Futuro da Tecnologia ou Tecnologia do Futuro? Críticas de Álvaro Vieira Pinto à \"Futurologia\"

June 1, 2017 | Autor: Rodrigo Gonzatto | Categoria: Technology, Futurology, Tecnologia, Futuro, ÁLvaro Vieira Pinto
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FUTURO DA TECNOLOGIA OU TECNOLOGIA DO FUTURO? CRÍTICAS DE ÁLVARO VIEIRA PINTO À “FUTUROLOGIA” RODRIGO FREESE GONZATTO1 LUIZ ERNESTO MERKLE2

Resumo: Neste artigo partimos da compreensão crítica da tecnologia de Álvaro Vieira Pinto para elencar considerações sobre especulações sobre as tecnologias do futuro, denominadas como “futurologias”. Para Vieira Pinto, a técnica é um existencial humano, voltada à possibilidade deste projetar a si mesmo e seus modos de vida, e o debate sobre o futuro ocorre sempre em função de interesses correntes, historicamente circunstanciados. Entretanto, em futurologias produzidas recentemente, como os vídeos de “visão do futuro” da Microsoft Office Labs, temos a tecnologia ingenuamente posicionada como principal resolução de conflitos sociais, e o futuro, posto interessadamente, como uma continuidade das estruturas sociais vigentes, que aparentemente serão as mesmas do presente/passado. De um ponto de vista dos estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), pela obra de Vieira Pinto, problematizamos esta apresentação da sociedade como passiva, “aguardando” artefatos de um futuro porvir. Apesar de se apresentar, aparentemente, como especulação descompromissada, as “futurologias” também podem operar em um viés colonizador dos esforços de projeção que visam transformações da sociedade. Elas ocultam significados das tecnologias, como o de esta ser densamente vinculada às realidades em que emergem, e abstraem o papel ativo das sociedades na construção de seus próprios futuros. Palavras-chave: Álvaro Vieira Pinto; Tecnologia; Futuro; Futurologia; Ficções projetuais.

APRESENTAÇÃO A exibição pública de artefatos tecnológicos como uma busca de mostrar a capacidade de invenção das nações não é um acontecimento recente, tampouco é um aspecto secundário da compreensão da tecnologia. As “Exposições Universais” são um exemplo. Surgiram em 1851 como feiras para exibição e comércio de produtos industriais, e se instituíram como representação de uma ideia de “progresso mundial”. Além de produtos, vendiam […] a ideia da sociedade industrial, do progresso material como caminho da felicidade, no qual todos se deveriam congraçar, em harmonia universal […] O que se vendia era — sim — um gênero de vida, uma construção política e ideológica, e visões de uma sociedade futura idealizada (BARBUY, 1999:40)

1 Doutorando na linha de Mediações e Culturas do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Brasil. Professor da Escola de Arquitetura e Design da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Professor Ph.D. no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Brasil. Professor no Departamento de Informática da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Brasil. E-mail: [email protected].

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Na exposição realizada no Crystal Palace de Londres, em 1851, o sentimento dos contemporâneos era de que a humanidade atingira uma etapa onde tudo era possível por meio do progresso técnico. Em virtude da ocasião, um príncipe ressaltou que a humanidade vivenciava, naquele momento, um período de transformações maravilhosas e que “as criações da arte e da indústria não eram privilégio de uma nação, mas pertenciam ao mundo inteiro.” (PESAVENTO, 1997:73) Apesar da promessa de futuro com caráter universalizante, as criações e ideais expostos nas feiras seguem até hoje indisponíveis para todos. Na atualidade, a ideia de divulgar a capacidade de desenvolvimento de novas tecnologias, apesar de ainda partir de regiões consideradas “centrais” — pelas relações de poder que instituíram e instituem — ocorre não só em nações como a Inglaterra, mas também em outras áreas geográficas. A partir de meios de comunicação transnacionais, como a televisão e a internet, a idealização do “progresso tecnológico” se manifesta não apenas pela exposição concreta de maquinários funcionais, mas também pela exibição de mídias audiovisuais com narrativas ficcionais sobre as tecnologias que poderiam vir a existir. Multinacionais de diversos setores, que vão de sistemas de informação e comunicação até empresas de vidro e cerâmica, tem criado e divulgado vídeos apresentando o que chamam de “visões do futuro3”. Empresas como Microsoft, Nokia, Corning e TAT, investiram recursos para criar vídeos, buscando mostrar suas especulações sobre que aparelhos e máquinas imaginam desenvolver nas próximas décadas. A multinacional Microsoft, por exemplo, afirma que o objetivo de suas “visões do futuro”4 é: Dar um passo dentro do futuro e vislumbrar como a tecnologia pode transformar o modo como vivemos e trabalhamos nos próximos anos. Explorar alguns de nossos conceitos de como tecnologias de última geração devem ser usadas no mundo real – como saúde, indústria, atividades bancárias e varejo – nos próximos 5-10 anos.5

