Fulgores de Fátima, II (a oração do anjo: palavras e gestos: 1)

June 14, 2017 | Autor: Pedro Sinde | Categoria: Filosofia da Religião, Religião, Angelologia
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QUARTA-FEIRA • 18 DE NOVEMBRO DE 2015

Diário do Minho Este suplemento faz parte da edição n.º 30861 de 18 de novembro de 2015, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente

> “Poente...” / Alcochete – Junho/2014 [Foto de José Eduardo Areosa

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QUARTA-FEIRA, 18 de novembro de 2015

Diário do Minho

Fulgores de Fátima (II)

A oração do Anjo: palavras e gestos – 1 POR

PEDRO SINDE FILÓSOFO E BIBLIOTECÁRIO Três crianças apascentam as suas ovelhas num olival nas cercanias de um pequeno povoado. Um vento forte, súbito, sacode as oliveiras em torno e as crianças, que jogam às pedrinhas (a este jogo também se chama ‘Cinco Marias’...), erguem a vista para ver o que se passa, pois está um dia sereno de Primavera. Vêem uma figura angélica encaminhando-se na sua direcção. É a primeira das três aparições que o Anjo fará neste ano. Estamos em 1916, mesmo no coração de Portugal. No ano anterior, em 1915, um Anjo – na verdade, Lúcia julga tratar-se do mesmo – aparecera também três vezes, ao meio-dia, entre Abril e Outubro, sempre pelo mesmo lugar: a Colina do Cabeço. Aparece ao longe, indefinido, silencioso; Lúcia descreve-o com ‘forma humana’, como uma ‘estátua de neve’, ou ‘mais puro do que a neve’, que os raios de sol tornam um pouco transparente. A primeira aparição deste ano é na direcção Sul; já no ano seguinte, a primeira aparição será na direcção Nascente – de onde virá a Virgem e para onde retornará a cada aparição. Lúcia e mais três crianças, ainda não Jacinta e Francisco, que só começarão a acompanhá-la no ano seguinte, contemplam aquela figura que se manteve presente enquanto rezam o terço, desaparecendo assim que terminam. O Anjo do rosário, podemos chamá-lo assim, parecia, por este modo, isto é, manifestando-se durante a recitação, dar já o sinal da imensa importância desta prática, verdadeira arma contra o mal e os males do mundo. A Virgem, de resto, o confirmará nas suas aparições. Estas aparições de 1915 são como que uma preparação, em breves visitações, das aparições do ano seguinte; de algum modo, as três aparições angélicas de 1915 preparam as três de 1916 e estas preparam as seis aparições da Virgem de 1917. Há, assim, uma aproximação gradual do sagrado, do sobrenatural, uma gradual presentificação, que irá culminar, por irradiação, ao manifestar-se a cerca

de 70.000 pessoas na última aparição, em Outubro de 1917. É assinalável que as doze aparições sucedam sempre entre a Primavera e o Outono e ainda que haja uma bela e eloquente simetria de seis aparições do Anjo e seis aparições da Virgem. Lúcia, a mais velha das crianças, destinada a desempenhar um papel mercurino ou intermediário entre a terra e o céu, foi desde

As aparições do Anjo (em Fátima) de 1915 são como que uma preparação, em breves visitações, das aparições do ano seguinte; e de algum modo, as três aparições angélicas de 1915 preparam as três de 1916 – e estas preparam as seis aparições da Virgem ocorridas em 1917.

logo tocada pelo mistério da presença sagrada nestas primeiras breves visitações de 1915: Esta aparição deixou-me no espírito

uma certa impressão que não sei explicar, dirá nas Memórias (I, 168 1). Certamente, estas primeiras aparições predispuseram a sua alma por tal modo que, quando no ano seguinte o Anjo lhe aparece, é a mais segura das crianças, a mais consciente também. E há uma gradação entre as três crianças, porque Francisco apenas vê, mas não ouve, o Anjo; Jacinta vê, ouve, mas não fala com o Anjo; só Lúcia vê, ouve e conversa com o Anjo, como só ela conversará com a Virgem. De resto, só Lúcia participou nas seis aparições do Anjo, também só Lúcia estava destinada a permanecer mais tempo na terra; os outros dois visionários haveriam de morrer passado pouco tempo – como se o seu ‘vaso’ fosse demasiado frágil para aguentar de modo prolongado a exposição à presença intensíssima do divino e a sua alma, elevada ao rubro, deixasse para trás o corpo já purificado: na altura da trasladação dos restos mortais de Jacinta para o cemitério de Fátima, em 1935 (morrera em 1920), o seu corpo estava incorrupto. Esta hierarquia parece mostrar-nos que os três formavam, na relação com o transcendente, como que um único ser, cumprindo cada um uma função necessária à espantosa teofania que viria; como se formassem, por analogia, o corpo (Francisco), a alma (Jacinta) e o espírito (Lúcia, cujo nome significa, de resto, ‘luminosa’). E a analogia é confirmada pelos factos, porque, como vimos, Lúcia é a única dotada de palavra, do verbo, perante o sagrado; a Jacinta serão dadas várias visões, demonstrando uma especial atitude visionária, justamente, no mundo da alma no mundo intermediário ou mundus imaginalis. Francisco, na relação com as aparições, parece não possuir o dom da palavra, pois nem ouve nem fala, apenas assiste. Lúcia e o Anjo formam como que dois elos que ligam o céu e a terra, como os degraus de uma escada de Jacob, pela qual circula

