Fundamentos de Direito Público e Privado. A perspectiva sociológica

May 31, 2017 | Autor: Pedro Scuro | Categoria: Direito Civil, Sociologia Jurídica, Direito Privado
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Os três núcleos temáticos deste curso analisam os limites dos terrítórios
em que o Estado pode intervir e aonde não pode. As fronteiras que a
burocracia estatal não deve transpor sem devida permissão, são
estabelecidas pelo Direito privado, que regula as relações legais dos
particulares (cidadãos, empresas) entre si. Por sua vez, a esfera da ação
estatal absoluta, incondicional, soberana, é definida pelas normas do
Direito público, regras sobre a organização e o funcionamento das entidades
públicas, que regulam os direitos e as obrigações do Estado perante as
pessoas e destas na presença dele. O núcleo temático final põe em relevo os
fatores que na atualidade impedem o Estado de saber ao certo qual é o seu
verdadeiro papel.

Ao contrário do que frequentemente se afirma, a bipartição entre
Direito público e Direito privado não é obrigatória nem ocorre em todos os
sistemas jurídicos. Remonta ao vetusto Direito romano, que a observava com
extremo rigor, desunindo o Direito segundo critérios de interesse e
utilidade. Algo que, no Brasil, até hoje impressiona e influencia o
pensamento e a postura de comentaristas e operadores do Direito. Não
admira, portanto, ser ainda tão difícil determinar com segurança se o que
deve ser contemplado é o interesse do Estado e seus agentes, ou dos
particulares.

No mundo globalizado essa preocupação é cada vez menos viável, pois
nel o Direito público tende a desempenhar funções ordenadoras e
conformadoras, buscando preservar para os particulares espaços de
liberdade, de modo que possam estabelecer as suas próprias relações
jurídicas de livre e expontãnea vontade, sem a intervenção de fatores ou
agentes externos.


Esta não é, no entanto, a perspectiva da produção de normas jurídicas
no Brasil. Aqui, ainda achamos que há casos em que as partes interessadas
se encontram num mesmo plano, tratam 'de igual para igual' segundo
'relações de coordenação', enquanto em outras circunstâncias uma das partes
assume posição de iminência, gerando relações entre 'subordinado e
subordinante'.

Com isso, fica caracterizada a separação do Direito público do Direito
privado na base de normas configuradas segundo critérios que não permitem
afirmar com convicção se o interesse contemplado é só do Estado e de seus
agentes ou, doutra banda, dos cidadãos. Não se esclarece o que está em
questão, o interesse ou a utilidade 'pública', 'geral' ou 'dominante' em
uma realidade social cujos usos e interesses estão cada vez mais
interligados.


Essas dificuldades decorrem do modo pelo qual as normas jurídicas são
produzidas. Têm origem no sistema jurídico e político em que, dependendo do
país, o Direito está inserido. Daí os problemas para definir entre as
esferas pública e privada derivarem especificamente do papel que o Direito
e a política atribuem à conformação autônoma das relações jurídicas pelos
particulares.

Em determinados países o sistema político é nitidamente
individualista, o espaço do Direito privado bem amplo, e as relações
jurídicas privadas estendem-se a todos os subsistemas da sociedade. Assim,
o subsistema econômico configura uma economia positiva, concorrencial,
enquanto Direito e Justiça, outro subsistema, dispõem de uma 'estrutura
horizontal', deixando que os particulares ponham e disponham suas próprias
relações jurídicas como bem entendem no contexto do ordenamento jurídico e
da ordem normativa da sociedade.

Entrementes, no Brasil, o sistema político interfere impondo posições
éticas, busca uma justiça 'mais justa', propiciando ao Direito e à Justiça
uma 'estrutura vertical', a partir da qual as relações entre particulares
não são encaradas como assuntos privados, mas como relações sociais
tuteladas pelos valores e pontos de vista subjetivos do Estado e de seus
agentes.

Comparações entre Direito privado e Direito público conduzem
necessariamente a considerar a ação recíproca dos principais sistemas
jurídicos da atualidade. Sistemas baseados em três tradições: civilista,
Common Law; Direito religioso. Cada país, por sua vez, desenvolve variações
que incorporam aspectos de um ou de outro sistema.