Enquanto produções audiovisuais, as “visões de futuro” estão próximas da ideia de vídeo-conceito6, por se tratarem de narrativas ficcionais (sobre um futuro porvir), expressas por montagens visuais e efeitos especiais que procuram dar um aspecto “realístico” ao vídeo e 3 Tradução nossa para o termo em inglês, “future vision”. 4 De acordo com as informações disponíveis no site da Microsoft Office Labs, disponível em . Acesso em 2013. O Office Labs se apresenta como “uma equipe inovadora ajudando a dar forma ao jeito com que vivemos, trabalhamos, e fazer as coisas dentro e fora do ambiente de trabalho, procurando por “estrelas” criativas e altamente colaborativas para ajudar a nos levar ao futuro”. 5 Tradução nossa, para descrição disponível em . Acesso em 2013. 6 Formato de vídeo, no qual são explorados narrativas a partir de cenários baseados em conceitos, geralmente de base experimental ou especulativa.

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às produções tecnológicas que especula – tal como um filme de ficção científica, onde um mundo diferente é apresentado, mas em um tom mais próximo da literatura do realismo fantástico, na qual realidade e imaginação se misturam. Entretanto, diferente da ficção científica, são apresentados cenários cotidianos com pessoas utilizando as “tecnologias do futuro” em atividades do dia-a-dia. Neste sentido, “visões do futuro” podem ser consideradas como dissidentes das ficções projetuais7, apesar de se distinguirem por seu acabamento visual e seu caráter publicitário, funcionando como uma peça audiovisual que, ao atrair interesse público, trabalha como uma ferramenta de marketing para a empresa que o produz.

“VISÕES DO FUTURO” DA MICROSOFT LABS O Microsoft Office Labs disponibilizou cinco vídeos de “visão de futuro”, em abril de 2009, cada um abordando um assunto específico: produtividade, saúde, indústria, atividades bancárias e varejo. Como exemplo de ficção que utiliza a ideia de futuro em suas narrativas, descrevemos e analisamos o primeiro vídeo8 da série “visões do futuro para 2019”. A estória contada no vídeo (Figura 1) começa em uma sala de aula, onde crianças de diferentes culturas, e em diferentes lugares, interagem mediadas por uma parede com uma interface que simula um vidro transparente. As crianças utilizam essa interface para transformar desenhos em animações, e tem suas conversas traduzidas em tempo real. Na cena seguinte temos uma pessoa, passageira em uma viagem de avião. Ela parece ser responsável por uma das crianças que está na sala de aula, e utiliza uma interface digital para acessar as mesmas imagens que estavam perante as crianças na escola, assim como informações sobre as demais aulas e sobre seu próprio voo. Desta cena, segue para um pessoa trabalhando em um escritório, verificando diversas informações em múltiplas interfaces, do vidro da sua janela até as projeções em sua mesa de trabalho. Ele realiza operações e arrasta dados para um dispositivo móvel. Em seguida, temos o caminho de uma pessoa em um aeroporto: enquanto ele está em uma esteira, sendo conduzida ao seu destino, utiliza seu celular para conversar e combinar um encontro. Ao sair da esteira, projeta no chão a indicação do caminho que deve seguir. Na próxima cena, um grupo se reúne para ver uma apresentação. Voltamos ao encontro no aeroporto, que conversam sobre os documentos exibidos em uma mesa. Uma 7 Ficções projetuais (“Design fictions”, em inglês) são um formato utilizado em narrativas que apresentam cenários cotidianos sobre o futuro, nos quais a tecnologia possui um papel crucial. (GONZATTO et al, 2013) 8 Denominado “Productivity Future Vision”, o vídeo está disponível para visualização em .

