Fulgores de Fátima, III (a oração do anjo: palavras e gestos: 2a)

June 14, 2017 | Autor: Pedro Sinde | Categoria: Filosofia da Religião, Religião, Fátima, Angelologia
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Cultura > “Simbologia de Natal” – Natal 2015 [Autor: José Rodrigues Lima

QUARTA-FEIRA • 16 DE DEZEMBRO DE 2015

Diário do Minho Este suplemento faz parte da edição n.º 30889 de 16 de dezembro de 2015, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente

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Fulgores de Fátima (III)

A oração do Anjo: palavras e gestos – 2A POR

Prosseguimos hoje com a publicação do artigo “Fulgores de Fátima”, da autoria do doutor Pedro Sinde. A 1.ª parte deste artigo foi publicada no dia 18 de novembro. O Anjo ensina as crianças a rezarem assim: “Meu Deus, eu

creio, adoro, espero e amo-Vos. Peço-Vos perdão para os que não crêem, não adoram, não esperam e Vos não amam”.1 E a nós, o que nos dizem estas palavras? Uma oração em duas partes... A voz do crente ergue-se a Deus directamente, é a primeira coisa que o Anjo parece ensinar nas palavras inaugurais: ‘Meu Deus’: ‘meu’ e não apenas ‘Deus’, porque se trata de uma oração pessoal ligada a um ‘eu’ particular e não a um ‘nós’ representativo de toda a humanidade, como nas orações canónicas, o Pater ou a Ave (‘Pai nosso que’... ou ‘rogai por nós’), em que o orante está pela humanidade inteira; nas orações canónicas, o sujeito da oração é o homem em si mesmo e não este homem em particular (ver Frithjof Schuon, As estações da sabedoria,

cap. ‘Modos da oração’). A seguir diz ‘eu’, sendo já como um núcleo central sublimado e não um ‘ego’ fechado em si mesmo e no seu pequenino mundo fragmentado e voltado para o múltiplo, mas antes aberto para cima, para Deus, para o centro de si mesmo, pois metafisicamente só Deus pode dizer ‘eu’. Dirigindo-se a Deus directamente, deve a alma do crente erguer-se pura e digna, afirmando a sua fidelidade de modo inequívoco, limpo, sem hesitações. A primeira característica que se destaca nesta oração é a sua clara divisão em duas partes, uma espelhando a outra, o positivo e o negativo; não se trata, no entanto, de uma relação estática entre as duas partes, mas de uma relação tal que a primeira parte tenta trazer a si, sublimar, por assim dizer, a segunda parte, quer dizer, a alma crente procura trazer para o seu lado a alma daqueles que vivem perdidos, fechados ao amor do Criador pela criatura – amor que

deve ser recíproco, amor que deve ser correspondido. É uma oração dirigida a Deus a partir do ponto central da alma – o ‘eu’, imagem terrestre do si-mesmo. Desde esse ponto central, a alma, falando directamente a Deus, num diálogo íntimo, num oaristo, faz ao seu Criador a declaração de amor: como a amada ao amado. E, porque a alma vive entre outras almas, vem a realizar a segunda declaração – pedindo perdão por aqueles que não amam, sentindo o outro como um outro ‘eu’: amando o outro como a si mesma. Assim se poderia sintetizar esta divisão da oração em duas partes: uma espelho da outra, uma revendo-se na outra, uma amando a outra como se ama a si mesma e, por isso, pedindo perdão pela outra. A primeira parte é a expressão da fidelidade da alma ao seu Criador; a segunda é a expressão da generosidade, quebrada assim a casca do egoísmo, que podia nascer da primeira parte se não fosse acompanhada pela segunda; para não falar do orgulho ou do narcisismo. Também podemos dizer que a primeira frase é uma afirmação de si mesmo na relação com Deus, o estabelecimento da vertical, da relação da criatura com o Criador. A segunda frase é a consequência da primeira: uma irradiação para o outro, a expansão horizontal. A vertical e a horizontal: a cruz. Ou ainda: a primeira parte é uma ascensão e a segunda uma descida; ou uma interiorização, um voltar-se para o centro de si mesmo, para Deus,

e uma exteriorização, um voltar-se para a terra, para o outro, para fora de si. Ou seja, podemos caracterizar a primeira fase como um movimento centrípeto, isto é, de integração ou harmonização dos elementos periféricos da personalidade ou do ‘eu’ no centro: o único centro é Deus; e a segunda fase pode ser caracterizada como um movimento centrífugo, de refluxo, como consequência do primeiro movimento. De certa forma, também se mostra nesta oração que a contemplação (a primeira parte) prima sobre a acção (a segunda parte) ou que a acção é uma consequência da contemplação: ora et labora. Como, de resto, D. Nuno Álvares Pereira ilustrava, bem perto de Fátima, na batalha de Aljubarrota, em 1385, retirando-se antes da batalha para rezar fervorosamente, junto ao estandarte da Virgem e com o grito de guerra: “Em nome de Deus e da Virgem Maria!” Uma oração em quatro palavras... Se agora começarmos a absorver as palavras do Anjo, podemos reparar facilmente que existem quatro núcleos que se repetem nas duas partes da oração, quatro núcleos que são quatro verbos: crer, adorar, esperar, amar. Que significado têm estas palavras para a alma? Que alquimia escondem? Vamos olhá-las individualmente, procurando encontrar pistas para o modo como se relacionam entre si e como se podem relacionar connosco. No

