Futuro em Construção: reflexões sobre a aprendizagem histórica

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André Bueno Dulceli Estacheski Everton Crema

FUTURO EM CONSTRUÇÃO Reflexões sobre a Aprendizagem Histórica

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BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton [orgs.] Futuro em construção: reflexões sobre a aprendizagem histórica. Rio de Janeiro/União da Vitória: Sobre Ontens Ebook, 2016. ISBN: 978-85-65996-38-9 Disponível em: www.revistasobreontens.blogspot.com.br

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Índice Prefácio 7 A volta dos Discos voadores e o Ensino de História no Brasil André Bueno 9 Formação Docente para o Ensino de História: um relato de experiência Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski 31 O Tempo dos Quadrinhos Rodrigo Otávio dos Santos 51 Outras Vozes: Homofobia e Afetos Políticos na Educação Celso Kraemer Carla Fernanda da Silva Cristiane Theiss Lopes 71 As Diretrizes Curriculares Paranaenses da Educação Básica em História: um Balanço Educacional Necessário [2004-2014] Everton Crema 107 Bios 131 5

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Prefácio

O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto. Fernando Pessoa

Nesse breve prefácio, damos a nota do que será essa nossa publicação: um ensaio sobre questões atuais da história, urgentes, que atingem diretamente seus problemas de ensino e formação. Não buscamos fórmulas, nem se trata de uma panaceia, mas uma conscientização lúcida sobre nossas angústias – e também, sobre nossos possíveis caminhos. Das experiências do LAPHIS – Laboratório de Aprendizagem Histórica, presente na cidade de União da Vitória, PR, extraímos as reflexões que elaboraram esse pequeno volume. Por isso, temas tão diversos, mas tão atuais: no ensaio de André Bueno, a preocupante volta dos discos voadores para as salas de aula brasileiras; já Dulceli Tonet relata sua enriquecedora experiência educacional na cidade; Rodrigo Scama nos traz um pouco das inovadoras teorias sobre história e história em quadrinhos; Celso Kraemer, Carla Silva e Cristiane Lopes nos revelam o sensível e complexo panorama da educação e do ensino de gênero; e Everton Crema aborda o necessário balanço das teorias usadas na construção das diretrizes de ensino de história no PR. 7

Diversos, porém unidos, os ensaios trazem a questão crucial: o que faremos adiante?

Uma boa leitura!

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A volta dos Discos voadores e o Ensino de História no Brasil André Bueno

Recentemente, a Aeronáutica liberou uma série de documentos sobre aparições e avistamentos de objetos voadores não identificados [em português, ‘OVNI’, em inglês ‘UFO’] no

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Brasil.1 A notícia, comemorada pelos ‘ufólogos’, foi bastante criticada por alguns setores da intelectualidade brasileira, que contestaram o fato da mesma Aeronáutica não liberar documentos sobre os desaparecidos durante o período militar [1964-85]. Por causa disso, esses intelectuais não levaram a sério o ato da Aeronáutica, que por seu turno, não costuma levar a sério também os intelectuais e os ufólogos; ufólogos esses que, em geral, não são levados a sério por quase ninguém, mas que se preocupam, sim, com desaparecidos – aqueles abduzidos pelos Et’s, e não pelas forças armadas ou por guerrilheiros de esquerda. Esse debate foi eclipsado pelas tensões eleitorais desse ano [2014], mas podemos dizer que ele faz parte de um conjunto maior de problemas históricos e intelectuais. Não faz muito tempo também, o canal de Tv History Channel começou a promover o programa ‘Alienígenas no Passado’ 2 [desde 2010], que tenta a todo custo provar as diversas interferências extraterrestres no curso da história da humanidade. Embora a maior parte das inferências feitas possa ser refutada com o auxílio de bons manuais de história, ou com a consulta de especialistas nas áreas das ciências, o programa tem atingido bons níveis de audiência [já está na sétima temporada], revelando um profundo desconhecimento do público sobre os problemas tratados. A insistência desse tema já valeria a perda, por parte do canal, do título de ‘History Channel’, mas ele revela o distanciamento que uma parte substancial da sociedade mantém sobre o que significa o estudo da história como uma ciência. O público geral parece 1

http://www.ufo.com.br/noticias/governo-brasileiro-libera-um-dos-maisimportantes-documentos-secretos-sobre-ufos-ate-agora 2 http://www.seuhistory.com/programas/alienigenas-do-passado

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não se interessar mais pela história, essencialmente politizada, que tem sido imposta constantemente nas escolas. Que se entenda: em minha opinião pessoal, o ensino de história deveria fomentar, justamente, a construção dessa consciência crítica, que tanto precisamos para uma sociedade saudável e autônoma. Todavia, algo está acontecendo de errado no ensino de história. Tivemos durante décadas um ensino superficial, baseado em heróis, batalhas, efemérides e elementos cívicos basilares, mas em geral, superficiais. A virada desse ensino, após o fim do regime militar, buscou uma politização necessária, que embarcou nas lutas de classes, regimes produtivos, escravidões, consciência social, etc. Aparentemente, porém, isso também não deu certo. Nossos alunos saem da escola sem serem empreendedores decididos ou revolucionários idealistas. Vivemos, ainda, numa sociedade racista, machista, preconceituosa, que está se envolvendo em um processo de radicalismo religioso preocupante. Tal fator é notável; se uma grande parte da sociedade parece não acreditar em alienígenas, porque os exclui de um plano divino que transformou o planeta Terra no único lugar habitável do universo, a outra metade não apenas parece acreditar neles como, ainda por cima, os vê pululando em eventos históricos do passado. Isso se deve a uma desconsideração generalizada sobre o campo da história em nosso país. Ela tem sido mal ensinada, por profissionais com sérios problemas de qualificação, amarrados por orientações de cunho ideológico e planejamentos educacionais fracos e cheios de deficiências estruturais. Isso tem tornando a história chata e desinteressante. As imensas lacunas causadas por esse ensino problemático deixam abertas as portas para o aparecimento de teorias esdrúxulas, como as do History Channel, 11

que parecem ser absolutamente plausíveis para aqueles que desconhecem um curso de história bem feito nos níveis básicos da educação. Não é meu intuito afirmar a inexistência de alienígenas; mas até termos provas definitivas de sua existência, trabalhamos num campo de pura especulação, que deve ser lido com cuidado, e para o qual possuímos poucos especialistas sérios. Chamo atenção para o fato de que eventos históricos simples, que podem ser razoavelmente bem explicados pela arqueologia, pela história, pela engenharia ou medicina, transformam-se em episódios obscuros, de desinformação completa, devido a esse tipo de desconhecimento sobre o passado. Esse é o meu foco, aqui. Assim, temos uma equação macabra: um ensino desinteressante, superficialmente crítico, dirigido por políticas públicas problemáticas, torna o campo da história um grande aborrecimento para a maior parte do público. Quando esse se interessa pela história, busca na literatura histórica aquilo que lhe parece atraente, diferente, alternativo. Eis porque livros cheios de fofocas históricas, escândalos ou guerras, por exemplo, vendem aos cântaros. São as lacunas desse ensino. E deveríamos, então, ensinar essas coisas na escola? Claro que não. O que me preocupa, nesse caso, é a ausência de um instrumental crítico histórico, que permita a alguém duvidar, pôr em questão esse tipo de leitura. Os extraterrestres entram nesse mesmo tipo de buraco. Nosso desconhecimento básico em ciências e história cria esse abismo, que propicia o aparecimento das teorias mais estapafúrdias para explicar o passado da humanidade. É o que torna ‘absolutamente interessante’ descobrir o que os documentos da Aeronáutica trazem sobre OVNI’s; por outro lado, faz parecer, para muitos,

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uma ‘grande chateação’ querer saber algo mais sobre os desaparecidos do período militar. Desta forma, podemos dizer que o ensino de história tem um longo desafio pela frente: ele terá que ser capaz de se reinventar, de propiciar a criação de uma consciência histórica e de um conjunto de ferramentas que permitam, ao indivíduo, analisar os eventos históricos, desconstruí-los e não aceitá-los tacitamente. Porém, no caso dos Et’s, o que fazer com eles, se eles não fazem parte [ou ao menos, não deveriam] da história humana? Precisamos, então, detalhar um pouco mais esse problema, e partir em busca de propostas. O Maravilhoso na sociedade contemporânea Precisamos empreender um retorno ao passado, para compreendermos como opera nossa mente histórica, e em que lacunas atuam os problemas de nossa formação escolar. As raízes são mais antigas do que podemos supor, e por isso demandam uma apresentação sucinta. Jean Claude Schmitt [1999, p.98-100] definiu com elegância e profundidade o padrão da mente medieval, da qual somos herdeiros diretos, que entendia os eventos do mundo em dois âmbitos: Miracula e Mirabilia. Miracula é o ‘Milagre’, um tipo de intervenção divina absolutamente ‘crível e explicável’ dentro de uma lógica religiosa cristã, cujo sentido reporta-se diretamente ao problema. Já Mirabilia, o ‘Maravilhoso’, trata-se daqueles eventos ainda inexplicáveis, pois não se encaixam diretamente na lógica explicativa de um mundo cristão. São acontecimentos, criaturas ou ações cujo sentido só pode ser especulado nesse mundo, mas cuja explicação encontra-se ainda 13

além de nosso conhecimento imediato. Pode parecer estranho invocar aqui o conceito de Schmitt, mas se repararmos bem, ele é perfeito para explicar o vasto conjunto de mitos e lendas que foram introduzidos ou criados no Brasil ao longo dos séculos. O que caracteriza o que chamamos de criaturas do nosso folclore [Saci, Mula sem cabeça, Lobisomem, Boitatá, Curupira, etc.] pertence ao ‘Maravilhoso’, já que não se possuía uma explicação direta sobre elas no âmbito religioso [exemplo: em que momento da criação divina, por exemplo, teriam surgido os lobisomens?], mas eram ‘reais’ no âmbito popular. Por isso, não raro, os especialistas religiosos e sacerdotes classificavam como ‘crendices’ tais criaturas e crenças, desprezando-as categoricamente. Entre o povo em geral, porém, tais crendices eram amplamente difundidas até algum tempo atrás. É o advento da modernidade, da evolução dos meios de comunicação e de informação que iria enfraquecer tremendamente a existências desses mitos maravilhosos. Os fragmentos de ciência paulatinamente inseridos e divulgados na mídia [‘novas descobertas científicas’, alertas sobre questões mundiais, de saúde, etc] foram paulatinamente esvaziando as possibilidades desses seres fantásticos. No entanto, não podemos esquecer que somos herdeiros diretos da cultura portuguesa, talhada no medievo europeu, que nos legou essa estrutura mental – Mirabiliae Miracula – de sacis e curupiras por um lado, mas que consolidou Nossa Senhora de Aparecida por outro. Enquanto permanecerem lacunas em nossos conhecimentos históricos e científicos, ambos os conceitos atuam preenchendo nossas ausências, nossos anseios, nossas dúvidas. Por isso, os retalhos de ciência que a população absorveu nos últimos tempos pela mídia fez sumir nossos sacis, tornando-os improváveis, mas acabou o substituindo pelas ficções cientificas, 14

amplamente exploradas pela mesma mídia, de extraterrestres, naves voadoras, conspirações alienígenas, entre outras. O ‘Maravilhoso’ se revela novamente, absorvendo o inexplicável ser de outro planeta, e transformando-o numa espécie de crença. Ele é algo que ‘existe’, mas ninguém sabe ao certo como, porque ou qual sua inserção numa lógica universal [e no caso do Brasil, ainda, essencialmente cristã]. Em um texto anterior, ‘História e Realismo Fantástico: uma questão de ensino’3, eu apresentei um levantamento bibliográfico das obras que fomentaram, no século 20, a criação desses mitos extraterrestres, e de como eles operavam no nível do discurso, dentro de suas próprias especificidades. Porém, precisamos esmiuçar as razões pelas quais cedemos a esses discursos. Como vimos, essas reminiscências medievais ainda operam em nossa mentalidade, buscando articular uma existência imaginária no âmbito do senso comum. Porém, sabemos que o senso comum é uma condição inalienável do mundo – e no atual estágio de nossos conhecimentos técnicos, sua amplitude é ainda maior. Atualmente, podemos colecionar pedaços de informações e ideias de vários campos de conhecimento e organizá-los em frágeis teias de ‘coerência’, supondo uma certa cientificidade sobre eles – como se dá, no caso, em relação aos extraterrestres na história. As explicações dadas pelos supostos especialistas do History Channel ou por Eric Von Danikken, o ‘apóstolo’ dos UFO’s históricos, empregam, todas elas, informações ou teorias importadas das ciências. Ainda que usadas de modo absolutamente superficial e muitas vezes equivocado, elas parecem 3

http://sinografia.blogspot.com.br/2014/01/historia-e-realismo-fantasticouma.html

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conferir sentido ao que se propõe – e justificam o injustificável. Assim, os alienígenas penetram o campo do Maravilhoso em nossa mente: podemos especular sobre eles, ‘vê-los’, imaginá-los, mas não sabemos ao certo suas razões, suas origens ou seu papel no cosmo. Nossas deficiências no Ensino Carl Sagan, numa brilhante explanação sobre o problema dessa postura ‘científica’, afirmou que: Mas a superstição e a pseudociência estão sempre se intrometendo, [...] fornecendo respostas fáceis, esquivando-se do exame cético, apertando casualmente nossos botões de admiração e banalizando a experiência, transformando-nos em profissionais rotineiros e tranquilos, bem como em vítimas da credulidade. Sim, o mundo seria um lugar mais interessante se houvesse UFOs escondidos nas águas profundas, perto das Bermudas, devorando os navios e os aviões, ou se os mortos pudessem controlar as nossas mãos e nos escrever mensagens. Seria fascinante se os adolescentes fossem capazes de tirar o telefone do gancho apenas com o pensamento, ou se nossos sonhos vaticinassem acuradamente o futuro com uma frequência que não pudesse ser atribuída ao acaso e ao nosso conhecimento do mundo. Esses são exemplos de pseudociência. Eles parecem usar os métodos e as descobertas da ciência, embora na realidade sejam infiéis à sua natureza - frequentemente porque se 16

baseiam em evidência insuficiente ou porque ignoram pistas que apontam para outro caminho. Fervilham de credulidade. Com a cooperação desinformada (e frequentemente com a conivência cínica) dos jornais, revistas, editoras, rádio, televisão, produtoras de filmes e outros órgãos afins, essas ideias se tornam acessíveis em toda parte. Muito mais difíceis de encontrar [...], são as descobertas alternativas, mais desafiadoras e até mais deslumbrantes da ciência. A pseudociência é mais fácil de ser inventada que a ciência, porque os confrontos perturbadores com a realidade - quando não podemos controlar o resultado da comparação são evitados mais facilmente. Os padrões de argumentação, o que passa por evidência, são muito menos rigorosos. Em parte por essas mesmas razões, é muito mais fácil apresentar a pseudociência ao público em geral do que a ciência. Mas isso não é o suficiente para explicar a sua popularidade. [Sagan, 1997, p.21] O que ele classifica como ‘pseudociência’ é, justamente, o campo no qual operam as teorias maravilhosas, que sobrevivem graças ao nosso desconhecimento histórico e científico. Sagan desenvolve sua linha de raciocínio no seguinte sentido: É natural que as pessoas experimentem vários sistemas de crenças, para ver se têm valia. E, se estamos bastante desesperados, logo nos dispomos a abandonar o que pode ser visto como a pesada carga do ceticismo. A pseudociência fala às necessidades emocionais poderosas que a ciência frequentemente deixa de 17

satisfazer. Nutre as fantasias sobre poderes pessoais que não temos e desejamos ter (como aqueles atribuídos aos super-heróis das histórias de quadrinhos modernas e, no passado, aos deuses). Em algumas de suas manifestações, oferece satisfação para a fome espiritual, curas para as doenças, promessas de que a morte não é o fim. Renova nossa confiança na centralidade e importância cósmica do homem. Concede que estamos presos, ligados ao Universo. Às vezes parece uma parada no meio do caminho entre a antiga religião e a nova ciência, inspirando desconfiança em ambas. [idem, p.22] E de onde provêm essas ausências, essas lacunas que buscamos suprir com as crenças? Uma resposta evidente é, justamente, a deficiência no ensino. Mesmo assim, seria fácil e extremamente simplificador dizer que tais concepções nascem apenas do desconhecimento. A questão das crenças opera em níveis diversos do imaginário. Sagan acreditava que a ciência seria capaz de explicar várias dessas pseudociências [assim como faz Richard Dawkins, hoje]. O que ambos não queriam aceitar, porém, é que o mesmo mecanismo que ‘supre carências espirituais e materiais’ atinge inclusive os cientistas. Muitas vezes, médicos se convencem de intervenções milagrosas em quadros clínicos que consideravam perdidos; por motivos religiosos diversos, um cientista pode acreditar em Deus e na bomba atômica ao mesmo tempo. Isso nos remete diretamente ao quadro dos professores de história. Ignorantes, mal formados, e por vezes preguiçosos e acomodados, eles suprem suas defasagens profissionais e incapacidades

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intelectuais com as respostas simples e atraentes dessas pseudociências, que formam o chamado Realismo Fantástico. Por causa disso, não é difícil encontrar professores de história que, tendo parcos conhecimentos sobre história antiga [que consideravam inútil, chata ou distante], admitem as teorias mais surpreendentes para explicar o passado - tão somente porque parecem coerentes perante o seu desconhecimento. Por exemplo: diante da clássica pergunta ‘como foram feitas as pirâmides?’, reagem de modo embaraçoso. Poucos sabem, e outros poucos admitem simplesmente que não sabem [e talvez ‘não sabe, não quer saber, e tem raiva de quem sabe!’]. Alguns admitem que os egípcios as fizeram – não sabem como ao certo, mas como a Terra seria o único mundo habitado na criação divina, é impossível alguém de fora tê-las feito. Essa resposta tacanha, embora ‘correta’, é totalmente privada de cientificidade, posto que se calca numa religiosidade restrita. Assim, caímos em outro extremo: de que os antigos eram incapazes de construí-las, que eram limitados, que eram ‘primitivos’, e por fim, que somente uma inteligência superior [tal como se julga que só exista agora!] foi responsável pela sua construção – e logo, seria alienígena. O preconceito contra os estudos clássicos atinge aí seu ápice: transfere-se aos antigos uma total incapacidade de pensar, criar ou imaginar tecnologias. Tal incapacidade é, justamente, daquele que a transfere: mas ele não consegue se perceber ignorante ou incapaz de utilizar as ferramentas da pesquisa histórica para solucionar o problema, e adota a solução mais fácil. A pseudociência, do Realismo Fantástico, surge para suprir suas lacunas ‘científicas’, e alimentar ainda mais o seu preconceito contra o que não conhece bem. É no mínimo irônico que, na mais das vezes, esse que rejeita a história antiga e medieval comporta-se com, de fato, como um 19

popular antigo ou medievo – e vive num ‘mundo assombrado por demônios’, como disse Sagan.

