Futuros do Presente: Dimensões Sociotécnicas dos Filmes de Ficção Científica

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HAB. EM RADIALISMO

WALTER ELER DO COUTO

FUTUROS DO PRESENTE: DIMENSÕES SOCIOTÉCNICAS DOS FILMES DE FICÇÃO CIENTÍFICA

Cuiabá – MT 2013

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WALTER ELLER DO COUTO

FUTUROS DO PRESENTE: DIMENSÕES SOCIOTÉCNICAS DOS FILMES DE FICÇÃO CIENTÍFICA

Monografia apresentada no curso de Graduação em Comunicação Social com Habilitação em Radialismo, como pré-requisito para a obtenção do título de bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal de Mato Grosso.

Orientadora: Prof. Dra. Dolores Cristina Gomes Galindo

Cuiabá – MT 2013

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A Renan Pedroso Batista.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a toda a minha família por tudo o que uma família significa na vida de qualquer pessoa. Ao meu pai, Sebastião, por mostrar o quão belo pode ser escrever; à minha mãe, Eva, por nunca desistir de lutar; à minha avó, Dejanira, por ser tão forte e doce; ao meu irmão, Wagner, por ter sido paciente conosco quando aprendíamos a usar o computador, e por ter nos mostrado como é importante a amar a arte. Minha irmã, Werônica, por sempre ter sido uma boa amiga e por, quando entrei na universidade, ter me mostrado o caminho das pedras para ter contato com a pesquisa. E minha irmã mais velha, Walquíria, por ter sido um grande exemplo para mim e também por ter me ajudado a aprender a ler. Agradeço também aos meus queridos cunhados: André, Marcus e Gabriel. Agradeço à minha orientadora, Prof. Dra. Dolores Galindo, por ter me ensinado o conceito de actante antes mesmo de eu conhecer o conceito de ator social; quando estava ainda no primeiro semestre, me tornei seu bolsista. Certamente, a boa pesquisa que fizemos há quatro anos contribuiu para eu querer, de fato, ser um pesquisador da Teoria Ator-Rede. Agradeço também, é claro, por sua orientação neste trabalho. Agradeço aos membros do Grupo Lab.TECC por me acolherem nestes últimos meses da graduação, possibilitando encontros repletos de debates teóricos incríveis. Agradeço ao grupo de pesquisa Artes da Cópia por ter sido o primeiro grupo de pesquisa a me mostrar como é incrível ser um pesquisador. Agradeço ao grupo de pesquisa MID – Mídias Interativas Digitais – por ter acreditado em mim, me deixando como responsável de alguns projetos e possibilitando o meu crescimento acadêmico. Agradeço especialmente à líder do grupo, Prof. Dra. Andréa Fernandez, e aos colegas que me levaram até ela: Sara, Renan Marcel, Talyta e Vitão. Agradeço a todos os membros do extinto Núcleo Parafernália, que me influenciaram a gostar de cinema e a escolher o curso de Rádio e TV quando estava no segundo ano do Ensino Médio. Sou especialmente grato a Madiano, Naiza, Fernando, Chicó e Dudi.

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Agradeço ao Instituto Ciranda por ensinar que não há caminho para o talento que não seja o do trabalho duro. Por ensinar que só estudando com muita disciplina é que conseguimos executar belas músicas. Nada há de magia; é o trabalho duro que constrói talentos. Agradeço de modo especial à minha amiga Rafaella por ter me incentivado a tocar cello, possibilitando momentos incríveis. Agradeço a todos os meus colegas da turma de Comunicação Social 2009/2 por tantos momentos únicos e amizades maravilhosas, que certamente levarei para o resto da vida; incluo também aqueles que nos trocaram por outros cursos. Sou particularmente devedor aos colegas da habilitação em Rádio e TV. Agradeço a todos os meus amigos, que sempre proporcionaram momentos felizes. Especialmente aos mais próximos: Julian, Wender, Jean Michel, Mila e Alexandre. Sou grato também aos amigos do clubinho dos cinéfilos, aos amigos do RPG e a todos os outros amigos que fiz durante esses 4 anos de curso pela universidade. Seria impossível mencionar todas as pessoas incríveis que a UFMT me fez conhecer. Agradeço aos membros da banca; ao Prof. Ms. Diego Baraldi, por ter sido tão certeiro em suas observações durante a qualificação, o que contribuiu muito para o aperfeiçoamento deste trabalho. E, também, agradeço ao Prof. Dr. Yuji Gushiken, que sempre foi um incentivador da pesquisa no curso, e cujos comentários foram muito importantes para este trabalho. Agradeço ao departamento de Comunicação Social e a todos os professores, especialmente à Profª. Ms.Vera. Agradeço aos técnicos administrativos do IL, especialmente ao Rudy. E também ao ECCO por disponibilizar uma sala para a minha defesa. E agradeço ao melhor lugar do mundo: o abraço fisicamente bimestral e virtualmente diário de Renan Pedroso Batista.

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O fim das Coisas

Pode o homem bruto, adstrito à ciência grave, Arrancar, num triunfo surpreendente, Das profundezas do Subconsciente O milagre estupendo da aeronave! Rasgue os broncos basaltos negros, cave, Sôfrego, o solo sáxeo; e, na ânsia ardente De perscrutar o íntimo do orbe, invente A lâmpada aflogística de Davy! Em vão! Contra o poder criador do Sonho O Fim das Coisas mostra-se medonho Como o desaguadouro atro de um rio... E quando, ao cabo do último milênio, A humanidade vai pesar seu gênio Encontra o mundo, que ela encheu, vazio! Augusto dos Anjos

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RESUMO Esta monografia aborda a ficção científica como uma inscritora de futuros alternativos, i.e., futuros idealizados no passado, que pensam um mundo onde algum aspecto da ciência e da tecnologia evoluiu de forma distópica, utópica e, ainda, heterotópica. Partindo de uma análise sociotécnica, utilizamos a noção de amostras do futuro do passado, que se baseia em conceitos da Teoria Ator-Rede, como a simetria generalizada, a caixa-preta, referências circulantes e proposições articuladas ou inarticuladas. O trabalho propõe, ainda, uma série de questões sobre o realismo e as ontologias dos fatos e ideias que aparecem na tela do cinema, bem como na ciência de forma geral. Fazemos, também, uma pequena análise do filme brasileiro Os Cosmonautas, de 1962. A Teoria Ator-Rede e as noções dos Science Studies trabalhadas nesta monografia serviram muito bem para falar sobre a ficção científica enquanto gênero; entretanto, para avançar nas análises de obras específicas, ainda precisamos, em trabalhos ulteriores, avançar nas vastas leituras sobre narrativas em TAR. Palavras-Chave: Ficção Científica, Futurismo, Ciência e Tecnologia, Teoria AtorRede, Science Studies.

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ABSTRACT This work deals with science fiction as a provider of alternative futures, i.e., futures that were sketched in the past and imagine a world in which some aspect of science or technology has evolved in a dystopic, utopic, and even heterotopic way. Starting from a sociotechnical analysis, we make use of several samples of theses futures of the past, founded on concepts from the Actor-network Theory, like generalized symmetry, black box, circulating references and articulate or inarticulate propositions. Moreover, this work proposes a series of questions about realism and about the ontologies of the facts and ideas that appear in cinema, as well as in science taken as whole. A small analysis of the Brazilian film The Cosmonauts (1962) is made. The Actor-network theory, as well as the notions generated by the Science Studies have shown themselves as useful tools to talk about science fiction as a genre; however, for the purpose of advancing in the analysis of specific works, we still need, in subsequent studies, to delve deep in the vast materials that focus on narratives in ANT. Key Words: Science Fiction, Futurism, Science and Technology, Actor-network theory, Science Studies.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, 10 1. ALGUNS OLHARES SOBRE A FICÇÃO CIENTÍFICA, 17

2. AMOSTRAS DO FUTURO, PROPOSIÇÕES, CAIXAS-PRETAS, 43 2.1 A noção da Caixa-Preta, 52 2.2 Amostras do futuro e a historicidade das coisas, 59 2.2.1 Tempo sedimentar: a história das coisas sem história, 61

3. PROPOSIÇÕES ARTICULADAS E INARTICULADAS, 65 3.1 Como analisar filmes de ficção científica na dimensão normativa dos estudos da ciência, 65 3.1.2 Princípio de Falseabilidade Stengeres-Despret, 68 3.1.3 Oito passos para fazer uma epistemologia política S-D, 72 3.2 Sobre o Texto, 77

4. OS COSMONAUTAS: DESCRIÇÕES PRELIMINARES, 80

CONCLUSÃO, 95

REFERÊNCIAS, 97

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INTRODUÇÃO

Teoria Ator-Rede e ficção científica na América Latina Ao longo de mais de trinta anos, uma abordagem nova para o estudo da ciência e do social tem se desenvolvido. Os Science Studies, que partem de uma epistemologia política, são os estudiosos da ciência com uma abordagem sociológica das associações, que romperam com diversos princípios comumente aceitos em ciências humanas (LATOUR, 1994). Este campo chamado Science Studies inclui também a Teoria AtorRede, base desse trabalho, que se diferenciou do campo de origem quando começou a abranger um maior número de temas não relacionados diretamente à ciência. Isso levou, também, a uma redefinição do campo de origem, considerando que a ampliação dos estudos do ator-rede foi baseada nos três princípios de simetria, especialmente à sua definição de actante. Estudar a sociedade é estudar a natureza e as coisas; estudar a natureza e as coisas é, também e necessariamente, estudar a sociedade, ou seja, os coletivos de actantes. Os estudiosos das ciências e das técnicas rompem com a epistemologia ao, em vez de estudarem a ciência sob o ponto de vista histórico, cronológico e moderno assimétrico, passarem a estudá-la no momento em que ela é construída. Uma vez que são os vencedores que escrevem a história, a epistemologia clássica só pode ser histórica no momento em que apresenta sua lógica das revoluções paradigmáticas, ou seu princípio de demarcação e de objetividade científica. Os Science Studies dizem que a ciência deve ser estudada no momento de sua criação. A etnografia das ciências seria a melhor abordagem para entrar em um laboratório e ver como um fato surge; tratar os cientistas como os antropólogos tratam os pré-modernos. Abrir a caixa-preta da ciência, descontruir seu conhecimento e cartografar as controvérsias seria a outra opção possível para estudar o fato científico ou o objeto tecnológico. Neste caso, abrir a caixa-preta significa um deslocamento no tempo e no espaço para o momento em que a caixa foi fechada, levando em consideração tanto vencedores quanto vencidos e seguindo as controvérsias que fizeram com que uma afirmação ganhasse a forma de fato científico; é assim que o estudioso da ciência e das técnicas deveria estudar o conhecimento e o fazer científico. É entrando pela porta de trás da ciência que conseguem entendê-la.

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Essa abordagem de uma epistemologia política reviu a forma como surge um fato, não mais focada no ato heroico e livre da força do cientista, mas incluindo cientista e objetos em um coletivo sociotécnico, no qual mediadores ativam redes de porta-vozes. Cientista é porta-voz, é representante, e não senhor e dominador. Ele dá voz aos atores ao mesmo tempo em que é tomado pela voz destes. Essa abordagem de estudar o fazer científico é muito clara: não há uma força social, um contexto social, que faça o cientista criar o fato; tampouco existe a descoberta do fato por um cientista provido de objetividade heroica; mas, em vez disso, há associações entre os atores diversos que fazem com que o fato surja, em um contexto de jogos de força e de mascaramento político e técnico das controvérsias. Talvez a maior fama dessa escola seja a de tratar qualquer objeto como um ator social; o que não é verdadeiro, já que apenas os objetos que objetam, isto é, os atores com actância, são tratados enquanto atores sociais. O actante, termo alternativo para designar a entidade que age e faz a diferença, vem para substituir o termo Ator, que é demasiadamente humano. Para a epistemologia política, o conhecimento se condensa a partir das contribuições de diversos atores que articulam e co-afetam-se entre si. São esses atores que, agindo como mediadores, ativam uma rede de porta-vozes. Stengers e Despret (apud Latour, 2002) propõem que o conhecimento é o resultado da composição de um mundo plural, mas comum. A construção do conhecimento é um processo necessariamente sintonizado com diversas entidades. Quanto mais afetado é um objeto, mais articulado ele se torna, o que faz as proposições ganharem força, e uma vez livre das controvérsias, tornam-se fato científico. Esta visão de construção do conhecimento científico não se baseia nos princípios de demarcação entre ciência e não-ciência, verdadeiro ou falso, ou nos princípios da objetividade científica. A realidade e a criação são sinônimas. Se um fato científico poderia ser estudado como uma rede de atores, um ator-rede, então qualquer coisa do social poderia ser estudada dessa forma. Assim, essa abordagem originalmente desenvolvida para estudar a ciência, ganhou cada vez mais adeptos ao ampliar seu leque de estudos para os objetos tradicionais da sociologia. O social não poderia ser encarado como uma cola, uma liga que une as pessoas, uma mão invisível, um habitus, ou uma estrutura onde os atores cumprem apenas papéis sociais preestabelecidos. Para a TAR (as siglas TAR ou ANT são as formas mais tradicionais

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para se referir à Teoria Ator-Rede; do inglês Actor–Network Theory), a sociologia clássica é demasiadamente social, no sentido de que usa o social para explicar a sociedade, ao passo que, na verdade, o social deveria ser a matéria a ser explicada, e não o ingrediente explicativo. Para essa abordagem sociológica das associações, não há grupos, há apenas formação de grupos; ou seja, quando um pesquisador for a campo, não deve definir a priori o grupo, já que não existe o social nesse sentido: grupos estão sempre sendo feitos ou desfeitos. É no momento em que os actantes se integrem a uma rede que o social surge; por isso, essa escola prima por elaborar relatos de risco, apenas descrevendo o que observam, como os antropólogos fazem com os pré-modernos. Sob esse aspecto, o que cria o social é a actância dos atores. Além disso, alguns desses atores são objetos que objetam, objetos com recalcitrância e que estão lidados à rede de associações que faz o social surgir, como mostra Latour (2012) em Reagregando o Social. Por isso, o social é, nesse sentido, algo que está sempre ocorrendo; ele precisa ser reagregado. Não se trata, portanto, de desenhar uma rede onde atores agem, mas de seguir os atores pelas redes que os mesmos criam, descrevendo suas associações. Essa rede é algo fluido, e não fixo, já que o social não é o “ingrediente”, mas sim o “bolo” pronto; os ingredientes são os atores. De modo que poderíamos estudar a rede de telefones, trens ou de internet sem estarmos fazendo pesquisa em TAR. É seguindo o Ator-Rede, descrevendo o que eles dizem sobre os mesmos, que se faz pesquisa sociotécnica. É por isso que a Teoria Ator-Rede é tão interessante para as reflexões sobre a ficção científica enquanto gênero cinematográfico. Partindo dos mesmos princípios básicos, podemos analisar os contextos científicos e tecnológicos que envolvem a história, além de também estudar o social sendo reagregado, para entendermos mais sobre os coletivos de humanos e não-humanos. Essas reflexões são importantes, pois incluem no debate social atores que não existem na atualidade, e que, por serem amostras de um futuro alternativo, têm actância o bastante para mover mundos, fazer a trama acontecer e mudar a cultura e a natureza. A ficção científica oferece importante recurso para estudar associações entre atores em ambientes futuristas. Como veremos no primeiro capítulo dessa monografia, esse gênero, que já tem mais de cem anos, parte do princípio de que a ciência e a

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tecnologia são tão importantes para a narrativa que retirá-las traria um colapso, impossibilitando que a trama continuasse. O gênero utiliza-se das contribuições da ciência para imprimir um realismo, embora não seja necessário que as tecnologias apresentadas na tela condigam com os manuais científicos. Essa impressão da realidade futurista tem o objetivo de fazer uma espécie de ensaio sobre alguma coisa. Variando em relação às suas temáticas, geralmente oferece imagens futuristas utópicas, onde a sociedade evolui para melhor; mas também imagens distópicas, em que a humanidade está encarando os resultados lancinantes do uso indiscriminado da tecnologia. O segundo capítulo retrata os principais conceitos que envolvem a TAR e a história da ciência. Partindo dos pressupostos sociotécnicos, cria-se a noção de amostras do futuro do passado no presente. Essa noção nos ajudará em nossa tarefa de descrever associações. Para chegarmos a essa noção, descreveremos o conceito de caixa-preta, historicidade das coisas, simetria generalizada, etc. Também reforçamos a natureza da ciência e do cinema como instituições que mostram proposições articuladas. A noção de proposição articulada, juntamente com todos os conceitos ligados à noção de amostras do futuro, constitui elemento central neste trabalho. No terceiro capítulo, uma metodologia para analisar os filmes de ficção científica é proposta. Essa metodologia também parte dos princípios da Teoria AtorRede e da epistemologia política, já que tratamos tanto do social quanto do científico. É aqui que apresentamos as diferenças entre as assertivas de Popper e seu princípio de demarcação entre científico e não-científico, entre verdadeiro e falso, e os princípios de simetria generalizada especialmente trazidos por Stengers e Latour, para os quais, em vez de assertivas, o melhor é trabalhar com proposições articuladas ou inarticuladas. Expomos, também, os princípios de descrição do social e como isso nos ajuda a escrever relatos de risco, em que a objetividade é alcançada através da descrição de objetos que objetam. O foco está no actante articulando uma rede de associações, a função do pesquisador é apenas descrever o que os atores dizem sobre si mesmos. Por fim, no quarto e último capítulo, fazemos as descrições preliminares do filme brasileiro Os Cosmonautas, de 1962, dirigido por Victor Lima. Este capítulo não tem o objetivo de fazer uma exaustiva análise do filme, mas sim as descrições preliminares que envolvem a obra. Levando em consideração que ainda precisamos aprofundar as leituras sobre narrativas, as reflexões exaustiva sobre o filme serão feitas