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caneca indica se a pessoa está desperta (ou não) baseada na quantidade de café consumida. Perto do fim do vídeo, em um local diferente, uma pessoa lê um jornal digital, e com o movimento dos dedos, muda as notícias apresentadas. Uma tela em sua parede exibe informações sobre o monitoramento do consumo de energia na casa. Ela verifica as tarefas do dia nesta tela e usa um dispositivo para fotografar uma imagem da tarefa e depois transfere esta imagem para o jornal que lia anteriormente. Sai do local onde está e, em meio de uma grande área verde, continua trabalhando. O vídeo finaliza com a pessoa que fez a viagem de avião, no topo de um prédio, com jardins verdes, neste, e nos prédios vizinhos. Figura 1: Cenas do vídeo de visão de futuro para a produtividade da Microsoft Office Labs.

Fonte: Site do Microsoft Office Labs (2013)

Este vídeo, com seis minutos, aborda o tema “produtividade”. Inicia sua narrativa com a questão da educação, mas logo em seguida apresenta situações de trabalho, como planejamento, reunião, negócios, conversas e distribuição de tarefas. Ao longo das sequências de efeitos especiais, não fica clara qual a produtividade que estes dispositivos vão oferecer frente às técnicas já existentes. Os cenários indicam um ambiente de trabalho baseado em tarefas preparadas anteriormente, e diz pouco sobre necessidades de produção a partir de situações emergentes. As pessoas aparecem principalmente consumindo dados, e não produzindo estes. Pela naturalidade com que os personagens utilizam com os dispositivos 4

fictícios, a narrativa também sugere que as pessoas dominam comandos e interações complexas, utilizando toque e gestos para controlar interfaces digitais. Entende-se que estes usos foram aprendidos, mas não deixa claro a produtividade destas novas tecnologias, visto que seus benefícios não estão explícitos. Que expectativas deve-se ter com um futuro no qual o ser humano tem que dominar a complexidade de máquinas que já não parecem acessíveis desde agora, para realizar um trabalho que aparentemente produzem os mesmos resultados? Ao longo do vídeo, vemos pessoas utilizando ferramentas cujo aspecto visual difere das ferramentas cotidianas utilizadas hoje. Entretanto, a maioria dos comportamentos e interações entre pessoas são semelhantes aos que já são encontrados correntemente. No caso da educação, a relação entre professora e estudantes continua vertical na organização do espaço de sala de aula. A maior parte das crianças não está interagindo com a interface, mas sentadas, realizando alguma outra atividade, tornando difícil de compreender o contexto de aplicação em aula da parede interativa. Nos cenários de trabalho, a ideia de produtividade do trabalho é posta como atividade daqueles que gerem, classificam e apresentam informações, por reuniões majoritariamente presenciais, ainda que com eventuais teleconferências. Entendemos, assim, que as novas tecnologias deste futuro servirão para a manutenção de paradigmas: educação em sala de aula, trabalho em escritório; divisão de espaço de trabalho entre equipes e especialistas; esfera da produção separada dos seus espaços de uso e consumo, etc. A visão de futuro não se propõe imaginar que todo o potencial técnico por vir poderá servir também para novas formas de trabalho ou educação, tal como uma educação horizontal, com outras estruturas de ensino-aprendizagem, mais integradas com a sociedade; ou mudanças nas relações sociais entre trabalhadores, como cooperação entre quem utiliza dados, mídias e informações, com aqueles que a produzem, por exemplo. Durante o vídeo, as relações sociais não representam conflitos, e, nos poucos casos onde poderiam se revelar, as máquinas o contornam. Um exemplo é a cena da sala de aula em que uma das crianças, ao conversar em inglês com uma criança indiana, fala sobre gatos, e o sistema a alerta que gatos são considerados má sorte na India. As diferenças interculturais são mediadas por um sistema, como se este fosse neutro no contato entre as crianças, apesar de também ser um produto cultural, que, está conectado aos valores e ideais visados pelos interesses de quem produziu o vídeo.