Examinando as ausências em busca de respostas Precisamos, pois, compreender as razões pelas quais tantos profissionais que atuam no ensino de história compartilham dessas dificuldades. A primeira razão que podemos elencar, de modo claro, ainda é o baixo número de especialistas em história antiga e medieval no país.* Grande parte dos cursos universitários de história emprega especialistas de outras áreas nessas disciplinas, e não raro, desestimula o aprofundamento nelas, colocando-as como ‘desnecessárias’ no contexto cultural brasileiro. Obviamente, esse tipo de visão é causado pelo pouco conhecimento que se possui sobre a antiguidade e sua herança cultural. É comum ouvirmos que o estudo de história antiga, por exemplo, é elitizado, distante no tempo e inviável, pois demanda o aprendizado de outros idiomas, o estudo interdisciplinar, etc. Ora, se não é o estudo do passado o objetivo da história; se a interdisciplinaridade não é um dos meios mais apropriados para uma reconstituição histórica mais segura; e por fim, se o aprendizado de novos instrumentos de leitura e pesquisa não aperfeiçoa as capacidades do historiador; então, do que se trata fazer história de forma séria e científica? Embora o número de estudiosos em história antiga tenha se elevado significativamente nos últimos anos, e nas mais variadas temáticas, sua inserção no panorama universitário é dificultosa e arduamente negociada. São poucas as vagas em concursos, e menos ainda as instituições que 20

promovem – ou ao menos, que aceitam abrigar - grupos de pesquisa nessa área. Ora, se há uma orientação generalizada nesse sentido, partindo de uma ideia de ‘cultura’ que é essencialmente excludente, então, é mais do que compreensível a manutenção dessa lacuna na formação dos docentes. Embora temáticas totalmente atuais tenham seu fundamento na antiguidade ou no medievo – a república, o embate religioso, a renovação das mitologias fantásticas – tais temas são tratados como se tivessem surgido há menos de seis meses atrás. Novamente, é esse cenário que proporciona situações inusitadas no século 21, tais como o profissional que reza confessionalmente em sala de aula - e que é refutado por alguém que, desconhecendo igualmente história, clama pela alternativa ET como resposta. Essa situação nos revela, claramente, a primeira das ausências – ou deficiências – que precisamos investigar. No excelente artigo de Miranda & de Luca [2004]4, observamos a problemática estruturação de nossos livros didáticos de história – o primeiro [e na maior parte das vezes, o último] contato que a maior parte dos estudantes terá com o tema. Há uma ênfase muito grande em narrativas episódicas, e seguem-se em, em muitos casos, a ordenação cronológica e contextual tradicional. Podemos adicionar, a essa análise, o fato de que a história antiga e a história medieval [seguindo a estrutura eurocêntrica de fases históricas] continuam sendo passadas de forma brevíssima na maior parte desses livros. Ignora-se quase por completo a Ásia; a

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Veja o link: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010201882004000200006&script=sci_arttext

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história africana tem conquistado espaço e literatura própria, mas que não penetra diretamente nessas narrativas. Assim, como os livros são fracos e falhos, e como a maior parte dos leitores brasileiros não se interessa muito pela literatura histórica, não é incomum que os poucos livros de sucesso, classificados como ‘históricos’, não sejam feitos por historiadores. Apenas para citar: as obras de Eduardo Bueno, Laurentino Gomes e Leandro Narloch foram sucessos de venda entre o público comum. Christian Jacques, egiptólogo que escreveu um romance histórico sobre Ramsés, é outro desses casos. Isso reflete diretamente o fato, no Brasil, de que a história, em sua base, é feita de forma deficiente [e absolutamente pouco atrativa]. Outro exemplo cabal disso é a coleção Nova História Crítica, feita por Mário Schmidt. Provavelmente o livro didático mais difundindo no país, ele contém erros grosseiros de conteúdo, e juízos de valor bastante problemáticos. A coleção tem sido criticada pelos próprios historiadores5, e apesar do Ministério da Educação desaconselhar seu uso [após passarem anos indicando-a como adequada], ela continua sendo usada em várias escolas do país. A questão importante é que Mário Schmidt não é formado em História; e como os outros autores, é graças justamente a uma escrita mais atraente e menos compromissada com a ciência histórica que seus livros alcançam sucesso – sendo usados por historiadores preguiçosos, mal formados, e inábeis no uso dos instrumentos de pesquisa histórica [pois afinal, uma leitura crítica capacitada sobre os mesmos apontaria rapidamente essas falhas]. No entanto, o escopo da crítica histórica se perde, na medida em 5

Veja o link: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/reportagem/livrodidatico

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que os principais detratores da coleção não são, também, historiadores, o que nos permite supor até onde a ingerência política e midiática se envolve no tema. Esse abismo, que aborda de maneira ainda mais superficial a história antiga, deixa abertas as portas para a especulação. Sobre ela, projetam-se os anseios do senso comum. O espaço da história antiga é coberto pelas visões religiosas, ou pelos aventureiros do Realismo Fantástico. A dificuldade e a escassez de classicistas dão margem à difusão dessas concepções capciosas e pseudocientíficas. Além disso, muitas vezes a produção acadêmica está distante do grande público, e é escrita para poucos. Apenas alguns manuais foram produzidos buscando aproximar-se do público mais comum, já que o professor universitário que se preocupa com a vulgarização histórica é mal visto. Ele tende a ser considerado por seus pares como ‘menos qualificado’, já que seu foco exigiria ‘menos erudição’. Pois é justamente erudição, poder de síntese, e escrita interessante que constituem talentos raros na academia. A combinação deles é mais difícil ainda de ser vista. Desse modo, abre-se então espaço para pseudo-cientistas de narrativa envolvente, que convencem o leitor de que seus livros o tornam alguém ‘com um conhecimento singular, especial, que poucos o sabem’. A situação fica tanto mais complicada quando constatamos um segundo ponto importante nessas ausências; a quase inexistência do ensino de história das ciências e história da arte. Ambas as áreas, que poderiam solucionar a maior parte dos ‘enigmas fantásticos’ ainda no ensino médio, caem simplesmente no umbral do ensino histórico. Nem bem são lecionadas em outras áreas [ciências ou artes], nem são abordadas por historiadores. Aqui, delineia-se uma equação sinistra: temos um 23

ensino deficiente de história antiga e medieval nas escolas + ausência de história das ciências e artes + despreparo no instrumental de pesquisa histórica... Não é preciso continuar para ver que qualquer livro que ofereça uma versão mais curiosa, exótica alternativa da história será vista, como certeza, de modo fascinante pelo leitor comum. Haja visto que temos mesmo poucos títulos para resolver essa questão. Uma coleção bastante interessante e enriquecedora é A História ilustrada da Ciência de Cambridge, publicada por Colin Ronan [Zahar, 1997]. São quatro volumes, que cobrem a história das ciências desde o mundo antigo até a época mais recente. O livro de Ronan tem ainda a vantagem de quebrar a ideia, muito comum, de que as ciências são acumulativas. O senso comum tende a acreditar que as ciências vêm acumulando conhecimento desde a antiguidade, numa evolução contínua. Isso torna inaceitável, por consequência, a ideia de que os antigos pudessem conhecer técnicas capazes de construir palácios, templos e pirâmides. Não se admite, por exemplo, que conhecimentos científicos tenham se perdido, ou ainda, que certas teorias não tenham sido desenvolvidas em função do contexto de época. Isso abre a brecha para a alternativa ET, que não pode ser comprovada arqueologicamente, mas também [ao menos seus defensores assim o acreditam, numa inversão completa do paradigma científico], não pode ser ‘refutada por ausência de provas’! É justamente a ausência de provas que refuta uma teoria vaga. Mas para o senso comum, não. Do mesmo modo, a complexidade da explicação dada pela história da ciência tende a afastar o leitor despreparado, que crê estar sendo ‘ludibriado’ por uma grande quantidade de informações. A leitura de livros como o de Ronan ajudaria bastante a desfazer esses equívocos. Todavia, nem mesmo a 24

história das ciências é uma área muito divulgada em nosso meio histórico, cabendo a outros campos científicos a sua construção conceitual. O mesmo pode ser dito sobre a história da arte. Embora os historiadores se aventurem, ocasionalmente, no campo das imagens, as limitações de seu emprego no ensino básico e mesmo na formação acadêmica, deixa margem à promoção de concepções errôneas. Um exemplo clássico são os códigos de representação imagética. Egípcios, por exemplo, usavam proporções de tamanho diferentes para indicar o faraó, nobres e populares em seus murais. Indianos representavam seus deuses com vários braços, o que significava a extensão de seu poder. Mas os leitores do realismo fantástico leem isso ao ‘pé da letra’, supondo que tais diferenças marcam, na verdade, seres diferentes dos humanos. Por analogia, seria como acreditar na existência de bichos falantes, por causa das atuais propagandas de ração. Há uma desconexão absoluta com o sentido de passado, incapaz de conceber a ideia de representação simbólica no mundo antigo. O problema acentua-se na medida em que concepções ingênuas, tais como as de que ‘antigamente se mentia menos’, são usadas como cerne da dúvida. É impressionante, pois, o que o desconhecimento pode causar. Junte-se a isso o próprio desconhecimento do Realismo Fantástico sobre suas ‘fontes históricas’. O mito do ‘disco voador’ é muito mais recente do que se imagina. Em julho de 1943, a revista americana Amazing Stories publicou um conto sobre novas máquinas voadoras nazistas, que ameaçavam as missões de bombardeiros americanos. A ilustração mostrava um ‘disco voador’, arcaicamente armado de metralhadoras.

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A ilustração do primeiro Disco Voador, tal conhecemos. Amazing Stories, Julho, 1943.

Era apenas um conto, mas depois de 1947, quando houve o primeiro ‘avistamento’ de um ‘disco voador’, a febre em torno de discos voadores começou – fossem eles nazistas ou alienígenas. E não teria o aviador Kenneth Arnold, 'vítima' desse encontro, se inspirado numa dessas histórias? Afinal, apenas um mês antes dele se deparar com o OVNI, a mesma revista Amazing Stories lançou, em junho de 1947, um outro número em que ao tema 26

'extraterrestre' aparecia novamente. A par de nossa especulação, de lá pra cá, as teorias ficaram cada vez mais ‘complexas’ e sutis, e a versão ET sobrepujou os discos voadores do Eixo – a mente do realismo fantástico é implacável, e sempre opta pelo mais misterioso e fascinante, já que não pode ser provado...**

Capa da Amazing Stories, edição de junho de 1947

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Conclusões Diante desse quadro, as soluções que poderíamos encaminhar são as mais óbvias possíveis. Ensejar um espaço para a difusão da história das ciências e das artes possibilitaria um excelente diálogo interdisciplinar, expandiria o campo das ideias cientificas e do espírito de pesquisa. Conhecendo esse instrumental, seria possível realizar as adequações e inserções necessárias ao campo histórico. Mesmo assim, o fortalecimento do campo de história antiga e medieval, começando pelo ensino básico, se faz necessário. Cumprindo a função basilar de fazer compreender a aurora da humanidade, a história antiga torna-se o campo de nascimento e reinterpretação dos conceitos fundamentais das civilizações. Sem ela, mesmo o ensino da ciência ou da arte correria o risco de ficar comprometido, se restrito a períodos mais recentes da história. É importante salientar que a discussão em torno da história antiga não se dirige, somente, a ela própria. Trata-se, finalmente, de estabelecer o alicerce satisfatório para a construção de um conhecimento e de uma consciência histórica. Se o estudo da história for circunscrito somente a períodos mais recentes, correremos sempre o risco de desconectarmos com o passado, criando miragens sobre ele – e nessas ilusões, a influência ufológica, ou religiosa, são as mais problemáticas. Ao fazermos opções restritivas no ensino de história, deixando de lado a história antiga, deixamos de lado também a própria construção do conhecimento histórico. Há que se buscar, enfim, uma ampliação de nossos campos de estudo e de visão sobre nossas origens, e sobre as outras civilizações que compõem nosso vasto mundo. No ‘outro’ – no 28

antigo, no medievo, no asiático, no africano – escondem-se ainda maravilhas, ao nosso conhecimento comum, que por si só revelam o que ainda existe de realmente fantástico em nosso mundo, sem as interferências alienígenas ou hierofânicas. Se as ciências e a arte puderem, ainda, nos encaminhar para uma tradução dos símbolos, meios e sentidos de outras formas de compreender o mundo, isso por si só fomentará a criação de uma consciência histórica bem diversa daquela que conhecemos hoje, e que possibilitará uma formação enriquecedora, crítica e aberta aos desafios de uma verdadeira investigação do mundo. E então, somente então... Poderemos saber também se algum extraterrestre já passou por aqui. Mas falta de tudo pra isso! Anotações * Para compreendermos melhor o problema, no site do GT de História Antiga da ANPUH, um mapeamento preciso apresenta quantos professores especializados em História Antiga estão presentes em instituições públicas de Ensino Superior. Comparem com o número de universidades no Brasil e veremos o quão urgente é o problema. Conferir em: http://www.gtantiga.com/estados.htm ** Cito aqui apenas a aparição da primeira imagem do 'Disco Voador' como máquina 'fantástica' e 'real'. Não é preciso ressaltar que em 1898, H. G. Wells já havia publicado "Guerra dos Mundos" tratando sobre Marcianos, e em 1902, "O primeiro homem na Lua", falando dos selenitas [insetos lunares]. Em 1928 surgiu o personagem de quadrinhos Buck Rogers, num ambiente

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espacial cheio de máquinas voadoras. Havia uma substancial literatura de ficção em andamento. Referências Além daquelas, já citadas no corpo do texto, podemos consultar: SAGAN, Carl. Um mundo assombrado por demônios. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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Formação Docente para o Ensino de História: Um relato de experiência Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski § Refletir sobre a formação docente em História é, de certa maneira, repensar minha própria trajetória acadêmica e profissional. A busca pelo curso de História em 2002 surgiu do interesse em ser professora, não necessariamente de História. A escolha do curso foi por um encantamento pela disciplina, a escolha da profissão surgiu pelo exemplo de um professor de um curso técnico em Processamento de Dados que tinha muito entusiasmo ao ensinar e extremo empenho para que conseguíssemos aprender. Ele nos dizia que tinha prazer em nos ensinar naquele curso público e queria muito que aprendêssemos, pois este conhecimento nos traria outras oportunidades na vida. Percebi nele a importância da docência, quis para mim também uma profissão que poderia fazer a diferença na vida das pessoas. Tenho ouvido constantemente comentários em relação à opção de jovens que prestam vestibular para os cursos de licenciatura na UNEPSAR/FAFIUV. São comuns afirmações de que tal procura seria somente por falta de opção, já que estes seriam os únicos cursos gratuitos na cidade de União da Vitória/PR e região. A ideia de que a docência somente é procurada como profissão por pessoas de grupos sociais menos favorecidos financeiramente é recorrente. Pessoas com mais recursos buscariam outras áreas de formação. Percebe-se que a desvalorização que a Educação tem sofrido ao longo dos anos 31

afeta a concepção das pessoas. Salários baixos e estruturas precárias de trabalho seriam os maiores desabonadores da docência. Tais afirmativas sugerem que teríamos em nossos cursos pessoas descompromissadas com a área de formação, buscando apenas um diploma de nível superior. Sugere que o futuro da Educação no país seria ainda mais desolador que o presente, já que as aulas seriam ministradas por quem não tem o menor interesse em ensinar para crianças, adolescentes e jovens que também são acusados de desinteressados em aprender. Ao concluir minha graduação em História em 2005 escrevi em meu trabalho final de estágio supervisionado que gostaria muito de ser professora, pois minhas práticas de estágio haviam confirmado o encantamento pela prática docente e as aulas do curso reafirmaram o encantamento pela disciplina de História. Ensinar e perceber a aprendizagem de alunos e alunas era e é enriquecedor. Estudar constantemente, aprender mais para ensinar melhor, superar-se para demonstrar a alunas e alunos que também podem fazer escolhas melhores para suas vidas a partir da construção de saberes, do conhecimento que é a única coisa que ninguém nos pode roubar, são anseios que me acompanham desde então. Diferentes foram os espaços de atuação profissional. Do trabalho como bolsita recém-formada no Projeto ‘Contando nossa História, construindo cidadania’ 6 do curso de História que ensinava a história de União da Vitória para crianças da rede municipal nos locais históricos do município até a docência no 6

Projeto que integrava o Subprograma Apoio às licenciaturas do Programa Universidade Sem Fronteiras da Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná.

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próprio curso de História, passei por diferentes escolas: da periferia, da área central da cidade, escola do campo, instituições públicas e particulares. Vivi os dilemas da profissão: falta de estrutura, indisciplina estudantil, carga horária extrema com pouco tempo para preparação das aulas. Fins de semana e feriados utilizados para correção de trabalhos e provas, para pesquisa e estudo. Mas como salienta Seffner o ensino de História na escola é analisado pelo ângulo do déficit, da falta: falta teoria, faltam aulas, faltam conhecimentos, falta perceber mecanismos ideológicos, falta capacitação e remuneração ao professor, faltam bons livros didáticos ou falta isso e aquilo no livro didático, etc. (Seffner, 2000, p. 265) Concordo com o autor e não é por este viés que pretendemos seguir. Vivi e tenho vivido, por outro lado, o prazer da profissão: prazer em crescer em conhecimento e experiência, em ver pessoas aprendendo, construindo saberes, mudando de perspectivas, ampliando seus horizontes. Foi minha escolha ser professora de História e é minha escolha continuar sendo. Aprendi a ler melhor o mundo e trabalho em uma área que possibilita às pessoas novas leituras do mundo. Acertei na escolha. Esse meu pensar sobre a profissão e essa minha experiência nela, ainda que não tenha tantos anos assim de carreira, me conduzem a refletir sobre a preocupante questão de que a licenciatura seria apenas uma opção para um público sem recursos financeiros. Como professora das disciplinas de Didática da História, Metodologia e Prática de Ensino de História e Estágio Supervisionado, essa questão incomoda. Não tenho percebido ao 33

longo destes anos em que leciono no curso, desde 2007, um desencanto tão grande de discentes em relação à docência para que a sociedade aponte esse dilema. Uma pesquisa realizada com 68 estudantes das quatro turmas do curso de História no mês de setembro de 2013 revelou que em relação ao interesse das pessoas que fazem o vestibular para o curso de História na profissão de docência, a maioria ingressa no curso com interesse em atuar na área após a formação, como demonstra o gráfico abaixo: Gráfico 01: Interesse discente em relação à profissão ao fazerem o vestibular

20 15 10 5 0

15 10

8

8

7

6

7

7

Sim Não

1º ano

2º ano

3º ano

4º ano

Fonte: Pesquisa com 68 alunos e alunas do curso de História UNESPAR/FAFIUV

É claro que os números revelam também um percentual considerável de pessoas que ingressam no curso sem o intuito de seguir a carreira docente, mas pelo interesse no conteúdo próprio da História, no diploma de ensino superior, e há os que o fazem por ser a única instituição pública de ensino superior. Mas a pesquisa rompe com um preconceito da sociedade em relação aos cursos de licenciatura e à carreira docente. Tal constatação deve nos impulsionar a atuar com esmero na formação de professores e professoras. Outros números positivos revelados pela pesquisa referem-se à mudança de opinião de estudantes em relação à

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profissão docente ao longo do curso de História, demonstrados no gráfico a seguir: Gráfico 02: Mudança de opinião de estudantes em relação à profissão ao longo do curso Mantiveram 15 14 positivamente 8 10 Mantiveram 6 55 5 5 5 negativamente 3 34 5 Mudaram 10 1 1 1 00 10 positivamente 0 Mudaram 1º ano 2º ano 3º ano 4º ano negativamente Fonte: Pesquisa com 68 alunos e alunas do curso de História UNESPAR/FAFIUV

