Funk carioca: o som da carne mais barata do Rio de Janeiro

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Graduado em Gestão de Turismo (Instituto Federal de São Paulo/IFSP). Atualmente é Guia de Turismo na América do Sul. E-mail: [email protected]
Bacharel e Mestre em Teologia (Faculdade de Teologia N.S.Assunção/PUC-SP) e Doutor em História (Pontificia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP). Email: [email protected]
Música Popular Brasileira.
O Miami Bass, ou som de Miami é um tipo de Hip Hop que foi criado pelos latinos que viviam ao Sul dos EUA, é caracterizado pela batida contínua, dança acelerada e normalmente letras sexualizadas.
DJ – Disck Jockey ou discotecário. O profissional que coloca os discos para as pessoas dançarem.
Ritual de cantos alegres ou sombrios de caráter apaixonado, podendo conter narrativas.
Deus do vinho e da embriaguez, da colheita e da fertilidade.
Equipamento básico de um DJ. É composto por dois toca-discos e um mixer - aparelho que permite que duas músicas toquem sincronizadas.
Apartheid é uma palavra do dialeto africano afrikaans, cujo significado "vida separada" foi adotado para designar um regime em que os brancos detinham o poder e os povos restantes eram obrigados a frequentar espaços isolados.


FUNK CARIOCA: O SOM DA CARNE MAIS BARATA DO RIO DE JANEIRO
FUNK CARIOCA: THE SOUND OF MEAT CHEAPER IN RIO DE JANEIRO

Giliard Sousa Ribeiro
Orientador: Professor Dr. Edgar da Silva Gomes

Resumo: Por meio de uma metodologia de cunho descritivo e análise qualitativa, os dados coletados em documentos bibliográficos buscou entender a relação do funk com os morros da cidade do Rio de Janeiro, e levantar em questão os principais acontecimentos da trajetória deste ritmo, conhecido popularmente como "pancadão". O artigo também visou discutir a sua relação com o sexo, a importância do baile e do DJ, a sua criminalização, o Apartheid que ocorre na cidade do Rio de Janeiro e a negação do ritmo enquanto cultura.
Palavras-chave: Funk Carioca. Criminalização. Cultura popular.

Abstract: Through a descriptive research methodology and qualitative analysis, the data collected in bibliographic documents sought to understand the relationship between funk and slums of Rio de Janeiro city, concerned and raise the main events of the trajectory of this rhythm, popularly known as "pancadão". The article also aimed to discuss its relationship with sex, the importance of "baile funk" and DJ, its criminalization, the apartheid that occurs in Rio de Janeiro city and the denial of this rhythm as culture.
Keywords: Funk Carioca. Criminalization. Popular culture.