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entanto, por muito que possamos reflectir sobre elas, não podemos nunca esquecer que a oração do Anjo visa um fim ‘operativo’ imediato, visa claramente uma metanoia, uma purificação, uma transmutação da alma das três crianças (e, por extensão, daqueles que agora a repitam); não se trata de uma especulação metafísica, mas de uma oração e, por isso, implica uma adesão vital, como se o crente devesse ele mesmo fazer-se em certa medida criança. A oração, na sua simplicidade desconcertante e com o seu ritmo simultaneamente seguro e terno manifesta a beleza, o seu conteúdo imediato expressa a bondade e a sua profundidade de sentido, veremos já, é como um reflexo da verdade; sempre o divino se exprime pelo triplo atributo de beleza, bondade e verdade. A beleza é o lado mais aparente ou exterior, vê-se de longe. A bondade já implica a acção, assiste-se mais de perto. A verdade é o lado mais íntimo das coisas, vê-se por dentro. Assim, sendo bela, a oração será como um movimento incantatório insinuando-se na alma do crente; irradiando e exemplificando a bondade, a generosidade, o amor pelo próximo, transformará a alma do crente; reflectindo a verdade, despertará no homem a reminiscência do que sempre soube mas tem esquecido: o conhecimento de Deus; assim, irá transformando a crença em ciência, para usar a bela expressão de Álvaro Ribeiro; transformando a crença em ciência, poderá transformar o saber em sabor.

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Por aqui podemos já antever que a oração tem diversos níveis: um, muito imediato, em que apenas requer do crente a adesão completa à letra; outro – para quem tenha vocação –, o de procurar subir, cautelosamente, da letra ao espírito, pois as palavras do Anjo não podem senão estar imbuídas, grávidas, do espírito de Deus. Vamos verificar ainda que esta oração tão desconcertantemente simples, guarda em si todo um itinerário da alma para Deus; sempre o divino é simples e fecundo; na economia divina tudo se reduz a poucos princípios essenciais: quando a água sai da fonte é um fiozinho transparente, só na descida formará rios, afluentes e efluentes, com percursos complexos, fauna e flora que variam de local para local, até ser oceano no oceano ou lago no lago ou nuvem na nuvem. Na origem está a simplicidade, são as condições existenciais do mundo que levam a que o divino, num acto de misericórdia, se molde, por assim dizer, a essas condições (também elas criadas por si, naturalmente). E para a alma virginal daquelas crianças, o que poderia ser senão uma oração simples? Simples, mas não ingénua. Aquelas crianças são como que a imagem do povo inteiro – do povo, não da plebe! –, desse povo que é a voz de Deus: Vox Populi, Vox Dei. Uma pequena nota, ainda antes de começar, apenas para lembrar a sorte que tem o crente português por poder repetir as palavras exactamente como o anjo as ensinou; são as palavras que Deus passou ao Anjo de Portugal e que este passou às crianças, que a passaram a nós: numa vertical cadeia de ouro (aurea catena), acto de renovação do vínculo do país com os Céus, feito pelas crianças mais humildes: porque os últimos serão os

um luar e não uma luz. Lilian Staveley, a extraordinária autora de The Romance of the Soul (1.ª ed, p. 90) diz que “quando estamos em contacto com Cristo, que é a Sua Graça, somos elevados acima do caule da fé até às flores do conhecimento”, isto é, a fé tem implícito ou em potência o conhecimento, porque a fé é um dos modos ou órgãos de conhecimento que a alma possui para sondar o sobrenatural. – A crença é um refúgio: pela crença nos refugiamos do mundo, acreditar em Deus implica escolher Deus e, numa primeira etapa, refugiar-se do mundo em Deus ou do relativo no Absoluto.

primeiros e porque Deus revelou aos que sabem ser crianças o que escondeu aos ‘doutores’.

crença: se eu creio em Deus, não posso senão adorá-Lo, voltar-me para Ele. A crença é passiva, a adoração é activa. A semente da crença cresce pelo talo como adoração, como movimento ascensional para Aquele em quem se crê. Pela adoração iniciamos o processo de contemplação d’Aquele em quem cremos. A adoração, no entanto, é ainda no domínio da separação: há eu, que sou nada e há o Criador, que é tudo; há eu que sou imperfeição e há o Criador que é perfeição; há eu que sou finito e relativo e há o Criador que é Infinito e Absoluto. A separação é, no entanto, o estímulo dos amantes: coloca a alma do crente em movimento, num estado de tensão para