Se ao ingressarem no curso de História, 38 de 68 estudantes que participaram da entrevista tinham a intenção de tornarem-se professores e professoras de História ao concluírem a graduação e 30 não, no decorrer do curso as percepções acerca da licenciatura foram se alterando e o número de interessados e interessadas na docência passou a 51 contra apenas 16 que reafirmaram sua postura inicial ou alteraram negativamente sua intenção em relação à docência. Apenas um aluno ainda se afirma indeciso frente à questão. Entre estudantes do primeiro ano do curso, o motivo que levou a mudar negativamente de opinião foi a “falta de paciência com crianças e jovens mal educados”. O que fez mudar positivamente de opinião foi o encantamento por determinadas aulas, o exemplo de professores e professoras e ainda, dos cinco que alteraram sua opinião três apresentaram como motivação a

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percepção de que “pode ser bom” ensinar o que sabe. Entre aqueles e aquelas que mantiveram positivamente sua opinião também foi apontado como motivo o exemplo de docentes do curso como reforço positivo, a afinidade com o curso e o gosto pela disciplina em si. No segundo ano do curso encontramos maior diversidade de posicionamentos, há um equilíbrio numérico maior entre discentes que mantêm ou alteraram suas posições iniciais em relação à docência. Entende-se que em partes isso é reflexo da inserção da primeira disciplina voltada diretamente ao ensino e aprendizagem da História, Didática da História, que explora de forma mais efetiva o debate sobre a docência. É um momento do curso em que estudantes passam a refletir mais sistematicamente sobre a profissão, revelando com mais clareza suas dúvidas em relação a ela. A indecisão apontada por um estudante na pesquisa em relação a ser ou não professor após a formação foi justificada pela diferença que vê na História como disciplina escolar e seu estudo na academia. Para ele “ser professor é algo complexo” e se revela na tarefa de “auxiliar o aluno na formação de uma consciência histórica”. Há nestas respostas uma superação da ideia de professor ou professora de História como profissional que se preocupa apenas com os conteúdos da disciplina, com o domínio do saber histórico, não retirando, evidentemente, a importância desse saber para a docência. A complexidade de “ser professor ou professora” estaria na preocupação com a aprendizagem histórica dos alunos e alunas e não apenas com o ensino do conteúdo. Para Rüsen não é válida a concepção de ensino como “ferramenta que transporta conhecimento histórico dos recipientes cheios de pesquisa acadêmica para as cabeças vazias 36

dos alunos” (Rüsen, 2010, p. 23). Para o autor a educação histórica é um processo intencional e organizado de formação de identidade. O passado rememorado ajuda a entender o presente e perspectivar o futuro. A História, portanto, como disciplina a ser ensinada e aprendida precisa orientar para a vida. Nesse sentido, ensinar História não se pauta apenas na transposição didática de conteúdos. Mas preocupa-se com o desenvolvimento da consciência histórica de estudantes, cuja função é ajudar “a compreender a realidade passada para compreender a realidade presente” (Rüsen, 2010, p. 56). Entre as justificativas para a permanência da intenção de atuar na docência após a graduação e para a mudança positiva de opinião em relação a isso entre estudantes do segundo ano do curso está a compreensão da relevância da História como disciplina que auxilia na leitura de mundo e na capacidade dos sujeitos de agirem no mundo a partir da compreensão das realidades passada e presente. O estímulo de docentes do curso e os conteúdos históricos por eles trabalhados são também apontados como motivadores do interesse despertado para a docência. Entre três estudantes que mudaram negativamente de opinião encontramos respostas semelhantes entre si que revelam que o entendimento do papel docente, que é “bem mais que contar historinhas”, leva a refletir sobre a própria capacidade de assumir ou não tal tarefa. O que entendemos como ponto positivo para um curso de licenciatura em sua responsabilidade por formar profissionais conscientes. Os resultados obtidos com a pesquisa no terceiro ano do curso foram bastante surpreendentes por revelar que de 14 estudantes que participaram da entrevista, apenas um não deseja 37

atuar na área de formação após a graduação por já ter uma formação em jornalismo e seu interesse no curso de História era justamente ampliar seus conhecimentos para atuar em sua área. Os demais alunos e alunas justificaram a manutenção da intenção inicial ao ingressarem no curso pelo interesse na profissão e a mudança positiva em relação à profissão pela vontade de ensinar, por gostar da sala de aula, por influência de familiares, pela compreensão da importância da disciplina e pelo papel do professor ou professora de História de criar possibilidades para “que os alunos se questionem e se posicionem na sociedade”. O terceiro ano do curso marca o início dos estágios no ensino fundamental e médio para estudantes de licenciatura. E esta experiência de sala de aula foi apontada por diferentes pessoas como razão para confirmarem seu interesse na docência ou despertarem seu interesse por ela. A “boa experiência com os estágios” e a percepção de “um pouco do dia a dia em sala de aula” fez com que estudantes mudassem de perspectiva em relação à profissão. E entre aqueles e aquelas que já tinham o objetivo de lecionar destacamos as seguintes afirmações sobre o estágio: “me confirmou o meu interesse para dar aula, pois percebi que me realizei”, “quando fiz o estágio em sala de aula, percebi que é isso que eu quero para mim, pois me sinto bem ensinando”. Esta realização pessoal proporcionada pelo ato de ensinar é ainda mais significativa quando aliada à experiência de percepção da aprendizagem de seus alunos e alunas, como demonstra o seguinte relato: “por mais que não seja fácil trabalhar em sala de aula, por mais que nem todos os alunos sejam interessados, quando você gosta, quando um aluno aprende, se interessa, você se sente realizado”. Não se tratam, portanto, de escolhas inconscientes, já que mesmo compreendendo e vivenciando um pouco das 38

dificuldades do dia a dia em sala de aula, foi justamente esta experiência que proporcionou a convicção em relação à profissão. As repostas de estudantes do quarto e último ano do curso não seguem esta harmonia de interesses encontrada no terceiro ano. As pessoas entrevistadas demonstraram-se muito diferentes em seus interesses, três delas que ingressaram no curso sem o intuito de atuar na profissão após a graduação, mantiveram sua posição devido às dificuldades que a docência apresenta que vão desde a dificuldade de vagas para docentes até a postura de professores que apenas reclamam da profissão ou são incoerentes entre discurso e prática. Infelizmente este olhar pautado nas carências do ensino, desprovido de capacidade de perspectivar um futuro diferente e agir para sua construção é ainda recorrente entre docentes. E as mazelas reais da educação no Brasil desmotivam muitas pessoas a atuar na área. A única mudança negativa de opinião em relação à prática docente apresentada nesta turma foi justificada pela dificuldade encontrada na prática de sala de aula, ao substituir docentes na educação básica e perceber a própria falta de domínio de turma, o que conduziu a opção por outra profissão. Esta postura é também demonstração de maturidade acadêmica e de responsabilidade frente à educação básica. A maioria dos alunos e alunas não apenas ingressaram no curso para tornarem-se professores, mas mantiveram sua posição inicial no decorrer do curso. Isto foi motivado, segundo os relatos, por incentivos e qualidade de docentes do curso, pela compreensão da importância da disciplina para a educação básica ao proporcionar o entendimento da realidade movendo os alunos

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e alunas a questionarem e agirem no mundo e pela participação em projetos, como o PIBID7 e as experiências de estágio. Entre aqueles e aquelas que mudaram positivamente de opinião em relação à docência as justificativas para tal postura se referem aos conhecimentos adquiridos no decorrer do curso, tanto os conteúdos próprios das disciplinas específicas quanto os saberes em relação ao ensino e à aprendizagem histórica. Um dos relatos destaca que “a primeira coisa” que fez mudar de opinião “foi o contato com a sala de aula, perceber a realidade fez desertar a vontade de estar lá. Após isso, perceber que podemos ajudar um aluno a se ‘preparar’ para o mundo é fascinante, receber um olhar de gratidão de nossos alunos é o que nos faz continuar”. Tal relato faz recordar a menção anterior feita ao professor de ensino médio que me inspirou a ser professora. Querer que os alunos e alunas aprendam e alegrar-se com isso demonstra a postura de quem entende o sentido da docência. Vemos, portanto, resultados bastante positivos no entusiasmo de alunos e alunas do curso de História da UNESPAR/FAFIUV para a atuação na educação básica e também no ensino superior. O que não pode ser motivo apenas de euforia, mas sim de despertar para a responsabilidade frente a tal questão. Oliveira (2012) ao discorrer sobre a dicotomia da formação específica versus a formação pedagógica nos cursos de licenciatura em História destaca a carência de produções escritas a este respeito e apresenta o que ela chama de duas dimensões da produção do conhecimento histórico: o ensino e a pesquisa. Para a autora as tarefas para quem deseja atuar como profissional de História consistem na pesquisa, na escrita histórica, na 7

Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – CAPES.

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preservação, organização e sociabilidade de fontes, nas políticas de musealização, nas construções de expectativas de aprendizagem e concepção do trabalho docente para além da sala de aula com atividades de planejamento, formação continuada, avaliação escolar. Para capacitar estudantes para atuarem em todas essas diferentes ações é preciso um empenho contínuo de docentes e discentes, que são os sujeitos da formação universitária. Professores e professoras com capacitação adequada com alunos e alunas que não se sentem responsáveis pela própria formação podem gerar uma formação tão inadequada quanto aquela proporcionada por discentes aplicados que possuem docentes cuja competência é questionável. Da mesma forma que entendemos que o papel do professor ou professora de História na educação básica é proporcionar possibilidades aos alunos e alunas para desenvolverem sua capacidade de pensar historicamente, mas o pensamento em si depende do sujeito que pensa e não de quem o estimula a pensar, na formação docente a via é a mesma. Os professores e professoras do ensino superior precisam criar as possibilidades para uma boa formação enquanto cabe aos acadêmicos e acadêmicas dedicarem-se a elas. E o que tem feito o curso de História para cumprir a parte que lhe cabe na formação eficaz de profissionais em História? Em 2002, ano de meu ingresso no curso, implantou-se uma nova matriz que inseriu no curso de História a disciplina de monografia. Anteriormente era exigida de estudantes a produção de um trabalho final para a conclusão de curso que era composto de uma pesquisa em relação a determinado tema histórico acompanhada do relato de experiência do ensino de tal temática na educação básica. A inserção da produção monográfica no terceiro ano do curso e para além dela, a produção do trabalho 41

final de estágio supervisionado no quarto ano do curso visava a possibilidade de ampliação da capacidade de pesquisa, escrita e ensino da História. A pesquisa, embora fosse antes também desenvolvida, não era voltada para a escrita de uma monografia e a alteração fez com que uma preocupação maior em torno dela se desenvolvesse entre estudantes. O lado positivo disso se revelou no aumento de procura posterior à graduação pela continuidade da vida acadêmica em cursos de especialização e mestrado em História. Por outro lado, a parte do curso destinada à formação docente era composta por disciplinas vinculadas à área de Educação tanto em relação aos conteúdos quanto aos docentes que nelas atuavam. E tal realidade fazia ressaltar o que Oliveira (2012) chama de dicotomia da formação específica versus formação pedagógica, mencionada anteriormente. A pesquisa representava a produção do conhecimento histórico que encantava estudantes do curso. A área de ensino significava uma área oposta e aparentemente menos importante ou interessante. Enquanto escrever sobre os resultados de suas pesquisas era uma tarefa prazerosa, refletir sobre o ensino era enfadonho porque as discussões existentes eram tão distantes da área de conhecimento própria e parecia tão difícil relacionar a teoria e o conhecimento histórico com as reflexões sobre o ensino e a aprendizagem escolar. Afirmo tais questões pela experiência vivenciada no curso, por colegas e por mim mesma. Muito embora, meu interesse inicial e constante no curso era de tornarme professora, o curso gerou em mim maior gosto pela pesquisa. Com o interesse e o compromisso com a pesquisa histórica ampliado no curso a preocupação seguinte foi direcionada para os rumos que a formação para a licenciatura 42

deveria tomar. E a matriz curricular foi rediscutida e alterada em 2011, sendo suprimidas as disciplinas de Estrutura e Funcionamento de Ensino, Psicologia da Educação e Didática que eram organizadas e ministradas por profissionais da área de Educação e inserida a disciplina de Didática da História. A didática pensada a partir da Pedagogia refere-se ao conjunto de doutrinas, princípios e métodos da educação. Por método entende-se o traçado das metas/etapas de ensino e a técnica seriam os procedimentos, os recursos empregados para atingi-las. Pela etimologia da palavra didática significa arte ou técnica de ensinar. Mas e a didática da História? Para Cardoso (2008, p. 154) “No Brasil a Didática da História é frequentemente entendida como um tema subordinado à área de Educação, sem vínculos com a atuação do pesquisador da área de História. Essa concepção se fundamenta na crença de que o papel da didática é adaptar ao contexto escolar o conhecimento criado pelos historiadores.” O autor, porém argumenta que a Didática da História não pode ser vista como um mero facilitador da aprendizagem e deveria ser pensada a partir da própria História. Tal percepção tem sido constantemente refletida por diferentes pesquisadores e pesquisadoras do ensino de História. Maria Auxiliadora Schmidt é uma delas. A autora apresenta a ideia de cognição histórica situada, que seria a aprendizagem histórica a partir da própria ciência da História (Schmidt, 2009). Tais reflexões, segundo a autora surgiram da constatação dos indicativos de desinteresse de crianças e adolescentes pelo conhecimento histórico escolar e dos insucessos escolares em relação a aprendizagens históricas significativas. Nessa perspectiva a didática da história se ocuparia tanto da pesquisa histórica

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(método, objeto, teoria), como das operações do aprender e do ensinar História e da consciência histórica da sociedade. Os estudos de Schmidt (2009) e também de Barca (2011, p. 1) que reforça a ideia de que a aprendizagem histórica deve suplantar a simples recepção de informações históricas e equipar estudantes com estratégias cognitivas que lhes permitam orientarse pessoal e socialmente ao saber cruzar tais informações, “ler os implícitos e o que é explicitamente negado”, questionar, investigar, se pautam no pensamento de Rüsen (2001) que aponta a razão como força motora do pensamento histórico e reforça que é racional todo o pensamento que se expressa pela argumentação. Para o autor, há um engano na concepção de didática da história como disciplina que faz a mediação entre a história como disciplina acadêmica e a educação escolar, pois nessa concepção não há conexão com o trabalho do historiador e a didática da história seria entendida, como já mencionado anteriormente, como mero instrumento de transmissão de conteúdos históricos, construídos pela pesquisa acadêmica, para alunas e alunos que nada sabem (Rüsen, 2010, p. 23). Para Rüsen (2012) a didática da história lida com três fatores fundamentais para a aprendizagem histórica. Primeiro com a consciência histórica dos indivíduos, que nasce na vida prática, das experiências na realidade social, no tempo e espaço em que os sujeitos estão inseridos. Segundo, com a historiografia que se ocupa do modo com que a história é criticamente escrita. E terceiro, com o ensino da história, especialmente no âmbito escolar. O autor lembra que embora o ensino de História tenha sido considerado um tema de menor valor para muitos historiadores/as por um determinado tempo, relegado apenas a profissionais da Educação, essa realidade tem mudado e 44

historiadores/as tem sido “confrontados com o desafio do papel legitimador da história na vida cultural e na educação” (Rüsen, 2010, p. 29). A Didática da história, por um tempo vista como auxiliar da didática geral, vista como disciplina pedagógica, fato que foi “exacerbado pela tradicional mentalidade estreita de muitos historiadores profissionais que excluíam todas as questões de função prática da história de uma autorreflexão histórica séria” (Rüsen, 2010, p. 31) é novamente entendida como propiciadora da análise de todas as formas e funções do raciocínio e conhecimento histórico na vida cotidiana, prática. Ela se ocupa da metodologia de instrução na sala de aula; das funções e usos da história na vida pública; das metas para educação histórica nas escolas; da análise geral da natureza, função e importância da consciência histórica. Para o autor, a educação histórica é um “processo intencional e organizado de formação de identidade que rememora o passado para poder entender o presente e antecipar o futuro” (Rüsen, 2010, p. 38). Nesse sentido, como afirma Barca (2011, p. 1) “Aprender a pensar historicamente (o que exige compreensão contextualizada e uso adequado da evidência) deverá ser a meta essencial para a aprendizagem da História na era da globalização”. Dentro deste contexto, refletir sobre a formação docente em História ganha um novo sentido, pois o foco de atenção supera a preocupação com reflexões sobre o ‘como ensinar’ de forma mais dinâmica, o que muitas vezes se pauta apenas em um interesse por parte de docentes já graduados e docentes em formação em tornar sua aula mais atrativa ou simplesmente ocupar o tempo em sala de aula de uma forma que mantenha os alunos e alunas envolvidos nas atividades propostas, avançando 45

para o empenho real em propiciar oportunidades de desenvolvimento do pensamento histórico de estudantes. O uso de diferentes linguagens para o ensino de História, como as apresentadas por Fonseca (2003) em sua obra ‘Didática e prática de ensino de História’, como o cinema, a música, jornais, poemas e outros documentos escritos, bem como imagens, fotografias, objetos de museu e arquitetura histórica, como aponta Bittencourt (2004) é entendido como instrumento de investigação histórica em sala de aula ou aulas de campo e não apenas como recursos dinamizadores das aulas. Mais do que trabalhar conteúdos de forma atrativa aos alunos e alunas com o uso de diferentes tecnologias ou linguagens de ensino, docentes de História devem estimular estudantes a analisarem diferentes fontes para construírem suas narrativas históricas. Ao invés de apenas receberem informações sobre o passado, estudantes precisam ser estimulados a desenvolver sua capacidade de pensar historicamente. Ao assumir esta perspectiva de formação com a disciplina Didática da História, o curso de História da UNESPAR/FAFIUV tem encontrado resultados positivos em relação ao entendimento de discentes sobre a função da disciplina de História e também do papel de docentes de História no ensino fundamental e médio. As respostas às perguntas sobre a importância da disciplina de História na educação básica e sobre o papel do professor ou professora de História na pesquisa realizada com 68 alunos e alunas do curso revelaram um entendimento geral de que aprender história é mais do que apenas adquirir informações a respeito do passado, é ter a capacidade de questionar esse passado à luz das experiências presentes e encontrar respostas que permitam não apenas a compreensão de si mesmos e do mundo, 46

mas também que direcionem a ação no mundo. Desta forma, não cabe ao professor ou professora apenas a tarefa de ‘transmitir’ saberes, mas de proporcionar a estudantes as oportunidades para sua construção. “Ser professor de História é ter em suas mãos uma grande responsabilidade de ensinar, e isso resulta da construção do conhecimento de ambos, educador e educandos”. (estudante do 2º ano de História) “é pela História que o aluno se reconhece como cidadão, o qual pode (e deve) ser consciente e ativo, ela amadurece o senso crítico do aluno, dando oportunidade de entender o mundo em que vive e suas relações por mais complexas que possam ser”. (estudante do 4º ano de História) O encantamento pela História em si não é desprezado. Aprender e ensinar história pelo enriquecimento intelectual que proporciona, pela curiosidade, pelo gosto pela História, retomando o que Marc Bloch (2001) já dizia ao explicar ao filho a função da História dizendo que mesmo que não servisse para mais nada, a História diverte, é uma realidade que se mantém ou se aprimora entre os graduandos estimulados pela pesquisa, mas toma também rumos mais amplos, entendendo que mais que divertir ela possibilita orientar-se na vida prática. O curso de História forma para a pesquisa histórica e para a docência em História. Fortalecer a área da pesquisa com a inserção da obrigatoriedade da produção monográfica no curso de História possibilitou uma experiência mais efetiva com a análise de fontes, com a discussão com a historiografia e a produção de 47

uma narrativa histórica. Por outro lado, trazer para a História a reflexão sobre a didática da História pautada em sua ciência de referência permitiu que o entendimento e o encantamento gerado pela pesquisa estimulassem o interesse pelo ensino. Se antes as duas áreas pareciam dicotômicas, agora dialogam, pois o método da História é pensado também como metodologia para o ensino de História. O interesse pela licenciatura manifestado pela maioria dos alunos e alunas que integram o curso de História da FAFIUV, como demonstrou a pesquisa realizada com 68 discentes, gera uma preocupação sempre crescente em relação à qualidade da formação docente. Embora a exigência de dois trabalhos de peso, a monografia e o trabalho final de estágio supervisionado, demandem tempo e dedicação de estudantes, compreende-se que o esforço é necessário para que não apenas capacitem-se a produzir narrativas históricas voltadas para a academia, com o texto monográfico, mas que exercitem sua competência narrativa para a produção de materiais didáticos a serem utilizados nas escolas de educação básica, o que fazem em seus planejamentos de estágio, bem como reflexões sobre o ensino que pautarão sua ação quando graduados, função do trabalho final de estágio supervisionado. A licenciatura em História está muito longe de ser uma área de desencanto, procurada apenas por pessoas que não tem condições de ingressar em outros cursos. As mazelas da educação preocupam, mas não destroem o interesse pelo ensino. Ao contrário, reforçam o compromisso com a qualidade da formação docente.