FUNK CARIOCA: O SOM DA CARNE MAIS BARATA DO RIO DE JANEIRO

INTRODUÇÃO
"Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar..."
O Navio Negreiro parte IV – Castro Alves, 1869
O som é de preto, de favelado, mas quando toca, ninguém fica parado! Em poucos versos, Amilcka & Chocolate retratam a realidade do som da carne mais barata da cidade do Rio de Janeiro, o Funk Carioca, que conquista a cada dia um maior número de adeptos e alcança espaços que antes não atingia como o asfalto da Zona Sul, e mesmo assim o ritmo continua marginalizado.
Por que no asfalto MPB é Bossa Nova e no morro é funk? Porque propaganda de cerveja é regada apenas com trilha sonora de axé, samba e sertanejo? Funkeiro não bebe? E porque propaganda de preservativo é musicalizado com funk? Só funkeiro faz amor?
Porque apenas a Alta Cultura é cult? As canções burguesas da Bossa Nova não retratam o cotidiano dos moradores da favela, tampouco a violência social que eles sofrem. Os moradores denunciam sua realidade por meio das canções, com o desejo de serem escutados, e como já foi musicalizado pelos Mc's Cidinho e Doca, querem ser feliz, andarem tranquilamente na favela onde nasceram e poderem se orgulhar e terem a consciência que o pobre tem seu lugar.
Por meio de uma pesquisa bibliográfica este artigo busca entender a relação desse ritmo de matriz Norte-Americana com os morros da cidade do Rio de Janeiro, e levantar em questão os principais acontecimentos da trajetória desta organização de sons com a intenção de ser ouvida, conhecida como funk carioca, um ritmo construído em torno de uma pobreza que não aniquila a alegria de jovens e adultos dançar.
FUNK NO BRASIL
Inventado nos Estados Unidos, é descendente direto do soul, do rhytm'n blues e do jazz, o funk nasceu oficialmente em 1960 por meio de uma invenção de James Brown, cantor, produtor, compositor e irreverente performer americano (MEDEIROS, 2006, p.14)
No Brasil, esse ritmo de batidas repetidas, de percussão marcante e ritmo dançante chegou aos anos 1970 e desde então é compreendido como manifestação cultural predominantemente suburbana, porém os primeiros bailes foram realizados na Zona Sul, no Canecão, ironicamente atual palco da MPB.
Financeiramente as apresentações correspondiam às expectativas da casa, porém os diretores começaram a por restrição em tudo, já que eles queriam intelectualizar o Canecão. Quando surgiu a oportunidade do Roberto Carlos fazer um show por lá, foi o fim dos bailes funks na casa.
Intelectualizado ou não, o Canecão passou a ser o palco nobre da MPB e o Baile da Pesada foi transferido para as quadras esportivas e clubes do subúrbio do Rio (VIANNA, 1988, p.24).
Ao longo dos anos, o funk carioca foi ganhando novos formatos, passando por modificações desde repertório aos trajes das pessoas que frequentam os bailes. A princípio era caracterizado basicamente como um blues eletrificado, em seguida foi ganhando músicas em português e se popularizando como Black Rio, por conta dos elementos da cultura negra, inclusive a partir deste momento deixou de ser apenas diversão e tornou-se uma ferramenta para superação do racismo, já que as músicas tratavam o cotidiano dos frequentadores, abordando a violência e a pobreza das favelas (VIRZIONAIR, s.d.).
Depois da Black Rio, a temática do orgulho negro se tornou cada vez mais rara, tendo em vista que o funk passou a se inspirar no Miami Bass, um ritmo com um tom mais lúdico e erótico nas letras. Porém é importante ressaltar que o funk sempre atravessou diferentes fases, as quais não desapareciam para dar início à outra, mas se articulavam ao gosto dos frequentadores dos bailes (FERREIRA, 2007).
Um personagem importante na história do funk brasileiro, foi o DJ Marlboro, que em 1989 produziu o Funk Brasil 1 e projetou o ritmo nos grandes veículos de comunicação. Inclusive em meio suas composições, em parceria com o DJ Pirata, compôs "Feira de Acari", um funk que falava sobre o comércio de produtos roubados na feira que era conhecido como robauto. Esse hit chamou tanta atenção que fez parte da trilha sonora da novela "Barriga de Aluguel", de Glória Perez, exibida pela TV Globo em 1995 (MEDEIROS, 2006, p.17).
Dez anos depois, a mesma autora incluiu uma personagem funkeira em sua novela América, e assim, popularizou o hit Som de preto de Amilcka & Chocolate, que tratava do orgulho negro (É som de preto/ de favelado/ mas quando toca, ninguém fica parado!) (MEDEIROS, 2006, p.17).
Porém, na obra O mundo funk carioca (1988), o antropólogo Hermano Vianna levanta em questão o desaparecimento quase completo do orgulho Negro. Segundo Vianna (1988, p.64), o funk é um estilo musical produzido na periferia dos grandes centros urbanos e consumido também por jovens urbanos, uma minoria xmarginalizada dentro das metrópoles, que já nem é tão minoria assim, tendo em vista que a batida já chegou ao asfalto da zona sul.
Atualmente, o funk atual exerce enorme influência sobre os filhos da classe média – a mesma que o perseguiu uma década atrás. Alguns desses jovens se envolveram com o funk não só por identificação, mas também por proteção, já que é mais seguro ser confundido com um mano do que com um playboy (KEHL, 2004, p.89).
Por fim, se fôssemos classificar os hits do funk em diferentes grupos, os principais seriam:


