texto sobre as aparições de Fátima; no entanto, poderá espantar-se por aí se fazer referência explícita ao escapulário. Há várias razões importantes para isso, mas seria suficiente dizer que a Senhora do Carmo foi a última forma de que a Virgem se revestiu, na derradeira aparição, a 13 de Outubro de 1917, com o escapulário no braço direito; de resto, a importância atribuída ao escapulário foi reconhecida por Lúcia ao afirmar (bem antes de 1960) que o escapulário “é parte integrante da mensagem de Fátima” e ainda que “o Escapulário e o Rosário são inseparáveis” (Kyliano Lynch, Nossa Senhora de Fátima e o Escapulário). Podemos ainda lembrar estes dois elementos: por um lado, a veneração da Senhora do Carmo em Fátima é muito antiga e, por outro, a própria Lúcia acabou por entrar no Carmelo.

Nesta última aparição, a Virgem mostrou-se sucessivamente sob três aspectos: primeiro como Senhora do Rosário, depois como Senhora das Dores e, finalmente, como Senhora do Carmo, isto é, mostrou, de forma eloquente, três aspectos ou etapas vitais de qualquer caminho espiritual. Podemos dizer, entre outras coisas, que para chegarmos à paz do Carmelo, ao jardim da Virgem, ao Paraíso na Terra, começamos pelo fervor da crença (ou do conhecimento), representado no rosário, e que, com a sua ‘luz’ e com o seu ‘calor’, vai fixar o volátil e dissolver o fixo: por um lado, vai fixar a mente dispersa (agora cativada pela luz do rosário) e, por outro, vai dissolver a ‘dureza do coração’, os aspectos da alma que estão ‘endurecidos’, a insensibilidade, quer dizer, vai despertar a alma, retirando-a do sono e da passividade – ou do esquecimento – em que vive, introduzin-

do no seu dia-a-dia estes momentos de graça, de meditação, de oração, de invocação. Se para a alma decaída o processo de transformação é, naturalmente, doloroso, o seu fim é, no entanto, com a ajuda de Deus, glorioso.

nessa altura: segundo a tradição, o rosário foi dado numa visão a São Domingos, ou aos Dominicanos, e o escapulário a São Simão Stock, ou aos Carmelitas. É muito

FILÓSOFO E BIBLIOTECÁRIO

interessante que o escapulário tenha sido dado à guarda dos Carmelitas, que são uma ordem contemplativa, e que o rosário tenha sido dado à guarda dos Do-

O escudo e a lança Podemos dizer que o escapulário e o rosário são duas armas de que os céus muniram os cristãos para a sua luta celeste na terra, a grande guerra santa, que é a luta empreendida por quantos sentem o impulso para ir além de si mesmos, por quantos têm a reminiscência e, por isso, o desejo ou a saudade do paraíso. É uma luta pela santidade, uma luta para reverter a substância da alma decaída tomando como modelo a substância pura da Nossa Senhora, seja como modelo de Mãe, de Esposa ou de Virgem: uns e outros se sentindo mais próximos deste ou daquele aspecto. Estas duas armas – escapulário e rosário – foram dadas pela Providência para este final dos tempos – todas as aparições o têm confirmado: de Fátima a Akita, no Japão. Ambas foram, curiosamente, transmitidas pela Virgem no século XIII, como numa cadeia iniciática vertical: o rosário em 1208 e o escapulário em 1251. Embora um e outro sejam anteriores a esta época, foram como que ‘sacramentados’ pelos céus

Imagem de Nossa Senhora do Carmo

IV

Cultura

minicanos, uma ordem activa de pregadores, porque, como veremos já de seguida, na relação que estabelecem entre si, o rosário é justamente uma expressão da acção, e o escapulário, uma expressão da contemplação. O escapulário tem a função imediata de proteger o hábito durante o trabalho dos monges. Essa função é, em si mesma, reveladora do papel espiritual que desempenha: não permitir que a sujidade do mundo, como lhe chama São João, conspurque a alma já revestida pelo hábito. O escapulário não purifica, a sua função é manter o hábito puro ou preservá-lo da sujidade. O rosário – a sua recitação – é que purifica. O escapulário é, pois, feminino, contemplação, presença maternal da Virgem – o monge; o rosário é masculino, acção, luta – o guerreiro. Se nos servirmos do simbolismo bélico da luta interior pela conquista da nossa alma, podemos dizer que o escapulário é como um escudo (ou uma armadura) que nos protege dos golpes do inimigo; já o rosário é como uma lança (ou uma espada) que nos permite vencer o inimigo. O escapulário é, pois, passivo e o rosário é activo. Dissemos que o rosário purifica e que o escapulário preserva a pureza; podemos dizer, também, que o escapulário representa todas as virtudes passivas: a humildade, a paz, o retiro – fugir ao mal – e que o rosário representa todas as virtudes activas: a coragem, a generosidade, o amor, o fervor – procurar o bem. Na relação com o tempo, o escapulário representa a imobilidade, a eternidade, a quietude, porque se veste uma vez e está sempre connosco, como sinal de um estado de presença. – A unidade

da acção por entre a multiplicidade dos eventos. Já o rosário tem algo de rítmico ou cíclico ou de renovação, porque cada conta é uma oração recomeçada: damos a volta ao rosário para recomeçar num movimento sempre renovado, como o dos astros nos céus, sempre o mesmo, sempre outro; como diz o meu amigo Rodrigo Sobral Cunha: no “caminho de sempre cada passo é novo”. Quando o eterno se dá no tempo, dá-se pela reiteração renovada, cada conta sendo um momento que ‘contém’ a eternidade, uma breve paragem no tempo, como um solstício, para continuar na linguagem dos astros. – A multi-