Os quatro verbos seminais a) Crer: o acto de crer é como que o conhecimento em potência – a mensagem de Fátima é religiosa e não filosófica (báktica e não jnânica, como diriam os hindus; é predominantemente pística e não sófica, como diriam os gregos), por isso a crença está pela vez do elemento “gnósico”, ela é o acto inicial que contém já, em semente, a adoração, a esperança e o amor. Na verdade, cada um dos núcleos contém todos os outros. A “crença” em Deus é como uma reminiscência,

b) Adorar: é a tensão para o outro, é o movimento para o outro, é a crença em acção ou uma consequência natural da

fora de si. A adoração é a crença intensificada ou agindo sobre a alma. – A adoração é uma actividade ininterrupta que absorve o crente em fascínio. c) Esperar: a esperança. É um novo recolhimento, como ao talo sucede o botão, que é uma contracção depois da expansão, assim surge a esperança depois da adoração. A esperança é a adoração experimentada, posta à prova: “adoras mesmo?”, diz Deus, “então mostra que perante a ausência permaneces em adoração”. A esperança é a paciência. – Saber encontrar a paz : a confiança ou recolhimento em altura de dificuldade.

Crer, adorar, esperar, todos implicam separação e dualidade. d) Amar: de modo muito signi-

ficativo, só junto ao verbo amar aparece o sujeito a quem se destina a frase: “-Vos” (Deus). Só agora aparece, porque só agora o implícito se faz explícito, o ausente se faz presente, o dois se faz um. Tal como aqui se junta ao verbo ‘amar’ o sujeito, Deus, assim também se dá um salto do domínio da separação para a união. É o domínio do amor. É quando, diz o poeta, se “transforma o amador na cousa amada”. Adorar não é o mesmo que amar; adorar é um grau do amor, mas ainda dentro da separação: é o amado olhando a amada de longe, inacessível, como que não crendo que seria possível um ser tão puro olhar para alguém que se crê tão impuro. Adorar era

ainda estar a caminho do amor. Adorar é próprio de quem vê no outro o atributo da “majestade”, mas ainda não da “misericórdia”. Só pela misericórdia, no entanto, terá a coragem de se lançar em Deus a pobre criatura. O amor é a flor que desabrocha do botão para se abrir ao céu, casando-se com ele em aroma, em perfume que se eleva, libertado da planta, libertando a planta. – União: desejo de união, na verdade. O seguinte poema do místico sufi Rumî (baseado numa história de outro sufi, o persa ‘Attar) fala-nos deste desejo de união e da sua relação com o conhecimento:

Neste mundo, os homens são como as três borboletas em torno da chama de uma vela: o primeiro aproximou-se, sentiu o seu calor e disse: ‘Eu conheço o Amor’;

o segundo tocou ao de leve na chama e disse: ‘Eu sei que a chama do Amor pode queimar’; o terceiro mergulhou na chama e deixou-se consumir. Só este sabe o que é o verdadeiro Amor. A chegada ao amor, em sentido pleno, é a chegada ao conhecimento pela união, o saber de experiência feito, o saber transformado em sabor. Assim, o percurso apontado pelo Anjo leva a alma da crença à união com Deus, passando pelas emoções. Crer é ainda, como diz S. Paulo a propósito do conhecimento neste mundo, ver em espelho: “Agora vemos em espelho, de maneira

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confusa, mas depois veremos face a face” (I Cor, 13, 12). O Anjo de Portugal parece, pois, dizer que tudo está em potência no acto de crer; aí, a raiz ou a semente. O crente tem, assim, tudo quanto necessita na crença, numa crença bem enraizada, tudo o resto não é senão uma consequência, um acto de coerência com o que já está implícito na crença – como na semente está a planta toda. Se a semente (ou a raiz) é a crença, o caule é a adoração olhando o alto, deixando a terra; o botão é a esperança, fechando-se, por medo, ao mundo para encontrar em si o Criador; a flor é a alma abrindo-se no êxtase de amor ao seu Criador, entregando-se em união, como aroma unido ao ar, ascendendo aos céus, lembrando os sacrifícios de Abel – chegando ao amor, a criatura atinge o

milagre dos milagres, a graça espantosa de se superar, de se libertar. A este mistério alude de modo muito belo o Islão, num dito do Profeta Maomé, quando Deus diz: “Nem a minha terra nem o meu céu me contêm, mas o coração do meu crente contém-Me.” Como pode o finito conter o Infinito ou um grão de areia o Universo inteiro, como diz William Blake? Como... se não por um gesto da graça? ◗ 1

A oração termina com estas palavras: Vos não amam [I, 77]. Em I, 169 há uma ligeira variante:

e não Vos amam.

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