Tabela 1: Tipos de funk

Características
Exemplo
Funk melody
Ritmo também conhecido como funk brega, com letras românticas e melodias mais lentas;
Há muito tempo não me sentia assim
Na verdade fiz de tudo pra evitar
Que o amor voltasse a habitar em mim
Tinha motivos pra não me apaixonar
Mas depois que eu te encontrei
Tudo mudou no meu coração
Depois do beijo seu que eu provei
Despertou dentro de mim um vulcão
Agora eu pego fogo por dentro
E se você pode apagar esse incêndio
O que eu to querendo dizer
Que com você eu quero mais que um beijo...
Mc Sid – Depois que eu te encontrei
Funk consciente
Com letras sociais, onde a favela canta para o asfalto;
(...)O nosso som não tem idade, não tem raça
E não tem cor
Mas a sociedade pra gente não dá valor
Só querem nos criticar pensam que somos animais
Se existia o lado ruim hoje não existe mais
Porque o funkeiro de hoje em dia caiu na real
Essa história de porrada isso é coisa banal
Agora pare e pense, se liga na responsa
Se ontem foi a tempestade hoje vira abonança...
Amilcka e Chocolate – Som de Preto
Funk irreverente
Caracterizado por letras com duplo sentido, normalmente com apelo sexual;
(...) Dako éh bom!
Dako éh bom!
Calma minha gente, é só a marca do fogão!!
Calma minha gente, é só a marca do fogão!!
Dako éh bom!...
Tati Quebra Barraco – Fogão Dako
Funk clandestino
Popularmente conhecido como "proibidão", cujas letras exaltam traficantes, ridicularizam a corporação policial e fazem provocações a grupos rivais, os alemães (gíria também usada para denominar os grupos inimigos).
(...) É que o bagulho ficou doido
De uns tempos pra cá
Pior que o Afeganistão, Iraque, Bagdá.
Foi 300 por minuto, já partimos pra missão
Demo fuga na blazer, botamo o Águia no chão
SP só vilão, P2C firma forte
É só ladrão de banco
Assaltante de carro forte
Empresa de transporte, enquadramo o caminhão
Carga da Motorola vale mais de 1 milhão...
Mc Lello – Tamo Rico
Funk ostentação
Com letras que falam do poder, dos bens materiais como, carros, roupas de marca, bebidas e joia; mais comum na cidade de São Paulo.
Pode vir com nós
Porque aqui não tem tristeza
Whisky é o Black Label
O chandon já tá na mesa
Mas gasta de verdade
Porque aqui não tem miséria
Olha lá pra tráz o jeito que a gente era...
Mc Dan – Olha os Muleque chegando
Fonte: Elaborado pelo autor.
FUNK E SEXO
Aparentemente, foi criado um mito, em cima do funk que o associa direto e exclusivamente a sexualidade, ao ponto de ignorar a marca de características irreverentes e sensuais da nossa música, presente em qualquer gênero, desde a MPB, passando pelo forró, sertanejo, axé, dentre outros ritmos.
Afinal, ralar na boquinha da garrafa (É o Tchan), olhar a butique dela (Genival Lacerda), Deixar de quatro no ato (Rita Lee), fazer amor de madrugada, amor com jeito de virada (Kid Abelha) por e tirar o carro na garagem apertadinha duma doçura de mulher (Rio Negro e Solimões) ou até mesmo dar uma Fugidinha, onde Michel Teló troca o fonema g por d certamente provoca um entendimento mais sexualizado que em diversas letras de funk's.
Em entrevista ao documentário Sou feia mas tô na moda (Denise Garcia, 2005), o produtor Thelles Henrique declara:
Eu me lembro muito bem que o então Secretário Josias Kendall, me fez uma pergunta: "Puxa, mas porque o apelo sexual do funk? Porque essas letras sexuais?". E eu disse o seguinte: "Secretário, essas pessoas que cantam funk hoje elas tem entre 16, 17 e 18 anos e elas cresceram e quando crianças o funk não era um sucesso na mídia, o sucesso na mídia era o axé music. E essas crianças hoje se formando adultos cantam '69 Frango Assado', cantam outras letras que vocês se sentem agredidos, porque elas ouviram nada menos que 'Vai ralando na boquinha da garrafa / Vai descendo na boquinha da garrafa', com uma mulher semi-nua se esfregando no gargalo de uma garrafa de cerveja e isso é o maior sucesso".
É importante compreender que esse estilo musical de nome e base rítmica Norte-Americana, já vem associado ao sexo antes de chegar por aqui, o próprio termo funk, trata-se de uma gíria dos negros norte-americanos para designar o odor do corpo durante as relações sexuais (MEDEIROS, 2006, p.13).
Porém um ponto intrigante é a negação cultural, praticamente uma negação de Brasil que a mídia institui, levando em consideração a quantidade de propagandas relacionadas à funk exibidas nos meios de comunicação.
Existem propagandas associadas ao funk? Sim, apenas do preservativo Olla. Existem várias propagandas com axé, pagode, sertanejo e MPB, mas com funk não, o medo que domina a sociedade faz com que abafemos toda a expressão de uma nação funkeira e a relacione apenas com sexo.
Figura 1: Propaganda do preservativo Olla