A tradição civilista é a mais disseminada, conhecida também como
Direito europeu continental ou família romano-germânica. Nela, a base de
autoridade é a ordem juridica nacional, o conjunto de normas codificadas
(1) na constituição, ordenamento jurídico fundamental de uma comunidade
política (Estado) e (2) nos códigos, compilações – privadas ou oficiais –
de normas produzidas para serem obrigatórias, em diferentes datas e
abrangendo diferentes matérias.

A segunda das tradições é a Common Law, sistema jurídico originado na
Inglaterra, cuja principal caraterística é ser determinação pela
jurisprudência. Ou seja, (1) Ciência do Direito, (2) conjuntos de
sentenças prolatadas pelos tribunais, e (3) interpretações que
reiteradamente essas cortes de justiça dão à lei em casos concretos. A
Common Law é o alicerce dos sistemas juridicos dos países de língua inglesa
e vários outros países, incluindo a legislação federal dos Estados Unidos e
a maioria dos estados norte-americanos, à exceção da Flórida. Na Índia, o
sistema é um misto de Common Law e 'Direito hinduísta' (que rege
matrimônio, adoção, sucessões etc.), enquanto Goa preserva o Código civil
português.

Há cada vez menos diferenças entre Common Law e os sistemas jurídicos
civilistas. Isso por conta da crescente importância da jurisprudência nos
países de tradição civilista e, por outro lado, do progressivo recurso à
legislação nos países da Common Law. Para isso contribui bastante, de um
lado, a sistemática redução de assimetrias entre os sistemas de justiça
criminal da América Latina e da Europa Continental em relação aos Estados
Unidos – é a chamada de 'americanização' da Justiça, resultante da
globalização e da influência das formas culturais norte-americanas. No
entanto, há também o outro lado da moeda: os países da Common Law cada vez
mais assimilam a tradição civilista ao intensificar a codificação, por
exemplo, de seus Direitos criminal, comercial, trabalhista, e processual.

Das três tradições jurídicas emergiram noções fundamentais para a
civilização ocidental e o Direito moderno. Idéias como liberdade e
solidariedade, emancipação e autonomia individual, consciência moral,
direitos humanos e democracia. Em determinados momentos as três tradições
forjaram também o espírito do Direito moderno. Caso do Novo Testamento,
quando exige prestar atenção no que "está dentro do coração", supondo a
existência de um golfo separando a objetividade das ações e o seu lado
interno, os motivos subjetivos.

A tradição configurou a lógica do Direito moderno, toda particular,
que exige técnica refinada, no Direito penal, por exemplo, para determinar
se o acusado previu ou pretendeu o efeito da sua conduta e se esta
ocasionou um efeito nocivo não previsto ou pretendido por ele. No Direito
penal moderno as sanções são condicionadas por estados mentais, que se
constituem em elementos (dolo ou culpa) do delito; tem em vista a conduta
mútua, e a Justiça vincula sanções visando sempre medidas para evitar os
efeitos prejudiciais das condutas sobre os outros.

Consequentemente, os juristas seguem concebendo critérios para
distinguir público e privado, dizendo (1) que o Direito penal, por exemplo,
é Direito público porque "visa assegurar bens essenciais à sociedade
toda",[1] de vez que (2) suas normas tutelam direta e imediatamente um
interesse público mediante atribuição de poderes de autoridade sobre os
cidadãos ao Estado ou a outra entidade pública. De Direito privado, seriam
as restantes.

Apesar de refletir a realidade, esse critério ainda não é inteiramente
satisfatório. Para começar, nem todas as normas de Direito público conferem
poderes de autoridade. Em seguida, há normas de Direito privado que em
primeira linha tutelam interesses individuais das pessoas, como as que
impõem deveres, sujeições e restrições especiais aos entes públicos, e as
que conferem poderes de ação (direitos subjetivos) ou reconhecem interesses
legítimos aos particulares.

Concluindo, direitos e deveres públicos são estabelecidos por lei ou
ato jurídico público e visam a realização do interesse geral da
coletividade, ou dos interesses fundamentais das pessoas que coincidem com
esse interesse geral. Interesses gerais são determinações que refletem as
necessidades e aspirações dos grupos e das comunidades históricas (o povo,
a pátria, a cultura, a classe social, a civilização, a humanidade).
Direitos e deveres públicos pressupõem também a presença necessária e
insubstituível do Estado ou de outro ente público como sujeito da
respectiva relação jurídica.