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quando o método descrito nessa monografia estiver mais maduro. Por enquanto as descrições preliminares do último capítulo foram muito importantes para refletirmos mais sobre a necessidade de dialogar com teóricos da TAR que se dedicam a reflexões sobre as narrativas, como Donna Haraway, John Law e Annemarie Mol. A escolha do filme Os Cosmonautas foi feita por causa de diversos fatores ligados ao cinema latino-americano e também fatores relacionados a própria história do gênero de ficção científica na América Latina. A ficção científica na América Latina existe pelo menos desde a década de 1880. Nomes como Machado de Assis, Augusto Emílio Zaluar, Eduardo Holmberg, Francisco Calcagno e Joaquim Felício dos Santos são associados a essa primeira leva de escritores latino-americanos que se dedicaram à ficção científica. Mas foi a partir do sec. XX que o gênero começou a ganhar certa força no continente (CAUSO, 2003). Ainda que a primeira leva de escritores traga pouca originalidade em relação ao estilo de escritores anglófonos, como mostra Andrea L. Bell (2003) em sua obra Cosmos Latinos, sobre literatura de ficção científica na América Latina e Espanha. De acordo com Bell (2003) as características mais importantes da ficção científica em nosso continente é que suas histórias se inclinam para um tipo “soft”, com temáticas voltadas às ciências humanas, psicologia, ecologia e temas sociais e políticos. Nessas histórias, também aparecem com frequência o uso de símbolos cristãos e a oposição entre fé e razão. Também há forte utilização de sátiras, alegorias e humor em temas bem amplos, como a colonização das Américas e jornadas de heróis. E embora o início da ficção científica na América Latina tenha ocorrido sob forte influência de escritores da língua inglesa, a partir dos anos de 1960 as maiores referências para o gênero foram internas. A autora também chama a atenção para as características políticas do continente, principalmente entre as décadas de 1970 e 1980, onde alguns países viveram ditaduras, o que levou muitos escritores a parar ou diminuir a produção, ou ainda emigrarem para outros continentes. Depois das décadas de 1980 o gênero voltou a ganhar força com a democratização desses países. É no Brasil, Argentina, e México onde há maior número de escritores de ficção científica da América Latina. É importante também apontar o decisivo papel da internet que tem dado grandes contribuições ao gênero, formando

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diversas comunidades virtuais de fãs e eventuais escritores, principalmente entre jovens nerds, fãs de ficção científica. (BELL, 2003) No cinema brasileiro de ficção científica destacam-se alguns exemplos de esforço para a construção de uma ficção científica cinematográfica brasileira, que tem vínculos com o próprio esforço do cinema nacional. Em 1959, por exemplo, foi lançado o filme O Homem do Sputnik, dirigido por Carlos Manga, que conta a história de um casal de caipiras que passam a viver de forma completamente diferente depois que o pioneiro satélite russo cai em seu galinheiro. Fortemente marcado pela comédia, a maior parte dos filmes brasileiros de ficção científica são também desse gênero humorístico. Outro filme importante para o cinema brasileiro é o Parada 88: O limite do Alerta, dirigido por José de Anchieta de 1977, que conta a história de uma cidade que vive enclausurada em enormes túneis plásticos devido à explosão de uma grande fábrica que despejou no ar muitas substâncias tóxicas. Os personagens precisam, então, comprar oxigênio para sobreviver. A temática do filme é importante porque foca na convivência das pessoas nesse ambiente de clausura, trata-se, também, de um drama psicológico voltado para um momento histórico importante no Brasil, o regime militar. O filme Abrigo Nuclear, de 1981 dirigido por Roberto Pires, também é bastante interessante para a construção do gênero no cinema brasileiro, principalmente porque foge do humor focando-se no drama e em uma ficção científica mais hard. O filme narra um grupo de humanos que vivem em um abrigo nuclear subterrâneo durante muitas gerações, sob um sistema bastante rígido de disciplina. Todas as pessoas que vivem nesse abrigo perderam completamente a ligação cultural com as formas de vida tradicionais da humanidade. O filme mostra como os personagens se guiam em uma busca da verdade sobre si mesmos e sobre seu passado no mundo, para tentar responder o motivo de viverem no abrigo. No quarto capítulo faremos uma breve análise do filme brasileiro Os Cosmonautas, de 1962, dirigido por Victor Lima. Nosso objetivo, neste capítulo, é fazer uma análise experimental para identificar a aplicabilidade das noções trabalhadas ao longo desta monografia. Queremos, antes de uma análise exaustiva sobre o filme, fazer uma análise que possa nos mostrar os rumos para continuar a pesquisa. A escolha do filme foi guiada pela temática peculiar da história que tenta inserir o Brasil no contexto das disputas espaciais da guerra fria. O filme representa um sonho, tanto para a ciência

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brasileira, quanto para o cinema nacional, relacionados ao êxito dos brasileiros em relação aos outros países. Também pesou na escolha todo o histórico da ficção científica com as viagens para o espaço. Como veremos no capítulo 1 desta monografia, o filme A Viagem a Lua, pioneiro na ficção científica mundial e, ainda, as análises dos argumentos da “farsa lunar” relacionadas às imagens da Apollo 11. O filme a ser analisado foi rodado apenas um ano depois da ida do primeiro astronauta russo e, também, do primeiro astronauta americano ao espaço, o que tornam a escolha ainda mais interessante pois reforçam o caráter político da ciência no momento em que o filme foi concebido. Uma característica importante desse filme é a sua ligação com a chanchada brasileira que foi muito famosa até os anos de 1950, ligada a temas carnavalescos e à imagem da malandragem carioca. Embora fosse considerada por alguns críticos como um humor vulgar e às vezes sem qualidade. Vemos isso em Os Cosmonautas tanto no caráter humorístico do filme, principalmente ao tipo de humor que é próprio da chanchada, quando pela escolha dos atores. A presença de Grande Otelo, por exemplo, é um dos fortes indícios dessa inclinação. “O efeito cômico nas chanchadas era criado pela repetição de situações comuns à comédia – o pastelão, o pastiche, o travestimento ou o simples aparecimento de um ator-personagem conhecido [como Grande Otelo ou Oscarito]” (LIMA, 2007).

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1. ALGUNS OLHARES SOBRE A FICÇÃO CIENTÍFICA

Antes de entrarmos num debate amplamente ancorado na Teoria Ator-Rede, ao qual essa monografia se propõe, torna-se necessário conhecer quais são os aspectos mais gerais da ficção científica debatidos pelo campo da comunicação nos últimos anos. Para isso, fizemos uma revisão de literatura a partir de repositórios como o Sage Journals, Wiley Online Library Journals e Periódicos Capes. A revisão foi feita em inglês, espanhol e português, além da leitura de diversos livros relacionados às teorias do cinema. Após uma seleção, demos início às leituras dos principais temas, como a história da ficção científica, o realismo dos filmes, a relação entre os diretores de cinema e os cientistas, os temas da ficção científica, o futurismo e a natureza das imagens. Neste capítulo, também se requer o conhecimento do termo diegese. Toda representação em filmes tem uma intenção global de produção de sentido, ancorada na diegese. Nas ficções científicas, a ideia de diegese é importante, pois é o ambiente diegético que deve ser analisado para a criação de contextos. Os filmes futuristas são amparados por objetos, idéias e comportamentos diegéticos que atribuem sentido ao futurismo do filme. A diegese é uma construção imaginária, um mundo fictício que tem leis próprias, mais ou menos parecidas com as leis do mundo natural, ou pelo menos com a concepção, variável, que dele se tem. Toda construção diegética é determinada em grande parte por sua aceitabilidade social, e, logo, pelas convenções, códigos e simbolismos em vigor numa sociedade. (AUMONT, 1993, p.248).

Portanto, podemos dizer, ao menos por enquanto, que a ficção científica se constitui, essencialmente, naqueles filmes que buscam conferir uma seriedade explicativa a alguma ação extraordinária ocorrida no ambiente diegético. Cardoso (2006) conta porque o romance de H.G. Wells, A Máquina de Explorar o Tempo, de 1895, é uma ficção científica. Segundo ele, esse romance é de ficção científica porque, mesmo que amplamente imaginativa, a viagem no tempo é explicada pela utilização de uma nova tecnologia. Além disso, a obra se baseia nas teorias evolucionistas de Darwin,

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e em algumas outras teorias que viam o tempo como uma quarta dimensão, o que evidencia a sua intenção de tornar a ciência um ingrediente especial da história. [...] a racionalidade, o realismo, a busca de apoio em alguma teoria que não pareça descabelada, com exploração das implicações daquilo que for postulado: eis aí pontos que diferenciam a ficção científica, por exemplo, do horror ou do maravilhoso, dentro do conjunto maior que constitui o gênero fantástico. (CARDOSO, 2006, p.19).

E embora a seriedade explicativa esteja presente na maior parte da ficção científica, o que a define enquanto gênero não é a seriedade em si. Para ser ficção científica, uma obra não precisa ser amplamente objetiva, nem ao menos fazer uma projeção real sobre tecnologia. E sim, é preciso que a tecnologia e a ciência sejam um ingrediente tão importante para a história que retirá-las dela só pudesse acarretar num colapso para a narrativa (BOVA, 1993; CARDOSO, 1998). Um bom exemplo da utilização de explicações científicas enquadrando uma história no aspecto da ficção científica é o livro Frankenstein, que, depois, foi reproduzido em diversas formas, tanto em filmes quanto em peças de teatro e histórias em quadrinhos. Aqui, também, cabe um exemplo de um tema de ficção científica que posteriormente foi comprovado pela ciência, ao mesmo tempo em que outros aspectos da história ainda permanecem no hall da ficção. Segundo Miskolci (2011), a obra, publicada quarenta anos antes de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, já preconizava sua ideia não-criacionista; dava início a uma nova ontologia humana, em que a criação está na natureza e não na obra de Deus. No caso, Frankenstein narra o homem surgindo pela ação criadora da humanidade e da ciência. Mas, por outro lado, segundo J. M. van der Laan (2010), quando o livro da jovem Mary Shelley foi lançado, a ideia de construção de um homem com partes de outros homens mortos era inconcebível no imaginário dos leitores, ainda que, neste período, a anatomia patológica já estivesse sendo desenvolvida em países como a França e a Itália (FOUCAULT, 1998), dando à ciência vastos conhecimentos sobre os mecanismos estruturais subjacentes no homem doente e conferindo fundamentos amplamente científicos às técnicas de necropsia. É por isso que, diz Laan, Percy Bysshe Shelley, o famoso poeta, teria escrito no prefácio do livro de sua esposa, na edição de 1818, comentários de famosos fisiologistas (incluindo Dr. Darwin, avô de Charles Darwin) classificando a criatura feita por Dr. Frankenstein como não impossível de ser

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realizada, explicitando, assim, o caráter central da ciência na elaboração da narrativa. É fácil imaginar o colapso que ocorreria na história caso o elemento “ciência” fosse retirado da trama. Mais importantes e mais instrutivos são os motivos subjacentes à pesquisa científica ficcional do protagonista, de um lado, e, do outro, a trajetória de seus experimentos ficcionais voltados para um fato científico subsequente. Entretanto, a realidade construída da história aponta para um futuro bem além da data de sua primeira publicação. A visão que Mary Shelley tem, de possibilidade tecnológica e científica assustadora, agora empalidece quando comparada com tudo o que a ciência e a tecnologia biomédica contemporâneas são capazes de realizar. O inimaginável, do modo como ela havia imaginado, se tornou, em muitas maneiras, real. (VAN DER LAAN, 2010, p. 299)1

Certamente, a obra de Mary Shelley agradou os fisiologistas da época. E ainda que a noção de transplantes de órgãos (incluindo membros e até a face) esteja hoje cada vez mais desenvolvida, não é aí que reside o sucesso da obra, e sim na sua capacidade de utilizar a ciência para narrar sua história ficcional. Da mesma forma que o crítico de arte não se atreve a explicar a arte para artistas, ou aqueles membros do Science Studies não explicam a ciência para o cientista (LATOUR, 2008), a ficção científica não é um gênero destinado ao cientista – e, portanto, não carece de sua aprovação. Entre ser fiel à ciência e ser fiel a um argumento narrativo que dê mais sentido à trama, o autor de ficção prefere a segunda opção, já que o objetivo do filme de ficção científica não é demonstrar, de modo fílmico, as atribuições práticas de um manual científico verdadeiro. “Na nossa visão, a melhor ficção científica presta cuidadosa atenção sobre o que significa ser humano e viver em sociedades humanas. Histórias de ficção científica são apenas histórias, mitos, narrativas, nada mais” (MILLER e BENNETT, 2008, p. 600)2.

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As traducões ao longo desse trabalho são nossas: More important and more instructive are the motives underlying the fictional scientific research of the protagonist on the one hand and on the other the trajectory of his fictional experiments toward subsequent scientific fact. Nevertheless, the constructed reality of the story points to a future far beyond the date of its first publication. Mary Shelley’s vision of frightening scientific and technological possibility now pales when compared with all that contemporary biomedical science and technology is able to accomplish. The unimaginable as she imagined it, has in many ways come true (VAN DER LAAN, 2010, p. 299). 2 .“In our view, the best science fiction accords careful attention to what it means to be human and to live in human societies. Science fiction stories are just stories, myths, narratives, nothing more” (MILLER e BENNETT, 2008, p. 600)“.

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Tome-se, por exemplo, o filme A Última Esperança da Terra, um longametragem americano de 1971 dirigido por Boris Sagal, baseado no livro I Am the legend. O filme mostra os efeitos devastadores de uma guerra biológica ocorrida entre China e União Soviética, na qual uma bactéria elimina a maioria da população da terra. Os humanos sobreviventes sofreram uma mutação que os impedia de viver durante o dia, pondo-os em condições análogas à dos “vampiros”. A bactéria descrita no filme não existe de fato, mas a possibilidade de sua existência é o que torna a narrativa interessante, ao expressar uma condição vampiresca em termos científicos. No que diz respeito às modalidades de ficção científica, Cardoso (2006) distingue dois tipos. O primeiro deles é a ficção científica soft, que é baseada em teorias vindas das ciências humanas e sociais, em que o futuro imaginativo é pensado com situações de aplicação de ordem cultura e social, e não apenas tecnológica. O segundo tipo, mais clássico, é a ficção científica hard, que imagina universos buscando referências em disciplinas como física, química, astronomia e biologia. Fahrenheit 451 é um filme francês de 1966, dirigido por François Truffaut, e constitui uma clássica ficção científica soft baseada em hipóteses das ciências humanas, em que, num futuro imaginário, todas as formas de escrita e leitura são proibidas por um governo totalitarista. Todos que são pegos lendo acabam presos para uma reeducação, e os lugares que contêm muitos livros são incendiados pelos “bombeiros”. Tudo isso até que um desses bombeiros começa a furtar livros para ler, fazendo com que seu comportamento e visão de mundo se transformem por completo. A história representa as modificações que a ausência da leitura traria para a sociedade e como ter acesso aos livros poderia ser empoderador. Um exemplo de ficção científica hard é o filme A viagem fantástica, também de 1966, dirigido por Richard Fleischer. Trata-se de um curioso longa-metragem americano que conta a história do desenvolvimento de tecnologias de miniaturização para encolhimentos de objetos e pessoas. Todavia, esse encolhimento é temporário, e, quando um cientista descobre uma forma de fazê-lo durar por tempo indeterminado, ocorre um atentado que o põe em coma com um coágulo no cérebro. Um grupo de pesquisadores, com o objetivo de salvar a vida do cientista e também a sua descoberta, decide encolher um submarino para irem até o cérebro do cientista, para retirar o

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coágulo. Eles têm apenas uma hora para fazer isso, antes que o submarino volte ao tamanho original. É claro que nenhuma dessas definições são mutuamente excludentes. Isso quer dizer que não deve existir um filme puramente soft ou hard. Apenas podemos identificar uma predominância entre um ou outro formato temático. Por exemplo, o filme francês Alphaville, de 1965, narra a história de uma população futurista dominada por um supercomputador que abole todos os sentimentos. Aqui, um elemento hard, a existência de um supercomputador capaz de produzir efeitos devastadores e em massa na mente das pessoas, possibilita uma história de cunho soft: quais efeitos antropológicos, políticos, psicológicos e sociais nasceram da ausência de sentimentos na vida em sociedade? Essas histórias de ficção científica apresentam com frequência futuros utópicos, heterotópicos ou distópicos em suas narrativas. Utopia, heterotopia e distopia são palavras que procuram designar lugares. Podemos ver “topos”, do grego “lugar”, por exemplo, em diversas ciências que procuram descrever, justamente, o ambiente, como é o caso da topografia (neste caso como um prefixo). A primeira a surgir dessas três palavras foi a “utopia”, que segundo Freitas (2008) foi criada por Thomas More em 1516 em seu livro “Utopia”. Nesta obra More descreve uma ilha imaginária em que propõe um Estado perfeito e uma civilização ideal. A utopia, que significa literalmente “não-lugar”, não está amparado no plano da referência com o real, mas sim no plano estritamente ficcional. Já que uma utopia trata, necessariamente, de um lugar que não existe. Turcherman (2003) ainda nos diz que a modernidade é um sonho de realização da utopia através da flecha irreversível do tempo cronológico, onde o mito do progresso se impõe como o caminho para realizar essas ideias utópicas. Atualmente a palavra utopia é designada para qualquer pensamento ideal e irrealizável, ou até fantástico sobre algum aspecto da cultura humana. Diversos teóricos do social foram considerados utópicos porque idealizaram pensamentos sociais sobre a humanidade que dificilmente poderiam ocorrer. Mas podemos resumir o que o termo quer dizer da seguinte forma: São os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas de qualquer forma, essas utopias são espaços que

22 fundamentalmente são essencialmente irreais (FOUCAULT, 2009, p. 415).

A distopia, por sua vez, é exatamente o oposto da utopia. Se a utopia pensa em um futuro belamente ideal e fantástico para a civilização, a distopia pensa em um futuro completamente sombrio e lancinante. Se a utopia é amplamente baseada no fantástico e no ficcional, a distopia é baseada no real, no aqui e agora, num aviso para a sociedade sobre todas as formas ruins que suas ações podem trazer. Distópico significa literalmente “lugar de dificuldade, de dor”, é algo perfeitamente localizável e com equivalente real (embora seja uma relação de equivalência e não uma relação direta), já que são projeções dos medos de uma sociedade. No texto “outros espaços” Michel Foucault (2009) elabora o conceito de heterotopia, que parte do conceito da utopia. Mas esse termo se relaciona tanto com distopia quanto com utopia. Já que não está vinculado apenas à espaços imaginários ou a espaços reais, mas sim a uma mistura dessas duas modalidades (Freitas, 2008). Heterotopias são “[...] lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todas os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis” ( FOUCAULT, 2009, p. 415).

Nessa categoria de lugares do espaço do outro, espaço do diferente, há ainda as heterotopias de crise e as heterotopias de desvio. As heterotopias de crise são aqueles lugares proibidos ou sagrados, como as viagens após o casamento para a “defloração” da mulher, o cemitério ou o serviço militar. As heterotopias de desvio constituem aqueles lugares destinados às pessoas que se encontram isoladas ou segregadas devido a algum desvio, como as clinicas psiquiatricas e as prisões. As heterotopias tem um funcionamento específico nas sociedades, podendo variar de sociedade para sociedade. Esses espaços outros podem, ainda, justapor vários lugares com características diferentes. Elas também são heterocronias, por estarem ligadas ao tempo, funcionando como outros espaços quando ocorre uma ruptura temporal entre o espaço normal e a heterotopia, como no museu, no cemitério e as cidades de veraneio. As heterotopias estão ao mesmo tempo fechadas em si mesmas como abertas para que o exterior entre.