Fonte: Exame, agosto de 2013.
Em entrevista à Exame, Daniela Brilha, Diretora de Marketing da Olla afirma que a escolha da cantora Anitta e seu famoso hit Show das Poderosas dialóga bem o com público jovem atual, já que a funkeira trata a sexualidade de forma natural e é muito espontânea.
A questão é: Porque uma funkeira? Simples, para manter o estereótipo da relação conjugal sexo-funk, já que Ivete Sangalo, Rita Lee, Paula Fernandes ou qualquer outra cantora dentro de seu gênero musical não se adequaria com propaganda de camisinha, já que para o senso comum sexo ainda é um tabu.

O BAILE
E reputemos perdido o dia em que não se dançou nem uma vez!
E digamos falsa toda a verdade que não teve, a acompanha-la nem uma risada!
Nietzsche, s.d.
A necessidade da dança e do êxtase que ela provoca já está presente em nossa cultura desde a Grécia Antiga, e normalmente é vinculada ao excitável, já que nos "Ditirambos", um ritual com dança em homenagem a Dionísio, os bailarinos dançavam até chegarem à transe, ao ponto de comer a carne crua para incorporar a força divina (HAAS et al, 2007, p.739)
Hoje nos bailes, a figura de Dionísio pode ser representada por um DJ ou MC, por conta da exaltação dionisíaca apresentada quando estão no palco, controlando a festa. Já os véus diáfanos foram substituídos por calças justas e saias curtas e as flautas ou tamborins nas mãos, por pickups e caixas de som que determinam o som da festa.
Festa essa, que como qualquer outra tem por objetivo aproximar os indivíduos, colocá-los em movimento e propiciar o estado de efervescência, às vezes até mesmo de delírio (DURKHEIM, 1968, p.542), e assim, separar as distâncias interindividuais e transgredir as normas sociais.
O divertimento é, portanto uma rápida fuga das obrigações cotidianas, não tendo a princípio qualquer utilidade. Os homens sabem que precisam da vida séria, sem ela todo coletivo é impossível. Por isso a festa deixa de ser inútil e passa a ter uma função: depois da cerimônia, cada indivíduo volta à vida séria com mais coragem e ardor (VIANNA, 1988, p.52).
A festa é excesso, em todos os sentidos, para não fazer sentido algum. O som muito alto, o contraste entre as luzes que piscam sem parar e a escuridão quase dominante, as danças cada vez mais intensas, os gritos de satisfação. A festa é loucura, afirmação inconsequente e irresponsável de que a vida vale a pena ser vivida. A alegria apesar de toda a miséria do cotidiano (VIANNA, 1988, p.108).

TERAPEUTAS DA MASSA
Na festa, uma figura indispensável é o DJ, que reconhece a importância que o baile tem para os dançarinos, são cientes da importância que o baile representa para o seu público como uma das únicas fontes de diversão e também como "válvula de escape", para as frustrações de uma vida cotidiana pesada.
Segundo Vianna (1988, p.45), os DJ's tem uma noção muito precisa sobre quem é o seu público, principalmente porque na maioria dos casos, já foram dançarinos. Compreendem o funk como opção barata e acessível de divertimento, como recompensa ao trabalho cansativo dos dias normais.
O baile, ou pancadão como é popularmente conhecido, alivia as tensões criadas pela vida violenta e desgastante que o público do funk leva. Daí a responsabilidade social desses profissionais, os DJ's que podem se considerar uma espécie de terapeutas da massa.
Inclusive Dayse da Injeção, em entrevista ao documentário Sou feia mas to na moda (Denise Garcia, 2005) afirma "Hoje em dia neguinho fala que funk é diversão. É diversão pra quem vai lá assistir a gente, porque pra gente é trabalho. É onde a gente ganha dinheiro. Só não tem carteira assinada, mas dá pra sobreviver bem", demonstrando assim a consciência dos profissionais diante de seu trabalho.