Direitos e deveres privados, por sua vez, resultam normalmente de lei
ou ato jurídico privado, não visam a realização do interesse geral ou de
interesses pessoais coincidentes, e não pressupõem que o sujeito da relação
jurídica seja uma entidade pública. Assim, quando o Estado é titular de um
direito ou de um dever, pode perfeitamente deixar de o ser, nomeadamente
alienando o direito ou transmitindo o dever a qualquer particular. É o que
ocorre em processos de devolução de poderes, que acarretam delegação por
parte das autoridades, sem prejuízo da hegemonia do Estado, que pode
retomar os referidos poderes unilateralmente.

Apesar de Direito público e Direito privado serem dois conjuntos
profundamente distintos – por sua história, objeto e função, portanto,
pelas soluções que consagram para os problemas de que se ocupam –, há
naturalmente entre eles relações estreitas e importantes, pontos de contato
e interdependência, limites e condicionamentos recíprocos.

A dicotomia Direito público-Direito privado pode continuar sendo vista
como meramente didática, ou um modo de classificação ultrapassado à luz da
dinâmica das normas jurídicas no mundo atualmente, que progressivamente se
sobrepõe aos arranjos classificatórios tradicionais. Não obstante, essa
dicotomia continua sendo, e cada vez mais, pressuposto básico da toda
reflexão sobre a ordem jurídica nacional. Subsiste como algo inerente às
relações entre Estado e sociedade, entre instituições públicas e
instituições privadas, entre agentes públicos e cidadãos, entre poder
público e automia pessoal e coletiva.



Questões – NT1

1) Qual é a diferença entre usar 'poderes de autoridade' segundo o novo e o
velho critério?

a) O novo critério visa prioritariamente a realização do interesse
geral da coletividade

b) O novo critério acentua que as normas do Direito privado se
assentam no 'princípio de igualdade das partes'

c) O velho critério fala unicamente em determinar quem é 'sujeito
ativo' na relação jurídica e quais são as suas prerrogativas ou
privilégios

d) o velho critério prevê 'devolução de poderes'

2) O que define o princípio de igualdade das partes?

a) todas as opções são corretas

b) igualdade substancial

c) igualdade no exercício das faculdades

d) igualdade no uso de meios de defesa

3) Direito moderno, que desempenha apenas funções ordenadoras e moderadoras
...

a) Busca preservar os espaços de liberdade dos particulares


b) Preocupa-se com relações entre a parte subordinada e a parte que
subordina


c) Enfatiza uma justiça "social", "mais justa"

d) Encara as relações entre particulares não são encaradas como
assuntos privados, mas como relações tuteladas pelos valores e pontos
de vista subjetivos do Estado e de seus agentes.

4) "Queiramos ou não, o crime imputado aos acusados acabou chamando a
atenção e prendendo o interesse da opinião pública – em certa medida, deve-
se reconhecer, pela excessiva exposição do caso pela mídia que, em certas
ocasiões, chegou a extrapolar seu legítimo direito de informar a população
– o que, no entanto, não pode ser ignorado pelo Poder Judiciário e fazer-se
de conta que esta realidade social simplesmente não existe, a qual dele
espera uma resposta, ainda mais se levarmos em consideração que o inquérito
policial que serviu de fundamento à presente denúncia encontra-se embasado
em provas periciais que empregaram tecnologia de última geração [...],
cujos resultados foram acompanhados de perto pela população, o que lhe
permitiu formar suas próprias conclusões – ainda que desprovidas, muitas
vezes, de bases técnico-jurídicas, mas, mesmo assim, são conclusões – que,
por conta disso, afasta a hipótese de que tal clamor público seja
completamente destituído de legitimidade".[2]

a) Justiça social

b) Justiça com fundamento tecnológico

c) Judiciário insensível

d) Polícia moderna

5) No caso dos jornalistas, se é a empresa quem paga por supostos erros de
informação, que sentido têm os códigos de ética dos jornalistas
empregados?. A americanização da Justiça está por trás da voga das
indenizações. Violações éticas devem ser punidas com ações disciplinares
efetivas; nos crimes de imprensa não dolosos, isto é, quando o dano não é
intencional (casos de erro ou imperícia), cabe a pronta, cabal e imediata
retratação – com destaque ou relevância até maiores, se for o caso; nos
casos de dolo comprovado, a punição só pode ser cadeia para os reais
responsáveis. A honra das pessoas, a vida das vítimas, a credibilidade de
instituições e empresas não têm preço. Ou passaram a ter? Nessa questão das
indenizações, no entanto, o que me parece mais grave é o destino das
pequenas empresas jornalísticas locais, sujeitas ao arbítrio de juízes que
podem impor multas gigantescas e inviabilizar empreendimentos até pelo
custo do recurso a instâncias superiores".[3]