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Podem-se também, com muita frequência, expressar temas atuais ou históricos em narrativas futuristas, como em Dune, filme americano de 1984, que é um dos maiores clássicos da ficção científica. Ele narra o longínquo ano de 10.191 d.C., quando a humanidade se espalhou pelo universo. Neste filme, uma especiaria com propriedades de prolongar a vida, expandir a consciência e ajudar em viagens interestelares torna-se o motivo de intrigas e disputas de poder; essa especiaria é encontrada em um planeta constituído por um grande deserto, conhecido como Duna. Embora a humanidade tenha progredido em termos tecnológicos e se expandido para diversos planetas, as disputas pelo poder apenas fazem repetir o que já fora visto em toda a história da humanidade, traçando até mesmo referências às formas feudais de organização política, e trazendo, contextualizados em ambientes futuristas, os mesmos problemas. Representando a evolução científica e tecnológica sem a presença fundamental de um verdadeiro desenvolvimento ético e moral das sociedades humanas. Embora possam ser baseados no presente, deixando, portanto, abertas as temáticas da ficção científica no que diz respeito à sua problematização e conflitos narrativos, de forma geral os filmes apresentam formas padronizadas de retratar o futuro. Vizcarra (2012), em uma análise sobre a relação da ficção científica com a modernidade, diz que os filmes de ficção científica apresentam ao menos cinco formas de representar o futuro: (1) o filme de contato, em que se narram encontros com extraterrestres, seja em invasões alienígenas ou em viagens do homem pelas galáxias; esse tipo de filme descreve guerras onde os extraterrestres têm a finalidade de exterminar a espécie humana, ou encontros nos quais o objetivo é a cooperação entre homens e E.Ts para um fim comum; (2) os filmes de contingência, que narram as múltiplas vertentes das crises ambientais e os efeitos colaterais e destrutivos do avanço tecnológico, podendo incluir mutações genéticas em animais criando verdadeiras monstruosidades derivadas da interferência humana na natureza; (3) filmes de rebeliões, que narram histórias em que grupos humanos fazem revoluções contra impérios muitas vezes alicerçados na tecnologia para dominar a vida das pessoas; (4) filmes de exploração, em que ocorrem grandes expedições científicas, ou mesmo viagens comuns, geralmente para planetas distantes ou para regiões improváveis da Terra; e (5) filmes de alteridades, que apresentam as grandes mudanças sociais causadas pelas tecnologias, principalmente as relacionadas à comunicação e às formas de vida e cultura

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globais da humanidade; eles mostram como o homem do futuro lida cultural e socialmente com os avanços da tecnologia global. Outra questão interessante é sobre como os filmes de ficção científica costumam apresentar a imagem da ciência. Após realizar um vasto estudo, que analisou mais de 220 filmes de ficção científica, Weingart e Muhl (2003) identificaram uma série de padrões de como a ciência geralmente é apresentada no cinema. As questões levantadas pelos pesquisadores são variadas. Eles queriam saber, por exemplo, quais eram as disciplinas mais populares nos filmes de ficção científica; nessas análises, descobriram que as ligadas à medicina são as que mais dispõem de representantes nas telas do cinema. Outro tema abordado pela pesquisa era sobre o perfil dos personagens cientistas desses filmes; a grande maioria eram homens entre 35 e 49 anos que se apresentavam mais como pessoas discretas, em contraponto à ideia mais clichê de cientista maluco. Menos de um quinto dos personagens cientistas analisados nesse estudo são mulheres, e, quando são, geralmente são apresentadas como mulheres atraentes e jovens. No que diz respeito ao perfil ético dos cientistas apresentados nos filmes analisados, Weingart e Muhl (2003) mostram ainda, que existem alguns tipos de representação muito constantes. O cientista como um ser bom e “benevolente” é um dos tipos; outro é o famoso “cientista maluco”; há, também, os “ambivalentes”. Enquanto os “benevolentes” são retratados como pessoas ingênuas quando têm que lidar com o interesse de pessoas poderosas, os “ambivalentes” são facilmente manipuláveis; idealistas, embora facilmente corrompidos. No que diz respeito às formas de os cientistas adquirirem conhecimento, geralmente os filmes mostram os pesquisadores como aqueles que fazem experimentos com humanos e animais, além dos cientistas que fazem descobertas por serem gênios, ou os que descobrem por acidente. Os autores, Weingart e Muhl (2003), ainda dão um parecer, nos filmes analisados, sobre a forma como o trabalho do cientista geralmente é demonstrado. Apresentações dos métodos científicos em questão só ocorrem se existirem motivações puramente narrativas: eles são apresentados como problemas ligados ao próprio desenrolar da história. Quando os métodos não têm esse tipo de importância, a representação do trabalho do cientista no cinema tende a se concentrar somente nos resultados por ele obtidos. Alguns cientistas, especialmente os “cientistas malucos”, são

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apresentados como gênios solitários, em seu laboratório no porão, e, geralmente, com objetivos que fogem às normas éticas da ciência. Em pouco mais da metade dos filmes analisados por eles, Weingart e Muhl (2003), constatou-se um desafio aos valores éticos de forma geral, o que levou a um conflito entre a ciência retratada no filme e as perspectivas históricas. Geralmente, as pesquisas médicas são as que mais estão envolvidas com problemas éticos nos filmes. Em quase todos os gêneros de ficção científica, a manipulação e criação da vida é um tema dominante. No que diz respeito à história do gênero, algumas questões podem ser levantadas já em relação ao próprio verbete Ficção Científica. Segundo Cardoso (1998) a expressão Ficção Científica data de 1929, e é atribuída à Hugo Gernsback, embora a criação de histórias de ficção científica estivesse ocorrendo havia muito mais tempo. Alguns autores e críticos ingleses preferem utilizar a expressão romance científico, como uma tentativa de diferenciação da linguagem norte-americana nesse gênero; apesar desse esforço, ainda há predominância da expressão ficção científica como forma geral de referência ao gênero. Embora o romance Frankenstein, de Mary Shelley, que foi publicado por volta de 1830, deva ser, sem sombra de dúvidas, um dos primeiros romances de ficção científica (LANN, 2010), é por volta de 1860 que o gênero ganha força, especialmente quando os romances de Júlio Verne começaram a se proliferar pelos círculos de leitores. Contudo, foi em 1901, com as publicações dos primeiros livros de H. G. Wells, especialmente o livro Os Primeiros Homens da Lua, que a ficção científica teve sua real fundação tal como a vemos hoje. E, embora diversos outros autores também estivessem produzindo ficção científica nesse mesmo período, esses dois últimos nomes são considerados os “pais fundadores” do gênero. (CARDOSO, 1998) A história do surgimento da ficção científica no cinema é bastante curiosa e bonita. Em seu livro introdutório ao cinema, Jean-Claude Bernardet descreve um dos acontecimentos

mais

importantes

da

história

da

imagem

em

movimento:

No dia da primeira exibição pública de cinema - 28 de dezembro de 1895, em Paris -, um homem de teatro que trabalhava com mágicas, Georges Mélies, foi falar com Lumiere, um dos inventores do cinema; queria adquirir um aparelho, e Lumiere desencorajou-o, disse que o “Cinematógrapho" não tinha o menor futuro como espetáculo, era um

26 instrumento científico para reproduzir o movimento e só poderia servir para pesquisas. Mesmo que o público, no início, se divertisse com ele, seria uma novidade de vida breve, logo cansaria. Lumiere enganou-se. Como essa estranha máquina de austeros cientistas virou uma máquina de contar estórias para enormes platéias, de geração em geração, durante já quase um século? (BERNADET, 2000, p. 11).

Depois desse episódio, Méliès conseguiu um Cinematógrapho em Londres e iniciou sua carreira de cineasta, colocando em prática todos seus conhecimentos de ilusionismo e vários truques cinematográficos. Todos esses esforços foram feitos para dar uma impressão de realidade às suas histórias. Sua realização máxima talvez seja o filme Le Voyage Dans la Lune (A viagem à Lua, de 1902), que é considerado como sendo o primeiro filme de ficção científica (ainda que uma proto-ficção científica), e também o pioneiro em usos de efeitos especiais como trucagens e pólvora. Graças à impressão da realidade, o cinema vem, nesses mais de cem anos, agindo ativamente na construção do imaginário das pessoas, especialmente na ficção científica e na fantasia, gêneros que, como veremos, têm ampla correlação. A primeira década dos anos de 1900 foi muito frutífera para a tecnologia e para a ciência, situação que progrediria cada vez mais rápido com o passar dos anos. Na ciência, estavam sendo desenvolvidas a Lei de Planck da radiação de corpo negro (publicada em 1901), a Terceira Lei da Termononâmica por Walther Nernst (publicada em 1906) e a descoberta da radioatividade por Marie Curie (entre 1896 e 1900). Além disso, a física quântica de Max Planck se desenvolvia. E foi no início desta década que Albert Einstein publicou a sua teoria da relatividade, dando um grande salto no pensamento físico e desencadeando um importante avanço metodológico na ciência. Os primeiros voos de avião dos irmãos Wright foram feitos ainda em 1901 e Santos -Dumont fez a primeira decolagem do seu 14-bis em 1906. Nesta mesma década, é desenvolvido o motor a Diesel e tem início a produção em massa de automóveis. O primeiro Zeppelin voa. O primeiro rádio-receptor é feito. O primeiro aparelho de arcondicionado é criado. O detector de mentiras era inventado. A lâmpada de néon era apresentada à indústria. A primeira tecnologia de radiodifusão é inventada. A ciência se torna cada vez mais desenvolvida, e a vida na sociedade, cada vez mais ligada a diversos artefatos técnicos. [...] a ciência como horizonte de plausibilidade, legitimador de uma visão de mundo nova: a Revolução Científica começa no século XVII, mas demora a influir generalizadamente nas formas de percepção do

27 mundo e das coisas, o que se dá sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII e tem seu auge no século XIX e na primeira metade do século XX ”. (CARDOSO, 2006, p. 22).

É nesse contexto de grandes controvérsias científicas e avanços tecnológicos que Georges Méliès faz o seu primeiro filme de ficção científica. As descobertas da física de Einstein e o desenvolvimento da aviação certamente contribuíram para reforçar o imaginário de viagens ao espaço. Anos antes, dois livros de ficção científica sobre o tema haviam sido lançados e estavam fazendo bastante sucesso. Eram o Da Terra à Lua (1865) de Júlio Verne e Os primeiros Homens na Lua (1901) de H.G. Wells. Estes livros foram usados para basear parte do roteiro de A Viagem à Lua. O cinema já estava se desenvolvendo neste período, e vários filmes já tinham sido rodados pelos Lumière e outros entusiastas do cinema. Entretanto, enquanto os filmes dos Lumière retratavam eventos do cotidiano, Georges Méliès tinha uma grande peculiaridade: Diferentemente dos Lumières, Georges Mélièlis sempre gravou em seu estúdio, numa ação teatral dianteda câmera, em que seus filmes mostravam eventos fantásticos que não poderiam ocorrer na “vida real”. Embora todos os filmes de Melièlis se conformassem ao estilo “tableau” padrão do período, eles também estavam repletos de aparições e desaparecimentos mágicos, realizados por meio daquilo que os cinematografistas chamam de “stop action”, isto é, parando a câmera, fazendo o autor entrar ou sair da cena, e depois reiniciando a câmera para criar a ilusão de que o personagem simplesmente desapareceu ou se materializou (NOWELL-SMITH, 1996, p. 39)3

Méliès fez mais de 500 filmes e construiu o primeiro estúdio cinematográfico da Europa. Suas técnicas foram muito inovadoras no tocante aos efeitos visuais e à criação do roteiro, mas, em termos de linguagem cinematográfica, ele avançou muito pouco. A maioria de seus filmes era rodada com planos gerais, sem a utilização de enquadramentos mais funcionais e de uma montagem mais especializada. Além disso, seus filmes foram precursores na técnica de pintar quadro a quadro os fotogramas. Isso possibilitava resultados incríveis de filmes coloridos já nos primeiros anos de 1900. A 3

Unlike the Lumières, Georges Mélièlis always shot in his studio, staging action for the camera, his films showing fantastical events that could not happen in 'real life'. Although all Mélièlis's films conform to the standard period tableau style, they are also replete with magical appearances and disappearances, achieved through what cinematographers call 'stop action', that is, stopping the camera, having the actor enter or exit the shot, and then starting the camera again to create the illusion that a character has simply vanished or materialized (NOWELL-SMITH, 1996, p. 39).

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principal característica dos filmes desse período foi a inovação das técnicas de produção de efeitos visuais. O “trickfilm” foi um dos primeiros gêneros de filme. Embora primariamente identificado com o trabalho do mágico-francêstornado-cineasta Georges Méliès, muitos desses filmes foram feitos em diversos países entre 1898 e 1908. Durante a fotografia, a câmera era paralisada, uma mudança era feita (por exemplo, uma garota era substituída por um esqueleto), e a fotografia era reiniciada. (NOWELSMITH, 1996, p. 129)4.

Nesta mesma linha, A Viagem à Lua foi um filme feito quase que totalmente dentro do estúdio. Diversos efeitos especiais e “mágicos” foram utilizados para imprimir a realidade com mitologias universais da cultura humana. Méliès une as proposições à fetiches. A invenção do avião e o desenvolvimento da física quântica e da teoria da relatividade podem nos dar uma ideia de que a comunidade científica estava debatendo temas ligados à astrofísica. Depois desse filme outros também narraram a ida do homem à lua, como Frau im Mond (A mulher na Lua, de 1929) de Fritz Lang, que conta uma viagem à lua feita para buscar ouro; toda a tripulação acaba morta, restando apenas um homem e uma mulher, sozinhos em um paraíso, como no Gênesis bíblico. A história de Méliès narra a ida de homens para nosso satélite natural utilizando uma enorme bala. Logo no início do filme, um orador demonstra com pontilhados, durante um encontro, a trajetória entre a Terra e a Lua, e explica o procedimento para seus colegas. Primeiro, declara ele, um grande canhão deverá ser construído. Deste canhão, partirá um projétil tripulado que deverá ser mirado na Lua; o objetivo é que a comunidade de cientistas possa conhecer o que há neste astro tão importante para a humanidade. A proposta causa indignação nos demais: como isso poderia dar certo? Como poderia ser feito? Nada disso é falado, mas a pantomima é capaz de dizer tudo. Alguns se exaltam, ficam bravos. Agressões ocorrem, objetos são lançados. O homem que faz a proposta de ir à Lua é um gênio ou um louco? O homem que estava impaciente e solitário no início da cena acha que é louco. Seus demais colegas, todavia,

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The 'trick film' was one of the earliest film genres. While identified primarily with the work of the French magician turned film-maker Georges Méliès, many such films were made in several countries between 1898 and 1908. During photography the camera would be stopped, a change made (for example, a girl substituted for a skeleton), then photography resumed (NOWELL-SMITH, 1996, p. 129).

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são mais pacientes que ele e parecem estar querendo ver no que tal ideia vai dar. Depois de mais debates eles decidem que sim, irão à lua. Nesta primeira passagem do filme de George Méliès é apresentada a primeira proposição que torna toda a história possível: A viagem à lua é possível graças ao disparo de um projétil oco e tripulado. Este projétil é similar a uma bala de revólver e no disparo deve ser usado o mesmo dispositivo das armas de fogo: a pólvora. Neste ponto do filme, ainda há muitas controvérsias (notamos cientistas que são contrários ao experimento e que acham que ele não dará certo), embora já haja uma proposição firme sobre o assunto, proposto pelo astrônomo orador e corroborado como possível pelos demais. No decorrer do filme, outras proposições articuladas são apresentadas para compor a história, como a possibilidade de habitar a lua sem o auxílio de bombas de oxigênio, ou a revelação de que a lua é habitada por extraterrestres hostis. Está claro que essa ideia de o homem ir à Lua tripulando uma bala gigante disparada com pólvora, ou que na Lua existam homens verdes hostis não corresponde com a verdade encontrada pela missão Apollo 11. Mas, será que, por causa disso, o filme de Méliès deixa de ser uma ficção científica e passa automaticamente para o campo da fantasia? É claro que não! O ingrediente “ciência” da história é o que faz com que ela se mova, assim como no já citado livro A Máquina de Viajar no Tempo de H.G.Wells. Neste caso, o princípio de demarcação não é aquele mesmo utiliza o por Popper (1972); ou seja, quando uma história deixa de ser considerada na lógica popperiana como científica, ela não deixa de ser uma ficção científica. Embora ambas, a máquina do tempo e a bala gigante, sejam meramente imaginativas, elas são mecanismos articulados que movem a trama; são, no ambiente diegético, a explicação racional a partir de uma tecnologia nova. Aesterespeito, David Kirby (2003) diz que:

O objetivo da mídia ficcional não é delinear comunicações “acuradas/educativas” sobre ciência, mas produzir imagens de ciência que produzam entretenimento. Essas imagens têm um impacto nas concepções dos americanos sobre ciência, seja por encorajar excitação, seja por instilar medo em relação a ciência e tecnologia. É importante notar que “ciência” no contexto deste ensaio não é definida como conteúdo substantivo; em vez disso, é definida como um gênero, tema ou representação convencionada na ficção. Representações ficcionais da ciência abarcam mais do que apenas uma coleção de

30 “fatos”. Elas incluem os elementos significantes no processo gerador de fatos chamado ciência – um corpo de conhecimentos, os métodos da ciência, as interações sociais entre cientistas, equipamento de laboratório, etc. Ademais, as representações ficcionais da ciência, especialmente em mídias visuais como a televisão e o filme, envolvem a produção e a apresentação de uma imagem da ciência, tenha a “ciência” algo a ver com a “ciência real” ou não. (KIRBY, 2003, p. 263)5.