o divino diálogo. Se o Anjo é como que o lado celeste do elo céu-terra, Lúcia é o lado terrestre deste elo. Assim, o sagrado parece manifestar-se numa progressiva ‘incarnação’, elo após elo: Deus-Pai – Jesus – Virgem – Anjo – Lúcia – Jacinta – Francisco. Aquando da aparição da Virgem, a relação estabelecer-se-á directamente, sem a mediação do Anjo. Se as aparições de 1915 foram meros avistamentos indefinidos, já nas de 1916 o Anjo aparece com nitidez inequívoca, comunicando às três crianças que Deus tem uma mensagem e uma missão para elas e ensinando-lhes o modo de se purificarem e prepararem. Uma oração As palavras ditas por um Anjo, um mensageiro de Deus, elemento intermediário entre o mundo espiritual e o mundo sensível, são necessariamente o espelho da vontade divina. Dito de outro modo, as palavras de um Anjo são necessariamente expressão da verdade, ainda que esta possa reverberar numa multitude de graus de significação sucessivamente mais profunda. Em Fátima, o Anjo vem com a clara missão de preparar as três crianças para a aparição da Virgem: ensina-as a rezar, ensina-lhes o comportamento que Deus requer delas. Mas a mensagem do Anjo às crianças, se foi para elas exclusivamente, em certa medida e em certos aspectos, no entanto, também é para nós, que podemos lê-la como se expressasse o itinerário da alma para Deus. Vejamos, se tivermos isto em mente, o que nos pode dizer e ensinar o Anjo a nós. Lida à superfície, a oração é simples, ingénua, quase não se distingue de uma qual-

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quer oração piedosa; mas olhada de perto, logo deixa entrever uma coerência, uma ordem, uma completude, que só o sagrado sabe dar de modo tão espontâneo, directo e lúcido. A oração que o Anjo ensina aos três meninos é a seguinte:

Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-Vos. Peço-Vos perdão para os que não crêem, não adoram, não esperam e não Vos amam.

A Coca de Monção

Posição do corpo, disposição da alma As orações do Anjo não devem ser desvalorizadas, elas são tão importantes que, mesmo depois das aparições da Virgem, as crianças continuam a rezá-las (I, 127). O Anjo ensina-lhes as palavras da oração a que a sua mente se deve apegar e, porque a alma deve expressar-se no corpo, explica-lhes também em que posição devem dizê-las: em completa prostração. A descrição de Lúcia corresponde com rigor à prostração como a fazem os muçulmanos: ‘E ajoelhando em terra, curvou a

fronte até ao chão e fez-nos repetir três vezes’ a oração acima (I, 77). Era assim que as crianças deveriam rezar, o corpo acompanhando, manifestando, exteriorizando, a alma: a posição do corpo adequada à disposição da alma, porque a oração não é uma ‘coisa mental’, mas um momento em que a criatura se dirige ao seu Criador e, por isso, estando inteiramente presente: de corpo, alma e espírito – ‘Amarás, pois, ao

Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de todas as tuas forças’ (Mc, XII, 30). O Anjo ensina-lhes a oração e a posição, as crianças sentem em si o impulso para o imitar,‘levados por um movimento sobre-

natural, imitámo-lo e repetimos as palavras que lhe ouvimos dizer’ (I, 169). A posição prostrada é de uma eloquência magnífica, mostra a completa submissão do corpo e da alma ao espírito ou do homem a Deus ou da criatura ao Criador. Neste gesto, de simbolismo universal, Deus exige-lhes a completa submissão. Só depois se lhes revelará plenamente pelo aspecto feminino e maternal da Virgem. A fronte no chão mostra-nos que a mente deve estar dominada, controlada. As crianças, depois de receberem esta oração, hão-de repeti-la até à exaustão, como uma oração jaculatória ou um mantra do hinduísmo ou um dhikr do islamismo, assim purificando a mente e tirando-a da dispersão. Quando na segunda aparição o Anjo surpreende as crianças a brincar no poço do Arneiro, diz-lhes: ‘Que fazeis?