a) Redução de assimetrias

b) Direito e Justiça com estrutura vertical

c) Relações entre particulares = relações sociais,

d) Decisões reiteradas

6) "Para o Direito moderno, se a mãe deixa sua criança brincar à beira de
uma lagoa e não a socorre quando esta cai na água e se afoga — porque a
mulher estava distraída com os galanteios de um admirador —, fica sujeita a
um tipo de sanção porque não previu a possibilidade do acidente e não fez o
necessário para impedí-lo. Sanção que seria diferente se a mãe omitisse
socorro porque desejasse ver-se livre da criança".[4]

a) Responsabilidade absoluta

b) Culpabilidade

c) Conduta mútua

d) Estado mental-efeito da conduta

7) "Freqüentemente se imagina que o mundo da Common Law se diferencia do
nosso essencialmente porque não há leis ou códigos como há aqui e em outros
países de tradição civilista. Contudo, a distinção que se pode fazer tendo
em vista a produção legislativa não diz respeito à sua quantidade ou
autoridade, mas ao papel que as leis desempenham em cada sistema, ou, mais
precisamente, às ideologias que carregam consigo".[5]

a) Modificação dos fatos econômicos visando uma economia 'mais justa'

b) sistema político nitidamente individualista

c) economia positiva, concorrencial

d) Justiça e Direito dispõem de uma 'estrutura horizontal'

8) "Diante de tal quadro caótico [de descrença no Poder Judiciário pela
sociedade], os juízes devem tomar consciência de sua responsabilidade e
poder de intervenção social, rompendo a posição de conservadorismo e
aparente neutralidade diante dos conflitos, sob pena de esvaziamento de sua
autoridade e de seu poder estatal de ordenação da sociedade. Em tese, a
máquina judicial e a preparação humanística do magistrado deveriam evoluir
com a mesma celeridade que as constantes mudanças sócio-culturais, para se
adaptar melhor a elas e realizar o ideal da justiça social".[6]

a) A dicotomia Direito público-Direito privado vista como uma divisão
meramente didática

b) "Preparação humanística" tornando os magistrados sensíveis à
opinião pública

c) Tradição civilista resgatada pelo "ideal de justiça social"

d) Descrença no Judiciário relacionada ao conservadorismo e aparente
neutralidade dos juízes diante dos conflitos



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[1] Miguel Reale (1998), op. cit., p. 343.
[2] Decisão judicial, Processo nº: 274/08, São Paulo, 7 mai. 2008.
[3] Nilson Lage, entrevista acerca de seu livro A Reportagem: Teoria e
técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de Janeiro e São Paulo:
Record, 2001. Disponível em
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/al290820011.htm
[4] Pedro Scuro Neto (2004). Sociologia Geral e Jurídica. Manual dos cursos
de Direito. São Paulo: Saraiva, p. 33.
[5] Fábio Cardoso Machado (2004). Breves considerações sobre a função
jurisdicional nos sistemas anglo-saxão e romano-germânico. Disponível em
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5333
[6] Heliana Maria de Azevedo Coutinho (1996). O papel do juiz – agente
político no Estado Democrático de Direito. Justiça e Democracia, São Paulo,
vol. 1, n° 1, p. 132-146.


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" "A bipartição entre Direito público e Direito "
"Fundamentos de Direito Público e Privado. "privado não é obrigatória tampouco ocorre em "
"A perspectiva "todos os sistemas jurídicos. Remonta ao "
"sociológica "vetusto Direito romano, que, por 13 séculos, "
" "observou-a com extremo rigor, desunindo o "
"Pedro Scuro Neto "Direito segundo critérios de interesse e "
" "utilidade. Algo que, no Brasil, ainda "
" "impressiona e influencia o pensamento dos "
" "comentaristas e a postura dos operadores do "
" "Direito. Não admira ser tão difícil determinar"
" "com segurança se o que deve ser contemplado é "
" "interesse do Estado e seus agentes, ou dos "
" "particulares. "
" "Este curso põe em relevo os fatores que "
" "impedem o Estado saber qual é o seu verdadeiro"
" "papel. "






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