O filme dirigido por Franklin J. Schaffner, Planeta dos Macacos, de 1968, narra a história de um experimento feito para provar uma das hipóteses da teoria da relatividade, a saber, que viajar na velocidade da luz com uma nave espacial faz com que o tempo passe de forma diferente do que acontece com os habitantes da terra. Depois de uma viagem de dezoito meses na velocidade da luz, os astronautas retornam à terra, onde, provando que a teoria estava certa, já haviam se passado mais de dois mil anos desde a partida. Porém, nesse tempo, diversos eventos ocorreram: o planeta está, agora, dominado por macacos, e a espécie humana está escravizada. Neste caso, dois aspectos são levados em conta; de um lado, a teoria científica aceita pela comunidade de que o tempo passaria mais rápido para os usuários de uma nave espacial na velocidade da luz; o outro, puramente imaginativo e controverso, é que, em dois mil anos, a terra será dominada por macacos. Miller e Bennett (2008) narram uma interessante palestra dada em 2006 por Christine Peterson, vice-presidente de Política Pública do Instituto Foresight, na qual dizia que, para fazer previsões em longo prazo acerca da evolução das tecnologias e da ciência, o instituto deveria focar na racionalidade técnica. É claro que uma organização como a que Christine preside, argumenta os autores, deve estar preocupada com a racionalidade técnica, já que não podem basear em ficções científicas suas previsões sobre fatos científicos. Mas, para os autores, a maioria dos pensamentos em longo prazo 5

The point of fictional media is not to devise “accurate/educational” communications about science, but to produce images of science that are entertaining. These images have an impact on Americans’ conceptions of science by either encouraging excitement or instilling fear about science and technology. It is important to note that “science” in the context of this essay is not defined as substantive content; rather it is defined as a genre, theme, or conventional representation in fiction. Fictional depictions of science encompass more than just a collection of “facts.” They include the significant elements in the factproducing process called science—a body of knowledge, the methods of science, the social interactions among scientists, laboratory equipment, etc. In addition, fictional depictions of science, especially in visual media such as television and film, involve the production and presentation of an image of science, whether or not the “science” has anything to do with “real science.” (KIRBY, 2003, p. 263)

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sobre as tecnologias não deveriam se limitar à racionalidade técnica. Deveria haver uma abordagem em que o social fosse enfatizado tanto quanto a técnica. Mesmo a mais hard das ficções científicas, a que está profundamente envolvida com respeitar as leis da física, centra-se em personagens. As pessoas fazem as histórias ganharem vida. Esforços convencionais em analisar os significados a longo prazo das novas tecnologias na sociedade frequentemente parecem perder de vista as pessoas, e especialmente os indivíduos, até mesmo em fóruns de engajamento público. A ficção científica, por outro lado, se deleita nelas: suas forças, suas fraquezas, suas ambições, seus desejos, seus ciúmes. Todavia, é errado ver a ficção científica como relacionada apenas a indivíduos; as narrativas de ficção científica giram em torno de indivíduos que habitam sociedades, e a melhor ficção científica é aquela que nos permite, por meio de histórias individuais, ver sociedades bem diferentes das nossas ganhando vida. (MILLER e BENNETT, 2008, p. 600)6.

Muitos filmes de ficção científica contribuem com uma visão até mistificada da ciência, nem sempre mostrando um contexto que condiz com a realidade. Embora a ficção científica queira apresentar imagens críveis para a sua audiência, é na narrativa que o foco está contido. A ciência é um ingrediente fundamental, mas que geralmente não é utilizada para dizer “não” à criatividade cinematográfica. Em vez disso, é preferível utilizar a ciência para dizer “sim” ao que a imaginação propõe. “[...] as imagens, clichês e metáforas usados pelos cineastas e roteiristas para retratar a ciência e os cientistas são um reflexo das imagens populares da ciência, dentro da medida em que os filmes são um reflexo da cultura popular” (WEINGART e MUHL, 2003, p. 282).7 David Kirby (2003), um importante estudioso britânico da comunicação científica, acrescenta que muito tem sido e estudado e debatido sobre comunicação científica nos meios de comunicação de massa. O estudo sobre esses meios tão vastos, 6

Even the hardest science fiction, the stuff deeply concerned with getting the laws of physics right, centers on characters. People make stories come alive. Conventional efforts to analyze the long-term meanings of new technologies in society often seem to lose people, and especially individuals, even in forums of public engagement. Science fiction, on the other hand, revels in them: their strengths, their weaknesses, their greeds, their desires, their jealousies. Yet, it is wrong to see science fiction as merely about individuals; science fiction narratives are about individuals who inhabit societies, and the best science fiction allows us, through individual stories, to have societies very different from our own come alive. (MILLER e BENNETT, 2008, p. 600) 7

“[…] the images, clich´es, and metaphors used by filmmakers and scriptwriters to portray science and scientists are a reflection of the popular images of science, insofar as their films are a reflection of popular culture” (WEINGART e MUHL, 2003, p.282).

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que podem incluir programas de televisão, rádio, documentários, revistas, etc., ainda tem deixado a desejar quanto às formas ficcionais de comunicação científica. A grande variabilidade da compreensão pública de ciência torna as coisas cada vez mais difíceis. Diversos cientistas, afirma ele, acreditam que a comunicação da ciência em base ficcional é, na verdade, prejudicial para a visão do público sobre a ciência e para o próprio empreendimento científico, principalmente quanto à visão de que os cientistas sejam pessoas malucas que vivem basicamente em laboratórios de porão. Embora não haja compromisso com a ciência ou com o verdadeiro em detrimento do falso, muitos filmes de ficção científica são feitos com a contribuição de cientistas, que dão consultorias sobre temas de ciência. O objetivo é criar uma história crível, afinal. Kirby aponta que o que está por trás dessas consultorias é a ênfase no “realismo”; levar o espectador a uma possibilidade de deslumbramento racional do desconhecido. Vários motivos óbvios podem levar o cineasta a procurar o cientista; outrossim, diversas questões motivam os cientistas: desde a diversão até à possibilidade de contribuir para que o público conheça o verdadeiro lado do fazer científico; sem esquecer, é claro, o ganho financeiro alto para executar uma tarefa, que para ele, cientista, não é tão difícil. Por exemplo, o paleontólogo e artista Douglas Henderson, que, segundo Kirby, atuou como consultor em Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros, de 1993, filme dirigido por Steven Spielberg, e Dinosaur, de 2000, dirigido por Ralph Zondag e Eric Leighton, assim o fez apenas por causa do grande ganho financeiro, que o possibilitaria, posteriormente, realizar seus verdadeiros desejos profissionais, O futurismo é um dos temas mais frequentes em filmes de ficção científica. A lógica da evolução tecnológica parece dominar as mentes criativas na hora de conceber seus filmes. Se os criadores querem apresentar possibilidades alternativas para o social e para a cultura humana, desenvolvem, eles mesmos, tecnologias e teorias científicas que possam lhes proporcionar um “ensaio sobre alguma coisa”, ou simplesmente se baseiam em teorias já concebidas para imaginar ambientes outros. Esses ensaios sobre o comportamento e a cultura humana frente a outros contextos tecnológicos e científicos geralmente se ambientam no futuro. Metrópolis (1927), filme de Fritz Lang, já apresentava, no contexto do fortalecimento do gênero de ficção científica, a visão distópica e futurista de uma

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grande cidade do século 21 dominada por um megaempresário. Neste filme, o futuro da sociedade é imaginado basicamente como a divisão entre, de um lado, os colaboradores desse empresário que controla tudo, e, de outro, a classe trabalhadora, que é dominada pelas máquinas. O filme traz imagens de carros voadores, robôs e vários edifícios e máquinas, ambientando o futuro tanto na forma visual, na apresentação das novas tecnologias, como na política de organização e controle. Esse futuro, entretanto, é amplamente baseado no presente e no contexto da criação do filme, já que “[...] um filme é também ‘um documentário sobre sua própria filmagem’: [...], o filme, ao juntar pedaços do que foi gravado na filmagem, fornece uma representação, uma imagem - temporalmente estranha às vezes - dessa filmagem” (AUMONT, 1993, p.170). Desse modo, sempre existirão futuros de passados específicos. A humanidade muda sua visão sobre o que acredita que acontecerá no futuro de acordo com algumas variáveis de sua vida presente, como diz Abbott: Tomo como fato que a única maneira de pensarmos acerca do futuro seja mediante um entendimento do passado e do presente. Toda história sobre um futuro possível, seja um demógrafo prevendo a população daqui a dez anos, seja um escritor especulativo imaginando o próximo milênio, é uma projeção de algum aspecto da história humana. Em cada uma delas, os conceitos que utilizamos e os comportamentos que imaginamos derivam de nossa experiência do presente... e de nosso conhecimento e interpretação do passado. (ABBOTT, 2007, p. 123)8.

Ao mesmo tempo, a criação de mundos alternativos também é calcada em individualismos da criação. Isso quer dizer que, em alguns aspectos, imaginar um mundo futurista é projetar uma imagem e uma expectativa do presente, como vimos, mas, em outros aspectos, é uma decisão arbitrária da mente criativa. A ficção científica pode oferecer visões do futuro que são densamente detalhadas, não apenas porque obras individuais se empenhem em criar mundos alternativos bem vívidos, mas, também, porque as histórias em separado frequentemente retornam para imagens e temas 8

I take as given that the only way that we can think about the future is through our understanding of the past and present. Every story about a possible future, whether a demographer predicting population ten years hence or a speculative writer imagining the next millennium, is a projection of some aspect of human history. In every instance, the concepts that we deploy and the behaviors that we imagine derive from our experience of the present . . . and from our knowledge and interpretation of the past(ABBOTT, 2007, p. 123).

34 de importância, remodelando-os e lhes adicionando mais profundidade (THURS, 2007, p. 76)9.

Vários filmes podem servir como exemplo desses futurismos. Como em Blade Runner: O Caçador de Andróides, filme de 1982, dirigido por Ridley Scott, no qual a humanidade inicia a colonização espacial criando réplicas de humanos que são exatamente iguais aos originais, porém mais fortes e ágeis, para que sobrevivessem à colonização. Depois de acontecimentos políticos, a presença dos replicantes na Terra fica proibida. Por isso, cria-se uma força policial especial para caçar e matar esses clones. Também pode ser um exemplo de filme futurista THX 1138; no caso, um futurismo distópico. Esse filme americano dirigido por George Lucas, narra uma sociedade subterrânea dominada por androides que obrigam a população a consumir drogas; todas as formas de emoções são proibidas. THX 1138 é um desses moradores dominados que acaba se libertando do sistema e chegando à superfície. Um dos filmes mais simbólicos quanto ao futurismo é 2001: uma odisseia no espaço, longa-metragem americano de 1968 dirigido por Stanley Kubrick. É considerado um dos maiores exemplares do gênero ficção científica, tendo influenciado todos os posteriores filmes ambientados no espaço sideral. O filme trata sobre a evolução cultural e tecnológica da humanidade, além de também tratar de vida extraterrestre e apresentar diversas tecnologias de forma pioneira. Ele narra a evolução da cultura e da tecnologia humana, desde a utilização de um osso como arma até às modernas estações espaciais; o conhecimento humano é representado por um enorme bloco de pedra negro. Já em O Planeta Proibido, filme de 1956 dirigido por Fred M. Wilcox, uma viagem é feita para um distante planeta no ano de 2200; o objetivo é descobrir o que havia acontecido com uma expedição enviada vinte anos antes, mas que jamais retornara. Quando a nave chega ao planeta, é envolvida por uma grande força. Eles descobrem que todos os membros da expedição anterior estavam mortos, com exceção de um psicólogo e sua família, que tiveram acesso às tecnologias da civilização que um dia já havia habitado aquele planeta. 9

Science fiction can offer visions of the future that are thickly detailed not only because individual works labor to create vivid alternative worlds, but also because the separate stories often return to important images or themes, reworking them and adding to their depth (THURS, 2007, p. 76).

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O filme soviético Solaris, de 1972, dirigido por Andrei Tarkovski, narra a história de uma grande estação espacial posta na órbita de um planeta formado por um imenso oceano com o intuito de descobrir se havia vida em meio à imensidão aquosa. Devido a estranhos acontecimentos nessa estação, um psiquiatra é enviado para lá, e, quando chega, descobre que seu amigo cometera suicídio. No decorrer da trama, diversos eventos estranhos acontecem; no final, descobre-se que o planeta Solaris tem poderes telepáticos capazes de atuar nas lembranças, medos e imaginação das pessoas, criando verdadeiras ilusões que se confundem com a cruel realidade. É um filme que embora esteja ambientado em local estranho, procura tratar sobre a mais profunda natureza humana – um drama psicológico futurista. Todos esses filmes imaginam futuros altamente tecnológicos que possibilitam a viagem espacial, a dominação pelas máquinas, a criação de robôs e androides etc. Contudo, eles o fazem em termos próprios, uns mais próximos da realidade científica atual, outros mais distantes. O filme 2001, por exemplo, imaginava uma estação lunar no ano de 2001; essa ideia até hoje não foi realizada na prática, mas nem por isso 2001 deixa de ser um dos maiores filmes de ficção científica da história. Ele consegue fazer primoroso enredo baseando-se nesse fato criado, coloca seus personagens para agir e uma história acontece. Não há boas previsões do futuro quando falamos de ficção científica. Há apenas boas criações de contextos tecnológicos e científicos para ensaiar novas formas de articulação entre humanos e não-humanos. Na verdade, a ficção científica oferece muito pouco de uma visão técnica sobre o futuro. Tal “ensaio sobre alguma coisa” tenta, na verdade, projetar uma previsão sobre a cultura e o comportamento humano frente à frase “o que aconteceria se” alguma coisa ocorresse. O que aconteceria aos homens se extraterrestres invadissem a terra? O que aconteceria se tivéssemos carros voadores? O que aconteceria se pudéssemos criar homens com pedaços de homens mortos? O que aconteceria se robôs dominassem nosso quotidiano? O que aconteceria se uma nova ordem mundial fosse instaurada, um novo sistema? São perguntas como essas que motivam a criação de um mundo alternativo. Ninguém consegue de fato escrever sobre o futuro, os escritores utilizam-se de situações futuristas para projetar e entender situações do presente. E embora a relação ficção científica e futuro sejam muito próximas, nem toda ficção científica precisa falar necessariamente

36 sobre o futuro, uma vez que não são os ambientes futuristas que determinam o gênero, mas sim explicações científicas para eventos extraordinários. Dessa forma, poderia-se imaginar um presente em que uma tecnologia nova surgisse, e fosse utilizada para conduzir dramaticamente a história. (CARDOSO, 1996, p.7).

Desse modo, a preocupação da comunidade científica quanto à precisão da realidade científica no cinema é equivocada. Mesmo que haja uma estreita semelhança física entre o que é filmado e o que aparece no filme, não há na ficção científica uma santidade secular da fotografia, como aquela apontada por Barthes 10 (1984). Ainda que a ideia de impressão da realidade nos conduza a imaginar, por alguns minutos, aquela ciência e aquele futuro como uma representação da realidade, já que se isso não acontecer é porque não existe ambiente diegético e o filme não obteve sucesso. É aí que reside o êxito da ficção científica: apresenta uma imagem que imprime a realidade utilizando-se da ciência (com todo o seu status quo de falar em nome da realidade) para reforçar o que está se mostrando, sem que para isso precise se restringir a uma linha de demarcação entre ciência e não-ciência, entre assertivas verdadeiras ou falsas, pois estamos no âmbito da ficção. O fato na ficção é a verdade no mito. Isto é, o fato e a verdade da história não residem no literal, na realidade da existência de Frankenstein, na acurácia da ciência de Shelley, na ligação com qualquer de seus contemporâneos, ou em quaisquer avanços tecnocientíficos subsequentes que o romance pudesse sugerir ou antecipar, mas no figurado, naquilo que Frankenstein e sua história contam e revelam acerca da motivação, investigação e prática científica; acerca da amoralidade, audácia e presunção científica; acerca da experimentação e avanço tecnológico e científico descontrolados e incontestes; e sobre suas consequências. Seu retrato do homem de ciência que não conhece limites, não tem consciência e faz um monstro é o que mais importa aqui. (VAN DER LAAN, 2010, p. 299)11. 10

Essa santidade secular da fotografia apontada por Barthes diz respeito principalmente à seu conceito de níveis de evidência das imagens, em que os observadores sentem a fotografia como um vestígio do tempo, uma evidência do real. 11 The fact in the fiction is the truth in the myth.That is, the fact and the truth of the story do not reside in the literal, in the reality of Frankenstein’s existence, in the accuracy of Shelley’s science, in the link to any of her contemporaries, or in any subsequent technoscientific breakthroughs the novel might suggest or anticipate, but in the figurative, in what Frankenstein and his story tell and reveal about scientific and technological motivation, inquiry, and practice; about scientific presumption, audacity, and amorality; about uncontrolled and uncontested scientific and technological experimentation and advance; and about their consequences. Her figuration of the man of science who knows no bounds, has no conscience, and makes a monster is here what matters most.” (VAN DER LAAN, 2010, p. 299)

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Embora alguns fatos imaginados na ficção científica já estejam tornando-se mais palpáveis na realidade, como um pequeno avanço nas viagens ao espaço, estações espaciais, voos comerciais para o espaço, a utilização de robôs espaciais e até algumas pesquisas com o chamado teletransporte quântico, este tipo de previsão não é o objetivo da ficção. Destino à Lua, filme americano de 1950 dirigido por Irving Pichel, narra a viagem à lua de forma bem mais realista do que o filme de Méliès. O importante aqui é que tanto em A viagem à Lua, quanto em Destino à Lua, o objetivo é somente contextualizar uma sociedade e um ambiente tecnológico que seja “mítico” e não “mágico”. A ficção parece ter, segundo diz Cardoso (1996), uma relação com o fantástico parecida com aquela relação entre a religião e a magia. O fantástico é a transgressão da norma, e, com isso, representa uma ultrapassagem do cotidiano com eventos extraordinários e sem explicação lógica. Já a ficção não é mágica, e sim mítica: ela ocorre em um contexto de normas socialmente aceitas (neste caso a ciência), e, partindo desse pressuposto, finge responder a algumas questões que a ciência da época da criação da história não consegue responder. Mesmo que misturada com elementos científicos ditos autênticos, como leis da natureza já provadas, hipóteses bem aceitas e teorias válidas, ela não passa de uma representação mítica para problemas não resolvidos, para um futuro alternativo. Dessa forma, em O Dia em que a Terra Parou, de 1951, dirigido por Robert Wise, a vinda de um ser alienígena para a Terra a fazer apelos pela paz aos povos tornase uma hipótese possível. Nesse filme, uma nave aterrissa na capital norte-americana trazendo um ser extraterrestre e seu robô; eles levam um ultimato aos líderes mundiais, para que parassem de guerrear e de fazer uma corrida armamentista. Isso estaria deixando temerosos os líderes dos demais planetas, já que a terra também pertence a outros seres vivos. O tema pertinente de uma sociedade galáctica a impor regras aos humanos parece caminhar entre as explicações aceitas da mitologia. Já que é possível que haja uma civilização extraterrestre, é possível que ela tenha suas normas, é possível que ela queira intervir nos assuntos internos da humanidade quando esta se coloca prestes a destruir riquezas naturais também pertencentes a outros seres vivos. Ou seja, é possível que os (hipotéticos) alienígenas façam o mesmo que os homens fazem: intervir na soberania alheia quando um governo vai contra as normas internacionais.