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Referências BARCA, Isabel (org.). Educação e consciência histórica na era da globalização. Braga: Universidade do Minho, 2011. BITTENCOURT, C. Ensino de História: fundamentos e métodos. SP: Cortez, 2004. BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. CARDOSO, Oldimar. Para uma definição de Didática da História. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 28, n. 55. 2008. p.153-170. FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História. Campinas: Papirus, 2003. OLIVEIRA, Margarida Dias de. O ensino de história como problemática nos cursos de graduação de História. Conferência. São Gonçalo: ANPUH-Rio, 2012. SEFFNER, Fernando. Teoria, Metodologia e Ensino de História. In: Questões de Teoria e Metodologia de História. Porto Alegre: UFRGS, 2000. RÜSEN, J. Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A. Editores, 2012. RÜSEN, Jörn. Didática da História: Passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. SCHMIDT, M. A.; BARCA, I.; MARTINS, E. R. (orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: UFPR, 2010. RÜSEN, Jörn. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral. SCHMIDT, M. A.; BARCA, I.; MARTINS, E. R. (orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: UFPR, 2010. 49

RÜSEN, J. Razão histórica: teoria da história, os fundamentos da ciência histórica. Brasília, DF: UNB, 2001. SCHIMDT, M. A. Cognição história situada: que aprendizagem é essa? In: SCHMIDT, M. A.; BARCA, I. (orgs.). Aprender História: perspectivas da educação histórica. Ijuí: UNIJUÍ, 2009.

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O Tempo dos Quadrinhos Rodrigo Otávio dos Santos § Os quadrinhos detém características próprias, que ora os aproximam, ora os afastam das demais mídias de massa, como o cinema ou a televisão. Além disso, com a imprensa cada vez mais atuante, em determinado momento do século XVII, como nos fala Chartier (2002), a própria leitura de livros baratos e de consumo mais fácil torna-se padrão na Europa. Assim, os quadrinhos também utilizam-se das características da literatura. Compreender a linguagem dos quadrinhos é mister para que possamos analisar além daquilo que está escrito e desenhado. É necessário compreender como o desenho se articula com o texto, e a relação espaço/tempo. Elipse Temporal Talvez a maior contribuição dos quadrinhos e sua principal força, a elipse temporal é a razão de existir arte sequencial a partir de elementos estáticos, quando as imagens e textos oriundos de quadros estáticos distintos compreendem uma narrativa. A elipse temporal nos quadrinhos utiliza-se do espaço denominado “sarjeta”, ou seja, o espaço existente entre dois requadros, entre dois quadrinhos. Esta seria, de acordo com Mendo (2008), o espaço a ser completado pela imaginação do leitor, espaço que liga o quadro anterior ao posterior, fazendo com que a história tenha uma sequência contínua. Para Cirne 51

(1975, p. 41), cada hiato que separa a cercadura dos requadros praticamente representam uma elipse. Este corte, em si, já impõe ao leitor uma leitura de imagens “ocultas ou subentendidas pela narrativa”. Por outro lado, pode-se obter também interessantes surpresas temáticas com grande eficácia. Na sequência a seguir, cabe ao leitor compreender o caminho entre o quintal da casa onde estavam as personagens e o interior da residência, bem como imaginar o trajeto e suas peculiaridades.

Figura 1. Transição entre quintal e casa. Fonte: EISNER, Will. O nome do Jogo. São Paulo: Devir, 2003. p. 18

Carrier (2000) explica que para entender uma história em quadrinhos, é necessário entender o que aconteceu no quadrinho anterior ao lido para compreender o acontecerá depois. Em uma narrativa quadrinizada, uma imagem pode parecer ambígua até ser vinculada ao requadro anterior ou posterior. McCloud (2005) ignora os quadrinhos de apenas um requadro. Para o autor, este tipo de expressão não pode ser 52

chamada de artes sequencial, uma vez que não constitui sequência. Duas imagens constituem uma narrativa, desde que sejam colocadas como uma sucessão, ou que o leitor as entenda assim. Nas histórias em quadrinhos, o leitor constrói e confirma a narrativa que faz sentido na história. A elipse de tempo aceitável entre duas imagens é explicitada pela capacidade ou não dessas imagens representarem uma continuidade. As transições são possíveis porque o leitor está acostumado a ler o corpo do texto como narrativa. O leitor procura, então, juntar ambos os quadros para formar uma linearidade. Para McCloud (2005), esta busca para “fechar” a narrativa, ou para “completá-la” vem da incapacidade humana de perceber toda a “realidade” existente. Assim, os seres humanos têm que completar as lacunas existentes, observar apenas as partes perceber o todo, ainda que haja uma percepção gestáltica existente pela própria diagramação da página ou desenhos da tira. McCloud (2005) chama este processo de conclusão. A conclusão é, naturalmente, oriunda não só do processo mecânico da leitura, mas principalmente do processo cultural da leitura e apreensão da realidade existente. Os hábitos e modos de leitura são diversos nas diversas localidades do mundo ou, como salienta Munari (1968), são tantos quantos são os habitantes do planeta. A tentativa de compreensão será única para cada um dos leitores. Há, no leitor, além da função de receptor, de consumidor, a função de co-criador da obra. Para Chartier (1999) o leitor é produtor da obra e, portanto, cada obra tem dinâmica diferenciada de acordo com quem a lê. O texto lido não tem apenas o sentido que o autor tentou passar. Todo leitor tem a liberdade de subverter aquilo que o escritor parece lhe impor. As restrições do leitor estão associadas muito mais às próprias regras 53

da sua cultura do que as regras impostas pelo livro em si. Nos quadrinhos e, principalmente nas tirinhas, estas regras parecem ser ainda mais flexíveis. O tempo de leitura, tempo de reflexão e o resultado obtido na leitura da sarjeta é próprio de cada leitor. A sarjeta é a responsável pela essência dos quadrinhos. É na sarjeta que a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma em uma única idéia. O leitor vale-se de seu repertório para concluir algo que não está nem desenhado e nem escrito, algo que está ausente, que permanece apenas no vácuo da sarjeta, como a capacidade do leitor de perceber que a personagem está ficando com sono, e que o último quadrinho representa o sonho dela. Os indicadores para esta percepção são, de certa forma, sutis, e o que deixa explícito o sono da personagem é justamente a experiência do leitor.

Figura 2. Passagem do tempo. Fonte: CREPAX, Guido. Valentina de botas. São Paulo: Conrad, 2007. p.20

A elipse é completada pelo leitor, segundo Quella-Guyot (1994), a partir da análise dos dois requadros: o anterior e o posterior além da diagramação da página, que influencia graças a escolha do autor no que tange à disposição dos quadros para a leitura. Além disso, há também o virar de página, que altera a percepção da elipse por parte do leitor, uma vez que há uma quebra muito 54

maior no movimento de virada de página do que no movimento de passar os olhos de um quadrinho à outro. Eisner (2001) diz que o artista deve ter cuidado ao fazer a transição das páginas, uma vez que este parece ser o momento onde o leitor pode abandonar o título. Para o autor, sempre é necessário colocar um elemento de suspense ao final de cada página, justamente para que o movimento conseguido por meio da elipse não se perca com o folhear da página. Já Quella-Guyot (1994), afirma que a arte do quadrinista é a arte da ruptura, da descontinuidade, é a arte de fazer o leitor acreditar que existe uma continuidade, mesmo que esta não esteja visualmente representada. O autor da obra de quadrinhos precisa criar um elo com seu leitor em que ele concorde e participe ativamente da leitura do quadrinho. Quella-Guyot (1994 p.37) afirma “inúmeros autores se divertem com frequência ao se referir ao fato de leitores lhes falarem de imagens que eles nunca desenharam; o que não causa espanto, pois elas nascem da imaginação do leitor”, como na tira 711 de 20 de fevereiro de 2006, onde Dahmer não desenha o massacre das crianças, mas faz com que o leitor possivelmente o imagine, ao mesmo tempo que pode imaginar todas as crianças mortas e apenas uma em pé.

Figura 3. Malvados Tira 711 Fonte:

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Para o autor de quadrinhos, criar a elipse não é apenas escolher o que não se vai mostrar entre um requadro e outro, mas também, como afirma Quella-Guyot (1994), o que vai negligenciar “ao redor” da cena desenhada, ou seja, o que está fora do campo de visão do leitor, tal qual no cinema, com o fora de cena, ou mesmo na literatura, ou até na discurso oral, quando o autor decide omitir certas informações para obter melhor narrativa. O recurso de esconder ou mostrar determinada questão da história não é, de forma alguma, exclusivo das histórias em quadrinhos, e Beronä (2002) afirma que em qualquer tipo de narrativa a omissão tem um papel crucial na história contada. Para o autor, a história não existe e não pode existir sem narrador E plateia. Narrativa é uma troca social que é comprometida se um dos lados é esquecido no momento de sua formulação. O tamanho da sarjeta, entretanto, não importa muito. Saraceni (2003) afirma que o que realmente importa é a sarjeta existir, é a ausência de elementos entre um quadrinho e outro, a divisão entre os requadros. Prova-se verdade esta afirmação quando percebemos histórias em quadrinhos onde apenas um risco separa um requadro do outro, como a tira de Benett, publicada em 09 de março de 2009 e que não possui nada além de uma linha separando um quadrinho do outro, como vemos a seguir:

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Figura 4. Fonte: GAZETA DO POVO Online in:

Há também aquelas que não há sequer um risco, apenas um vazio entre um quadrinho e outro, como a de Sérgio Aragonés, a seguir. Mesmo não havendo uma demarcação clara indicando ao leitor onde está o final de um quadro e o começo de outro, este vazio é facilmente compreendido por qualquer leitor já habituado à leitura de quadrinhos de um modo geral.

Figura 5. Cimentando Fonte: ARAGONÉS, Sergio. Best of. USA: E.C. Comics. 2010. p. 38

Pode-se inclusive inserir algo “dentro” da sarjeta, como faz André Dahmer, que em todas suas tirinhas insere o endereço online de 57

seu website no espaço entre os requadros. Como o arquivo digital da tira é um elemento apenas, uma só imagem, ainda que composta pelos vários requadros, torna-se interessante para o autor no momento em que estas tiras são inseridas em outros contextos, outros websites ou publicadas. Assim o leitor sempre pode conhecer o endereço virtual das tiras que está lendo, como vemos na tira 521, de 21 de março de 2005:

Figura 3. Malvados Tira 521 Fonte:

Há, então, diversos tipos de transição. McCloud (2005) divide-as como transições momento-a-momento, onde obtém-se pouca conclusão, onde está tudo posto para o leitor, é quase explícita; transições ação-para-ação, onde há um único tema em progressão, efetuando uma ação óbvia; transições tema-para-tema, onde há um mesmo tema direcionando o pensamento do leitor, fazendo com que este reflita um pouco mais; transições cena-a-cena, onde o escritor direciona o leitor através do tempo ou do espaço, com distâncias significativas entre eles; transição aspecto-para-aspecto, onde são mostrados vários aspectos de um mesmo lugar, como se o leitor estivesse virando seu rosto e percebendo o lugar com um olho migratório; e por fim, as transições non-sequitur, onde é impossível para o leitor conectar os quadros. 58

McCloud (2005), porém, percebe que dificilmente haverá uma sequência entre quadros sem nenhuma ligação entre eles. Isto porque, mesmo que o escritor deseje algo sem conexão, a mente leitora vai tentar ligar os quadros, com resultados variáveis. Devemos lembrar que os elementos omitidos de uma obra são tão partes dela quanto os elementos explícitos. Nos dois quadros a seguir, extraídos da história de Schaal intitulada Opus I, não há aparente conexão entre as imagens. O que gera a conexão que faz com que o leitor entenda a relação entre os quadros é o próprio leitor. O autor, porém, utiliza esta conexão da mente do leitor com intuito de gerar um final surpreendente. Neste caso, embora pareça que as personagens estão assistindo a um telejornal, e que a guerra nuclear havia sido deflagrada, na verdade era apenas um filme.

Figura 6. Apocalipse. Fonte: Schaal. Opus I in: Aventura e Ficção 1. São Paulo: Editora Abril, 1986. p.48

Os quadrinhos podem, ser aditivos, quando coloca-se mais quadros para compor a história, ou subtrativos, quando retiram-se quadros para que o leitor componha a história. As transições podem ser percebidas também através das mudanças de tempo entre os requadros. Cirne (1975) percebe a 59

mudança da transição espacial, recurso que o escritor utiliza para mover o leitor de um ponto da história para outro ponto no espaço. Há várias formas disto ocorrer, tais como a mudança de plano que revela uma nova imagem com legendas do tipo "enquanto isso...", como podemos perceber nos quadrinhos de Goscinny e Uderzo. Aqui o leitor é remetido de um cenário (o acampamento romano) a outro (a vila dos irredutíveis gauleses). A forma encontrada pelos autores de explicitar isto ao leitor é com o recordatório acima do segundo quadrinho.

Figura 7. Aldeia dos irredutíveis gauleses. Fonte: GOSCINNY, René & UDERZO, Albert. O adivinho. Rio de Janeiro: Record, 2007. p.10

Outra forma que os autores podem utilizar é indicar o local da ação, como no exemplo a seguir, onde Millar e McNiven deixam claro a transição de espaço para o leitor. No primeiro quadrinho vê-se uma sala de controle de televisão. No próximo, uma cidade. Ambos os requadros possuem legendas que informam ao leitor a transição espacial que se dá no momento da narrativa.

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Figura 8. Antes da entrada. Fonte: MILLAR, Mark & McNIVEN, Steven. Guerra Civil. São Paulo: Panini, 2007. p. 5.

Outra forma de ocorrer a transição espacial é por meio do detalhe que se insere no meio de uma dada imagem ou sequência, como podemos perceber na sequência da história mostrada acima. Cabe ao leitor perceber que a personagem está empunhando um binóculo no primeiro quadrinho e, no segundo, ele é deslocado para a ação mais próxima, graças ao detalhe gerado pelo binóculo.

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Figura 9. Espiando. Fonte: MILLAR, Mark & McNIVEN, Steven. Guerra Civil. São Paulo: Panini, 2007. p. 6.

Há ainda a imagem que se completa com o plano precedente, o posterior, o superior ou inferior, como na imagem abaixo, onde o rastro produzido pela personagem atravessa dois quadrinhos, proporcionando ao leitor a sensação de deslocamento no espaço.

Figura 10. Precursora. Fonte: PEREZ, George & WOLFMAN, Marv. Crise nas Infinitas Terras. São Paulo: Panini, 2003. p. 21

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Há também a montagem alternada entre planos simultâneos, unificados especialmente pelo balão que mesmo discurso personagens diferentes, como no televisões diferentes, em casas diferentes, mas com balão, mostrando a distância espacial entre as casas.

temporais contém o caso das o mesmo

Figura 11. Ouvindo rádio. Fonte: BARKS, Carl. Meninos Modernos. in: O Melhor da Disney - As Obras Completas de Carl Barks vol.2. São Paulo: Abril, 2004. p.140

Também podem existir dois ou mais planos que focalizam a mesma situação temática a partir de dois ou mais ângulos diferentes, como no diálogo abaixo, onde ora uma personagem é o foco, ora outra.

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Figura 12. Discussão. Fonte: JOHNS, Geoff & JIMENEZ, Phil. Crise Infinita 1. São Paulo: Panini, 2006. p. 30.

O autor percebe também a transição temporal, a mudança de plano que revela uma nova imagem com legendas do tipo "mais tarde", "pouco depois" etc. e os planos de uma sequência cujo tempo ficcional não corresponda ao tempo da narrativa. Os artistas de quadrinhos utilizam-se destes recursos para desenvolver uma quebra no ritmo de leitura, avançando o leitor até o próximo ponto de interesse da história, como percebemos na imagem abaixo.

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Figura 13. Mais tarde... Fonte: DISNEY. Almanaque do Superpato. São Paulo: Abril, 1982. p.10

Por último, Cirne (1975) vê a transição espaço-temporal: o plano que indica uma mudança de lugar e tempo, como na imagem abaixo, onde percebe-se o avançar da motocicleta, indicando mudança não só de tempo mas também de lugar, uma vez que esta movimenta-se na estrada.

Figura 14. Espaço-tempo Fonte: STARLIN. Jim & APARO, Jim. As dez noites da besta. São Paulo: Abril, 1989. p.13

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Salienta-se também os planos que indicam uma ação paralela à temática principal de uma dada história ou ainda o corte que marca a passagem de uma realidade concreta para uma realidade abstrata na história, como no corte providenciado pela porta que vai aos poucos fechando a personagem antagonista, indicando um tempo não real, mas psicológico às duas personagens envolvidas.

Figura 15. Fechando a porta Fonte: STARLIN. Jim & APARO, Jim. As dez noites da besta. São Paulo: Abril, 1989. p.93

McCloud (2005) fala que o escritor de quadrinhos tem que se preocupar com o nível de flexibilidade de interpretação do leitor. Quando a conclusão entre os quadros fica mais intensa, a interpretação do leitor parece mais flexível. Para McCloud (2005), quanto mais o autor de quadrinhos deseja ter efeito sobre o leitor, menores deverão ser as elipses. Entretanto, como explica Chartier (1999), este processo não determina a maneira que a leitura se efetuará, já que o leitor é produtor e condutor do processo de leitura e, portanto, possui liberdade muito maior do 66

que a imposta ou imaginada pelo artista, que no máximo pode sugerir a maneira pela qual esta leitura se produzirá. Outra questão não levantada por McCloud (2005) são as histórias quadrinho de apenas um quadro. Nestas a elipse é ainda maior, uma vez que é necessário que o leitor compreenda a história sem um prévio conhecimento do acontecido, apenas com as indicações fornecidas pelo desenhista. Neste caso, o processo de criação do leitor é ainda maior, provavelmente gerando maior quantidade de interpretações. Para Carrier (2000), o leitor interpreta o que conhece, daí a popularidade da charge e da caricatura. O exagero e a sequência narrativa imaginada é o que conduz à comicidade ou ao entendimento da trama estabelecida naquele mínimo espaço temporal. Neste tipo de narrativa, o repertório do leitor é mais exigido que nas narrativas compostas de vários quadros. Na tira a seguir, apenas com prévio conhecimento da filosofia cristã se é capaz de compreender a piada.