CRIMINALIZAÇÃO DO FUNK
No dia 18 de outubro de 1992, começou a era das trevas para o funk, quando aconteceu o lendário arrastão na Praia do Arpoador, que mudou a imagem do funk e dos funkeiros. Facções rivais de jovens adeptos ao ritmo se encontraram na Praia do Arpoador e reproduziram no asfalto, em plena luz do dia, as lutas dos bailes de corredor (estilo de funk carregado de violência) (MEDEIROS, 2006, p.53).
As cenas chocaram o olhar de uma elite que desconhecia esse universo e correu em pânico – achando se tratar de assalto. O episódio ficou popularmente conhecido como "arrastão". Nesse momento, o funk passou a ocupar 94,8% dos cadernos policiais e apenas 5,2% dos cadernos culturais (MEDEIROS, 2006, p.53), surgindo assim uma naturalização da associação entre funk e violência.


Figura 2: O corre corre nas areias.

Fonte: O Globo, 1992.
Esse arrastão aconteceu poucos dias antes das eleições do segundo turno para prefeito na cidade do Rio de Janeiro em 1992, e os jornais Jornal do Commercio e O Globo, nas manchetes e nos noticiários destacam que os candidatos a prefeito César Maia (PMDB) e Benedita da Silva (PT) teriam soluções diferentes para os problemas da violência dos arrastões nas praias da Zona Sul.
Enquanto César Maia pedia repressão dura, exigia providências do Governador do Rio e ameaçava convocar o Exército, admitindo o uso de tropas federais contra os arrastões. A candidata Benedita da Silva não concordava com nenhum tipo de violência, condenava a discriminação e acreditava que a violência seria decorrência da falta de justiça social (FRANCISCO, 2003, p.05).
Por fim, a candidata do Partido dos Trabalhadores (PT), Benedita da Silva, mulher, negra e moradora de uma comunidade carioca, que liderava as pesquisas para prefeitura com cerca de 37% dos votos, caiu para 17% e não foi eleita (CONY, 2004).
Em 2006, Nilo Batista, que era o vice-governador do Rio de Janeiro e secretário de Justiça e Polícia Civil em 1992, apresentou um levantamento completo do Arrastão do Arpoador, onde foi constatado apenas o furto de uma toalha e um par de Havaianas, um "arrastão" sem vítimas, sem uma pessoa ferida (grifo do autor).
Porém, antes do resultado desse inquérito muita coisa aconteceu, até mesmo uma CPI que proibiu os bailes funks em 1995. E somente com a atuação de políticos conscientes de que o funk era praticamente a única opção de lazer para quase 2 milhões de jovens, foi possível regulamentar os bailes (MEDEIROS, 2006, p.56).
Os bailes foram alocados em territórios neutros, em clubes fora das comunidades, porém até hoje sua realização é proibida no município do Rio de Janeiro sem a autorização prévia dos batalhões militares.

APARTHEID CARIOCA
É muito comum, as pessoas se queixarem da violência na cidade do Rio e apresentarem certo saudosismo, afirmando que não havia violência até décadas atrás. Mentira! A cidade do Rio de Janeiro no século XIX era brutal para quem não pertencia à elite, era uma das maiores cidades de mão de obra escrava. Os favelados de hoje, eram os quilombolas de ontem.
E dessa sociedade carioca dos séculos passados, herdamos uma cidade que vive há um século um pleno Apartheid social. As pessoas têm comportamentos abafados, isso quando existem, porque algumas são invisíveis para a sociedade, vivem em guetos encravados e ignorados em plena área nobre da cidade do Rio de Janeiro.
Segundo Ferreira e Barroso [s.d.], por exemplo, a praia é um espaço democrático apenas teoricamente, já que na cidade do Rio de Janeiro, elas assumem o símbolo de status social, à medida que em seu entorno cresce a especulação imobiliária. E com isso, os moradores de maior poder aquisitivo, os donos do território se sentem ameaçados ao dividir a areia com os moradores de favela.
E assim, para os favelados a praia é considerada vazia de identidade vivencial e cultural, resultando a não existência da relação afetiva entre esse grupo social com aquele espaço, que muitas vezes se apresenta inóspito, como por exemplo, no fim de semana posterior ao arrastão do Arpoador, onde o cidadão da Zona Norte que quisesse ir à praia de ônibus no sábado ou domingo, dias 24 e 25 de outubro de 1992, só poderia ir se estivesse com camisa, dinheiro e documentos.
Nesse plano antiarrastão estruturado pela prefeitura em conjunto com a polícia e as empresas de ônibus, quem estivesse sem documentos, camisa ou dinheiro para as passagens de ida e volta não poderia mais embarcar nos ônibus da Zona Norte e do Centro para a Zona Sul, nos fins de semana e feriados de sol, ou seja, tirando o direito de ir e vir dessas pessoas, principalmente por aumentarem a tarifa do ônibus 484 de CR$3100 para CR$8mil (O Globo, 1992 apud Francisco, 2003).