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O mais interessante sobre a questão do realismo dos filmes de ficção científica (às vezes requerido pela comunidade científica) é a sua relação com as controvérsias científicas de forma geral. Se, por um lado, o filme de ficção científica imprime a realidade por mostrar imagens de proposições, como o homem indo à Lua, um alienígena invadindo a Terra, um enorme planeta aquoso que domina a mente das pessoas ou uma sociedade dominada pela tecnologia, por outro lado, a própria imagem da ciência pode ser contestada como verídica. É como se fosse uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que o ficcional imprime a realidade, o científico pode levantar controvérsias e ser interpretado como não real.

Imagem 1. Na imagem da esquerda, a Terra é vista da Lua por homens que haviam viajado dentro de uma bala oca disparada com pólvora. Filme de George Méliès,A Viagem à Lua, de 1902. Imagem 2. Na imagem da direita, a Terra é vista da Lua pelo astronauta BuzzAldrin, o segundo homem a pisar na Lua na Missão Apollo 11, de 1969. Fonte: NASA. (Esta foto também causou controvérsias,pois nela não se veem estrelas)

O artigo de Perlmutter e Dahmen (2008) explora a controvérsia em torno do pouso do homem da lua em 1969, especificamente em torno das imagens feitas dessa exploração científica. Os autores tentam entender, tanto na dimensão científica, quanto na popular, as crenças disseminadas em diversos sites: teorias de conspiração de que o homem jamais teria realmente pisado na Lua. Esse fato controverso pode dar boas contribuições para a diferença entre ciência e ficção, realidade e mito. O importante aqui é que tanto os argumentos da farsa lunar quanto os argumentos científicos da NASA e de diversos astrofísicos partem da análise das imagens.

A Lua sempre

desempenhou fascínio na humanidade; nesse aspecto, o que é crença e o que é

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cientificamente comprovado se misturam. Ela altera nossas marés, ao mesmo tempo em que motiva algumas pessoas a cortar o cabelo apenas durante determinado período do mês. Conquistar a lua sempre foi um sonho humano. Como vimos, diversos filmes pioneiros de ficção científica retrataram o feito. […] a foto do homem na Lua parece, então, ocasionar pouco debate ou controvérsia. Enquanto a maior parte do conhecimento científico é difícil de retratar, quanto mais de compreender (por exemplo, teoria das cordas, distorção de espaço-tempo, e assim por diante), o fato de que foguetes deixem a Terra e levem homens a aterrissar na Lua parece pertencer ao mais óbvio exemplo de um experimento científico visualmente certificado como “verdade”. Certamente, essas imagens são um exemplo de fotos famosas recebendo universalmente um valor de verdade, até assumirem um sentido transposicional, não se elevando para objetos-mito até que todos tenhamos concordado com sua facticidade. ” (PERLMUTTER e DAHMEN, 2008, p. 23)12.

Os autores seguem o texto apontando os principais argumentos dos que defendem a tese da farsa lunar. Entre esses argumentos estão, principalmente, observações quanto às sombras que aparecem nas fotos (IMAGEM 3). Visto que, na Lua, havia apenas uma fonte de luz, todas as sombras, em tese, deveriam ser projetadas para o mesmo lado, e não é isso o que as fotos mostram. Também se destaca certa desproporcionalidade da Terra vista da Lua, e a tremulação da bandeira, sendo que não deveria haver vento na superfície lunar. A foto da pegada (IMAGEM 4), segundo a mesma hipótese da farsa, não poderia ser feita, já que, sem umidade, jamais haveria marcas de pegadas na Lua. Onde estão as estrelas nas fotos dos homens na Lua (IMAGEM 2)? A própria imagem do módulo lunar Apollo 11 (IMAGEM 5), que não parece ser capaz de voar, tira a credibilidade da viagem do homem à Lua aos olhos dos adeptos da tese da farsa lunar.

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[…] the photo of the man on the moon would seem to occasion little debate or controversy. While most scientific knowledge is difficult to picture, let alone comprehend (e.g. string theory, time–space distortion, and so on), that rockets left Earth and carried men to land on the moon seems to be the most obvious instance of a scientific experiment visually verified as ‘truth’. Surely these images are an example of famous photos with a universally subscribed truth value, to take a transpositional sense, that do not rise up to myth-object until after we all have agreed on their basic facticity.” (PERLMUTTER e DAHMEN, 2008, p.23)

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Imagem 3. Nesta imagem, aparecem as projeções das sombras do módulo espacial e do astronauta, mas não se vê a sombra da bandeira, a qual também tremula onde não há vento. Fonte: NASA.

Imagem 4. Foto da pegada do homem na Lua. Fonte: NASA.

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Imagem 5. Módulo lunar Apollo 11 sobre a superfície da lua. Fonte: NASA.

Após um estudo das imagens opondo os argumentos dos dois lados, os autores apontam para uma corroboração dos argumentos da NASA a favor da facticidade da viagem à Lua, partindo de observações ligadas à imagem e à fotografia. Todavia, como fica claro a partir de exemplos na sociedade desde a primeira aterrissagem na Lua em 1969, a história não acabou quando o primeiro astronauta pisou na superfície lunar, nem a tecno-lógica triunfou como canal para investigação e ação humanas. De fato, pesquisadores tentam há nos explicar por que, numa era alegadamente científica e industrial, as pessoas continuam, como um disse um escritor, a “acreditar em coisas esquisitas” [...]. (PERLMUTTER e DAHMEN, 2008, p. 233)13

É por esse motivo que apresentaremos nos próximos capítulos uma visão de ciência que não se limita ao modelo das assertivas e da clássica demarcação de Karl Popper de ciência e de não-ciência. O que faria a diferença, nesse caso, seriam as proposições articuladas ou inarticuladas, em vez do estabelecimento de demarcações entre verdadeiro e falso. Se até de um fato universalmente reconhecido como científico, como a ida do homem à Lua em 1969, podem surgir especulações é porque a realidade não faz uma 13

Yet, as is clear from events in society since the first moon landing in 1969, history did not end when the first astronaut stepped onto the lunar surface, nor has techno-logic triumphed as a channel for human inquiry and action. Indeed, researchers for years have tried to explain why, in an allegedly scientific and industrial age, people continue, as one writer said, to ‘believe in weird things’ […].(PERLMUTTER e DAHMEN, 2008, p.233)

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correspondência baseada na simples referência; ela é construída, e é também politicamente instaurada; é uma epistemologia política a que devemos levar em conta nesses aspectos. As imagens da Missão Apollo 11 trazem um paralelo envolvendo ciência, arte e cultura massiva. O experimento científico da NASA fotografou diversas imagens dos homens na Lua porque tradicionalmente as imagens carregam uma clara referência com a realidade. As imagens provam que algo ocorreu. Todavia, o cinema é a arte da manipulação das imagens, criando ilusões que também constroem uma realidade. Valendo-se desses dois princípios e inserindo isso nos contextos políticos da guerra fria é que a cultura massiva passa a ler tais imagens como leem o cinema: uma realidade construída e não uma referência direta ao real. As teses da farsa lunar defendem que os estadunidenses não foram à Lua porque tinham interesses políticos o suficiente para criarem as imagens de um falso experimento no set de filmagem. O problema é que as imagens da NASA não estão livres de controvérsias, as “falhas” indicadas acima nas imagens mostram que, constantemente, a caixa-preta do fato é reaberta para discussão. O leitor poderia argumentar que a ida do homem à Lua ocorrera em um contexto de disputas políticas e que somente por isso há tantas teorias de conspiração sobre esse fato. Está claro que a instituição científico-político-militar da NASA tinha interesses políticos para um evento científico, mas, se a história da ciência for minuciosamente analisada, veremos, então, que qualquer evento científico é também político. A missão Apollo 11 tão-somente colocou essa questão em escancarada evidência, já que, devido ao contexto político da época, fazia-se particularmente interessante aquele experimento científico. Essa epistemologia política do experimento científico ocorre, entretanto, em qualquer caso de ciência e tecnologia. Se a correspondência com a realidade é feita por meio de articulações de proposições, então o cientista sempre usará a política que estiver a seu alcance para provar sua versão da verdade. Para demonstrar que as coisas têm voz, que o experimento funciona, o cientista buscará sempre apresentar uma caixapreta livre de controvérsias. Entretanto, a missão de publicar uma caixa-preta livre de controvérsias é difícil sob o ponto de vista da racionabilidade pura. O científico, argumenta Stengers (2002), é ingrediente raro na ciência. Por isso, o cientista busca sua coorte de aliados, sua força

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política, seus meios de convencimento para imprimira realidade. Este mecanismo está baseado na forma como a ciência é construída. Basta uma análise de qualquer artigo científico para notar que muitos aliados são chamados para amparar uma afirmação. O mecanismo das citações não serve para deixar o texto bonito, e sim para amparar o que foi dito pelo autor. Caso um leitor discordante queira questionar algum fato, ele terá que ser bom o bastante para ir contra cada um dos autores citados. E também terá que ser bom o bastante para questionar cada um dos membros do corpo editorial da revista em que os respectivos artigos foram publicados. Se o científico deve passar por um crivo de análise de pares para ser considerado científico, então todas as artimanhas políticas são usadas para dificultar o falseamento do que é publicado. Um homem sozinho, por mais certo que esteja, não consegue produzir ciência. Não se trata de estar certo, mas de conseguir apresentar uma visão da realidade livre de controvérsias.

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2. AMOSTRAS DO FUTURO, PROPOSIÇÕES, CAIXAS-PRETAS Observe a foto abaixo (IMAGEM 6). Ela guarda muitas informações sobre o debate que se segue nesta monografia. É um tanque de guerra. Mas...homens estão segurando o tanque no ombro? Este objeto de setenta toneladas, feito para batalhas, não poderia ser carregado por quatro homens. Nosso raciocínio nos faz levantar duas hipóteses: (1) ou o tanque é falso; (2) ou os homens são superpoderosos: inaugurou-se uma nova fase na guerra onde homens são capazes de enfrentar o poder de um grande tanque. A primeira opção é a mais crível das duas; então, vamos escolhê-la como ponto de partida. O tanque é, de fato, falso. Faz parte do The Ghost Army (o Exército Fantasma) dos Estados Unidos, apresentado no documentário homônimo de Rick Beyer, em que mostra o grupo de militares criado para enganar Hitler com diversas artimanhas artísticas. Não fosse o ruído de quatro homens segurando o tanque de guerra nos ombros na foto abaixo, poderíamos acreditar que era de fato um tanque de guerra real, prestes a atirar contra o inimigo. Isso acontece porque o tanque é crível, tem as dimensões de um tanque verdadeiro, se apresenta como um tanque verdadeiro.

Imagem 6. O tanque inflável usado pelo exército dos EUA para enganar Hitler durante aSegunda Guera Mundial (Rick Beyer/Hatcher Graduate Library).

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Todavia, o tanque do Exército Fantasma é falso. Foi criado para enganar visualmente. Contudo, ele apresenta uma relação direta da coisa com as pessoas. Não é necessário inventar uma mentira oral, e falar para o exército alemão que existe um tanque de guerra, porque o exército alemão pode vê-lo com seus próprios olhos. E, contanto que estejam longe o suficiente, irão acreditar, o tanque se torna real. Podem ter medo, podem mudar a estratégia enquanto o exército americano remaneja seus tanques reais para outro lugar. Uma relação direta é feita entre a existência do tanque e a ação das pessoas. A proposição é apresentada como verdadeiro, e é especialmente crível porque as chances de que haja um tanque de guerra no campo de batalha é enorme; quem poderia imaginar que o tanque fosse, na verdade, um grande balão de ar? Os tanques do exército dos Estados Unidos mobilizaram o exército inimigo, então eles são reais. Reais até que o exército estivesse perto o bastante para ver a farsa. Quando um filme apresenta uma tecnologia futurista, seu objetivo é nunca deixar a audiência perto o bastante, e, dessa forma, sempre imprimir a realidade. Manter a audiência distante o bastante é evitar as controvérsias, é fazê-los acreditar, mesmo que por apenas alguns minutos, que tudo o que ocorre no filme é possível. Talvez não seja possível hoje, mas no futuro será. Enquanto estamos “longe o bastante” para acreditar nelas, acreditamos. Na tela do cinema, vemos, por exemplo, um aparelho que permite o teletransporte de pessoas através de milhares de quilômetros, por meio da desmaterialização da matéria; no ambiente diegético, nos deixamos levar por essa mentira bem contada, porque a estamos vendo acontecer. Graças a essa tecnologia, mundos são movidos, pessoas são agregadas, instituições agem. Vemos os resultados de um objeto que não existe, e, graças a isso, estabelecemos uma relação causal para confirmar sua existência, mesmo que sua existência pareça impossível para nós. Naquele ambiente da tela do cinema, as pessoas viajam de um mundo ao outro porque existe uma tecnologia para isso. Como poderíamos duvidar disso, se podemos ver que toda a história ocorre por causa da possibilidade dessa viagem? Filmes de ficção científica inundam nossa visão com máquinas e paisagens complexas que chegam até nós vindas diretamente do futuro. Sem máquina do tempo,

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sem criossono14, apenas a impressão de realidade é capaz de nos transportar no tempo e no espaço dessa forma. A arte se coloca aqui como uma pesquisa de mundos alternativos, é com a poiese que podemos materializar contextos tecnológicos outros, em que a techne e a episteme tomaram outros rumos, fazendo emergir redes de articulações que nos colocam frente a frente com outra realidade. Tal como o naturalista narrado por Latour (2004) em Redes que a Razão Desconhece, que parte em uma expedição para colher amostras da fauna local para ser estudada em uma central de cálculo, o cineasta futurista faz sua expedição criativa a tempos alternativos, em um futuro que é, em parte, baseado em sua própria realidade. Lá, nesse futuro alternativo, colhe amostras de Organizações (Eu Robô, Fox, 2004 dirigido por Alex Proyas), Problemas (Metrópolis, Paramount, 1927, dirigido por Fritz Lang), Máquinas (Matrix, Warner, 1999 dirigido pelos Irmãos Wachowski), Robôs (Robocop - O Policial do Futuro, Orion, 1987 dirigido por Paul Verhoeven), Criaturas (Frankenstein, Universal, 1931 dirigido por James Whale), Naves Espaciais (2001: Uma odisseia no espaço, MGM, 1968, dirigido por Stanley Kubrick) Tecnologias de Ponta (De volta para o futuro, Universal, 1985 dirigido por Robert Zemeckis), Paisagens (Blade Runner, Warner, 1982, dirigido por Ridley Scott), etc. O cineasta traz à tela de cinema a construção de uma realidade vinda de um local totalmente controlável: o set de filmagem. No set de filmagem, o cineasta controla a luz e o próprio sol, a moda, o comportamento, a paisagem e até a política e a natureza. Tudo está nas mãos do cineasta, ele é quem abre caminho para que as “amostras do futuro” apareçam na tela e falem por si mesmas. Mas, afinal, estes objetos que se apresentam como caixas-pretas, tais como robôs, armas a laser, máquinas do tempo e discos voadores...são caixas-pretas impenetráveis, estão fechadas? Ou permanecem escancaradas, sem jamais terem sido abertas? As proposições que definem quem são e o que fazem são articuladas o bastante? Quem nos levará a essa jornada ao futuro será a Teoria Ator-Rede, com toda 14

Cryos – Congelado, Sono - Criossono: Também conhecido como suspenção espacial, refere-se a tecnologias de indução de sono pelo congelamento do corpo (e consequente paralisação das atividades metabólicas) para possibilitar longas viagens intergaláticas, geralmente viagens que ocorrem na velocidade da luz. Sua eficácia ocorre, por enquanto, apenas na ficção, embora haja relatos de que a NASA irá investir em pesquisas para tornar a tecnologia utilizável. Para mais sobre as tecnologias de criossono na atualidade e sua relação com a ficção cienífgica acessar o link abaixo: ttp://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2013/07/1314528-nasa-financia-pesquisa-sobre-hibernacaoespacial-humana.shtml

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sua base de estudos científicos. Quem guiará essa nave pelas galáxias futuras será o antropólogo francês Bruno Latour. Seremos apenas passageiros, sim, mas passageiros livres o bastante para observarmos o máximo possível. Partiremos de duas afirmativas básicas que nos farão questionar diversos fatores em ciência e cinematografia: (1) o resultado visual de um experimento (e montagens do set na tela do cinema) independem de sua fabricação; (2) este resultado foi fabricado no laboratório e no set de filmagem. Para entender as duas afirmativas, vamos explorar dois famosos casos na ciência: Louis Pasteur, com seu fermento lácteo, e Robert Boyle, com sua máquina pneumática de vácuo. Passaremos pela noção de Fetiches. Com isso, pretendemos justificar a importância para a ciência e para a cultura dos filmes de ficção científica e qual sua relação com a noção progressiva de modernidade. Como nos mostra Bruno Latour em seu famoso livro Jamais Fomos Modernos (1994), Robert Boyle, um dos fundadores da química moderna e pai da ciência experimental construtivista, mandou que fosse feito, por meados de 1660, um aparelho pneumático de vácuo, a bomba de vácuo, (IMAGEM 7) para que fosse realizado por ele um grande número de experimentos sobre as propriedades do ar. Entre seus experimentos, estão, por exemplo, a criação do vácuo em laboratório e a demonstração da dependência do ar para a sobrevivência dos seres vivos.

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Imagem 7. Pintura An Experiment on a Bird in the Air Pump (Experimento com pássaro na bomba de ar), de Joseph Wright of Derby, de 1768. Nesta pintura, vemos Robert Boyle demonstrando a morte de um pássaro pela privação de ar dentro de uma de suas bomba de vácuo.