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Figura 16. Deus e Jesus. Fonte: SIEBER, Alan. Últimas Palavras. São Paulo: Opera Graphica, 2001. p.13

O mesmo pode-se dizer da tira a seguir, que só faz sentido quando o leitor compreende o que é o Titanic e qual seu destino histórico.

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Figura 17. Titanic Fonte: SIEBER, Alan. Últimas Palavras. São Paulo: Opera Graphica, 2001. p.18

Em ambos os casos, a narrativa completa-se na capacidade de compreensão do leitor e em seu conhecimento prévio de determinadas questões. A compreensão da piada faz-se mais graças ao leitor, e menos graças ao artista. As questões culturais são novamente entendidas como a forma pela qual os leitores compreendem determinado texto, seja ele em quadrinhos ou não.

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Referências BERONÄ, David A. The work of Gross, Dorgathen, Drooker and Kuper. In: VARNUM, Robin & GIBBONS, Christina T. The Language of Comics Word and Image. EUA: University Press of Mississipi, 2002. CARRIER, David. The Aesthetics of Comics. The Pennsylvania State University Press: EUA. 2000. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Unesp, 1999. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002. CIRNE, Moacyr. Para ler os quadrinhos. Petrópolis: Vozes, 1975. EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001. McCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: M. Books, 2005. MENDO, Anselmo Gimenez. História em Quadrinhos Impresso vs. web. São Paulo, Unesp: 2008. MUNARI, Bruno. Design e Comunicação Visual. Portugal: Martins Fontes, 1968. QUELLA-GUYOT, Didier. A História em Quadrinhos. São Paulo: Unimarco, 1994. SARACENI, Mario. The Language of Comics. Inglaterra: Routledge, 2003.

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Outras Vozes: Homofobia e Afetos Políticos na Educação Celso Kraemer Carla Fernanda da Silva Cristiane Theiss Lopes § Os estudos sobre gênero vêm se constituindo nas últimas décadas e, no âmbito destes estudos, a homossexualidade é um tema que gera muitos debates e questionamentos e a certeza da necessidade da pesquisa acadêmica para problematizar as respostas já existentes, permeadas de preconceitos e fundamentalismos. Não há consensos sobre o modo como a homossexualidade é produzida no indivíduo, mas o modo como segmentos moralistas a tem atacado e promovido a homofobia, torna necessário um amplo estudo que denotem o seu significado social, histórico, político, econômico e afetivo. Para tanto a homossexualidade tornou-se um objeto de estudo na área de humanas, como psicologia, sociologia, história, educação, etc. Sem esquecermos a audácia dos escritores do final do século XIX e início do século XX, como Oscar Wilde, Marcel Proust, Gertrude Stein, Radycliffe Hall, Djuna Barnes, entre outros; que entre a ficção e o autobiográfico iniciaram um debate no âmbito do afetivo e o direito em expressar livremente a sua sexualidade, desafiando as normatizações legais, médicas, religiosas e moralistas. Destaca-se que esta pesquisa também pode servir de embasamento empírico na área do direito e dos estudos jurídicos acerca da

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homoafetividade e proporcionando um debate relevante e essencial para a conquista de direitos civis. No interior do debate sobre a homoafetividade, um grupo de pessoas ligadas à Universidade Regional de Blumenau (FURB) vem se aplicando ao estudo de temáticas relativas à questão de gênero e suas implicações sobre as pessoas e a sociedade. O presente artigo é parte do projeto de pesquisa ‘Outras Vozes: Análise de Narrativas Homoafetivas Femininas em Blumenau’, projeto financiado pelo CNPq, em parceria com a Universidade Regional de Blumenau, com duração de dois anos, estando na fase final de seu desenvolvimento. O viés metodológico da pesquisa é a história oral. Com ele se delineia a possibilidade de restituir dignidade às vozes que a história às vezes silencia. Assim, busca mostrar e problematizar, nos modos de subjetividades, como as mulheres homossexuais têm superado o preconceito de si, dos outros, para si e para os outros. A análise delineia a cartografia de uma sociedade selada na regulamentação da sexualidade. O período histórico abrangido é de quatro décadas, vai de 1970 ao tempo presente, na região de Blumenau. Ao total, doze entrevistas foram realizadas, no ano de 2011 e 2012, com mulheres homossexuais; seis delas com casais e seis com mulheres solteiras. A faixa etária das entrevistadas situa-se entre 17 e 46 anos. Do ponto de vista teórico, os dados coletados nas entrevistas são discutidos sob a perspectiva dos estudos de Gênero, compreendendo um olhar interdisciplinar, na colaboração da filosofia (Celso), da história (Carla) e da educação (Cristiane). O objetivo central da proposta é constituir condições para narrativas de vida deslocadas da normatividade 72

convencionada pela tradição historiográfica, erigida na heterossexualidade. Ouvir a voz de pessoas comuns, restituir-lhe sua autoria, prestar atenção nas experiências singulares que se apresentam em seus relatos, discutir o significado das dores, alegrias, preconceitos e conquistas destas pessoas efetiva um âmbito de trabalho intelectual atento para o presente, com suas ambiguidades e devires. Embora cientes de que o resultado do trabalho de pesquisa e escrita extrapola e modifica as intenções de seus autores, destacamos como objetivos específicos do artigo: discutir as categorias públicas “mulher”, “homossexual” e “feminino”; problematizar o preconceito, a fim de obter um olhar múltiplo e questionador do engendramento que prolifera o ódio, insultos e injúrias pela constituição da homofobia; produzir conhecimento e discutir a questão das homoafetividades femininas, ao deslocar “verdades” estabelecidas tanto em nível local (Blumenau), quanto em espaços mais abrangentes. Afetos e afetividades, sexualidade e gênero, sujeito e subjetividade não são, segundo o pressuposto desta pesquisa, entes “naturais”, aguardando para serem descobertos, estudados e conhecidos pelo trabalho intelectual. Eles são conceitos construídos historicamente, resultantes da trama social, dos confrontos, conflitos, disputas, mas também das alianças, amizades e parcerias. Mas não são conceitos abstratos e indiferentes ao acontecimento social. São, ao contrário, dispositivos estratégicos de poder. É no seu meandro que se desenrola boa parte da constituição de nós mesmos. O modo como estes conceitos são definidos e praticados sofre, por um lado, a interveniência do debate e das disputas públicas sobre eles e, por outro lado, tem efeitos práticos sobre como vivemos, nos 73

conduzimos, amamos, sofremos, nos governamos e somos governados. Assim, o presente trabalho não é neutro ou passivo; insere-se ativamente nas tramas e disputas do presente. (Kraemer; Silva; Lopes, 2012) Assumir, Sofrer, Superar Em meio a muitas questões, experiências múltiplas e singulares, a análise das entrevistas mostrou também pontos em comum às entrevistadas. Um destes pontos em comum é o fato de que todas, em algum momento, evocaram a ‘escola’ em suas falas, mesmo este não sendo um espaço evocado ou sinalizado por nenhuma das perguntas do roteiro de entrevistas. As memórias escolares, das entrevistadas, remetem a experiências de sofrimento, de injúria e preconceito. Este dado da análise chamou a atenção dos pesquisadores. Com isso, optou-se por fazer uma discussão mais profunda e abrangente sobre o tema da injúria, do preconceito e dos sofrimentos provocados em pessoas que assumem sua homoafetividade, sobretudo em ambientes escolares. Uma das consequências da injúria é moldar as relações com os outros e com o mundo. E, por conseguinte, moldar a personalidade, a subjetividade, o próprio ser de um indivíduo (Eribon, 2008). Dessa forma, a escola é um importante espaço de constituição de relações, no qual os indivíduos permanecem em torno de 15 a 20 anos. Portanto, um convívio social extenso e importante em suas memórias, com profundas consequências na constituição de sua subjetividade. Quando perguntamos às entrevistadas sobre suas infâncias, retomavam ao período escolar e suas vivências, como se o único espaço possível para a infância fosse a escola. Excluindo possíveis 74

amizades no bairro ou rua, ou mesmo o convívio entre parentes, primos e etc.: Então, eu lembro pouca coisa da minha infância. Não tenho muita coisa guardada, lembro que estudei a minha vida inteira em escola particular. (Priscila, Psicóloga, 29 anos) Mas, da minha infância... sei lá, eu sempre fui quietinha. Na escola também, ia em uma escola lá do bairro, era uma aluna exemplar! (Caroline, Auxiliar de Produção, 20 anos) O espaço escolar é um marco da infância. Porém, como observa Guacira Lopes Louro, não é possível atribuir à escola a responsabilidade de explicar identidades sociais ou de, sozinha, determiná-las de forma definitiva. Mas isso não isenta a escola de suas influências profundas sobre as pessoas. É necessário reconhecer que na escola “suas proposições, suas imposições e proibições fazem sentido, têm ‘efeitos de verdade’, constituem parte significativa das histórias pessoais.” (Louro, 1999) Constituiu-se na sociedade a expectativa de uma escola padrão, que sirva de modelo para todos, da criança ao adulto, da servente à diretora. São modelos estereotipados do moralismo religioso e jurídico. Tais estereótipos transferem ao estudante a responsabilidade de ser visto também como um aluno padrão ou exemplar, carregando assim o peso da instituição, seja em seu uniforme, comportamento e relações (Louro, 2011). Do ponto de vista das crianças, dos adolescentes e mesmo dos adultos, ser submetido a tais estereótipos pode traduzir-se em experiências desagradáveis e mesmo de sofrimento, principalmente para quem

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não se ‘enquadra’ nos padrões estabelecidos, conforme o testemunho de Laura ao relacionar infância e homossexualidade: Para dizer a verdade, nunca gostei muito da minha infância, eu acho que mais da minha infância escolar, assim, eu lembro que eu não gostava da infância escolar, tenho uma coisa muito forte com não gostar de escola, da infância que a escola traz pra gente. (Laura, Pedagoga, 33 anos) Essas relações mostram que a escola é um espaço a ser discutido e pensado, pois ela é um espaço de interações, vivência e experiências, que proporciona relações entre os sujeitos que a frequentam, sejam alunos, funcionários ou comunidade, onde constroem conhecimentos e saberes que marcam de forma subjetiva cada uma dessas pessoas. A escola é uma das principais instituições sociais, pelo fato de estar presente por um determinado tempo que se faz em anos e também pela capacidade de alcance da população, pois geograficamente ela está presente em todo território que tenha um determinado numero de pessoas, mesmo que este seja pequeno, a escola sempre se faz presente. Mas nem sempre foi assim, esta instituição “concebida para acolher alguns e não outros, foi requisitada por aqueles/as que quais havido sido negada” e desta forma trouxe uma diversidade para dentro dela fazendo que seja repensada sobre esse olhar (Louro, 1997, p.57) Para ser “garantida” se fez necessário um ato jurídico, na forma de lei8, assim a escola passou a ser uma instituição 8

Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. TITULO III.

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obrigatória na vida de toda pessoa, na infância e adolescência, caso alguma criança não frequente a escola o responsável pode até ser preso. Desta forma é perceptível a importância desta instituição e o fato de se tornar marcante na vida das pessoas. A necessidade e imposição de escolarização, faz-nos questionar o seu papel como instituição disciplinadora e normatizadora. Importante lembrar que, dentro da sociedade, a escola não é neutra. Ela é construtora de conhecimentos de si, dos outros e do mundo social. Ao vivenciar as experiências cotidianas de socialização que a escola proporciona, constituem-se na criança os saberes básicos, suas referências de mundo social, político, afetivo, linguístico, ético, sobre os quais se pautam sua conduta e decisões futuras. É nesse sentido que a escola atua diversos dispositivos de poder, constituintes de formas específicas de governabilidade das condutas. A escola produz e reproduz práticas e discursos assumidos como verdades, o que a torna, além de uma instituição de educação, também um espaço político. Quem não se lembra do tempo de escola? Nesse contexto, a escola tem uma função social para além do transmitir saberes e informações, ela educa, disciplina, normatiza e normaliza. Torna o sujeito, naquilo que se compreende como apto a viver em sociedade, ou seja, uma instituição “civilizadora”. Temos visto consolidar-se uma visão segundo a qual a escola não apenas transmite ou constrói o conhecimento, mas o faz reproduzindo padrões sociais, perturbando concepções, valores e clivagens sociais, fabricando sujeitos (seus corpos e identidades),

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legitimando relações de poder, hierarquias e processos de acumulação. (Junqueira, 2009) A escola “através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização desde seu início exerceu uma ação distintiva” (Louro, 1997) Os saberes que nela são transmitidos são cuidadosamente trabalhados para produção de um discurso pouco reflexivo, trazendo uma “naturalidade” e mantendo um papel acumulativo de conhecimento e não reflexivo. Para um corpo disciplinado e normatizado é necessário uma mente igualmente passiva. Mesmo quando o Estado busca “debater” determinados temas, por meio de cartilhas ou no caso brasileiro os cadernos intitulados Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, alguns profissionais da educação refletem (ou não) o que é proposto pelos parâmetros educacionais, porém o que se observa é pouca discussão ou mesmo interesse, principalmente em relação ao tema gênero e sexualidade, obinubilado pelos preceitos religiosos moralizantes ou mesmo por um senso comum, apático em seu refletir, não permitindo assim criar outras possibilidades. “inserir o debate sobre homossexualidade e homofobia na escola é também colocar-se a escuta daquilo que não é dito, que é negado” (Bassalo, 2011) O que se tem visto é um ensino pautado em perguntas e respostas, ou seja, uma pedagogia das respostas, onde o educando reproduz o que lhe foi ensinado e assim obtêm certo conhecimento, de forma eficaz e satisfatória para o sistema avaliativo escolar e para a vida em sociedade. A cultura da escola faz com que respostas estáveis sejam esperadas e que o ensino de fato seja mais 78

importante do que a compreensão de questões íntimas. (...) tudo isso faz com que as questões da sexualidade sejam relegadas ao espaço das respostas certas ou erradas. (Britzman, 2000) Qual é a discussão que se faz nestes espaços sobre a questão de gênero? Encontramos barreiras para discutir o tema em nossas escolas. Apesar de existirem vários documentos e fontes teóricas que indicam a necessidade de se discutir e tratar do tema sexualidade e gênero na educação escolar, o assunto ainda é praticamente inexistente nos espaços educacionais formais ou ainda é trabalhado de forma superficial. Questões relevantes da vida social são parcial ou completamente negligenciadas pelas práticas institucionais de educação. São processos que tornam “invisíveis” certos temas e experiências. No que se refere à homoafetividade, no currículo se fazem invisíveis essas discussões. O processo de invisibilização de homossexuais, bissexuais e transgeneros no espaço escolar precisam ser desestabilizados. Uma invisibilidade que é tanto maior se fala de uma economia de visibilidade que extrapole os balizamentos das disposições estereotipadas e estereotipantes. Alem disso, as temáticas relativas às homossexualidades, bissexualidades e transgeneridades são invisíveis no currículo, no livro didático e até mesmo nas discussões sobre direitos humanos na escola. (Junqueira, 2009).

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As questões que se colocam à escola, se levarmos em conta o ponto de vista das pessoas que não se enquadram no estereótipo heterossexual instituído pela moral oficial, são relevantes. Todas as pessoas são atingidas pelo tema da sexualidade, em qualquer idade, mas na infância e na adolescência a vulnerabilidade é ainda maior. As violências originadas pela homofobia resultam de processos educacionais estereotipados. Não adianta lamentar a agressão praticada por indivíduos ou grupos a pessoas com sexualidades diversas. É necessário trazer a discussão para a própria experiência, para o interior dos espaços educacionais, provocar o debate e a reflexão. Na escola, até o presente momento, o enfrentamento da homoafetividade, a superação dos preconceitos e das agressões está pesando exclusivamente sobre as vítimas. Homofobia e Afetos Políticos na Educação Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, este ano (2012) será lançado um documento com orientações a governos de todo o mundo para o enfrentamento da homofobia em ambiente escolar. Entre as principais recomendações à formulação de políticas específicas para atender esse público, a orientação de professores para problematizar a questão em seu cotidiano escolar e incentivar a produção de materiais de combate ao preconceito contra homossexuais nas escolas. Observa-se que a homofobia prejudica o desempenho de alunos e alunas homossexuais e, muitas vezes, conduz a desistência. Como exemplo, é possível citar a pesquisa de 2009 da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – USP (Universidade de São Paulo. Segundo essa 80

pesquisa, no Brasil, 87% da comunidade escolar – sejam alunos, pais, professores ou servidores – têm preconceito contra homossexuais.

Tabela 1: Pesquisa FEA/USP

A homofobia nas escolas brasileiras é visível e necessita de muita atenção. A escola é: Um dos espaços mais difíceis para que alguém “assuma” sua condição de homossexual ou bissexual. Com a suposição de que só pode haver um tipo de desejo e que esse tipo – inato a todos- deve ter como alvo um indivíduo do sexo oposto, a escola nega e ignora a homossexualidade (provavelmente nega porque ignora) e, desta forma, oferece muito poucas oportunidades para que adolescentes ou adultos assumam, sem culpa ou vergonha, seus desejos. O

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lugar do conhecimento mantém, com relação à sexualidade, como lugar do desconhecimento e da ignorância (Louro,1999). Segundo as entrevistadas na presente pesquisa, o medo de não ser aceita faz com que a pessoa se feche, esconda o que sente. Isso impõe à sua subjetividade que viva um mascaramento, muitas vezes sofrendo por não poder ser elas mesmas. Eu me descobri na minha adolescência. No começo, sofri um monte, tinha muito medo que as minhas amigas descobrissem. Eu sabia que seria excluída. Eu ficaria aquele patinho feio no meio da galera. Sempre tive todo o cuidado pra que não descobrissem. Quando começava a desencadear algum tipo de interesse por alguém, aí é que me martirizava mais ainda, porque tinha que esconder aquilo a ferro e fogo. (Mariana, Enfermeira, 33 anos) Buscando abordar o tema, superar o silenciamento promovido sobre o tema da sexualidade e da homoafetividade nos espaços escolares, o Ministério da Educação e entidades que defendem os direitos da população LGBT, elaboraram um ‘kit anti-homofobia’ que seria distribuído em escolas de ensino médio. O kit continha cartilhas com orientações aos professores e três vídeos que primeiramente seriam assistidos pelos professores e esses poderiam optar por passá-los a turma quando necessário. A produção do material, entretanto, foi suspensa pelo governo após reclamações de parlamentares da bancada religiosa, católica e evangélica, sobre o seu conteúdo. Porém, orientar para uma educação que respeite a 82

diferença e a igualdade civil, não é orientar para uma opção sexual, e sim lutar contra o preconceito estabelecido na sociedade. A partir de uma série de equívocos, preconceitos e moralismos relega-se a discussão da sexualidade para a vida privada, A sexualidade é então cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E observa-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, ditam as leis. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. (Foucault, 1999). É através desse ‘silenciar’, ou seja, do não falar sobre a sexualidade, do domínio por meio de atos polidos e policiados que o sexo é tido como algo naturalizado e enraizado. Esse comportamento, próprio do senso comum, chega ao ponto em que todos “sabem” o que é necessário e não precisam se pronunciar nem discutir. Como problematiza Foucault, Como se, para dominá-lo no plano real, tivesse sido necessário, primeiro, reduzi-lo ao nível da linguagem, controlar sua livre circulação no discurso, bani-lo das coisas ditas e extinguir as palavras que o tornam presente de maneira demasiado sensível. Dir-se-ia mesmo que essas interdições temiam chamá-lo, o pudor moderno obteria que não se falasse dele, exclusivamente por intermédio de proibições que se