FUNK É CULTURA?
De acordo com Santos (1996, p.21), por cultura se entende muita coisa, já que diz respeito a uma esfera, a um domínio da vida social. Para esta pesquisa compreende-se como cultura todas as maneiras de existência humana – todas as manifestações, e não apenas à alta cultura, a cultura dominante, mas também a cultura popular e suas manifestação e representações, como o próprio funk.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, Art. 216: Cultura são todas as ações por meio das quais os povos expressam suas formas de criar, fazer e viver. É importante compreender que todos os povos produzem cultura e cada um tem uma forma diferente de se expressar, e isso é aceitar a diversidade cultural.
O funk é uma prática, uma expressão que as comunidades cariocas desprivilegiadas reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Para Fonseca (2005), "patrimônio é tudo o que criamos, valorizamos e queremos preservar: são os monumentos e obras de arte, e também as festas, músicas e danças, os folguedos e as comidas, os saberes, fazeres e falares" (grifo do autor).
O intrigante é obsevar que essa manifestação cultural popular, esse patrimônio carioca é negado enquanto cultura. Em entrevista à Medeiros, Mr. Catra diz:
Funk é uma crônica, tipo um jornal falado, é apenas um relato do dia-a-dia, tá ligado? Graças a Deus a gente tem baile todo final de semana então basta resumir, fazer uma crônica em música em cima dos últimos acontecimentos mais importantes da nossa comunidade e do nosso meio (...) Funk é cultura. Então não tem que ser com o Ministério da Justiça, tem que ser com o da Cultura. Se a Secretaria da Cultura não estiver preparada, e acontecer alguma coisa, aí chama a polícia. Só que todos os movimentos são tratados pelo Departamento de Cultura e o funk não. O funk é tratado pela Justiça. (MEDEIROS, 2006)
Porque a única diversão de milhares de jovens à margem da sociedade passou a ser vista como caso de polícia? A Constituição Federal de 1988 garante livre expressão do pensamento e livre expressão artística.
Esse ritmo produzido por grupos de pobres favelados que misturam eletro a ritmos afro-brasileiros, narrando uma realidade regada a letras sensuais e irreverentes é muito mais popular que o ritmo produzido por intelectuais da elite carioca, que misturam o jazz com o samba.
Por fim, em 1º de setembro de 2009, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou a lei 5.543, que reconhece o funk como movimento cultural e musical de caráter popular do Rio de Janeiro (Portal Funk de Raiz, 2010).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em função do recorte adotado, muitas abordagens em torno da trajetória do funk, seus personagens e classificações desse gênero musical não foram discutidos neste trabalho.
Este artigo buscou compreender uma recente tradição carioca, a tradição da carne mais barata do Rio de Janeiro, dos filhos de uma sociedade que não oferece alternativas econômicas para quem está esquecido nos novos quilombos urbanos.
Esse movimento autenticamente carioca é a expressão da cultura dos morros do Rio de Janeiro, porém as pessoas não se acostumaram a viver com a realidade do outro, com isso não reconhecem o funk enquanto produção cultural.
E mesmo depois do ritmo ter ganhado força internacional, como o sucesso que fez no verão europeu de 2005, o fato de ter sido base para um sucesso da cantora inglesa MIA, Bucky Done Gun (PALCO PRINCIPAL, 2010) e até mesmo o funk Quem Que Cagüetou? (Follow Me Follow Me) já ter sido usado num comercial britânico numa versão remixada por Fatboy Slim (TERRITÓRIO DA MÚSICA, 2004), o ritmo continua não sendo digna de representar a cultura brasileira.
Por fim, é preciso descriminalizar o funk literalmente. Ele deve ser pensado, criticado e discutido, mas nunca censurado ou ignorado enquanto produção cultural. E se a narrativa da realidade não está agradável, vamos primeiro mudar a sociedade e não a música. Afinal, realidade não é crime, realidade não é sacanagem, e o funk é apenas o reflexo de uma sociedade perversa.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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DURKHEIM, Emile. Les Formes élémentaires de La vie réligieuse. Paris: PUF, 1968, 5.ed.
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