Em seu laboratório, Boyle construiu o próprio fenômeno para demonstrar que sua visão era válida. É a própria natureza que está representada ali, na bomba de vácuo, e Boyle apenas controla algumas variáveis, o que lhe permite demonstrar e testar diversos fenômenos. É o princípio básico da testemunha. Em um tribunal chama-se uma testemunha de boa índole, que jura, com a mão sob a bíblia, falar apenas a verdade. A diferença é que com os não-humanos nenhum juramento é necessário: [...] corpos inertes, incapazes de vontade e de preconceito, mais capazes de mostrar, de assinar, de escrever e de rabiscar sobre os instrumentos de laboratório testemunhos dignos de fé. Estes nãohumanos, privados de alma, mas aos quais é atribuído um sentido, chegam a ser mais confiáveis que o comum dos mortais, aos quais é atribuída uma vontade, mas que não possuem a capacidade de indicar, de forma confiável, os fenômenos. (LATOUR, 1994, p. 29)

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O cientista desconstrói o fenômeno e é capaz de fechar a caixa-preta, apontando uma proposição válida e forte o bastante para passar ilesa pelos testes de força dos concorrentes. Boyle diz “vejam, caros colegas, a ave morre sem o ar!”. Vemos aqui, já, as duas afirmações mencionadas acima. O vácuo de Boyle é construído por ele em seu laboratório, mas, ao mesmo tempo, ele age independentemente de sua vontade. Boyle pode “ver” o vácuo agindo, quando coloca em seu aparelho uma ave e a observa morrer pela privação de oxigênio. Ele age como um representante da natureza e dos fatos, fala em nome deles, mas ao mesmo tempo, é ele quem lhes dá voz. Vejamos os comentários de Latour sobre isso: Boyle define um artefato ainda mais estranho. Ele inventa o laboratório, no interior do qual máquinas artificiais criam fenômenos por inteiro. Ainda que artificiais, caros, difíceis de reproduzir e apesar do pequeno número de testemunhas confiáveis e treinadas, estes fatos representam a natureza como ela é. Os fatos são produzidos e representados no laboratório, nos textos científicos, admitidos e autorizados pela comunidade nascente de testemunhas. Os cientistas são os representantes escrupulosos dos fatos. Quem fala quando eles falam? Os próprios fatos, sem dúvida nenhuma, mas também seus porta-vozes autorizados. Quem fala, então: a natureza ou os homens? [...] Em si, os fatos são mudos, as forças naturais são mecanismos brutos. Os cientistas, porém, afirmam não falar nada: os fatos falam por si mesmos. Estes mudos, são portanto capazes de falar, de escrever, de significar dentro da redoma artificial do laboratório ou naquela, ainda mais rarificada, da bomba de vácuo. Pequenos grupos de cavalheiros fazem com que as forças naturais testemunhem, e testemunham uns pelos outros que eles não traem, mas antes traduzem o comportamento silencioso dos objetos. (Latour,1994, p. 34).

A modernidade na ciência é inaugurada por Boyle justamente pelo mesmo movimento com que é inaugurada na política por seu contemporâneo Hobbes. Se o Leviatã é sustentado pelo grupo de humanos que lhe concedem o poder através do contrato, do parlamento dos homens, o laboratório e a ciência constituem o parlamento das coisas. Quando o Leviatã age, nós agimos. Hobbes e Boyle são dois pais fundadores; construíram o princípio pelo qual a modernidade se define. A ciência falando pelos não-humanos; a política falando pelos humanos. O caso de Boyle nos mostra uma das grandes questões sobre a agência dos nãohumanos e a rede de associações que esse tipo de relação apresenta. Todavia, é com o debate do nascimento da microbiologia que Latour nos dá as pistas que precisamos para

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assistir aos nossos filmes de ficção científica. Em Esperança de Pandora (LATOUR, 2001), o autor debate o famoso caso do experimento de Louis Pasteur, experimento que, mais tarde, acabou lhe dando créditos universais com o famoso processo de evitar a contaminação do leite. Surgiu o epônimo pasteurização, de forma que tanto sua descoberta, a fermentação láctea, ficou “pasteuriana”, quanto Pasteur ficou “lácteo”. Todos concordam que a ciência evolui por meio do experimento; a questão é que Pasteur também foi modificado e evolui por meio do experimento, como a Academia e até o fermento, por que não? Todos eles vão embora num estado diferente daquele que apresentavam ao entrar. (Latour, 2001, p.184).

Vejamos agora, brevemente, como ocorreu esse curioso caso da história da ciência e o que ele tem a nos oferecer de útil. Em 1856, na França, Louis Pasteur realizou o mais importante experimento da microbiologia. Acrescentando algumas substâncias ao leite, Pasteur associou à ação de micro-organismos a transformação do açúcar. Como já havia se dedicado por algum tempo no estudo do levedo da cerveja, Pasteur concluiu que deveria haver alguma ação organizada na fermentação láctea, os micróbios. Durante seus experimentos, Pasteur ficou dividido entre o construtivismo e o realismo, era um experimentador do tipo racionalista, afinal. Contudo, essas conclusões são, como o próprio Pasteur confessa, hipóteses que vão além do que os fatos demonstram. Ele não poderia provar isso de maneira irrefutável com seu experimento. Vamos novamente ao comentário de Latour sobre este caso: Pasteur sabe muito bem que existe uma lacuna em sua genealogia. Como poderá ele passar da matéria cinzenta, quase imperceptível, que às vezes aparece na parte superior do recipiente, à substância plena, semelhante ao vegetal, provida de necessidades nutricionais e gostos muito particulares? Como dará esse passo decisivo? Quem é responsável pela atribuição dessas ações, quem é responsável pelo aquinhoamento dessas propriedades? Não estará Pasteur dando a sua entidade um empurrãozinho? Sim, ele pratica a ação, ele tem preconceitos, ele preenche a lacuna entre fatos indeterminados e o que deve ser visível. (Latour, p.149, 2001).

Há uma transferência no plano de referência do cientista ao plano de referência do objeto. Não haveria fermentação láctea sem o empurrãozinho de Pasteur. Quando o plano de referência de Pasteur é transferido para o plano de referência do fermento podemos ver o fermento agindo. O curso lógico da mente humana é atribuir sua causa primária aos tipos consistentes de resultados. Este fato fez Latour apresentar sete tipos

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de metáforas para explicar o trabalho do cientista em relação ao que chama de “realismo construtivista”, e, achando as sete metáforas ruins, apresentou a ideia de proposição, e é este movimento que nos interessa aqui. É preciso que o leitor tenha sempre em mente a comparação do trabalho do cientista com o trabalho do cineasta, por mais que seja forçoso arrumar um sentido para isso, em um primeiro momento. É preciso um esforço, tal como fez Pasteur, um empurrãozinho.

As sete metáforas para a relação cientista e fato cientifico são as seguintes: 1) Física do Paralelograma: “se nenhuma força emanar do eixo chamado de "tendências e teorias'', teremos um acesso direto, primordial e irrestrito a um estado de coisas. ” (LATOUR, 2001, p. 156).

2) Metáfora da Encenação: “Pasteur, como diretor, traz certos aspectos do experimento para o primeiro plano e subtrai outros a luz dos refletores. Essa metáfora apresenta a grande vantagem de chamar a atenção para os dois planos de referência ao mesmo tempo, ao invés de empurrá-los em direções apostas. (LATOUR, 2001, p. 157).

3) Metáfora Ótica da Visão: Embora ele não capture de modo algum a atividade daquele que olha, ao menos enfatiza a independência da coisa olhada. (LATOUR, 2001, p. 158).

4) Metáfora Industrial: É “[...] em virtude de tantas transformações, transportes, refinos químicos etc. que somos capazes de fazer uso da realidade [..]” (LATOUR, 2001, p.160).

5) Metáfora da Estrada: “preservam o aspecto positivo das transformações intermediárias sem arranhar a autonomia do objeto. Se dizemos que o experimento de laboratório “abre caminho” à aparição do fermento, certamente não negamos a existência daquilo que no fim é alcançado” (LATOUR, p.160, 2001).

6) Metáfora da Articulação: Enfatiza a independência da coisa; revela os dois planos ao mesmo tempo; preserva o caráter do acontecimento histórico; liga a realidade à quantidade do trabalho. (LATOUR, 2001, p.162).

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Essas metáforas não são boas para Latour porque são baseadas no modelo das assertivas. Fazendo uma assertiva cruzar o abismo entre linguagem e mundo para estabelecer uma correspondência, elas carregam em si todas as deficiências da filosofia da linguagem. Neste caso, quando falamos alguma palavra, essa palavra deve fazer um percurso mental que passe para as coisas em si. Mas quando afirmamos “fermento de ácido lácteo” nenhuma coisa vem a nossa mente. Então ela não conseguiu passar pelo abismo das assertivas entre mundo e linguagem, não gerou correspondência. O vocabulário “fermento” não fermenta. O mesmo não acontece nas proposições, e este é o ponto mais importante para nós. A grande diferença das proposições para o modelo das assertivas é que toda proposição é baseada em articulações. As articulações não se restringem a fenômenos da linguagem. Se nas assertivas tínhamos o humano falante cercado de coisas mudas, agora temos uma articulação entre humanos e não-humanos, aqui diversos tipos de entidades participam. O cientista não é o que descobre (tira a coberta que esconde) a verdade da natureza, mas sim o que dá voz às coisas para que elas falem por si mesmas, articulando proposições, trata-se de ontologias práticas. O que nos interessa agora é estabelecer os limites da relação das proposições com os objetos. Quando Pasteur falou que a fermentação láctea era organizada, estava através da articulação, fazendo proposições que vieram a se tornar uma caixa-preta sobre o funcionamento de tal fenômeno. Mas a caixa-preta só pode se fechar porque houve articulação e a criação de uma proposição: o leite fermenta por causa da ação de organismos vivos. O fermento lácteo não mudará sua forma de agir na natureza, mas Pasteur mudou a forma como essa proposição foi encarada pelas pessoas, fechou a caixa-preta. Fechar a caixa-preta não é encerrar o assunto, a caixa-preta sempre pode ser reaberta porque as controvérsias sempre estarão acessíveis. Sabemos que ela pode ser aberta, por exemplo, se a tecnologia avançar a ponto de novos fatores surgirem na fermentação láctea e os debates sobre essa questão podem voltar a chamar a atenção e precisarão ocorrer, neste caso, novas articulações e o desenvolvimento de novas proposições. Mas o que o cinema tem a ver com essas histórias da ciência, essas análises dos estudos científicos? O que tem a ver o trabalho do cineasta e o trabalho do cientista? Tudo a ver. Não podemos nos esquecer, em primeiro lugar, que o cinema foi concebido

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para servir de instrumento científico. O objetivo era mostrar a biofísica do trote do cavalo, para saber se ele ficava com as quatro patas suspensas no ar durante a corrida. Tanto cinema quanto ciência dependem do verbo mostrar. O verbo do cinema é o verbo mostrar. O verbo da ciência é o verbo mostrar. A diferença está no que é mostrado e em como é mostrado. O cinema, como sabemos, se esforça para passar uma ideia de realidade, uma impressão de realidade. Por isso ele mostra fatos e objetos como uma caixa-preta fechada, e é essa caixa-preta que funciona que nos passa a ideia de proposições críveis. A ciência mostra as proposições articuladas, para a partir delas tornar as coisas críveis e fechar a caixa-preta. É uma relação parecida com as duas faces de Jano (LATOUR, 2000), onde a ciência pronta afirma que o que é verdade sempre se sustenta. E a ciência em construção afirma que quando as coisas tornam-se verdade elas começam a se sustentar. O cinema apresenta uma ciência pronta partindo dos pressupostos de uma ciência ainda em construção. Por isso a ficção mostra a caixa-preta que funciona, e ela torna-se crível porque supomos que suas proposições são articuladas, verdadeiras. O oposto do mecanismo da ciência, que primeiro mostra as proposições sendo articuladas para, então, fechar a caixa-preta.

Ficção: da caixa-preta que funciona –para–as proposições críveis Ciência: das proposições críveis –para–o fechamento da caixa-preta

2.1 A noção de Caixa-Preta O termo caixa-preta é usado para designar algum objeto ou fato científico de modo geral e unitário, levando em consideração sua aplicabilidade e funcionalidade, mas desconsiderando todas as particularidades e minúcias sobre seu funcionamento interno. Cada fato e cada objeto são designados por uma caixa-preta diferenciada. No interior da mesma estão todos os processos que foram necessários para que esta se constituísse como tal, tais processos podem, eles mesmos, serem considerados caixaspretas “menores”. Portanto o termo abrange elementos sutis, como os metafísicos e

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ontológicos, que fazem parte do paradigma científico e do modo de existência dos objetos técnicos. A caixa-preta pode ser apresentada em duas modalidades. Caixa-preta aberta e caixa-preta fechada. Quando um fato ou um artefato funciona bem ou está pronto, a caixa está fechada. Quando este fato ou artefato ainda está em construção, rodeado de incertezas e controvérsias, dizemos que a caixa está aberta. A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada, senão o que nela entra e o que dela sai. [...] por mais controvertida que seja sua história, por mais complexo que seja seu funcionamento interno, por maior que seja a rede comercial ou acadêmica para a sua implementação, a única coisa que conta é o que se põe nela e o que dela se tira. (LATOUR, 1997, p.14).

O objetivo de qualquer cientista ou engenheiro é disseminar uma caixa-preta fechada. Isso quer dizer disseminar uma coisa que está livre de controvérsias. Ele fará de tudo para dificultar a sua abertura. Seu trabalho só acaba quando um fato científico aparece, ou quando o artefato funciona bem, mesmo longe dos seus criadores. Geralmente a disseminação e divulgação dessas caixas-pretas ocorrem em livros, artigos e congresso científicos, ou também no mercado que comercializa objetos técnicos. A sutileza dessa relação está em conseguir vencer a força do leitor e a força da natureza. Se o fato científico resiste às provas de forças, então a caixa-preta permanece fechada. O mesmo para a máquina que funciona bem em diversas situações exigidas pelo mercado. O problema de construir “fatos” é o mesmo de construir “objetos”: como convencer outras pessoas, como controlar o comportamento delas, como reunir recursos suficientes em um único lugar, como conseguir que a alegação ou o objeto se disseminem no tempo e no espaço. Em ambos os casos, são os outros que têm o poder de transformar as alegações ou o objeto num todo duradouro. (LATOUR, 2000, p. 217).

Quando um artefato é vendido como uma caixa-preta fechada aos consumidores, palavras

como

“organograma”,

“prazos”,

“gostos”,

“minimizar

riscos”,

são

incorporados para descrevê-la. Neste ponto todas essas palavras se tornam parte do processo de avaliação. Quando a caixa-preta está fechada, contexto e conteúdo se confundem. (LATOUR, 2000). Visto que, normalmente, essas não são palavras

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atribuídas a um chip de computador, por exemplo, que é em si uma caixa-preta, e sim há situações contextuais que fizeram deste objeto um chip de computador. Normalmente as caixas-pretas só se mantêm abertas enquanto a controvérsia não está encerrada, quando a ciência ainda está em construção. É neste momento, de muitas controvérsias, debates e concorrências, que os fatos científicos são criados. É quando as coisas se sustentam sozinhas que a verdade surge. Geralmente a esmagadora maioria da população não conhece o interior das caixas-pretas. Isto porque só chegam a eles a ciência pronta, o artefato que funciona. Mas basta um simples exercício de observação panorâmica para se dar conta da existência de algo que está subjacente à fachada de uma caixa-preta, seu interior torna-se palpável quando fazemos um mínimo esforço para notá-lo: Olhe a volta do recinto ande você se debruça [...]. Considere quantas "caixas-pretas" existem por ali. Abra-as; examine seu conteúdo. Cada peça da caixa-preta é, em si mesma, urna caixa-preta cheia de peças. Se alguma peça se quebrasse, quantos humanos se materializariam imediatamente ao redor dela? Quanto recuaríamos no tempo e avançaríamos no espaço para retraçar nossos passos e acompanhar todas essas entidades silenciosas que contribuem pacificamente para que você leia este capítulo sentado à escrivaninha? (LATOUR, 2001, p. 212).

Quando existe uma controvérsia no fato científico, ou quando o objeto técnico não funciona bem, nos damos conta de que existe um universo ontológico subjacente a eles. Assim torna-se necessário abrir a caixa-preta para ser constatado o que realmente está acontecendo e o que precisa ser feito. Recuamos no tempo porque voltamos à época em que a caixa-preta ainda estava aberta, notamos como sua construção se deu, observamos como estavam organizadas as coisas no momento em que ela foi fechada. Avançamos no espaço porque saímos da zona de conforto, somos obrigados a agir quando uma caixa-preta já não age como fora programada para agir. A impossível tarefa de abrir a caixa-preta se torna exequível (se não fácil) quando nos movimentamos no tempo e no espaço até encontrarmos o nó da questão, o tópico no qual cientistas e engenheiros trabalham arduamente. Essa é a primeira decisão que temos de tomar: nossa entrada no mundo da ciência e da tecnologia será pela porta de trás, a da ciência em construção, e não pela entrada mais grandiosa da ciência acabada. (LATOUR, 1997, p. 16).

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Esta é a primeira regra metodológica dos Science Studies, que se dedicam a estudar o momento do fechamento das caixas-pretas. Estudar ciência, aqui, é abrir caixas-pretas e analisar seu interior, descobrir suas complexidades, vistoriar o momento de sua feitura. O trabalho da ciência e da tecnologia torna-se invisível, obscuro, e essa obscuridade é decorrente do próprio êxito do fazer científico. Quando as coisas saem bem, tanto fatos quanto objetos funcionam. E enquanto funcionarem não há motivos para se preocupar com sua complexidade interna. Essa regra metodológica que serve para estudar a ciência é um mecanismo complexo para estudar o momento em que os fatos são construídos (caixa-preta aberta) ou as controvérsias envolvendo a construção de fatos já aceitos (caixa-preta fechada, a fim de ser aberta). Para entender êxito da ciência torna-se necessário adentrar nos obscuros mecanismos do interior das caixas. A sorte dos que se dedicam a estudar ciência dessa maneira é que todo cientista deixa seus rastros, todos os fatos deixam seus rastros e todos os artefatos deixam seus rastros. A caixa-preta, por mais bem fechada que esteja sempre pode ser reaberta. Além disso, abrir caixas-pretas pode ser bem menos complexo do que se possa imaginar. Como quando se entra em questões técnicas, durante algum debate não-técnico, ocorre, na verdade, a abertura de caixas-pretas. Quando dizemos "esta é uma questão técnica" significa que precisamos nos desviar por um momento da tarefa principal e que, ao fim, iremos retomar nosso curso normal de ação - o único enfoque digno de atenção. Urna caixa-preta abre-se momentaneamente e logo nos vemos encerrados de novo, imperceptíveis na sequência principal da ação. (LATOUR, 2001, p.219).

Só há uma situação em que a caixa-preta da ciência não pode ser aberta. É quando essa ciência é uma ciência ficcional. Isso porque ela jamais foi uma caixa-preta fechada de verdade. Por exemplo, imaginem um debate científico que ainda está ocorrendo, onde há um enorme número de controvérsias que não estão nem perto de serem resolvidas. Como os debates no campo da neurociência, onde quase todas as questões se mantém abertas devido ao não êxito dos cientistas (ou à complexidade da matéria). Mas essas questões existem, há uma volumosa quantidade de conhecimento sendo produzido nestes debates e nestes experimentos. Questões abertas, caixas-pretas escancaradas.