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completam mutuamente: mutismos que, de tanto calar-se, impõe o silencio. Censura. (Foucault, 1999) Blumenau se inscreve na categoria de censura. Ela ocorre aqui de forma velada. Exalta-se a característica acolhedora de seu povo, mas não é possível trabalhar a questão do corpo e sexualidade de forma pública, sem causar olhares e comentários preconceituosos. Quando a homoafetividade se mostra publicamente, o que se vê são enunciados de injúria que produzem efeitos de inferiorizarão. “É como se a gente fosse algo bem diferente do que eles são. Eles são bem melhores, a gente é aquela coisa que sobrou, sei lá... é uma metamorfose. Entende? É isso que eu acho que eles pensam, não sei.” (Mariana, Enfermeira, 33 anos). Aquele que lança a injúria me faz saber que tem o domínio sobre mim, que estou em poder dele. E esse poder é primeiramente o de me ferir. (Eribon, 2008). A apresentação pública dos resultados da presente pesquisa causou polêmica junto às pessoas em espaço escolar, podendo-se ver neste fato os efeitos da censura presente na cidade. Tendo como objetivo divulgar e discutir com os estudantes o trabalho vem realizando, foi proposta uma apresentação dos resultados parciais em uma escola de Blumenau. O público alvo seria alunos e profissionais da escola. A proposta foi aceita, mas a apresentação primeiro teve que ser feita aos professores, para ver se receberia aprovação para a apresentação aos alunos. Durante a apresentação não houve muito interesse por parte dos profissionais, muitos estavam conversando sobre outros assuntos. Algumas professoras acompanhavam e, logo surgiram alguns comentários, evidenciando os preconceitos: “Mas essas pessoas chamam a atenção! Querem chamar a atenção! Depois reclamam que sofrem 84

preconceito.” Outra ainda afirmou: “Conheço muitas mulheres que só viraram isso porque tiveram alguma decepção com marido, que traía, tratava mal e, aí ficou assim.” (Grifo nosso) A convicção sobre o isso (doença, desvio, decepção amorosa, coisa a ser tratada) relativo à homoafetividade, vindo de profissionais graduadas em universidades conceituadas é chocante. O preconceito e a desinformação, aliados ao moralismo que silencia qualquer discussão acaba reafirmando o discurso heteronormativo. Nesses momentos percebe-se que a homofobia é o medo de que a identidade homossexual seja reconhecida; ela se manifesta, entre outros aspectos, pela angústia de ver desaparecer a fronteira e a hierarquia da ordem heterossexual. (Borrilho, 2010) Nessas falas é perceptível a falta de preparo dos professores para lidar com a discussão da sexualidade. É visível a necessidade de grupos de discussões, orientados por pesquisadores da área, junto à Rede de Ensino de Blumenau, pois com esse desconhecimento de políticas e programas de combate ao preconceito, dificulta o reconhecimento da homofobia presente no cotidiano escolar. E evidencia a necessidade do chamado kit anti-homofobia e outras políticas já existentes, porém que ainda não tiveram alcance a todo país onde possibilite debates, tanto entre os alunos e professores quanto com os próprios professores entre si, assim realizando o que é proposto no PCN vol.10, que aborda a Orientação Sexual como um tema transversal, que deve estar presente no currículo escolar. Ao tratar a sexualidade o documento denuncia a atitude comum da escola em ocultar e reprimir as questões que se referem à sexualidade e em atribuir tais discussões exclusivamente ao espaço familiar, ou seja, que o assunto se refere ao campo privado. O documento traz que essa 85

discussão também deve ser realizada no espaço escolar definindo assim questões de gênero e construção sociocultural do que é ser homem e mulher, e mostra também o papel do professor nessa construção. O professor deve então entrar em contato com questões teóricas, leituras e discussões sobre as temáticas especificas de sexualidade e suas diferentes abordagens; preparar-se para a intervenção prática junto dos alunos e ter acesso a um espaço grupal de supervisão dessa prática, o qual deve ocorrer de forma continuada e sistemática, construindo, portanto, um espaço de reflexão sobre os valores e preconceitos dos próprios educadores envolvidos no trabalho de Orientação Sexual (Brasil, 2000, p. 123).

Porém a única vez que se percebe a palavra homossexualidade, de forma explicita é como algo polêmico. “Isso porque, a partir da puberdade, os alunos também já trazem condições de refletir sobre temáticas como aborto, virgindade, homossexualidade, pornografia, prostituição e outras.” (Brasil, 2000, p. 129) Essa localização que se da no texto mostra ainda um silencioso discurso de que a homossexualidade continua sendo algo da imoralidade, não vista pela sociedade e quando, mau vista. Porém, no documento, também se mostra uma possibilidade de se trazer a discussão da homossexualidade em um de seus objetivos gerais que propõe: “reconhecer como determinações culturais as características socialmente atribuídas ao masculino e

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ao feminino, posicionando-se contra discriminações a eles associadas.” (Brasil, 2000, p. 133) Abordando assim, outra forma de se pensar as relações afetivas e a sexualidade que não seja apenas a heterossexual. É “ingenuidade” pensar que ao se debater, ou mesmo orientar, sobre a sexualidade na escola, as discussões ficam apenas na sala de aula, é perceptível que se envolve também a comunidade (de forma indireta ou direta), que são as famílias desses alunos, que em muitos casos convivem com o preconceito dentro de casa. Educação e Família Entende-se a educação como um processo histórico, onde seus objetivos e métodos têm em cada época suas necessidades. Porém, não cabe apenas a escola o educar, o sujeito que nela está é também construção de uma trama social onde não uma, mas várias instituições e ações, interesses e experiências estão relacionadas. Assim há diferença em ensinar e educar, o ensino se faz com a pedagogia, utilizando de métodos e técnicas, já o educar pode ser por qualquer indivíduo, é uma ação social, sendo social é também política e traz consigo certos discursos “naturais” de seu senso comum. Como problematiza Reich, “A formação das massas no sentido de serem cegamente obedientes à autoridade se deve não ao amor parental, mas à autoridade da família. A supressão da sexualidade nas crianças pequenas e nos adolescentes é a principal maneira de conseguir essa obediência.” (Reich, 2004 p.17) Educar é a ação que torna o sujeito educado ou, é possível afirmar: civilizado, apresenta como se deve agir, se comportar e

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isso se tornam conhecido a todo indivíduo não só pela escola mais por outras instituições importantes como a família, por exemplo. A família, é um conceito também bastante amplo onde, hoje não se cabe mais dizer que é constituída por pessoas do mesmo sangue. As famílias atualmente podem ser constituídas de diferentes maneiras, quebrando antigos padrões sociais ainda com um pouco de resistência ao olhar de alguns, mas já são aceitas. É no lar familiar que se tem contado pela primeira vez com a cultura, esta que varia de regiões, tradições e costumes. É na família que você recebe a primeira educação e esta lhe insere na sociedade que em conjunto com outros fatores constrói por assim dizer sua subjetividade. E assim é mutável vista que é, produtora e produto de seu tempo e cultura. É no seio familiar que se tem os primeiros contatos com a cultura e se aprende como se portar em sociedade. “Olha, eu desde pequenininha, assim, eu sempre fui bem feminina, meiguinha, aquelas coisas, então a minha mãe sempre teve aquelas coisas de sonho de a menina que vai casar, ter filhos, não sei, tudo bem, não que não role, mas aquela coisa tradicionalzinha, assim, sempre teve (Samara, Redatora Publicidade, 21 anos) È na família também que experimentamos as relações de afeto e segurança. Porém nesse ultimo não se pode pensar “inocentemente”, pois é na família também que encontramos a fonte de muitos preconceitos e violências que muitas vezes são silenciados. Foram situações, eu acho que contribuíram também no meu processo, na adolescência, criança já se manifestava, a questão do medo, da insegurança, eu acho que é porque, coisas que eu vi em casa, com relação ao meu pai. E a questão dessas violências (...) 88

contribuíram com certeza pra todo o meu processo de me achar inferior, de insegurança, de medo, e eu acredito que até hoje” (Virgínia, Assistente Social, 34 anos) Quando se trata de questões como sexualidade e gênero ainda é presente certo tabu em se discutir e aceitar a diversidade existente. Como problematiza Foucault Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não pode falar de tudo em qualquer circunstância (...). Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala. (Foucault, 1971, p. 9). O conceito família ainda é visto por muitos de forma tradicional, um estereótipo já conhecido como “família margarina” onde há um pai, uma mãe e filhos, quase sempre um menino e uma menina. Desta forma percebe-se a dicotomia e a naturalização desse discurso heteronormativo que é norma para a nossa sociedade. Assim podemos também trazer para discussão outra instituição importante que também educa: a igreja. Nela o sujeito aprende também outros saberes relacionado ao lado espiritual, ter fé, e entender de certa forma o meio em que vive, mas a igreja assim como a família vem mudando junto com a sociedade, tendo novos discursos e organizações. É possível vivenciar diversas experiências religiosas ou até mesmo nenhuma como é o caso do 89

ateísmo. É importante lembrar que a igreja também é um dispositivo de poder que cria discursos de verdade, assim como o Estado organiza e trabalha na construção dos sujeitos que dela participa. “Minha mãe: Ah, isso não á natural, isso não está na bíblia e o homem foi feito pra mulher e a mulher pro homem, se não for, não "encaixa". (Aline, Estudante/Bolsista, 17 anos) Os professores muitas vezes se mostram contra as discussões em sala quando o assunto é sobre homossexualidade, tendo uma postura de não alteridade, onde muitos ainda têm na religião a única base de argumento para essas questões, mesmo sabendo que o estado é laico e a escola sendo ela publica não deve favorecer nenhuma religião. É necessário o professor ter essa consciência e refletir sobre sua prática de maneira a entender que sua ação pedagógica não é neutra, mas sim política, que suas ações têm influencia na construção do conhecimento dos alunos assim como também a dele mesmo e nesse ato de ensinar e aprender é necessário um estudo contínuo que busque sempre praticas que estejam de acordo com o que é proposto nos documentos oficiais e leis educacionais que tem como objetivo o combate ao preconceito seja ele qual for. Essa relação entre a religião e a prática pedagógica ainda é muito forte na realidade escolar. Sabemos que isso vem desde jesuítas e permanece até hoje. Muito se vem discutindo, são vastas as teorias e praticas que transcendem essa maneira de pensar a escola e o ensino, porém se tem esse “vício” de misturar política com crença religiosa que faz com que não se cumpra o que é discutido e pensado de maneira democrática e laica pelo Estado. Centenas de escolas públicas em pelo menos 11 Estados do Brasil não seguem os preceitos do caráter laico do Estado e impõem o 90

ensino religioso, alerta a Organização das Nações Unidas. (Chade, 2011), vale ressaltar que entre os 11 estados, está o de Santa Catarina. Segundo a relatora da ONU que preparou o documento, Farida Shaheed “alerta que intolerância religiosa e racismo "persistem" na sociedade brasileira” e também para Shaheed: Deixar o conteúdo de cursos religiosos ser determinado pelo sistema de crença pessoal de professores ou administradores de escolas, usar o ensino religioso como proselitismo, ensino religioso compulsório e excluir religiões de origem africana do curriculum foram relatados como principais preocupações que impedem a implementação efetiva do que é previsto na Constituição. (Chade, 2011) Assim quando discutido o projeto anti-homofobia, as igrejas mostraram ter força, tanto na bancada parlamentar, quanto em seu discurso na sociedade, que mostra não aceitar outra condição a não ser a heteronormatividade. Isso é preocupante ao ponto de ver que as igrejas têm influência nas discussões de propostas educacionais, com isso ela se contradiz em seu discurso como lembra a entrevistada: É, amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei, então, beleza...acho que não há distinção. Eu não vejo como distinção! Acho que o que eu sinto por ela é o que qualquer homem sente por qualquer outra mulher, ou enfim, e o sentimento é o mesmo, então não tem diferença. Quem é que vai me julgar por 91

gostar? Se eu tiver gostando, eu não estou matando, não estou fazendo nada, então beleza...a pessoas acham do jeito que quiser e eu vivo do jeito que quiser. Pra mim, eu acho normal. (Andressa, Assistente Social, 34 anos) A entrevistada mostra que não faz sentido essa diferenciação, trazendo assim a própria religiosidade para mostrar isso. As igrejas necessitam aceitar e também respeitar. Seu discurso se torna hipócrita a classificar quem tem o “direito” de gostar de quem. O julgamento que se faz não pode ser tido como ‘verdade’ assim a escola como instituição pública e laica, além de ter a obrigação de respeitar e aceitar, é determinante para o fim da homofobia, segundo título da pesquisa de Gustavo Venturi: “Quem mais estudou, discrimina menos.” (Venturi, 2011) E lamenta a suspensão do kit anti-homofobia. Venturi acredita que sozinha a escola não será capaz de combater o preconceito contra gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis. Mas o ambiente escolar é o local mais promissor para por fim à homofobia. Por isso, Gustavo Venturi, coordenador do estudo, defende que o debate sobre esse tipo de discriminação faça parte das aulas, inclusive na infância. De acordo com os dados da pesquisa, enquanto metade dos brasileiros que nunca frequentou a escola assume comportamentos homofóbicos, apenas um em cada dez brasileiros que cursaram o ensino superior apresentam o mesmo comportamento. O Estado, a família e as igrejas, articulados, atuam sobre o indivíduo criando dispositivos de controle e poder na população, tendo como objetivo conhecê-la e garantir sua existência, pois é com base nas famílias e assim na sociedade que se pode manter a 92

economia. Como lembra Reich, “é por isso que o Estado autoritário tem o maior interesse na família autoritária; ela transformou-se numa fábrica onde as estruturas e ideologia do Estado são moldadas” (Reich,2001 p.28) Assim, completa, “a família é o Estado autoritário em miniatura, ao qual a criança deve aprender a se adaptar, como uma preparação para o ajustamento geral que será exigido dela mais tarde”. (Idem, p.29) A família impõem certos papéis onde não é necessária a fala, pois é em ações tidas como atos “naturais” que se mostra o que é “certo” e “errado”. Papéis este que legitima o binarismo do gênero e tem como a única sexualidade possível a heterossexual. Meninos são vestidos de azul e meninas de rosa, não só roupas, mas decorações e brinquedos, há todo um comércio para contribuir e manter a heteronormatividade. Esse discurso heteronormativo, onde se tem uma dicotomia do genero, homem/mulher, menino/menina, ja de muito cedo é apresentada as crianças como uma verdade. Assim as enunciações limita as possibilidade, cria indentidades que se mostram e localizam. Assim “todo o sitema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropiação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (Foucault, 1971, p. 44). Nessa relações muitas vezes esta presente a injuria, esta que “molda as relações com os outros e com o mundo. E por conseguinte, molda a personalidade, a subjetividade, o próprio ser de um indivíduo” (Eribon, 2008) nessa relação se tem uma forma de violência que atua no disciplinamento e molda o corpo do sujeito. “Minha mãe mandava, ficava mandando andar com o livro na cabeça porque ela ficava preocupada com o jeito que eu andava, sabe, meu pai ficava brigando comigo ‘Seja mais feminina!’” (Cláudia, 93

Musicista/Professora de Música, 29 anos) Essa fala da entrevista mostra claramente que “ao classificar os sujeitos, toda a sociedade estabelece divisões e atribui rótulos que pretendem fixar identidades. Ela define, separa e, de formas sutis ou violentas, também distingue e discrimina” (Louro, 2000 p. 6). Então, a família tendo uma concepção de gênero produzido dentro de uma lógica dicotômica implica em uma ideia singular de masculinidade e feminilidade, e supõe ignorar ou negar todos os sujeitos sociais que não se “enquadram” em uma dessas formas (Louro, 1997) “Daí... cresci, aquela pressão: Ah, tu nunca teve um namorado? Tu nunca teve namorado?”(Aline, Estudante/Bolsista, 17 anos). Só que essa pressão tem efeito nos corpos dos sujeitos a que se obrigam a tentar se enquadrar nesses padrões estabelecidos “depois na minha adolescência, com quinze, dezesseis, eu lembro que eu tinha a coisa de querer manter um casamento, de querer casar, namorei alguns meninos... tinha atração sexual, tinha desejo sexual pelos meninos também, mas na minha mente, passava a ideia de viver com meninas.” (Laura, Pedagoga, 34 anos) Nesse caso se percebe a violência “travestida” onde não é física nem verbal, mas como uma relação que produz no corpo da entrevistada sensações que implicam em seus atos, no caso permanecer em silêncio. Mas podemos perceber em outro caso que quando não reprimido, não silenciado suas intenções, também pode haver violência como é o caso da Daiane; “minha irmã me apoiou muito, minha mãe, mais ou menos, até na época quando eu falei pra ela, levei um baita de um tapa no meio da cara.” (Paloma, Empresária, 24 anos) Alem da violência física, há também a verbal que usa argumentos que colocam o homossexual como uma categoria inferior, de forma preconceituosa, com 94

relação a outros preconceitos “É, o meu pai, pra ele era pra eu casar, ele prefere que eu casasse com um traficante, morasse na favela, tivesse dez filhos, fosse ver meu marido na cadeia, mas que não fosse lésbica” (Paloma, Empresária, 24 anos) Ou seja não importa a situação que a filha esteja, mas a mesma deve estar na norma heterossexual. Assim o “desviante” é trazido para a ordem familiar heterossexual vista ai o preconceito, a homofobia. Para Daniel Borrillo, “a homofobia é o medo de que a valorização dessa identidade seja reconhecida; ela se manifesta, entre outros aspectos, pela angústia de ver desaparecer a fronteira e a hierarquia da ordem heterossexual” (Borrillo, 2010 p. 17). Porem como ele mesmo coloca, é uma “verdadeira alienação dos heterossexuais” que exprimi-se no cotidiano, insultos e injurias, algo consensual, tido como senso comum e que já é familiarizado. (Borrillo, 2010). Em uma de suas falas Aline relata: “o resto da minha família, não sabe, porque eu tenho medo da reação deles, a família da minha mãe se souber, [faz sinal de cortar o pescoço] eu estou ferrada, literalmente... Eles são homofóbicos, bem homofóbicos (Aline, Estudante/Bolsista, 17 anos). Finalizando: Corpo, Estereótipo, Diferença Pensando as diferenças, sejam elas de classe, raça, religião ou gênero a forma com que são constituídas e fixadas, valorizadas ou negadas é possível perceber como é sutil essa “desconfiança” que vem ao falar do diferente, daquele que não se fala, do amor que não se diz o nome. Como pensar e aceitar o diferente? Desconfiar do que é ‘natural’ é necessário para pensar e discutir sobre essa norma que existe, segundo a qual só se vê a heterossexualidade 95

como realidade possível. A instituição escolar, ao identificar os sujeitos pela classe social, etnia e sexo, historicamente tem contribuído para (re)produzir e hierarquizar as pessoas, fazendo do diferente um desigual, um inferior. Essa tradição deixa à margem aqueles que não estão em conformidade com a norma hegemônica. Desta forma, não contempla a inclusão da diversidade sexual, proposta na atualidade. (Santos; Ramos; Timm; Cabral; Lobo, 2008) A ausência de discussão sobre a diversidade também se faz na Universidade. No curso de Pedagogia, onde se formam todas as professoras e os professores para trabalhar nos primeiros anos escolares com todas as crianças, não se tem uma disciplina, tópico de ementa ou um espaço adequado para se discutir, pesquisar e socializar informações acerca da sexualidade, da homoafetividade, propiciando o debate sobre a diversidade. Quando o tema é proposto, por iniciativa pessoal de alguma professora ou professor, ou mesmo por algum colega de turma, predomina o silêncio sobre o assunto, denotando, mais uma vez a censura velada. Silêncio travestido em uma suposta prática do ‘politicamente correto’: Tinha casal hetero que só faltava transar no corredor. Uma vez a guardinha veio encher o saco da gente, só porque nós estávamos abraçadas, rolava uns estalinhos, e ela disse: O pessoal está se sentindo incomodado com vocês duas, separem, não pode isso na FURB. Realmente pela lei da FURB não pode demonstrar afeto, está no código e tem casais que passam dos limites! (Aline, Estudante/Bolsista, 17 anos)

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Esse “incômodo” que é causado pelo diferente, muitas vezes o coloca como uma representação do errado. Na relação com outro tenta se justificar essa diferença colocando como base um padrão, sendo esse o heterossexual. Ao professor cabe conhecer e reconhecer a diversidade. É seu papel educar para a diminuição da agressão, da violência praticada cotidianamente sobre o diferente. Mas esse não é um papel só dele; envolve a todos que trabalham e participam do ambiente escolar. Infelizmente, a escola continua sendo apenas o espaço da heteronormatividade. Segundo Louro (2000), O investimento mais profundo, contudo, o investimento de base da escolarização se dirigia para o que era substantivo: para a formação de homens e mulheres "de verdade". Em que consistia isso? Existiam (e, sem dúvida, existem) algumas referências e critérios para discernir e decidir o quanto cada menino ou menina, cada adolescente e jovem estava se aproximando ou se afastando da "norma" desejada. Por isso, possivelmente, as marcas permanentes que atribuímos às escolas não se refletem nos conteúdos programáticos que elas possam nos ter apresentado mas sim se referem a situações do dia-a-dia, a experiências comuns ou extraordinárias que vivemos no seu interior, com colegas, com professoras e professores. As marcas que nos fazem lembrar, ainda hoje, dessas instituições têm a ver com as formas como construímos nossas identidades sociais, especialmente nossa identidade de gênero e sexual.