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CRÍTICA À “FUTUROLOGIA” POR ÁLVARO VIEIRA PINTO A missão empresarial que a Microsoft assume para si mesma é a de “Ajudar pessoas, empresas e parceiros a atingirem todo o seu potencial”, noção complementada pelo seu slogan: "A gente inova, você transforma". Segundo o site institucional da Microsoft, “a força da nossa tecnologia e, principalmente, a nossa capacidade de inovar constantemente podem mudar não apenas os indivíduos, mas a sociedade em que vivemos” 9. Não está evidente qual é exatamente a mudança que esperam realizar nos indivíduos e qual transformação espera deles. Pelo seu primeiro vídeo de “visão do futuro”, entretanto, entende-se que esperam o uso de dispositivos diferentes, deixando implícita a intenção de se colocar como produtora da tecnologia que será o principal vetor da mudança e transformação possível e desejada. Proposições como estas sugerem a transformação social como resultado de um uso da tecnologia desvinculado da criação técnica, como se a tecnologia fosse uma força neutra em relação a sociedade: uma compreensão determinista da tecnologia. O determinismo tecnológico concebe a tecnologia como força autônoma e descontextualizada da realidade social e histórica do ser humano, colocando a tecnologia como principal força dominante na sociedade (SMITH & MARX, 1994). O discurso determinista pressupõe a possibilidade de previsão do futuro, e apresenta o futuro como uma dimensão dependente de um conjunto determinado de novas tecnologias a serem disponibilizadas. Esta abordagem retira da noção de tecnologia o seu vínculo à existência do ser humano, abrindo espaço para que se projetam visões fantásticas do futuro, baseadas em uma concepção de técnica substancializada e um ser humano desligado do seu contexto social. Álvaro Vieira Pinto (2005) critica esta compreensão da tecnologia, declarando-a ingênua. Para o filósofo, a técnica deve ser entendida como existencial de todo ser humano, e definida como o meio que o ser humano encontra para solucionar as contradições com que se defronta, uma mediação na obtenção de finalidades humanas. As tecnologias são construções sócio-históricas, e se desenvolvem em uma relação dialética com as sociedades que as criam e utilizam. Deste modo, a tecnologia se forma em função da cultura da humanidade de cada tempo, engendrando a sucessora no movimento da solução das contradições objetivas enfrentadas pelo ser humano. Vieira Pinto pontua severas críticas às especulações ingênuas sobre o futuro, denominadas pelo autor como “futurologias”, por tentarem “relacionar a técnica, erroneamente substantivada, com o homem, também desligado do contexto social” (VIEIRA 9 Texto completo disponível em .

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PINTO, 2005 [I]:50). O filósofo indica que futurologias não são geradas em um vácuo social: estão conectada com intenções, ideias, expectativas e ideologias. Suas narrativas estão condicionadas às possibilidades de projeção das pessoas, e das possibilidades de materialização destas pelos meios (conceituais e ferramentais) disponíveis no seu tempo. A condição, própria da consciência, de estar centralizada no presente, mas ter por essência do seu modo de ser o expandir-se, o projetar-se na reminiscência do passado e na predição do futuro, obriga toda futurologia a assumir necessariamente o caráter de ideologia social. (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:90)

Futurologias, apesar de discursarem sobre um cenário futurístico, se apresentam concretamente — como vídeo, texto, foto, site, etc. — no tempo presente, refletindo e refratando valores e ideologias (GONZATTO et al, 2013). As tecnologias apresentados pela Microsoft, em seu vídeo sobre produtividade, não eram passíveis de serem postas em funcionamento, mas a criação da produção audiovisual foi possível, e para tal foram utilizadas as tecnologias do presente. Entretanto, apesar de seus belos cenários e interfaces, em suas preocupações com o futuro não se especulam transformação de questões, urgentes hoje, como a miséria, a distribuição de renda, as condições de vida e as transformações das relações étnico-raciais, de gênero ou de classe, entre outras. Afinal, para quem se destinam estas visões de futuro? Assim como a tecnologia “de ponta” atual está disponível como privilégio de pequenos grupos, como esperar que a tecnologia do “futuro” esteja ao alcance de todos? Todo projeto sobre o futuro é feito em seu tempo, a partir deste, e sua intervenção se dá no próprio tempo corrente. Tal como o que é hoje proposto como futuro, futuramente será um dado sobre o passado. As imaginativas promessas de futuro que hoje compõe a história das ficções do passado, como o próprio vídeo citado anteriormente (criado em 2009 sobre o ano de 2019), se tornam, com o passar dos anos, um dado sobre como uma empresa buscou influenciar o imaginário de seu tempo: Nada parecerá sem dúvida mais ridículo aos olhos dos homens ainda por nascer do que as "ousadas" alucinações escritas e filmadas hoje a propósito daquele tempo. Serão seguramente incorporadas à literatura utópica, como fazemos agora com obras de visionários do passado. (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:695-696)

