Fulgores de Fátima, IV (a oração do anjo: palavras e gestos: 2b)

June 14, 2017 | Autor: Pedro Sinde | Categoria: Filosofia da Religião, Religião, Fátima, Angelologia
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QUARTA-FEIRA • 23 DE DEZEMBRO DE 2015

Diário do Minho Este suplemento faz parte da edição n.º 30896 de 23 de dezembro de 2015, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente

> “Outono...” – Encourados/Barcelos (2015) [Foto de Ana Filipa Pinheiro

II

Cultura

QUARTA-FEIRA, 23 de dezembro de 2015

Diário do Minho

Fulgores de Fátima (IV)

A oração do Anjo: palavras e gestos – 2B POR

Continuamos a publicar nesta edição do caderno “Cultura” o artigo do doutor Pedro Sinde sobre a Oração do Anjo que, em Fátima, apareceu aos Pastorinhos. A parte imediatamente anterior a esta foi editada na edição da passada semana (dia 16). Depois de o crente absorver a primeira parte da oração poderá, deverá, absorver a segunda, que é a atitude de generosidade, a atitude solar de dádiva ao outro, a irradiação do que se absorveu pela primeira parte, a explosão do preceito “ama o outro como a ti mesmo”. Neste caso, o outro é o descrente e a descrença é tida aqui como a fonte de todos os males, porque implica uma alma que tem a parte superior da sua alma truncada, fechada, obscurecida e, logo, desorientada,

desnorteada: age neste mundo como se não houvesse o outro e, ignorando tudo sobre o outro mundo, age como o gato correndo atrás da sombra do pássaro. Esta segunda parte da oração é muito importante para que a alma não caia na soberba, como vimos. Podemos, por ela, compreender a missão elevadíssima dada pelo Céu às crianças e por elas aceite livremente. Os budistas reconheceriam aí uma missão análoga à de um bodhisattva, isto é, um santo que, por compaixão

Irmã Lúcia

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834 20.Maio. 23.Dezembro. 2015

para com todos os seres, faz o voto de ajudar a libertar as almas do sofrimento, não se libertando ele mesmo antes delas; um exemplo disso é quando, a 23 de Dezembro de 1918, durante uma doença súbita de Jacinta e Francisco, a Virgem pergunta a Jacinta se quer converter mais pecadores ou ir para o Céu com Francisco (António Machado, As

aparições e a mensagem de Fátima nos manuscritos da Irmã Lúcia, p. 60). A pequena vidente diz que quer converter mais pecadores; se disséssemos ‘libertar mais almas’, em vez de ‘converter mais pecadores’ ao leitor moderno já não estranharia a linguagem. Mas é a ele que cabe fazer esta translação para ver a realidade única por trás da aparência múltipla. Ao leitor moderno, citadino e erudito, também é estranha a palavra ‘sofrimento’ ou ‘sacrifício’ se aplicada ao cristianismo, no entanto, se aplicada ao budismo e à roda do samsara, já tudo lhe parece natural; diz D.T. Suzuki, no seu livro O Buda da Luz Infinita, que “nada desperta a consciência religiosa tanto quanto o sofrimento”; o cristianismo não poderia ser mais concordante. O leitor moderno rejeita o cristianismo naquilo que nele aparece explicitamente de sofrimento. É tudo um problema de tradução; ou de

falta dela, na verdade... Se Deus quiser, num outro capítulo da série “Fulgores de Fátima”, poderemos ainda parar um pouco na importância do sofrimento e do sacrifício para os pequenos videntes. A algumas pessoas estranha o facto de crianças tão pequenas passarem por sacrifícios tão grandes, mas apenas porque estão a olhar a idade do corpo, sem atender à idade da alma: as almas destas crianças eleitas por Deus são, em boa verdade, almas velhas. A acção da oração Se quisermos ter a imagem da operatividade da mensagem contida na oração ensinada pelo Anjo, podemos pensar que o crente deve cultivar em si duas atitudes de alma, duas reacções, que se devem tornar hábitos: a adoração e a esperança. Na vida de todos os homens, tudo quanto lhes acontece pode ser, de alguma forma, considerado como um momento de alegria ou um momento de tristeza; todas as situações, no seu dia-a-dia, podem ser reconduzidas a um destes dois estados. Se a sua vida estiver bem enraizada na crença, então, não esquecerá Deus em nenhuma das duas situações, por muito difíceis, porque sempre