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Muitas vezes, os pais desejam que a escola seja uma extensão de seus preconceitos, que vá ao encontro do que eles desejam e transmitem para seus filhos em casa. Nas falas dos alunos é visível. Um exemplo disso é o caso de uma professora de um Centro de Educação Infantil público de Blumenau que relatou a seguinte conversa com sua aluna de três anos: Eu estava amarrando o cabelo quando a criança comentou: - hmm, agora a pofi tá menina, que bonita! - Por que agora eu estou menina? Antes eu era o quê? - Um piá. - Quem falou isso? - A minha mãe. - O que tua mãe falou? - Que você era um piá! No exemplo se vê como a criança reproduz a representação de menino e menina / masculino e feminino, presente no imaginário do adulto. São estereótipos do verdadeiro homem e da verdadeira mulher, porque correspondem à natureza criada por Deus que habitam alimentam a representação dos adultos. Tais representações acabam formando na criança os conceitos de identidade. Caso tais conceitos não sejam discutidos e problematizados na escola, serão a fonte que geram práticas preconceituosas. Embora esses discursos heteronormativos se apresentam de maneira sutil, é deles que brotam grande parte da violência, seja ela verbal ou física, que se verifica na escola e na sociedade.

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O corpo heterossexual, desejado, visto como normal e disciplinado, serve como referência e como padrão para a educação. Assim, a partir do padrão, se desqualifica aqueles que não se enquadram. “Criando assim divisões e atribuindo rótulos que levam a fixar identidades. Definindo separa, e de formas sutis ou violentas, também distingue e descrimina”. (Louro, 2000 p. 11) Desde criança sempre tive um comportamento que aos olhos dos outros era muito andrógino, o jeito que eu andava o jeito que eu falava, (...) eu queria jogar futebol e não queria brincar de boneca, eu queria usar calça e não queria usar saia, na escola o pessoal sempre tirava sarro de mim, eu me sentia excluída, sofri um monte com isso, e também minha família, meu pai e minha mãe invocavam com isso, minha mãe ficava me mandando andar com um livro na cabeça. (Cláudia, Musicista/Professora de Música, 29 anos) Essa educação do corpo, esse andar, vestir e brincar “corretamente”. Isso tudo é exigido não só no ambiente familiar, mas também na sociedade e na escola. Esses estereótipos são resultado de uma relação políticasocial-cultural na qual se mantém um discurso heteronormativo que, na prática, pode ser visto desde os primeiros anos de vida, ou até antes mesmo da criança nascer. Isto já está imposto a ela como, por exemplo, as cores e imagens na decoração, os brinquedos, as roupas - azul para meninos, rosa para meninas, carro para meninos e bonecas para meninas. Tudo isso os classifica de maneira binária em uma sociedade que busca essa 99

padronização, onde não há espaço para o diferente, espaço negado à aquele que não está dentro do padrão. Na escola e na universidade, enquanto produtoras de conhecimentos e saberes, se faz necessário promover discussões e questionamentos sobre a diversidade. Não é mais aceitável um discurso pautado na lógica da heteronormatividade afetiva, que homogeniza. Se faz necessário investir na compreensão da diversidade, novas formas de governamentalidade das condutas. Nessa lógica se vai além do hetero e do homo, pensa-se a partir de identidades múltiplas que transcendem a dicotomia de homem/mulher, feminino/masculino. Entende-se que a educação é o meio para se trabalhar a questão da aceitação, combatendo a intolerância às múltiplas diversidades, sendo uma delas a de gênero. Deste modo se pode positivar as relações na diversidade. Referências BASSALO, Lucélia de Moraes Braga. Heteronormatividade ou Reconhecimento? Professores e professoras diante da homossexualidade. 34ANPEd, GT23 Genêro, Sexualidade e Educação. Natal –RN, 2011. BORRILLO, Daniel. Homofobia : história e critica de um preconceito; (tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Adolescentes e jovens para a educação entre pares: diversidades sexuais. Brasília: Ministério da Saúde, 2012. (Saúde e prevenção nas escolas, v.8) (Séries Textos Básicos de Saúde)

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http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/escola+e+determinante +para+o+fim+da+homofobia+diz+pesquisador/n1596978678723. html Ultimo acesso em 29/08/2012. Entrevistas Luiza (Educadora Social, 41 anos) e Clara (Diretora Escolar, 40 anos) (pseudônimos/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Carla Fernanda da Silva; Sally Rejane Satler; Fabiele Lessa; Blumenau, 11 de dezembro de 2010. Laura (Pedagoga, 34 anos) (pseudônimo/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Carla Fernanda da Silva; Sally Rejane Satler; Fabiele Lessa; Blumenau, 02 de janeiro de 2011. Cláudia (Musicista/Professora de Música, 29 anos) e Priscila (Psicóloga, 29 anos) (pseudônimos/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Carla Fernanda da Silva; Sally Rejane Satler; Fabiele Lessa; Blumenau, 06 de fevereiro de 2011. Patrícia (Auxiliar de Escritório, 26 anos) e Josiane (Operadora de Telemarketing, 19 anos) (pseudônimos/sigilo). Entrevista em

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história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele Lessa; Blumenau, 27 de fevereiro de 2011. Caroline (Auxiliar de Produção, 20 anos) (pseudônimo/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele Lessa; Blumenau, 08 de março de 2011. Samara (Redatora Publicidade, 21 anos) (pseudônimo/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele Lessa; Blumenau, 12 de março de 2011. Natália (Auxiliar de Escritório, 17 anos) e Aline (Estudante/Bolsista, 17 anos) (pseudônimos/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele Lessa; Blumenau, 26 de março de 2011. Andressa (Assistente Social, 34 anos) e Mariana (Enfermeira, 33 anos) (pseudônimos/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele Lessa; Blumenau, 02 de abril de 2011. Vanessa (Empresária, 25 anos) e Paloma (Empresária, 24 anos) (pseudônimos/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele Lessa; Blumenau, 07 de abril de 2011. Virgínia (Assistente Social, 34 anos) (pseudônimo/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele Lessa; Blumenau, 13 de abril de 2011.

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Rafaela (Autônoma, 42 anos) (pseudônimo/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele Lessa; Blumenau, 16 de abril de 2011. Sarah (Professora Aposentada, 46 anos) (pseudônimo/sigilo). Entrevista em história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele Lessa; Blumenau, 19 de maio de 2011.

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As Diretrizes Curriculares Paranaenses da Educação Básica em História: um Balanço Educacional Necessário [2004-2014] Everton Crema § A construção de um currículo escolar está profundamente marcado por um ordenamento político, sua criação se insere diretamente através das demandas e espaços sociais em disputa, e em nada é um projeto neutro. As Diretrizes Curriculares em História do Estado do Paraná, não diferentemente, reproduziram essa perspectiva ao inserirem um novo quadro teórico metodológico na disciplina de História, rompendo com modelos educacionais tradicionais que refletiam o momento político brasileiro. O distanciamento de um modelo neoliberal de educação deu lugar a promessa de uma construção coletiva, das práticas e saberes educacionais, pautadas nas teorias críticas do conhecimento e contextualização dos sujeitos históricos. Nessa perspectiva, o conhecimento desenvolvido criticamente permitiria a compreensão da dinâmica dos processos sociais, e viabilizaria uma tomada de consciência e ação política. Portanto, o currículo representa muito mais do que uma estrutura de conhecimento formal ou uma perspectiva de conhecimento puramente científico, o currículo opera diretamente na conformação social, e naturalmente se torna lugar privilegiado da pesquisa e da educação histórica. Nossa investigação, pois, vincula-se a um 107

necessário balanço da implementação das Diretrizes Curriculares em história. Buscamos investigar como o documento orientador transformou o ‘pensar e o fazer’ do professor de história, na sala de aula e as condições de ensino decorrente desse processo. Precisamos compreender historicamente o contexto de mudança no ensino de história, o lugar do professor, do aluno e da escola, e as condições objetivas de participação/resistência possíveis para uma ‘educação histórica’. O Balanço Em 2014 se completam dez anos do inicio dos primeiros trabalhos do que se constituiria, posteriormente, nas Diretrizes Curriculares para a educação básica do Estado do Paraná, um documento orientador e unificador da política educacional governamental, que buscava romper com o modelo educacional do Governo Federal representado no final dos anos 90 pelos PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais. Segundo Yokohama (2006), a proposta do Currículo Básico de educação do Estado do Paraná elaborado em 1990, apresentava no inicio do século XXI, problemas de ordem significativa, reflexo de uma relativa anomia e indefinição pedagógica, que segundo a autora, desconfigurou e deformou a proposta do Currículo Básico. O contexto político paranaense, com o fim do governo Lerner (1995-2003) e a chegada ao poder de Roberto Requião (2002-2009), pode ser relacionado diretamente a mudança na gestão e no planejamento educacional do Estado. Alinhado com o governo federal de orientação neoliberal, Lerner reproduziu no Paraná um modelo educacional marcado pela diminuição dos investimentos educacionais, esvaziamento crítico, desumanização, 108

desmobilização social e privatização dos espaços públicos. O resultado prático desse processo foi à fragilização das políticas educacionais paranaenses, que almejavam uma reforma e valorização educacional nos anos pós-ditadura. A sucessão política recolocou a questão educacional em debate. Assim, desde o inicio dessa Gestão 2003-2006, estabeleceu-se como linha de ação prioritária da SEED a retomada da discussão coletiva do currículo. A concepção adotada é a de que o currículo é uma produção social, construída por pessoas que vivem em determinados contextos históricos e sociais. Portanto, não almejamos construir uma proposta curricular prescritiva, mas uma intervenção a partir do que está sendo vivido, pensado e realizado nas e pelas escolas. (Paraná, 2003, p. 3) De outro lado, o projeto das Diretrizes Curriculares Paranaenses, buscava um necessário distanciamento das políticas nacionais de educação, especificamente dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs e sua proposta de unificação das matrizes curriculares nacionais. A construção dos PCNs reproduziu de maneira geral a política centralizadora do MEC – Ministério da Educação e Cultura, e se construiu como modelo distante da realidade brasileira, sendo concebido a partir de intelectuais espanhóis e educadores paulistas, da educação privada, distante da realidade educacional brasileira, e muito mais ainda, da paranaense. Além disso, não existia um debate consistente sobre educação nos Parâmetros Curriculares Nacionais, que pudesse sustentar uma perspectiva ou metodologia educacional, 109

sobrepondo-se a isso ainda podemos perceber seu caráter prescritivo, e a ausência de diálogos com o professorado, problemas de um modelo nacional que desconsiderava a cultura e história regional. O processo de reformulação curricular das escolas públicas do Paraná construiu-se em seis fases, descritas aqui sucintamente: Tabela 1: Fases de elaboração das Diretrizes Curriculares Paranaenses Fase

Ano



2003



2003 2004



2004 2005



2004 2005



2005



2005...

Ação Desenvolvimento Levantamento da situação Realização de seminários pela das Diretrizes Curriculares SUED/SEED buscando a criação paranaenses. de documentos referências. Criação do Portal Dia-a-Dia Discussão de propostas educação, veículo de informação pedagógicas por área de e valorização dos saberes dos ensino com o coletivo de educadores, lugar de troca e professores. inovação. Processo coletivo de construção Reformulação curricular continuada a partir das bases escolares. Sistematização das Construir modelos educacionais propostas curriculares por representativos e orientadores disciplina, níveis e das disciplinas atingindo a modalidades de ensino. formação do aluno. Preparo, elaboração, efetivação e avaliação, do Os Núcleos Regionais de projeto político Educação organizaram o processo pedagógico. Capacitação por área educacional. do professor e produção de material de trabalho. Avaliação e Os Núcleos Regionais de acompanhamento Educação desenvolveriam contínuo e permanente estratégias de continuidade dos das propostas da base trabalhos, organizando as práticas disciplinar. Formação dos docentes e os programas de professores e formulação capacitação temáticas nos níveis e de materiais de apoio. modalidades de ensino.

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Na elaboração das Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Estado do Paraná foram construídos grupos de trabalho das disciplinas especificas, congregando professores da área de conhecimento especifico, representantes da SEED – Secretaria de Estado da Educação e NREs – Núcleos Regionais de Educação, a ideia defendia que “o coletivo da escola possa, com subsídios e autonomia construída, produzir sua proposta educacional.” (Paraná, 2006, p. 4) Desse esforço, originaram-se especificamente as Diretrizes Curriculares da Educação Básica em História, apresentadas definitivamente em 2008, apesar de diversos problemas, limites e criticas, à sua construção e implementação, entendemos que as Diretrizes Curriculares da Educação Básica em História, alcançaram um significativo avanço educacional e, sobretudo definiram de forma inequívoca o tipo de educação e o perfil do aluno que frequenta e depende da escola publica, como meio de transformação da própria realidade. “Um sujeito é fruto de seu tempo histórico, das relações sociais em que está inserido, mas é, também, um ser singular, que atua no mundo a partir do modo como o compreende e como dele lhe é possível participar” (Paraná, 2008, p. 8). Ou seja, as Diretrizes Curriculares em História são um documento fundante e orientador das práticas e saberes de professores e alunos, pois a conformação do modelo educacional interfere e orienta diretamente o cotidiano escolar, ao mesmo tempo em que dele é reflexo. Ao mesmo tempo, a escola deve ser percebida como espaço de continuado confronto e diálogo, entre os conhecimentos sistematizados e os conhecimentos do cotidiano popular: “As propostas curriculares e conteúdos escolares estão intimamente organizados a partir desse processo, ao serem 111

fundamentados por conceitos que dialogam disciplinarmente com as experiências e saberes sociais de uma comunidade historicamente situada” (Paraná, 2008, p. 30). O professor, ao pensar a prática de ensino, deve ter em mente os sujeitos e os fundamentos teóricos da educação, as dimensões e formas de conhecimento e os fundamentos teóricos metodológicos da disciplina que leciona. Deve ainda dominar os procedimentos do pensamento histórico, bem como conhecer em nível suficiente os teóricos e correntes historiográficas que sustentam a formação do conhecimento histórico. Para o aluno, a construção do conhecimento histórico mediado pela realidade social e cultural, passa pelo formato educativo e pelas ciências de referência, não diferindo nesse processo os princípios epistemológicos e cognitivos. A necessidade de ponderar Segundo Schmidt, (2009) o aprendizado histórico no Brasil está diretamente ligado às concepções e fundamentações da disciplina de história e da produção histórica, sendo o ensino de história, lugar de referência para a construção de manuais e currículos de História. Sendo assim, podemos depreender a importância de uma análise/balanço acerca das Diretrizes Curriculares em História no Paraná, pois se percebe a articulação direta entre o ensino e suas carências, e sua relação com a construção do documento orientador. Entretanto a educação, e parte dela, o ensino, decorrem e emergem diretamente no corpo social, exigindo que a ‘educação histórica’ responda à suas demandas e problemas.