Vieira Pinto questiona as propostas futurológicas que discursam sobre um futuro distante, sem fornecerem elementos que possam ser reconhecidos na condição presente, de modo que estas futurologias "não podem ser refutadas pelo mesmo motivo pelo qual também não podem ser confirmadas" (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:86). Em outros casos, incluem o futuro no exame de problemas atuais, ato de quem "procede como se já estivesse situado no instante futuro, o conhecesse perfeitamente, numa estranha inversão imaginativa, porque em 7

vez de falar do presente para o futuro, faz o oposto, fala do tempo vindouro para o dia de hoje." (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:86) Vieira Pinto preocupa-se com estas estratégias pois: O futuro perde então o caráter dialético existencial que efetivamente tem, no sentido de ser intervalo de tempo dado ao homem para viver, no exercício da capacidade criadora impossível de prever-se senão em traços gerais desde já, para se converter no eco do presente, no estribilho da atualidade. Com isso fica assegurada a solidez da presente dominação, e ainda dissipam-se os temores de vir algum dia a desmoronar. (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:684-685)

Uma das abordagens centrais do pensamento sobre tecnologia de Vieira Pinto é a relação entre centro (desenvolvido) e periferia (subdesenvolvida). O centro, por dominar econômica e culturalmente a periferia, captura para si apenas um dos significados de tecnologia e ideologicamente o proclama como universal, reservando à realidade subdesenvolvida da periferia a condição de "receptora" das inovações técnicas. Tornando evidente a desigualdade da divisão internacional do trabalho, Vieira Pinto alerta para a utilização de futurologias como um modo do centro dominante tentar imobilizar o pensamento para si dos países subdesenvolvidos: Compreende-se assim que o trabalho dos "futurólogos" comprometidos com a dominação dos países hegemônicos resume-se na verdade em prever um futuro que não se diferencie qualitativamente do presente. […] Tudo quanto almejam reduz-se a fazer deslizar pelo caminho da história um presente imóvel, o atual, aquele que lhes interessa seja preservado. Percebe-se portanto que a suposta "futurologia" desses prestidigitadores da tecnologia econômica constitui na verdade uma 'passadologia'. Com efeito o que realmente querem é que o futuro seja o atual presente este que naquela ocasião vindoura será de fato o passado. (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:93)

As futurologias, muitas vezes, se configuram como recurso para conservação da esperança por um futuro que, graças a tecnologia das nações desenvolvidas, promete ser farto, bem resolvido e sem conflitos. Fazem crer, também, que todas as pessoas participarão por igual desta “Idade de Ouro”, por vir. Esta manobra é denunciada por Vieira Pinto como uma forma de evitar o exame da origem dos infortúnios presentes. Propõe ao ser humano […] viver na imaginação uma idade vindoura feliz, como se nela se encontrasse e desde agora soubesse o que vai ser. Na verdade, pretendem que o homem, o trabalhador de hoje, não se inquiete com as injustiças atuais, porquanto foi convencido de que os defeitos do mundo presente resultam de imperfeições tecnológicas ainda não corrigidas pela ação da inteligência. (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:689)

Nestas futurologias temos a promessa de que um futuro melhor está sendo preparado, bastando — enquanto os demais esperam — permitir liberdade de ação a aqueles que divulgam o “futuro”. Essa domesticação do futuro se dá pela domesticação do presente, pois o presente é a realidade que interessa aqueles que desejam impor um futuro: 8

Fazendo crer que a tecnologia fornece o instrumento da revolução pacífica do desenvolvimento, e ao mesmo tempo insinuando aos povos marginais a impossibilidade de engendrarem a técnica em quantidade e qualidade requeridas, os ideólogos do mundo alto convencem as populações atrasadas da prática inviabilidade de saírem por si mesmas da miserável condição onde vegetam. Chamamos a isso o falso e interesseiro emprego do conceito de tecnologia, convertido em elixir de bruxas, destinado a adormecer a consciência da nação dependente exercendo uma influência entorpecente. Segundo essa presunção, a distância que separa os povos desenvolvidos dos subdesenvolvidos já se mostra definitivamente infranqueável, tendendo a aumentar continuamente. (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:683)