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Agora imaginemos uma situação ideal em que ocorre a apropriação destas controvérsias por um sujeito descompromissado com a instituição científica, como um cineasta ou um escritor de ficção. Neste caso ele entra na ciência pela escandalosa porta dos fundos, a única que existe no momento, a ciência em construção, o mundo das hipóteses e das teorias. Lá dentro se enriquece com todos os conhecimentos que são possíveis absorver. Conhece os fundamentos da ciência, conhece os vários lados da questão. Conversa com adversários que no futuro serão separados entre vencedores e vencidos. Mas ele não sabe qual está certo. Não sabe quem será o vencedor e nem se ele está entre os que ali debatem. É neste momento que, no ato de criação, o cineasta imagina um futuro onde a caixa-preta se fechou. Ele pula todas as etapas da ciência, e usando-se apenas das controvérsias atuais projeta, com sua imaginação, uma bela fachada para fechar a caixapreta. Responde à questão. Cria preposições, faz vereditos arbitrários, diz quem venceu, quem está certo e quem está errado. Cria sua própria caixa-preta. Em termos diegéticos a caixa-preta funciona, já que no mundo alternativo quem manda e desmanda é o homem da ficção e não o homem da ciência. Notem que é feita exatamente a operação oposta àquela realizada pelos estudiosos da ciência. Esses, que já no futuro estão, abrem a caixa-preta para retornarem ao tempo que ela foi fechada, ao passado. E dessa forma entenderem toda a complexidade de seu funcionamento interno. O cineasta ou o escritor fecha a caixapreta ele mesmo, durante a sua construção, deslocando a si e ao mundo todo para o futuro. Se o cientista criou apenas uma de suas paredes da caixa-preta, ele, com a imaginação e com os recursos universais da literatura e do cinema, cria o restante e a fecha. Materializa essas controvérsias em objetos prontos, que funcionam. Quando iniciamos as reflexões neste assunto acreditávamos que essas caixaspretas criadas pela ficção científica eram impenetráveis e eternamente fechadas. Já que se um estudioso da ciência ou um cientista quisessem analisar as controvérsias do funcionamento de uma máquina da ficção simplesmente não poderiam. Os motivos são óbvios, não poderiam analisar o funcionamento de uma ilusão, não poderiam ver o funcionamento interno de um balão de ar. Veriam apenas o ar. A controvérsia se limitaria a constatar que era uma caixa-preta falsa. Mas se na tela do cinema o carro voava, então só poderíamos encarar aquilo como um objeto sem controvérsias, nossos

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olhos podiam ver que o carro voava, acreditávamos naquilo para poder acreditar na história. Um engano conceitual facilmente consertável, não se trata de um objeto sem controvérsia, é a controvérsia pura o que vemos. É verdade que para o mundo diegético aquela máquina que voa poderia ser encarada como uma caixa-preta fechada e impenetrável, naquele ambiente fílmico, mundo alternativo da imaginação coletiva de um pequeno grupo de artistas, ele era o responsável por dar a estrutura dramática necessária para a história. Em sentido estritamente cinematográfico, literário, ficcional. E embora em contextos de magia e religião, por exemplo, alguns objetos possam exercer um “efeito caixa-preta”, esse termo não é originalmente usado para representar uma entidade qualquer que apresente funcionamento bom e independente. Isso porque ela só pode ser fechada através de uma instituição: a ciência. Se houvesse essa liberdade perderíamos qualquer diferenciação ontológica e poder-se-ia classificar qualquer coisa como caixa-preta fechada, bastando-se para isso que nós nos esforçássemos em acreditar no que estávamos vendo. Mas a ciência está preparada para as ilusões, e os truques de um mágico não são encaradas como uma caixa-preta fechada apenas porque podemos ver que sua levitação deu certo. Para entender essa questão, basta pensarmos que qualquer um pode apresentar uma caixa-preta fechada, e essa pode causar um “efeito caixa-preta” porque ignoramos seu funcionamento interno complexo. Esse é o que chamamos de apresentar um argumento crível. Mas são apenas os outros que decidem se ela continuará ou não fechada. É a sociedade (científica ou mercadológica) que afirma se as controvérsias foram ou não encerradas. Como vimos acima os cineastas alimentam-se das controvérsias do atual estágio da ciência para criarem seus objetos futuristas que funcionam, mas eles não conseguem resolver as questões e calar as controvérsias. Em vez de fechar a caixa-preta, eles, ao contrário, deixam-na mais escancarada ainda, já que o que divulgam são as próprias controvérsias da ciência. Quando um cientista assiste Batman Begins, filme de 2005 dirigido por Christopher Nolan, e vê tecnologias de ponta sendo usadas indiscriminadamente, ele não deixa de questionar seu funcionamento, é da natureza científica falsear (MARSHALL, 2011). A tecnologia se apresenta como pronta, mas ele conhece muito bem os meios de verificação dessa caixa-preta. David Marshall, por exemplo, mostrou

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para a sociedade científica que Batman Begins jamais conseguiria voar com sua capa. Por mais crível que o argumento apareça na tela do cinema, não se apresenta como uma caixa-preta fechada porque quem decide isso é a sociedade científica: [...] realidade, como indica a palavra latina res, é aquilo que resiste. Mas resiste a quê? Ao teste de força. Se, em dada situação, nenhum discordante é capaz de modificar a forma de um objeto novo, então sim, ele é realidade, pelo menos enquanto os testes de força não forem modificados. (LATOUR, 2000, p. 155).

Como o objetivo de nenhum filme de ficção científica é encerrar com os debates da ciência, e sim apresentar universos alternativos em que a ciência foi para um ou outro rumo, então é um gênero cinematográfico bastante interessante para ser analisado. Justamente porque, para não-cientistas, não há uma grande prova de força, o que é apresentado em tela resiste aos testes de força da audiência porque simplesmente não há um forte teste de força. O raciocínio lógico nos leva a crer que o que é apresentado na tela pode realmente acontecer. E de fato pode! Pode porque são baseados em controvérsias contemporâneas à sua criação. Questões não respondidas que nos fazem pensar nos rumos da ciência, da sociedade, do coletivo de humanos e não-humanos. Alguns autores, como Ted Friedman (2009), chegam a ampliar para qualquer coisa, inclusive a magia, o que chama de “efeito caixa-preta”. Para ele, quanto mais avançada é a tecnologia, mais alienados em relação a ela nós somos. Há uma geração atrás, qualquer um poderia fazer manutenções em um motor de automóvel; hoje, o motor é altamente tecnológico, e não é qualquer motorista que entende seu funcionamento. Painéis inteligentes, chaves inteligentes, smartphones estão cada vez mais próximos das relações culturais com que percebemos a magia em filmes e histórias de fantasia; as coisas acontecem como que em um passe de mágicas. Para o autor, tanto magia quanto alta tecnologia exercem o “efeito caixa-preta”, porque apresentam objetos que funcionam sem que conheçamos suas especificidades. Ele nos lembra dessa relação no filme Harry Potter. O garoto bruxo, criado por nãobruxos, longe do universo mágico, sempre fica fascinado quando se depara com carros voando, panelas que se lavam sozinhas, pó de flu, etc., ao mesmo tempo em que o bruxo Arthur Weasley, pai de seu melhor amigo, trabalhando no departamento ligado aos nãobruxos, sempre expressa seu fascínio diante de tecnologias comuns, como carros ou telefones celulares.

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Eu sugeriria que, da mesma forma, nós podemos dizer, hoje, que ‘qualquer tecnologia suficientemente alienada do usuário é indistinguível da magia’. Eu caminho até o meu Prius 2008, e a “chave inteligente” no meu bolso destrava a porta automaticamente quando eu toco na maçaneta. Eu me sento, aperto um botão, e o carro se liga, com a chave ainda no meu bolso. Poderia muito bem ser mágica. (FRIEDMAN, 2009, p.05)15.

Também é interessante analisar a questão de objetos fetichistas, que talvez estejam entre os mágicos e os tecnológicos, exercendo efeitos caixa-preta e mostrando actância. Como mostra Latour em seu livro Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches (2002), os portugueses que chegaram à costa da Guiné, na África Ocidental, questionaram aos nativos se eles fabricavam com as próprias mãos seus deuses, as estátuas e totens característicos daquela região. A resposta ingênua foi que sim. Como poderiam esses africanos criar, e ao mesmo tempo acreditar que essas divindades eram reais? Ou bem eles criavam, ou bem elas eram reais. Para designar essa característica desses africanos, os portugueses teriam utilizado a palavra feitiço, tendo sua raiz na palavra feito, particípio passado do verbo fazer, ainda segundo Latour. Os modernos criticam a adoração dos totens pelos africanos, pelo fato de haverem, eles mesmos, criado seus fetiches; afirmam que não têm liberdade. Para os portugueses, há uma força invisível que manipula os nativos a acreditar que são os totens divindades de fato, enquanto esses acreditam estar adorando-os livremente; ao mesmo tempo, eles veem que existe outra força invisível projetada pelos próprios africanos nas divindades, e que os manipula. A crença dos africanos é que a força vem do objeto. A denúncia dos modernos é que a força sai dos próprios africanos, eles é que dão força aos objetos. Exatamente a operação inversa do que ocorre, com vimos, nas ciências. “A noção de crença permite aos modernos compreender, ao modo deles, a origem da ação pelo duplo vocabulário dos fetiches e dos fatos.” (LATOUR, 2002, p.34). De um lado há os objetos-encantos, do outro os objetos-feitos. Deve haver alguma força que recomponha essa dualidade, é real ou é fabricado? “A palavra

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I'd suggest that similarly, we could say today that "any technology sufficiently alienated from the user is indistinguishable from magic." I walk up to my 2008 Prius, and the "smart key" in my pocket automatically unlocks the door as I touch the handle. I sit down, push a button, and the car starts, the key still in my pocket. It might as well be magic. (FRIEDMAN, 2009, p.05)

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"fetiche" e a palavra "fato" possuem a mesma etimologia ambígua.” (Latour, 2002, p. 45). Os romancistas não dizem também que são “levados por seus personagens"? Nós os acusamos, é verdade, de má fé, submetendo-os primeiramente à questão: "Vocês fabricam seus livros? Vocês são fabricados por eles?" (LATOUR, 2002, p. 46).

A palavra fato deve ser aquela relacionada à realidade exterior, e fetiche à realidade interior do sujeito. É como se apenas os objetos fatídicos fossem capazes de agir, e os objetos fetichistas se limitassem a reproduzir a ação de seus criadores. “A dificuldade, naturalmente, está em explicar como um fetiche pode ser ao mesmo tempo tudo (a fonte de todo poder para os crentes), nada (um simples pedaço de madeira ou pedra) e um pouco de cada coisa” (LATOUR, 2001, p. 309). Fato e fetiche são aquilo que ao mesmo tempo é fabricado e não fabricado, isso fica claro ao vermos os cientistas em seus laboratórios e os africanos com seus totens. O que há em ambos os objetos? Há a formação de um coletivo. O fermento se modifica depois de Pasteur; é modificado por ele, é articulado por ele. O totem é articulado pelos negros africanos, mas é também o articulador. Humanos e não-humanos possuem agência; sempre que sua existência faz a diferença, são atores sociais. No filme De Volta Para o Futuro 2, de 1989, dirigido por Robert Zemeckis, por exemplo, o jovem Marty McFly viaja do ano de 1989 para o ano de 2015, quando está se casando. Nesse futuro alternativo, há carros voadores, skates voadores, alta tecnologia. Em seu set de filmagem, o diretor do filme e sua equipe decidiram cuidadosamente a escolha de todos esses objetos, incluindo a própria máquina do tempo: no caso, um carro. Vemos proposições, pois os objetos são logicamente aceitáveis, eles se articulam às redes que os mostram como lógicos; são apresentados como caixas-pretas de forma crível, a partir de pressupostos científicos ainda não concluídos. Esses objetos são fatos científicos ou são fetiches criados apenas para desenvolver a história? Essa questão nos guiará em muitas partes desse trabalho. “Os objetos não hesitam nem temem. As proposições sim” (LATOUR, 2001, p.177). Tal é o movimento do cinema: cria proposições científicas, transforma-as em objetos, lança-as na tela, imprime a realidade.

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2.2 Amostras do futuro e a historicidade das coisas Nesta monografia, trabalharemos com a noção de “Amostras do Futuro do Presente”, desenvolvida por nós a partir de diversos conceitos-chaves da TAR. As “amostras do futuro do passado no presente” são aqueles actantes que, em um filme de ficção científica, agem como impressores de uma realidade alternativa, futurista e altamente tecnológica. Esses actantes agem na medida em que trazem consigo, em sua aparência, funcionalidade e organização, informações sobre um futuro em que a ciência, a tecnologia e a sociedade se desenvolveram, sendo eles mesmos os testemunhos desse desenvolvimento moderno. Podem ser considerados amostras futuristas os objetos, fatos científicos, organizações, instituições, etc. Para entender como chegamos à noção de “amostras do futuro no presente”, torna-se necessário compreender algumas características que tomaremos como premissas neste trabalho. Como a ideia de existência relativa dos objetos, o princípio de simetria generalizada, o fim da relação causal nas invenções-descobertas-criações de objetos e fatos e a própria característica da historicidade das coisas. Numa perspectiva da comunicação inspirada nas contribuições materialsemióticas de Bruno Latour (2004), a informação pode ser entendida como relação estabelecida entre dois lugares, onde um deles age como centro (receptor, na linguagem dos modelos clássicos) e o outro como periferia (transmissor). O que transita entre o centro e a periferia é uma transcrição, uma coisa que faça um processo de amplificação e de redução. Em Redes que a razão desconhece, Latour (2004) narra que, quando cientistas naturalistas viajam até periferias para colher amostras locais da fauna e da flora para serem enviadas a seus laboratórios, estão praticando uma transmissão de informação por meio de inscrições. O próprio espécime colhido na periferia é uma inscrição que será levada a um centro. Esse espécime é reduzido da periferia e ampliado no centro, já que ele não circula mais em seu local de origem, mas representa todos seus iguais e também representa o próprio local que se tornou uma periferia, passa uma informação. Redes de transformações fazem chegar aos centros de cálculos, por uma série de deslocamentos – redução e amplificação –, um número cada vez maior de inscrições. Essas inscrições circulam nos dois sentidos, único meio de assegurar a fidelidade, a confiabilidade, a

63 verdade entre o representado e o representante. Como elas devem ao mesmo tempo permitir a mobilidade das relações e a imutabilidade do que elas transportam, eu as chamo de “móveis imutáveis” entre nós, para distingui-las bem dos signos. [...] quando as seguimos, começamos a atravessar a distinção usual entre palavras e coisas, viajamos não apenas no mundo, mas também nas diferentes matérias da expressão. (LATOUR, 2010, p.55).

Esses móveis imutáveis, também chamados por Latour de referentes circulantes, são essenciais para nossa noção de amostra do futuro. Da mesma forma que o espécime colhido é uma inscrição entre dois locais, um centro e uma periferia, uma amostra do futuro também opera uma relação similar. Imaginemos um robô na tela de um filme, esse robô é a própria referência circulante, age fazendo a relação entre dois lugares, o lugar em que ele está fisicamente, e o lugar onde ele está virtualmente, e neste caso vai além e faz também a relação entre dois tempos. O tempo futuro onde está o robô (um futuro alternativo), o tempo passado onde ele foi criado e o tempo presente, contexto da pessoa que assiste ao filme.

2.2.1 Tempo sedimentar: a história das coisas sem história A complexidade espaço-temporal é rompida por essa inscrição que traz consigo a imutabilidade do futuro que representa, mas que pode ser mobilizado em nosso presente para fazermos associações com nossa tecnologia atual. Estando esclarecida essa questão, vamos então caminhar para a noção de historicidade das coisas. Como vimos, Latour (2004) propõe que a informação estabelece uma relação entre dois lugares, então ampliamos esse conceito para uma relação espaço-temporal. O próprio Latour (1995) já havia debatido a questão da historicidade das coisas, questão essa que vamos aqui apresentar. Para começar todos esses conceitos dependem que tenhamos em mente o princípio da simetria generalizada (LATOUR, 1994). Neste princípio sociedade e natureza são analisadas a partir do mesmo quadro de interpretações, sem divisões entre ciência e política, natureza e sociedade. É preciso se submeter à simetria generalizada para encontrar os fenômenos e sair dos idealismos. Quando afirmamos que os objetos não têm história, isso quer dizer que entramos nos campos da natureza e sociedade, dos humanos e dos não-humanos separadamente.

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O campo da inventividade humana que impõe categorias arbitrárias na realidade. Ou ao campo da natureza, onde os objetos sempre estiveram em algum lugar apenas à espera de serem descobertos. Mas quando afirmamos que os objetos têm uma história, partimos do primeiro princípio da simetria generalizada. Humanos e não-humanos formam um coletivo. O cineasta descobre-cria-inventa o mundo futurista, mas também é criadodescoberto-inventado por esse mundo. Assim como Pasteur, o bioquímico que descrevemos anteriormente, inventou-criou-descobriu a fermentação láctea organizada e foi por ela reinventado. Por exemplo, quando um fato é uma caixa-preta pronta e estável, seus gestos permitem, desde o princípio, uma garantia de presença regular, não há duvidas de sua essência. Mas quando a caixa-preta ainda está aberta, quando a própria comunidade científica duvida do fato, não há uma essência que lhe garanta a presença regular. Neste caso, sua existência é diminuída às categorias mais ínfimas. Não há um homem capaz de observar e “descobrir” um corpo pronto, e sim um homem munido com a empiria, de “membros múltiplos e parciais” que com seu trabalho racional chega à existência do corpo, como o descreve Latour (1995), para fazê-lo surgir por uma infinidade de provas. No início desse trabalho o cientista ainda não sabe que propriedades deve atribuir a que essências, mas no final o fato possui a mesma solidez de qualquer fato já corroborado. Os atributos precedem a uma essência. E isso quer dizer que devemos abandonar a ideia de causalidade única e determinista. Não há uma causa para a descoberta de um fermento, para a criação de uma proposição, há uma infinidade de causas menores que juntas formam sua história. Existe uma rede de atores que garantem que haja uma história do objeto, e cada um dos actantes dessa rede agiram como uma causa. Não é possível fazer a soma de tal acontecimento para explicar retrospectivamente o acontecimento. Neste caso encaramos essa soma de causas como mediações “quer dizer, de uma ocorrência que não é de todo causa, nem de todo consequência, nem completamente meio, nem completamente fim” (LATOUR, 1995, p. 21).