PEDRO SINDE FILÓSOFO E BIBLIOTECÁRIO

saberá que se trata de uma prova ou de uma bênção. As provas não aparecem sempre sob a forma de situações que provocam o medo ou a tristeza, mas também sob a forma de situações que provocam a alegria, como se Deus quisesse ver se o crente O esquece em momentos em que o mundo parece dar-lhe tudo – pensando infantilmente que o mundo lhe pode dar seja o que for... Ora, reconduzindo tudo a Deus, o crente deve, em qualquer situação de alegria, cultivar a virtude da gratidão por esse momento e, assim, ser levado a adorar Deus; em qualquer situação de sofrimento, de dor, deve cultivar a virtude da esperança em Deus, lembrando-se que Deus o prova através do sofrimento, como o ferreiro ao temperar a espada. Assim, a sua alma vai sendo temperada na forja da vida: ao rubro quando sente a alegria da brasa, gelada quando é colocada na água fria da tristeza; esta operação repetir-se-á a vida toda, a ver se aprende – com maior ou menor intensidade, conforme a dureza da alma. Com as duas chaves fornecidas pela oração do Anjo, chegará, com a ajuda da graça, a amar Deus. Sim, porque nós não amamos Deus ainda. Se amássemos, verdadeiramente, não estaríamos

Envio de trabalhos para publicação neste suplemento Diário do Minho / Secção Cultural Rua de S.tata Margarida, 4 - 4710-306 Braga; Fax: 253609469. E-mail: [email protected]

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QUARTA-FEIRA, 23 de dezembro de 2015

separados d’Ele, como nos lembra o poema de Rumî. Não amamos Deus, mas devemos aprender a amá-Lo – estamos fechados à lei transcendente da atracção, como lhe chama Sampaio Bruno.

primordial; entreverá, talvez, que se trata de um percurso espiritual de transformação da alma: começando com a alegria na infância, passando pela dor na vida adulta e alcançando a graça na velhice.

Uma oração e três atitudes...

Faltou-nos dizer o evidente: a oração contém em si as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. A fé e a esperança são dadas de forma imediata nos dois primeiros verbos da oração (crer e esperar); a caridade é exemplificada na segunda parte da oração – que é um acto de caridade. Como é possível uma oração tão simples esconder tanto? E tanto que fica por dizer... Adorar e amar podem ser remetidos à noção de ‘ágape’, basta pensar que no Evangelho grego a palavra ágape é a que traduz este dito magnífico de Jesus que condensa todo o cristianismo: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente” e “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. E, confirmando que esta é mesmo a essência do cristianismo: “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt, XXII, 37-39). Não pode deixar de nos espantar que uma oração tão simples contenha em si toda uma teologia em potência: as virtudes teologais na primeira parte e, na segunda, o coração do cristianismo: o amor, a caridade. Como diz São Paulo na primeira carta aos coríntios: “Agora subsistem estas três: a fé, a esperança e a caridade (ágape); mas a maior delas é a caridade.” (I Cor 13, 13) Se relemos os dois mandamentos acima, não podemos deixar de nos espantar, verificando como a primeira parte da oração exprime o primeiro mandamento – amar a Deus – e a segunda parte exprime o segundo – amar o próximo. É ou não é uma oração seminal, contendo toda a teologia e uma vasta metafísica? Mais tarde, o Anjo ensinará uma outra oração às crianças, uma oração em torno da Trindade. Para usar uma imagem fecunda, podemos dizer que a primeira oração é como que o pórtico do templo; a segunda, que esperamos abordar noutro capítulos de “Fulgores de Fátima”, é o templo ele mesmo. E o santo dos santos? Será a própria Virgem, nas aparições do ano seguinte. É curioso que na história que o Alcorão conta da Virgem, esta é educada e vive em retiro no mihrab, que é por muitos comentadores interpretado justamente como o santo

O leitor perdoará um pequeno excurso, para podermos ver ainda outra perspectiva, que ilustrará a universalidade e fecundidade das palavras do Anjo. Ali aparecem implícitas três atitudes da alma, que são três movimentos cósmicos ou três tipos de energia manifestados por todo o lado e, por isso, também na alma humana. No hinduísmo, chamam-se gunas e os três gunas são: sattva, rajas e tamas. Sattva é o movimento ascensional, luminoso e libertador; rajas é o movimento horizontal de expansão ou irradiação; tamas é o movimento descensional ou de trevas e fixação. Sem entrar em explicações longas, porque este texto não pretende ser comparativista, na alquimia medieval, que era uma ciência de transformação da alma, estas três tendências eram representadas pelo enxofre, pelo mercúrio e pelo sal. Tal como a substância primordial (a matéria-prima) assume predominantemente uma das três tendências, assim também a ‘substância psíquica’ assumirá uma delas ou terá de reagir a uma delas quando se apresenta sob a forma de um acontecimento: que pode ser libertador, isto é, uma manifestação da graça (sattva); ou que pode ser irradiante, uma manifestação da alegria e gerador de alegria (rajas) no interior da alma; ou que pode ser, finalmente, um evento triste e provocando a tristeza (tamas). Os acontecimentos contaminam a alma: se são alegres a alma alegra-se, se tristes, a alma entristece. O essencial, vimos já, é que a alma saiba reconduzir todos os eventos ao Criador, pois não é senão Ele quem lhos envia. Esta é a alquimia, a transmutação, a libertação. Já falámos, a propósito da oração, na alegria (rajas) e na tristeza ou dor (tamas); podemos agora acrescentar a graça (sattva), sem a qual não há caminho espiritual, porque nenhum caminho espiritual é erguido sobre o voluntarismo prometaico. A Alegria, a Dor e a Graça, título de um belíssimo livro de Leonardo Coimbra; quem o quiser compreender terá o caminho aplanado se o olhar através da ideia destas três tendências da substância