Orai! Orai muito!’ ◗ 1

Todas as referências são à 13.ª edição das

Memorias da Irmã Lúcia. O número romano identifica o volume e o árabe identifica a página. Continua em “Fulgores de Fátima, II / A Oração do Anjo: palavras e gestos – 2” (a publicar em breve neste caderno)

POR

MÁRIO ESCÓCIA ESCRITOR

Ano 635 d. C. O rugido, gutural e cavernoso, emerge do fundo lodoso da tenebrosa gruta ecoando nas falésias à beira rio. Pascásio de Dume retira a lança de caçar javalis da água benta empunhando-a atabalhoadamente, eu acalmo-lhe o nervoso pulso, relaxando-o: – Tenha calma, Frei, ela não vai sair da toca, tenho que ir lá eu. – Ele engole em seco coçando a tonsura. – Deixe lá, é para isso que me pagam. – Digo-lhe, pondo-me de pé, tomando o peso da azagaia e, depois de ajeitar a pesada armadura de escamas, continuo a confidência: – Quando o Xamã me disse, na minha longínqua infância na estepe, que seria caçador, eu, na minha inocência, presumi que fosse treinar com os cães dos alanos; só me apercebi que a coisa era séria mesmo quando o maldito feiticeiro me obrigou a tomar uma infusão de cogumelos mágicos. A contra-gosto, bebi, sabendo que aquela mistela provocaria visões, durante uma hora andei à volta com aquilo no estômago. Depois é que foram elas, o xamã levou-me a uma fenda… – A uma fenda? Relembro a dor ausente como uma súbita facada no estômago, encurvo-me derramando o hidromel pontapeando o banco e atirando a bandeja ao chão, lá fora o vento rugia. O huno pega-me pelos cabelos puxando-me a cabeça para trás e berrando-me ao ouvido: – Não te apagues e abre os olhos! – mas parece que tudo explode na minha cabeça, a realidade contrai-se e dilui-se, sei que estou nu no chão e a cabana encolhe-se e aumenta… – Concentra-te no fogo, Dagoberto, é essa a essência deles! – Focalizo a fogueira, e ouço… ouço… os cânticos do xamã do país das eternas neves ressoando-me nos intrincados labirintos da mente. Parecia que estava de volta a algo, à minha infância, mas como posso recuar à minha infância? Será que já cresci? Lentamente, ou de repente, tudo se aclara e fico desperto, tal qual um falcão planando no alto da montanha branca à cata de presa. – Perguntas-te o que fazemos aqui? – Eu sei o que fazemos aqui, Mestre, vocês procuram dotados. – Respondo-lhe. Dói-me novamente a barriga e torno a curvar-me, o cogumelo das visões cobra o seu preço. – Sabes?, Dagoberto, o homem para sobreviver sempre lutou contra quem o quer devorar e controlar, seres míticos e imortais que nos tentam sempre pisar a cauda. – A cauda?

– Sim, Dagoberto, os homens já tiveram cauda e um olho aqui no meio da tua testa, o mesmo que estás a abrir agora. – noto que algo está lá fora a escarafunchar. – Mestre… – pergunto febril... – existe algo lá fora? no vento gélido? – Sim, existe algo lá fora, mas não está no vento gélido, está noutro nível, no dos infernos… – fico assustado. – Queres espreitar? – Leva-me amarrado aos ombros por uma frecha da tenda, o vento parará de uivar e a medo e com tremuras miro pela fenda através da escuridão. A princípio a visão lacrimejava e não via nada, mas depois algo se movia rapidamente nas trevas primordiais e eram vários e eram rápidos e, pelos sons grotescos que faziam, estavam a devorar e a triturar o que me pareceu ser pedaços de nada. O mestre puxa-me de volta: – Dago... o que eles estão a fazer? Pensa com teu terceiro olho, o mesmo que usas para os ver. – Raciocino e deixo brotar as conclusões óbvias: –· Eles estão a devorar a realidade, mas quem raios são eles, mestre? – O huno torna a levar o meu terceiro olho à fenda negra da tenda. De novo enxergo; devoravam com as suas largas mandíbulas e seus afiados dentes pedaços de ar que se tornava matéria nas suas bocas como nacos de carne. Um deles, de pele escamada de cobra oleada, aproxima-se da fenda e põe-se a perscrutar-me com um olhar agudo de lagarto brilhante e amarelado. Grito e tento escapar, o mestre puxa-me para trás e desfaz a fenda como se atirasse areia e terra para tapar um buraco invisível… Ajoelho-me de cócoras. – Água, água! Por Wodanaz! Pelos nove deuses do palácio de estacas! Mestre, o que foi o que eu vi?...” – Fico anestesiado, olhando a gruta… – Que é que viste, Dagoberto? – Freire, farás uma história sobre mim? – Todos os anos te farei uma homenagem se a derrotares, mas… afinal o que viste… era o quê, rapaz! – Encolho os ombros: – Eram dragões! ◗

VII

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