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Diário do Minho

plicidade dos eventos elevada à unidade da acção. O ritmo incantatório, a ‘ladainha’, tem a função de adormecer o ‘eu’ superficial (a que por convenção se chama ‘ego’), para despertar o ‘eu’ profundo, aquele que está desde já na ‘terra pura’, na ‘terra lúcida’. Despertar o que está adormecido, adormecer o que está acordado. Nas Mil e uma Noites, todos nos lembramos da subtileza com que Xerazade vai enlaçando umas histórias nas outras (como os dedos nas contas do rosário), por tal modo que sempre fique a meio de uma quando a noite acaba para que na noite seguinte a curiosidade do Sultão o leve a querer saber como vai acabar, adiando assim a sua morte. No entanto, não reparámos, talvez, que Xerazade vai dormir e, a cada noite, antes de o sol nascer, quem a desperta é a sua irmã: Dinarzade. Dinarzade é esse ‘eu’ profundo, sempre desperto (Dur-

mo, mas o meu coração vigia, diz Salomão); Xerazade é o ‘eu’ superficial, ligado ao mundo de maya, mas já dominado pelo ‘eu’ superior, que o mantém acordado – Xerazade é já senhora do mundo de maya, mostrando na mestria das suas histórias que bem conhece por dentro este aspecto do feminino. Podemos ainda dizer que, na relação com o mundo, o escapulário simboliza um certo modo de estar no mundo sem se ser do mundo, de saber e, por isso, de viver a verdade de que o reino dos céus está dentro de nós. Representa, assim, a alma que atingiu a estação da serenidade e que, desse modo, está enraizada no alto, no centro ou no fundo: “Regressa ao teu Senhor, ó alma pacificada!”, diz-se no Alcorão. Em linguagem alquímica, podemos equiparar o rosário ao princípio activo ou enxofre que actua sobre o chumbo – que é a alma em estado de pecado –, o ‘misto’, a ‘amálgama’, que deve sofrer a operação de separação do denso e do subtil. Tal operação só se dá dentro de um vaso hermeticamente fechado: coisa que vem a representar, justamente, o escapulário. É ao abrigo do escapulário, por assim dizer, que a alma vai passar pela noite escura (como lhe chama São João da Cruz) para se ir purificando e restabelecendo a hierarquia principial: deve estar em cima o que é de cima e em baixo o que é de baixo, como no cosmos, cada elemento ocupará o seu lugar

Ícone da Mãe de Deus de Fátima, pintado pelo iconógrafo ortodoxo russo Ivan Lvovich, a pedido do sacerdote católico Otets Aleksandr Burgos-Velasco. Representa sinteticamente a mensagem de Fátima. No ícone, podem ler-se, em caracteres eslavos: em cima à esquerda, a abreviatura de “Maria”; em cima à direita, a abreviatura de “Mãe de Deus”, Theotokos. Na zona central, a frase superior diz: “Imagem da Santíssima Virgem de Fátima”, por baixo diz: “Em Ti, a unidade”. No coração da Virgem pode ler-se a palavra “Coração”, Sertse. natural para desempenhar a sua função. Esta transformação é dolorosa, porque o ‘ego’, habituado a fazer o que quer, vai reagir, quando se vir privado do mundo, ou melhor, do estado de mundanidade. Regressará ao mundo, mas de outro modo, quando, como nos contos tradicionais, o príncipe tiver libertado a princesa refém do dragão. Em linguagem vegetal, podemos dizer que o escapulário representa a terra escura (húmida), que nutre a semente; já o rosário

representa a luz que vem do alto com a dupla função de aquecer e iluminar ou atrair até si a nova planta (que é o que, lembra António Telmo, significa ‘neófito’). Querer a transformação espiritual sem o movimento de retiro mostra certo irrealismo espiritual e um desconhecimento da lição da semente, para não falar nas palavras de Cristo. No caminho espiritual, é um erro comum perder a vigilância quando se passa por um período de paz, tomando o provisório

por definitivo. Por isso, nunca o cristão deixará a prática do rosário. Um dos aspectos mais importantes da vida espiritual é a constância da prática. Outro é essa prática ser sacramentada: o rosário e o escapulário obedecem a estas duas condições; são, por isso, dois elementos da graça divina, em que foram infundidos, segunda as palavras da Virgem, poderes tremendos para tempos terríveis. Fátima vem lembrar que os dois são essenciais na vida do crente. ◗

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