dos santos. ◗

III

Natal

Um adorador de que nunca ninguém falou

de Conto

Era uma vez um lindo dia de sol de inverno. Frio, muito frio, mas lindíssimo. Era uma vez um raio de sol. Um raiozinho de nada, coisa muito pequena, que uma nuvem distraída deixara escapar. Contente por se sentir livre, o raiozinho voou e cabriolou pelos ares, durante largo tempo. Depois, cansado da brincadeira, trocou-a pela curiosidade. Então, espreitou por entre as árvores e alegrou a sombra fria das florestas; empoleirou-se no alto das mais altas torres das igrejas e escutou o dlim-dlão dos sinos; furou pelo meio das sebes mais apertadas e beijou ervas e flores nos canteiros dos jardins; enfiou-se por ramos e silvedos para visitar os ninhos, agora vazios, antigas casas de diversa passarada; voou, célere, até ao azul dos mares e experimentou a dança no vaivém das marés; estendeu-se, lento, pelos prados verdejantes para conhecer pequeninos animais que por ali vivessem; subiu às mais altas serras e viu como a sua luz brilhava e alegrava o coração dos pastores; vagabundeou por campos e veigas aquecendo tudo e todos; meteu-se por quantos orifícios havia no solo e bafejou todas as sementinhas ainda adormecidas. Era ainda o comecinho da manhã e já o pequenino raio de sol se sentia cansado. Então, começou a examinar ares e terras em busca de um lugar onde pudesse repousar, nem que não fosse por muito tempo, apenas para retemperar algumas forças. De repente, um pouco afastada do restante casario, reparou numa pequena choupana que lhe pareceu escura e triste. Procurou chaminé, janela ou fresta de porta por onde penetrar. Mas nada. Do lugar onde se encontrava, o raiozinho de sol achava que tudo estava fechado. Aproximou-se mais. Reparou então que a choupana era construída com tábuas e que, entre elas, não faltavam nesgas por onde ele poderia entrar. Sorrateiro, enfiou-se por uma delas. Numa tosca manjedoura de animais, que lá permaneciam ainda, pelo menos alguns deles, viu um Menino, deitado, dormindo. Um Menino de uma beleza tão extraordinária

POR

MARIA DO CÉU NOGUEIRA ESCRITORA

que lhe pareceu irreal. Era o Menino mais lindo que jamais vira. A seu lado, também adormecidos, uma Senhora muito bela e um homem de longas barbas negras. Fascinado com a beleza do quadro, o raiozinho não despregava os olhos daquele Menino. Fora-se o cansaço. Ali, perante tanta beleza e perfeição, o raiozinho sentiu-se participante de algo extraordinário, de um acontecimento raro, inexplicável a seus olhos inexperientes, mas que o prendia de forma tão irresistível, que ele sentiu que era ali que devia ficar e não para repousar, mas para adorar. Sim, ele sentia-o. Aquele Menino veio àquela manjedoura para ser adorado. E era isso que ele iria fazer. Com esta certeza e cheio de enorme alegria, o raiozinho postou-se ao lado do Menino, iluminando-O e aquecendo-O. E ali ficou, como que preso por indelével fio, não tirando os olhos do Menino, completamente esquecido de que entrara ali para descansar. E quando o Menino acordou foi o raiozinho de sol que viu em primeiro lugar e, oh milagre, logo se entenderam. O raiozinho saltou-lhe para as mãozinhas para que o Menino pudesse brincar com ele. E divertiram-se tanto os dois que, a certa altura, com um riso mais alto do Menino, acordou a Senhora sua Mãe. Admirada, viu apenas, entre as mãos buliçosas do Menino, um fio de ouro puro que se movimentava também, parecendo brincar com Ele. Embevecida, a Mãe do Menino perdia-se em cogitações... Era já quase noite, com a bola de fogo a caminho do ocaso, quando o raiozinho de sol, correndo, se foi juntar aos seus irmãos por trás da nuvem distraída... Natal de 2015

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