Tende-se assim a ocultar ou desqualificar a tradição técnica que as nações subdesenvolvidas já possuem. Para Vieira Pinto, estas não devem renunciar ao desenvolvimento para si de suas tecnologias, apesar do discurso futurológico hegemônico. Nesta direção, o filósofo não exclui a possibilidade de uma futurologia legítima, mas recomenda que esta reconheça a possibilidade de surgimento do novo, do inesperado e do imprevisível, ou seja, do que irá resultar nas transformações ainda a ocorrer na história. Também é fundamental a indicação do que se acha em via de desaparecer, aspecto que condiciona a possibilidade do novo, tendo que a projeção do futuro só pode ser feita a partir das técnicas e das expressões que são agora dotadas de sentido para nós, pois toda “futurologia” se mantém no “cone de projeção imaginativa que nos é lícito conceber no momento atual.” (VIEIRA PINTO, 2005 [I]:48) Para ser válida, uma futurologia deve considerar como legítimas as mudanças do modo de produção em vigor na sociedade, ao assumir que não se sabe precisamente no que irá consistir o futuro da tecnologia. Tendo que o futuro é uma amostra da capacidade da sociedade em criar a humanidade do futuro, deve-se atentar que o ato de descrever as futuras criações técnicas se trata de projetar futuros modos de existência humana. Neste sentido, vídeos de visões do futuro como os apresentados pela Microsoft se limitam na especulações de mudanças de ações técnicas apenas em um um nível operacional. A relação entre ser humano e tecnologia é resumida a uma sequência de operações sendo aplicadas: tocar, apertar, arrastar – mas pouco ou nada é apontado no que diz respeito a resolução de contradições sociais e das relações humanas, e menos ainda do impacto dessas propostas tecnológicas para a superação da condição de subdesenvolvimento da periferia do mundo. Uma outra futurologia possível, útil às regiões periféricas, seria a que permite vislumbrar um futuro diferente do presente, visando a transformação da sua condição de subdesenvolvimento. Para tal, a perspectiva de futuro deve ser a de transformações sociais e da realização de criações do pensamento conectadas a novas formas de organização da sociedade e das mediações tecnológicas. Como pontua Álvaro Vieira Pinto, em última 9

instância, o ser humano não está interessado em saber com que máquinas irá conviver, mas com que pessoas. A esperança não é de um futuro com melhores máquinas, mas com melhores seres humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As “visões do futuro”, como as divulgadas pela Microsoft, são produções audiovisuais com finalidade de publicidade e marketing que buscam apresentar a capacidade inventiva desta organização. Utilizam os meios de comunicação – e em especial, a internet – como um espaço no qual empresas disputam da capacidade de se projetar um futuro impressionante para seus públicos. São buscados, vistos e divulgados por milhares de pessoas, que procuram entender o que imaginam para o futuro aqueles que já produzem artefatos centrais da tecnologia do presente. Entretanto, a partir da crítica de Álvaro Vieira Pinto, podemos considerar estas “visões do futuro” como “futurologias”, proposições de cenários futuros que não se confundem com especulações ingênuas e descompromissadas. As visões de futuro, assim, concentram-se em apontar apenas a realização técnica mecanicista, evitando atenção sobre as inevitáveis transformações sociais que hão de vir. Pressupondo que o futuro se passará dentro das estruturas vigentes, projetam no futuro o seu atual conceito de tecnologia. Não são esperadas mudanças substanciais no status dos grupos dirigentes (ao qual estas próprias organizações fazem parte ou estão próximas) tampouco os acontecimentos que irão marcar os rumos do futuro e alterar o quadro da “era tecnológica” que agora é prevista. Vieira Pinto (2005 [II]:692) compreende o futuro como aquilo que há de vir, o intervalo de tempo dado ao ser humano para viver. O futuro é a possibilidade oferecida ao ser humano de alcançar uma realização diferente, é a dimensão do tempo sentido por nós como condição da concretização de sua possibilidade de uma realização superior do seu ser. Neste sentido, o ser humano é o único ser vivo que busca marcha na direção do futuro. O ser humano projeta-se: caminha em direção a aquilo que ele mesmo há de ser e, é o objeto de sua própria busca. Segundo o autor, o conceito de projeto é fundamental para a compreensão do futuro, pois neste conceito unificam-se os aspectos subjetivos da práxis humana enquanto ideia concebida pela inteligência, já que “consiste na precipitação da consciência para as épocas distantes no tempo a desenrolar-se à sua frente” (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:697). 10