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Existe uma forte crítica ao distanciamento da produção historiográfica da educação básica na disciplina de História, fruto de uma hierarquização de saberes e de uma incompreensão da relação da produção histórica com o ensino. Devemos olhar para o processo de construção das Diretrizes Curriculares como ruptura e superação de modelos anteriores, em seus diversos níveis. Para Schmidt, (2009) a criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) partiu do problema do fracasso e repetência escolar, para propor um novo projeto de ensino em nível nacional. Desconsideraram totalmente o contexto históricosocial e as potencialidades da educação, como um poderoso processo de mudança social e autonomia política. Apresentaram um modelo educacional sem um debate sobre educação, seu significado e objeto social, e a preocupação com a repetência sistematizou o debate de forma pontual e interventiva, focada numa ‘profilaxia social’. Se pensarmos em termos comparativos, os diferentes projetos educacionais, contextualizados, sejam os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, percebemos concepções de modelos teóricometodológicos distintos. Precisamos ter em mente que suas concepções de ensino se materializaram em programas de ensino e processos de aprendizagem postos ‘no chão da sala de aula’ e a comparação entre os modelos citados somente adquire significado quando podemos perceber os resultados reais de suas implementações. Também precisamos perceber que a definição de ‘sucesso escolar’ é muito difusa e em geral reflete seu modelo educacional. Em termos de documento, como proposta de transformação as Diretrizes Curriculares da Rede Pública de

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Educação Básica do Estado do Paraná, inova sobre diversos aspectos quando é pensada e construída socialmente: ...para a maioria da população brasileira, a escola constitui a alternativa concreta de acesso ao saber, entendido como conhecimento socializado e sistematizado na instituição escolar. Sob essa perspectiva de escola publica, construímos essas Diretrizes Curriculares, por meio de uma metodologia que primou pela discussão coletiva ocorrida, efetivamente, durante os ultimo cinco anos e envolveu todos os professores da rede. Com essas Diretrizes e uma formação continuada focada nos aspectos fundamentais do trabalho educativo pretendemos recuperar a função da escola pública paranaense que é ensinar, dar acesso ao conhecimento, para que todos, especialmente os alunos de classes menos favorecidas, possam ter um projeto de futuro que vislumbre trabalho, cidadania e uma vida digna. (Paraná, 2008, p. 8) Em diversas perspectivas, as Diretrizes Curriculares em História avançam se comparadas aos Parâmetros Curriculares Nacionais; pontualmente podemos, perceber, segundo Schmidt (2009, p. 29), que existe uma diferenciação entre conhecimento escolar e conhecimento científico, bem como o tempo é tratado pelos PCNs dentro de uma cronologia tradicional, que suscita uma forma de linearidade. Outra crítica evidente é a opção pela descrição objetiva das categorias do conhecimento, que não passam pela construção de formas de compreensão históricas, ou 114

seja, o aprender ‘história’ deve passar pelo ensinar história, historicamente, desde que compreendida a relação com a ciência histórica: Como tais correlações são abordadas do ponto de vista da racionalidade do pensamento histórico, a mediação operada pela teoria entre ciência e profissão não pode reduzir-se a uma mera instrumentalização da ciência em benefício da profissão, nem se volta para a ciência “pura” em detrimento da aplicação dos conhecimentos por ela produzidos no contexto social do pensamento histórico. (Rüsen, 2001, p. 42) O papel e o lugar da teoria histórica não podem ser desconsiderados em nosso processo de análise, pois aliada a metodologia, acabam por sustentar o processo de construção historiográfica. Em termos educacionais, a teoria permite a construção de uma problematização e contextualização fundamental, para que o aluno perceba como a história é construída, adquirindo um principio reflexivo sobre a mesma. Problematizando a questão, durante os momentos iniciais da construção coletiva das Diretrizes Curriculares em História, os professores se manifestaram em suas apreensões e interesses, e os documentos síntese elaborados pela Diretoria de Ensino de História – SEED, apontaram que 26,1% dos professores participantes se preocupavam com a linha teórica-política que nortearia o documento. De acordo com o parecer CNE/CEB 04/98 das Diretrizes Curriculares Nacionais, não se adotou apenas uma visão teórico-metodológica. Portanto, a adoção das linhas teóricas e perspectivas diversas advindas da ‘Nova História’, 115

‘Nova História Cultural’ e ‘Nova Esquerda Inglesa’, mediaram os interesses dos educadores, e da política governamental contida no documento, adequando ao projeto curricular à importância e significância desses referenciais dentro do campo da história. De forma geral a análise e balanço dos resultados das Diretrizes Curriculares de História para a educação básica paranaense se apresenta de forma urgente para a investigação do campo educacional, e se enquadra a linha de pesquisa cultura, escola e ensino. Questões No centro do debate ensejado pelo currículo, encontramos a cognição histórica situada, um aprender histórico a partir da própria racionalidade da história. Segundo Schmidt (2009) o distanciamento na formação inicial e continuada do professor em relação a percepção programática da disciplina, impediriam a integração da consciência histórica com os fatores constitutivos da história. Para a autora, “tais considerações põem em relevo a importância de serem sistematizados referenciais teóricos que indiquem os caminhos possíveis de uma cognição histórica situada na própria racionalidade da História” (Schmidt, 2009, p. 32). De certa forma, as Diretrizes Curriculares de História são percebidas como um documento burocrático e administrativo, sem funcionalidade ou aplicabilidade no ensino de História, soma-se ainda que o desconhecimento do documento reforça o distanciamento do professor, que reproduz as práticas didáticas e teóricas da sua formação e experiência profissional. Existe uma relação direta entre a teoria e a prática, não como uma oposição, opção ou sobreposição, mas sim como 116

integração mediada, sobretudo, se pensarmos o campo educacional e os papéis dos ‘sujeitos sociais’ inseridos. Entretanto a ‘mediação’ não deve ser aqui entendida como simetria, pois as relações de interseção entre esses universos, frequentemente, por vezes se constroem assimétricas e desproporcionais. O desejável seria uma aproximação de resultado entre a teoria e prática, currículo e ensino, por vezes tão próximos, por vezes tão distantes: É tempo de nós, historiadores, nos responsabilizamos por explicar o que fazemos, como fazemos, e porque é importante fazer. Não é apenas o público que está confuso sobre o papel e o estatuto da história. A maioria dos formandos em história tem pouca noção da vocação do historiador ou sobre como seus professores aprenderam o que ensinam. Não é preciso dizer, a situação dos estudantes do ensino médio é ainda mais complicada, já que a história é muitas vezes soterrada por um currículo generalizante de estudos sociais. Ademais, cursos de história, em todos os níveis, são geralmente concebidos para organizar um objeto especifico e não para cultivar um modo de pensar o passado. (Appleby; Hunt; Jacob, 2011, p. 367). A escrita da história e seus referenciais teóricos se desenvolvem em constante superação em relação a seus próprios paradigmas, já que o contexto da produção histórica reflete o lugar e o momento de sua criação/superação, construindo nesse processo um novo contexto interpretativo. Para Barros (2011), o momento de critica/superação de uma teoria histórica acompanha uma variedade de perspectivas interpretativas, evidenciando os limites 117

de uma teoria ou corrente histórica, visto que o surgimento de variações explicativas não demonstra o fortalecimento de uma teoria ou corrente, mas sim seu esvaziamento, sobretudo, porque a variedade interpretativa aponta os limites, fragilidades e inadequações do pensamento histórico contextualizado e a tentativa de superá-los. Segundo Rüsen, surge dessa necessidade de superação, uma crítica de sentido entendida como um novo paradigma. Nas palavras do autor: A constituição crítica de sentido é o meio de uma comunicação intercultural, na qual o discurso histórico se modifica radicalmente, quando novas representações substituem as antigas, ou mesmo quando uma linguagem simbólica do histórico, inteiramente nova, varre a precedente. (Rüsen, 2001, p. 55). Portanto, a dinâmica histórica e sua superação teóricometodológica influem diretamente nas condições de produção da história; por seu turno, segundo Maria Auxiliadora Schmidt (2009), as condições de produção da história acabam por influenciar o ensino de história, e no caso das Diretrizes Curriculares de História, influenciam diretamente as concepções teórico metodológicas, os conteúdos estruturantes e os procedimentos metodológicos. Não diferentemente desse processo, os professores da rede de ensino paranaense, formados em diversos momentos e em diversas instituições de ensino superior reproduzem características especificas em relação a sua formação e orientação teórico metodológica. Segundo Schmidt:

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Os significados do que é “aprender História” têm acompanhado e fundamentado os processos de produção da História enquanto disciplina escolar no Brasil. Nesse sentido diferentes abordagens da aprendizagem histórica têm servido de referência para questões, como propostas curriculares e manuais didáticos destinados à formação de alunos e professores. (Schmidt, 2009, p. 21) Nesse sentido, podemos compreender as preocupações iniciais na construção do documento de referência para o ensino de História no Paraná, que mostraram “a diversidade de referências e convicções entre os professores, por isso definir apenas uma linha significaria excluir e negar todas as demais”. (Paraná, 2006, p. 116). Por essa perspectiva, olhar para a construção coletiva das Diretrizes Curriculares de História é compreender a variedade de ideias postas e seu caráter representativo. Segundo o documento; “os consensos mínimos construídos no debate entre as vertentes teóricas não expressam meras opiniões, mas implicam fundamentos do conhecimento histórico que se tornam referenciais nestas Diretrizes” (Paraná, 2008, p. 45). Do debate consolidado, três propostas teóricometodológicas alicerçaram o documento, são elas: a Nova História, a Nova História Cultural e a Nova Esquerda Inglesa. Segundo o documento, a Nova História surge a partir da contribuição dos Annales, a partir dos anos 1960 na Europa, num reflexo aos contextos reivindicatórios de maio de 68 na França e da Primavera de Praga. O feminismo e as lutas raciais nos Estados Unidos deram o tom da mudança. “Os movimentos dos direitos civis nos Estados Unidos e os protestos contra a Guerra do Vietnã 119

colocaram em questão a habilidade de cientistas, estadistas e professores de escapar aos preconceitos políticos e raciais.” (Appleby; Hunt; Jacob, 2011, p. 365). A inflexão do campo histórico foi em direção das ‘mentalidades’, entendidas em relação “aos modos de pensar e de se comportar dos sujeitos em determinadas épocas e locais. A mentalidade geralmente se articulava a uma temporalidade de longa duração em relação aos acontecimentos.” (Paraná, 2008, p. 49). O surgimento da mentalidade e da longa duração, somada a perspectiva de fragmentação pela escolha de novos objetos, deslocou o fazer história. Segundo Novais, (2013) ao invés de estudar Estados, estruturas, produção, consumo e poder, a história passou a estudar os modos de sentir, os amores e os humores, conceitos e objetos tradicionais na pesquisa histórica foram abandonados. Dessa maneira, os fundamentos teórico-metodológicos da Nova História vêm de encontro e sustentam às perspectivas dos conteúdos estruturantes, conteúdos básicos e das expectativas da aprendizagem do Caderno de Expectativas de Aprendizagem da Diretriz Curricular de História, além disso, a noção de fonte foi qualitativamente ampliada, ao mesmo tempo em que recortes regionalizados permitiram o desenvolvimento da história regional e local. De outro lado, a crítica que se faz a Nova História pontua a desvalorização da ação política dos sujeitos históricos, desconsiderando suas condições objetivas de ação/produção, em detrimento das estruturas mentais, construindo compreensões históricas fragmentadas, distantes do sujeito em sua individualidade e contexto histórico. Essa fragmentação do campo histórico reside na crítica de François Dosse (1992), de uma ‘História em migalhas’: 120

A História se tornou um show permanente, em que produções altamente impregnadas de fantasmagoria se sucedem umas após as outras, numa cadência acelerada, e em vedetes de estilo mais coruscante incorrerem no risco de se desgastar dentro de poucos anos. (Martin; Bourdé, 2013, p. 62) No contexto de crítica, surge a Nova História Cultural, fruto de uma aproximação da História com a Antropologia iniciada nos anos 70 e 90 do século XX, vindo a despontar a partir de 1987, com Lynn Hunt. Segundo Burke (2005), a Nova História Cultural buscou integrar o campo e o objeto histórico, fragilizado com a crescente fragmentação e descontextualizarão metodológica da Nova História. A proposta da Nova História Cultural defendeu a reorganização da pesquisa histórica através da cultura, como eixo aglutinador, recompondo o campo, e, sobretudo, retomando a ideia de uma ‘estrutura subjacente’ ao social, a cultura precisava estar presa à um ‘contexto material’. Em termos curriculares, os estudos culturais, ampliaram o campo social e seus personagens. A produção da cultural material e imaterial de uma sociedade, aproximou-se da sala de aula. Possibilitou a construção de uma percepção social onde o aluno, como ‘agente histórico’ participava diretamente da produção da história, e não mais como expectador. A reorganização conceitual da Nova História Cultural se articulou poderosamente através de Mikhail Bakhtin, Norbert Elias, Michel Foucault e Pierre Bourdieu, suas ideias e conceitos sustentaram concretamente pesquisas e abordagens culturais inovadoras, que mantiveram proximidade com estruturas sociais reais, enriquecendo e articulando campos distintos da história, 121

permitindo a escrita de uma historiografia renovada e comprometida teórica e conceitualmente. Uma ‘história das práticas’ ou, segundo Chartier (1990, p. 19): ...uma história cultural do social que tome por objetivo a compreensão das formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevam a sociedade tal como pensam que ela é ou como gostaria que fosse. A partir desta proposição, três conceitos se tornam fundamentais: representação, prática e apropriação. Em relação à Nova Esquerda Inglesa, singularizaremos o debate ao redor das ideias de Edward Palmer Thompson, seja pela vanguarda na critica política ou ainda, pela centralidade dos conceitos de experiência, lógica histórica, história vista de baixo e economia moral. Em 1957, Thompson junto com John Saville, lançam a revista New Reasoner, e em um dos seus mais importantes artigos, ‘Socialist humanism’, marcou a ruptura epistemológica com o estruturalismo histórico, denunciando a separação ‘fria’ entre ‘estrutura’ e ‘superestrutura’. Thompson desenvolve um modelo metodológico que insere as ações humanas, dentro da complexidade social, articulando cultura, economia, política ao cotidiano social, numa perspectiva realista e concreta: Uma divisão teórica arbitrária como está, de uma base econômica e uma superestrutura cultural, pode ser 122

feita na cabeça e bem pode assentar-se no papel durante alguns momentos. Mas não passa de uma idéia na cabeça. Quando procedemos ao exame de uma sociedade real, seja qual for, rapidamente descobrimos (ou pelo menos deveríamos descobrir) a inutilidade de se esboçar a respeito de uma divisão assim.” (Thompson, 2001, p. 254-255) Sua principal obra, ‘A formação da classe operária Inglesa’, dominou o debate intelectual na Inglaterra por três décadas e remodelou significativamente a historiografia social. As ideias de Thompson evidenciam que a experiência histórica, se expressa na consciência social dos indivíduos, e a partir dessa relação pragmática, as relações de poder, classe, sociedade em sua visão mecânica são superadas. Assim a percepção do campo histórico se dá através de uma concepção dialética, valorizando a experiência, a mudança e as permanências, em meio a uma estrutura social menos rígida. Dentro de uma ‘educação histórica situada’, reproduzir o pensamento histórico-metodológico da Nova Esquerda é permitir que o aluno, professor e escola valorizem suas práticas culturais e econômicas, suas normas sociais e a produção do conhecimento de forma direta, recolocando os papéis de produção da história, numa mudança de olhar e lugar. O conceito de experiência histórica relaciona-se “as tradições ligadas às festas populares, à religiosidade, ao cotidiano das classes trabalhadoras, constituem historicamente a formação de classes”. (Paraná, 2008, p. 54). A perspectiva de Thompson sobre classe social não é uma abstração mecânica, é, sobretudo social, construída nas experiências e expectativas do operariado, entretanto a consciência se constrói a partir da luta de classes, não 123

numa visão fechada e categorizada, mas sim, dentro de um processo social real, onde homens e as mulheres vivem e lutam, construindo a percepção dos espaços e lugares sociais, que podem e desejam ocupar. “Um sujeito é fruto do seu tempo histórico, das relações sociais em que está inserido, mas, é também, um ser singular, que atua no mundo a partir do modo que o compreende e como dele lhe é possível participar.” (Paraná, 2008, p. 14) Uma conclusão possível...e temporária As concepções teórico-metodológicas descritas de forma sucinta, por si só, não apresentam uma perspectiva adequada de ensino. Entretanto, as contribuições de Jörn Rüsen e Maria Auxiliadora Schmidt para a educação histórica, superam as narrativas tradicionais, ou segundo Schmidt (2009), a ‘pedagogização’ da história. Os conceitos de ‘educação histórica’ e ‘cognição histórica situada’ são fundamentais tanto na compressão da proposta curricular como abrem perspectivas extremamente profícuas, se pensarmos o ensinar e aprender história. Em relação à educação história, nas palavras de Saddi: A importância de reconhecer que a Educação Histórica é um esforço hermenêutico é fundamental por dois motivos. Primeiro porque isto evita uma simples percepção rápida das ideias históricas dos alunos. Isto é, evita um rápido olhar sobre as narrativas produzidas de forma a não perceber que compreender as ideias históricas contidas nelas exige este processo profundo e complexo que se desenrola sempre que se abre para a compreensão. Reconhecer a operação hermenêutica 124

significa reconhecer que se realiza algo mais do que uma compreensão automática e imediata e que este algo mais m deve ser pensado como operação metódica. Segundo, porque reconhecer a operação hermenêutica nos abre a análise da tradição hermenêutica. A análise desta tradição nos possibilita definir como devemos proceder durante um esforço de compreensão das ideias do outro, evitando assim cairmos em equívocos já superados. (Saddi In Barca, 2011, p. 124) Dentro das concepções de ensino e diretamente ligada à tarefa de ensinar, a compreensão do processo de aprendizagem histórica é fundamental para o professor, visto que a compreensão do processo, permite o professor dialogar diretamente com o aluno, através das suas formas de compreensão e dos níveis de complexidade da elaboração das ideias históricas. Para Schmidt (2009) a importância da ‘aprendizagem histórica situada’ infere diretamente na relação de aprendizagem histórica a partir dos pressupostos da ciência histórica, ou seja, se aprende história da mesma forma que historiadores fazem seu trabalho histórico. Segundo a autora, as teorias psicológicas do conhecimento buscam desenvolver dentro da sala de aula, mediações entre o ensino e aprendizagem descontextualizadas. Dentro da aprendizagem histórica situada não existem mediações externas, e a educação histórica se constrói de forma direta com o conhecimento histórico, se aprende história, historicamente. O resultado desse processo é a criação de uma racionalidade histórica.

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Outro aspecto relevante da construção do conhecimento histórico é a ‘consciência histórica’; segundo Rüsen (2001, p. 59) “A consciência histórica é o trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir conformes com a experiência do tempo. Esse trabalho é efetuado na forma de interpretações das experiências do tempo”. Segundo Husbands (2003 In Schmidt, 2009) a importância da narrativa é diversa para historiadores e alunos. Para os alunos as narrativas históricas criam novas compreensões históricas individuais, já para os historiadores as narrativas, os permitem criar novos conhecimentos históricos. Portanto a construção de narrativas históricas na sala de aula evidencia a experiência histórica do aluno, ao mesmo tempo em que permite uma polissemia narrativa, onde a validade do conhecimento histórico é mediado pela narratividade construída. Por último, e também de forma sucinta, a ‘Matriz Disciplinar’ de Rüsen representa: Um paradigma da constituição narrativa do sentido histórico leva em conta os fatores mentais determinantes da narrativa histórica e seu contexto sistemático. Ele precisa identificar, distinguir e articular os princípios, necessários um a um e suficientes em seu conjunto, que fazem a constituição histórica de sentido aparecer como um processo que obedece a determinados fatores e que pode ser reconstruído e entendido a partir deles. (Rüsen, 2001, p. 161) Os componentes da Matriz Disciplinar evidenciam e correspondem aos espaços elementares e constitutivos da vida e do 126

conhecimento histórico, sendo respectivamente as carências de orientação da vida pratica, e funções de orientação cultural. Já os fatores especializados da ciência histórica se apresentam em perspectivas de interpretação, métodos e regras da pesquisa empírica e as formas de apresentação. Na inter-relação dos campos existe a possibilidade de se analisar a constituição histórica de sentido, baseado na coerência dos fatores e das dimensões apresentadas. Para Rüsen (2001) a Matriz Disciplinar analisa os processos cognitivos da história, o quadro teórico referencial das práticas do pensamento histórico e as representações historiográficas, numa ‘mediação’ entre a ciência de referência, a vida prática e as formas de compreensão da história. O projeto de pesquisa buscou apresentar sua adequação a linha de pesquisa e o debate teórico metodológico, que envolve a ‘educação histórica’ e as Diretrizes Curriculares de História do Paraná. Sobretudo, a necessidade investigativa premente, sobre o tipo de ‘educação histórica’ que temos e qual a ‘educação histórica’ queremos. Referências BARCA, Isabel. (org) Educação e consciência histórica na era da globalização. Braga, Portugal: Universidade do Minho, 2011. BARROS, Jose D’Assunção. Teoria da História. Vol. 1. Princípios e conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. BARROS, Jose D’Assunção. A expansão da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

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Bios §

André Bueno é Prof. Adjunto do Curso de História da UERJ, Doutor em Filosofia e Pós Doutor em História. Carla Fernanda da Silva é Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Celso Kraemer é Doutor em Filosofia – PUC/SP e Professor do Mestrado em Educação da Universidade Regional de Blumenau – FURB. Cristiane Theiss Lopes é Mestranda em Educação pela Universidade Regional de Blumenau – FURB. Dulceli Tonet Estacheski é Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná e Professora de Didática da História, Metodologia de Ensino de História e Estágio Supervisionado do curso de História da UNESPAR, campus FAFIUV. Everton Crema é Doutorando do PPGE - Educação UFPR LAPEDUH - Orientadora: Dra.Maria Auxiliadora Schmidt. Rodrigo Otávio dos Santos [Rodrigo Scama] é Doutor em História, especializado na área de História em Quadrinhos, e Professor da OPET.

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