Entretanto, a capacidade humana de projeção dos fatos históricos é limitada. É impossível fixar limites ou datas para projeções do futuro (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:696) pela dificuldade de alcançar objetivamente as relações causais daquilo que está para ser em uma realidade que ainda não se apresenta. Não há segurança para a previsão do futuro, tampouco ele é resultado da simples invenção. Vieira Pinto comenta ser impossível “fixar prazos para a concretização de um projeto ou anunciar os meios materiais de levá-lo a cabo, pela simples razão de que se dispuséssemos de tais elementos não estaríamos nos referindo ao futuro mas ao presente”. (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:697) Da mesma maneira, o ser humano apenas entende por futuro o que lhe interessa no presente. Tomar um determinado futuro como uma certeza trata-se de uma uma projeção determinista e linear. Segundo Vieira Pinto, o futuro só adquire significação inteligível enquanto condição existencial. Este ponto é singular em seu pensamento, cuja filosofia coloca a realidade como ponto de partida da aquisição de conhecimento. Portanto, o futuro “não pode consistir no desenrolar dos acontecimentos físicos da natureza, que sabemos só possuírem história na perspectiva da inteligência humana” (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:693). Negar a visão determinista da tecnologia, assim, é combater uma visão limitada que impõe tecnologia e futuro como autoridades sobre o ser humano (LIMA FILHO e QUELUZ, 2005). Embora o projetar seja uma atividade existencial de todo ser humano, a descrição autêntica do futuro da tecnologia não deve ser realizada de qualquer maneira. Vieira Pinto alerta para os chamados “especialistas” em futurologias, que quando são incapazes de analisar, explorar e conceitualizar a totalidade, concebem ingenuamente o futuro tendo por base um conceito alienante de tecnologia. Não por acaso, é justamente ao esclarecimento da questão da técnica que Vieira Pinto (2005) dedica sua obra “O Conceito de Tecnologia”. O autor identifica que, para desmascarar a manobra conceitual alienante, em especial no que toca as relações centro e periferia, deve-se “mostrar não serem legítimos os habituais conceitos de tecnologia proclamado pelos especialistas ingênuos a soldo dos interesses metropolitanos” (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:684). Para Vieira Pinto, a pergunta pelo “futuro da tecnologia” é uma noção abstrata, visto que, pois é certo que a tecnologia existiu, existe e existirá. A tecnologia é um fato social, um existencial do ser humano, e enquanto este se perguntar sobre o mundo, haverá um futuro com tecnologia. Já a “tecnologia do futuro”, é uma construção sociocultural, que parte da acumulação dos conhecimentos e técnicas atuais, ou seja, é um prolongamento do passado, através do presente, para um projeto humano que se pende para o futuro. Por não considerar as transformações que virão a perturbar o estado existente, a “futurologia” ingênua adota a 11

estratégia de negar o futuro, tirando seu caráter ameaçador de incógnita e domesticando-o antecipadamente em detalhes visando apresentá-lo segundo convém a quem o imagina. Uma “futurologia” autêntica só começa a ser válida com visão história, legitimando as mudanças do modo de produção em vigor na sociedade.

REFERÊNCIAS BARBUY, Heloisa. A Exposição Universal de 1889 em Paris: visão e representação na sociedade industrial. São Paulo: Loyola / História Social USP, 1999. FILHO, Domingos Leite Lima; QUELUZ, Gilson Leandro. A tecnologia e a Educação tecnológica: elementos para uma sistematização conceitual. In. Educação e Tecnologia, Belo Horizonte: CEFET-MG, v.10, n.1, p.29-35, jan/jul, 2005. GONZATTO, Rodrigo F; AMSTEL, Frederick M. C. van ; MERKLE, Luiz E ; HARTMANN, Timo . The ideology of the future in design fictions. In. Digital Creativity (Exeter), p. 1-10, 2013. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais: Espetáculos da modernidade do século XIX. São Paulo: HUCITEC, 1997. SMITH, Merrt Roe; MARX, Leo. Does Technology Drive History? The Dilemma of Technological Determinism. Cambridge: MIT Press, 1994. VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. 2 v.

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