Objeto e sujeito se confundem. Se antes era apenas uma somatória de fatores observados pelo cientista, depois se tornou ele próprio um agente, fazendo com que o cientista constatasse inegavelmente sua existência. Em um momento é apenas um

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atributo que faz parte de um processo, depois se torna o único responsável por esse processo. Mas onde se situa a grande questão da historicidade das coisas, a questão mestra que mais nos interessa aqui? Antes de ser descoberta, uma proposição e um objeto existia? Essa questão é feita e respondida por Latour (2001) em seu trabalho e é usando sua resposta muito engenhosa que iremos discutir um complexo paradoxo da ciência e da ficção científica. É claro que a proposição não existia antes de ser criada-inventada-descoberta pelo cientista. A coisa sempre existiu, antes mesmo do ser humano existir. Eis as duas respostas óbvias da assimetria natureza e sociedade, que acima discutimos. Porém não podemos debater a ontologia das coisas nesses termos assimétricos, temos que partir dos coletivos. Para responder isso do modo simétrico, continua Latour (2001), o tempo deve ser descrito ao longo de dois eixos e não apenas de um. Trata-se, primeiro, da dimensão linear do tempo que são as sucessões dos anos; esta dimensão é irrevogável, pois o tempo invariavelmente passa. O segundo eixo diz respeito sobre a sucessão sedimentar do tempo. Neste caso há sempre uma parte do que foi produzido-criado-inventado em um ano depois deste ano. Os acontecimentos produzidos em um ano são atualizados nos anos seguintes, pois novas caixas-pretas são abertas e fechadas sobre aquele ano. Então, essa questão proposta por Latour (2001) “onde estavam os germes transportados pelo ar antes de 1864?” (que diz respeito ao episódio em que Pasteur refuta as teses da abiogênese criando uma nova proposição e fechando a caixa-preta dessas controvérsias) só poderia ser respondida da seguinte forma: ‘Depois de 1864, os germes transportados pelo ar estiveram por aí o tempo todo’. Essa solução implica tratar a extensão no tempo de maneira tão rigorosa quanto a extensão no espaço. Para se estar em toda parte no espaço e eternamente no tempo, é preciso trabalhar, fazer conexões, aceitar retroadaprações. (LATOUR, 2001, p. 200).

Neste momento devemos ser capazes de analisar a “existência relativa das coisas”. Neste caso, seguimos as entidades sem usarmos os termos “sempre”, “em parte alguma”, “nunca”, “em toda a parte”. Antes do fechamento da caixa-preta a proposição não existia, mas a coisa sim. Coisas não têm de fato uma história, as proposições têm. Aí reside a historicidade das coisas, não é uma historicidade passiva, focada apenas na

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descoberta pelo humano. Questão muito bem tratada por Latour em outra citação muito importante para a compreensão desse assunto: A natureza partilha com a sociedade a mesma historicidade, sem que, no entanto, o conjunto reunificado se torne imanente ou transcendente, impessoal ou pessoal. A transcendência necessária à inovação se distribui em rodos os pequenos descolamentos pelos quais as consequências transbordam sua herança. A história das ciências transforma-se, em definitivo, no existencialismo estendido às próprias coisas. Ao tornar-se outra vez histórica, a natureza torna-se ainda mais interessante, mais realista. (LATOUR, 1995, p.22).

Essas questões já são naturalmente complexas. Mas quando acrescentamos um item desconhecido na ciência: objetos vindos diretamente do futuro, as coisas ficam ainda mais difíceis. Poderíamos inclusive chamar isso de complexo das proposições futuristas. Este complexo carrega consigo todas essas questões abordadas acima, como a relação que as coisas fazem entre dois locais que se tornam centro e periferia, agindo como inscritores e funcionando como referências circulantes; E também as questões acerca da relação que as cosias fazem com o tempo, historicidade das coisas. Tempo e espaço estão no domínio dos objetos e dos fatos científicos. Mas como funcionam essas relações quando falamos de um tempo-espaço alternativos? Os objetos continuam estabelecendo a relação espacial entre centro e periferia quando tais objetos, vindos do futuro, imprimem a realidade na tela do cinema? Projetam o futuro no presente, projetam o presente no futuro – rompem a linearidade do tempo cronológico. E qual a relação histórica que esses objetos vindos do futuro têm? Como delimitar a sedimentação de um tempo que ainda não aconteceu de fato, mas que no mundo alternativo do futuro já aconteceu? Como ocorre a sedimentação inversa? Existem tecnologias inventadas em ficções científicas que já estão tornando-se reais. A ciência teria aproveitando-se dessa sedimentação inversa para criar seus objetos? Esses objetos criados “hoje”, mas inventados “amanhã” descobertos “ontem” pertencem à que tempo? Questões que apenas a existência relativa das coisas poderia dar conta. Aqueles que foram concebidos na ficção científica, mas que começam a tornarem-se reais são objetos de “hoje” porque só agora conseguimos fechar a caixa-

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preta usando a ciência e possibilitando seu real funcionamento. Mas são, também, objetos de “amanhã”, pois foram, de fato, inventados e descobertos no futuro, no mundo alternativo onde a tecnologia já havia avançado. Além de serem objetos de “ontem”, porque sendo os filmes antigos, tais proposições já existiam há um tempo, já eram controvérsias científicas. Ontem, hoje e amanhã separam a tríade invenção-criaçãodescoberta, eis uma poderosa e complexa questão inerente aos filmes de ficção científica futuristas.

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3.PROPOSIÇÕES ARTICULADAS E INARTICULADAS 3.1 Como analisar filmes de ficção científica na dimensão normativa dos estudos da ciência Tradicionalmente, a maior parte das análises fílmicas é amplamente baseada na fenomenologia, para não dizer puramente na semiótica e psicanálise. Também podemos acrescentar um grande foco na linguagem cinematográfica e nas análises formalistas ou análises do roteiro, sendo que essas vertentes de análise já deram muitas contribuições para entender o cinema de forma mais ampla. Nosso objetivo aqui é propor uma forma alternativa de analisar filmes, especialmente filmes de ficção científica. Esse tipo de análise partirá da já mencionada noção de proposição. O cinema é um tipo de arte muito diferenciado, conhecido como a sétima arte, pois consegue aglutinar todas as formas de criação artística em sua concepção. Embora, atualmente, o cinema esteja cada vez mais democratizado por causa das novas tecnologias digitais e da possibilidade de filmes independentes, ele é tradicionalmente um ramo da indústria cultural que é feito de forma coletiva. Isso quer dizer que, como sétima arte, inclui diversos tipos de artistas para sua criação, com um amplo foco no diretor e no roteirista. A natureza imagética do cinema faz com que mundos possam ser criados e realidades possam ser construídas. Vimos, nos capítulos anteriores, como pode ser próxima a relação do ato de mostrar no cinema e na ciência. No capítulo 01, vimos que nenhum filme de ficção científica quer apresentar um fiel manual do fazer científico. O único objetivo desses filmes, na verdade, é mostrar proposições articuladas. Quanto mais articulada é uma proposição, mais impressão de realidade o filme dá, mas não se deve confundir a noção de articulado com a de verdadeiro, e do inarticulado como falso. No filme, uma assertiva pode ser falsa, como homens verdes na lua, mas, enquanto proposição articulada, ela imprime a realidade porque há ação, corpos são postos em movimento. Ou seja, se o filme apresenta uma proposição articulada, se ela mostra essa articulação, então se torna crível. Assim como a dimensão normativa dos estudos da ciência não trabalha com a clássica demarcação de ciência e não-ciência proposta por

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Popper (veremos adiante), onde assertivas são encaradas como verdadeiras ou falsas, este trabalho irá propor uma análise partindo da negação desses princípios popperianos. Neste capítulo retomaremos A análise simétrica do filme não tentará entendê-lo no contexto de real ou não-real, verdadeiro ou falso, mas tentará entender o percurso que foi feito para tornar a proposição articulada, e, consequentemente, crível. Para entendermos melhor essa divisão entre simetria e assimetria, vamos explorar um pouco mais a história dos estudos da ciência e dos pressupostos da Teoria Ator-Rede vistos no capítulo anterior. Nos filmes de ficção científica, o conteúdo ficcional e o conteúdo científico não devem ser analisados sob o prisma da referência, mas das articulações. A análise fenomenológica, por exemplo, é uma análise que se foca na referência. A diferença é que a referência estabelece uma correspondência entre o mundo e a linguagem, onde há um abismo entre os dois. Obtém-se uma referência fazendo com que uma assertiva cruze esse abismo; já a ideia de articulação trata todas as entidades como mediadores e não como intermediários. Retomando a distinção básica feita por Latour (2012) entre intermediário e mediadores, entenderemos melhor o que isso quer dizer. Intermediário é aquilo que transporta algo sem modificá-lo. Neste caso definir o que entra já, automaticamente, é definir o que sai. O intermediário sempre é uma unidade. Já os mediadores, por sua vez, não são unidades e sempre são contados como mais de um. São entidades com diversas outras associadas a ela. Os mediadores modificam a coisa transportada e geralmente também são modificados por ela. Aqueles partidários da sociologia do social (sociologia do social é como Latour chama os adeptos da sociologia clássica) acreditam que existem agregados sociais pouco mediadores e muito intermediários; mas para a Teoria Ator-Rede não existe um tipo preferível de agregados sociais, existem incontáveis mediadores. Dizer que o mundo é feito de proposições articuladas é começar por imaginar linhas paralelas, as proposições, que correm na mesma direção num fluxo laminar, e que posteriormente, devido a determinada predisposição, vão criando intersecções, bifurcações, fendas que criam muitos remoinhos transformando o fluxo laminar num fluxo turbulento. Esta metáfora rudimentar apresenta uma única vantagem: ajuda-nos a contrastar com a outra venerável metáfora do frente a frente entre uma mente subjetiva que fala por palavras sobre um mundo exterior. Já esta, pelo menos tão imperfeita como a minha, tem a enorme desvantagem de nos forçar a concebermos uma única

70 relação, a de um jogo de soma zero entre as representações na mente e a realidade no mundo: neste braço de ferro, o que quer que a mente acrescente as suas representações, perde-o o mundo, que fica apenas desvirtuado. Quando o mundo é representado com exatidão, a mente e a sua subjetividade tornam-se redundantes. (LATOUR, 2009, p. 46).

O ponto central dessa definição é a ruptura com a tese da demarcação de Popper entre ciência e não-ciência, focada na objetividade científica. Neste ponto, o leitor deve tomar cuidado para não confundir nossa fala sobre a ciência que contribui para a análise de qualquer coisa do mundo, com nossa fala sobre a ciência da ficção científica. É sabido que a teoria Ator-Rede surgiu com as contribuições de diversos pesquisadores do Science Studies. Por isso, é tênue a linha que separa nossa fala sobre a ciência para estruturar as ideias da Teoria Ator-Rede e nossa fala da ciência para analisar seu jogo de significados em filmes de ficção científica. É claro que ambas as falas contribuem umas com as outras, especialmente quando o social a ser analisado se agrega graças ao científico (sendo verdadeira também a operação oposta). Antes de aprofundarmo-nos nos conceitos simétricos, vamos contextualizar a assimetria. Popper (1972) começa seu livro, A Lógica da Pesquisa Científica, atacando a forma indutiva de pesquisa empírica. É partindo do ataque a todas as formas de indutivismo que ele propõe sua teoria dedutivista. A lógica indutivista é aquela na qual partimos de enunciados particulares para enunciados universais. Se o observador vê dezenas e dezenas de casos iguais, infere que todos os casos são da mesma forma como cansou de ver. Entretanto, está claro que o resultado de pesquisas particulares diz respeito apenas a verdades particulares. Se a observação aponta para mil casos iguais, isso quer dizer apenas que os mil casos particulares são iguais, é vetada a inferência ao universal. Segundo Reale (2006) a pesquisa científica tal como Popper a apresenta deve ser iniciada pelos problemas. Para resolver tais problemas, são criadas hipóteses na tentativa de solucionar os problemas. Uma vez propostas, as hipóteses devem ser provadas. E essa prova acontece extraindo consequências das hipóteses e vendo se tais consequências se confirmam ou não. Caso ocorram, as hipóteses tornam-se confirmadas, caso não ocorram, tornam-se falsificadas. Por isso que para ser provada uma teoria, ela deve ser verificável em princípio, o que na linguagem popperiana, quer dizer que deve ser falsificável. Ela deve ter uma natureza tal, que possam ser extraíveis consequências que possam ser refutavas e falsificadas pelos fatos.

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Portanto, nessa concepção, uma teoria metafísica de hoje pode tornar-se uma teoria científica amanhã (como a teoria atomística, que passou do metafísico para o científico). Esse é o método dedutivo de controle, onde se extrai as consequências da teoria sob controle, no seu confronto com as assertivas de base (os protocolos), que descrevem os fatos. Neste passo, podemos nos lembrar da famosa afirmação básica da teoria de Popper em relação à verificação e a falsificação. Ele diz que bilhões de confirmações de uma teoria não a tornam verdadeira, mas que apenas um fato negativo falseia a teoria toda. Essa epistemologia coloca no erro a força da verdade: para ser verdadeira, a teoria deve poder ser falsa.

3.1.2 O princípio de falsificação de Stengers-Despret Ao longo dessa monografia demos vários exemplos da história da ciência em que, através de articulações, proposições surgiram. Também trouxemos exemplos da ciência em que, mesmo uma fotografia do fato científico não consegue fazer simples relação com a realidade. Agora é hora de falarmos sobre as dimensões normativas dos estudos da ciência que utilizam a proposição como base no princípio de falsificação, e não a simples referência. Para nos situarmos melhor no debate sobre o assunto vamos apresentar um texto de Bruno Latour (2009) onde os princípios de Stengers-Despret são usados para falar sobre a aprendizagem do corpo; corpos articulados e inarticulados. As ideias apresentadas ao longo do item 3.1.2 são todas do texto de Latour baseado nas ideias de Stengers e Destret, Como falar sobre o corpo nas dimensões normativas dos estudos da ciência (LATOUR, 2009). Para ele, ter um corpo é aprender a ser afetado por entidades externas que tenham actância para pôr em movimento tal corpo. Sendo assim, ter um corpo é ser afetado por outros atores, mediadores. Essa definição de corpo pretende livrar-se da definição de uma essência, uma substância. O corpo é encarado como uma interface que pretende ser cada vez mais descritível ao passo que é afetado por mais elementos. O corpo é antes “[...] aquilo que deixa uma trajetória dinâmica através da qual aprendemos a registrar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo” (LATOUR, 2009, p.39). Não sendo necessário definir o corpo diretamente, mas sim sensibilizá-lo para o que são esses outros elementos que o coloca em movimento. Por isso Latour diz que

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tentará falar não sobre o corpo e si, mas sobre o que chama de “conversas do corpo”, as diversas formas como o corpo se envolve em redes de outros atores que relatam aquilo que o corpo faz. Para não cair diretamente em discursos dualísticos e holísticos, seu debate calca-se na noção de proposições em vez de ater-se nas noções de afirmações. Para exemplificar isso, Latour recorre ao exemplo de treinamento de “narizes” feito pela indústria de perfumes, onde utilizam um kit de odores contendo uma série de fragrâncias. Disposto gradativamente do mais suave ao mais abrupto. Para ele esse é um bom exemplo porque deixa o leitor distante dos casos médicos que são recorrentes quando o assunto é o corpo, ao mesmo tempo em que aproxima de questões de estética e de competência. E por ser um assunto ligado as fragrâncias, também deixa com um contato próximo com a química pura e dura. Após uma semana de treino, um nariz originalmente mudo e incapaz de distinguir mais do que odores simples como doce ou azedo torna-se apto a distinguir as mais sutis formas olfativas. Quando a pessoa tem essa capacidade ela passa a ser chamada de “nariz” e torna-se apta para dar vereditos seguros quanto a diversos odores. É muito parecido com o treinamento de afinação nos instrumentos não-temperados. Quando o músico começa seus estudos não consegue distinguir bem diferenças sutis de desafinação, mas com o tempo e com o treino passa a ter um ouvido afinado e capaz de perceber a harmonia e a desafinação dos sons. Este modelo de aprendizagem, chamado de “aprender a ser afetado”, deve ser distinguido de outro modelo que pode paralisar a descrição proposta sobre o corpo. E é esse o ponto fundamental do texto de Latour, o contraste entre os dois modelos de aprendizagens, um calcado nas proposições e o outro nas afirmações. No modelo negado por Latour, com base em Stengers e Despret, como ponto de partida, há um corpo correspondente há um sujeito, há um mundo correspondente a objetos, e há um intermediário, correspondente à linguagem que estabelece ligação entre mundo e sujeitos. Neste caso existe um abismo entre sujeito e mundo, e entre esse abismo há uma ponte chamada linguagem. Neste modelo, diz Latour, torna-se muito difícil apresentar a aprendizagem do corpo. Já que o sujeito está ‘ali dentro do corpo’ como uma essência definida; e a aprendizagem ou as associações não são necessárias para a sua existência. O mundo, igualmente, está ali e existe independentemente de afetar ou não os outros. E os intermediários (linguagem, kit de odores), que só tem a

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função de transportar coisas imodificáveis, desaparecem, pois sua função é apenas fazer a ligação entre sujeito e mundo. Viveríamos em uma bifurcação do mundo, termo que Latour toma emprestado de Whitehead: “[...] ou temos o mundo, a ciência, as coisas, e não temos sujeito; ou temos sujeito e não temos o mundo, aquilo que as coisas são realmente. Está, assim, montado o cenário para uma longa discussão sobre «o» problema mente-corpo -, bem como para intermináveis sucessões de argumentos holísticos procurando «reconciliar» o corpo fisiológico e fenomenológico num todo unitário” (LATOUR, 2009, p.42).

Por isso o objetivo final de todas as pessoas seria adquirir um corpo, já que sem um corpo não conseguiriam cheirar melhor, sem o laboratório os analistas químicos não seriam capazes de fazer uma química melhor, assim como sem fábricas não poder-se-ia produzir industrialmente melhores fragrâncias. Antes de passar pelo treino com o kit os alunos desempenhavam o mesmo comportamento frente a diferentes odores, a isso Latour chama de inarticulados. Um sujeito inarticulado é aquele que sempre faz ou diz o mesmo independentemente do que os outros disserem. E o sujeito articulado, por sua vez, é quem aprende a ser afetado pelos outros, e não se limita a si próprio. Articulação é a capacidade de ser afetado pelas diferenças e não de conseguir falar com autoridade. Quando o sujeito é posto a agir, posto em movimento, e a interagir com outras entidades associadas, ele torna-se um sujeito articulado. Ser articulado é poder trazer os diversos mediadores que tornam possível adquirir um corpo. O kit de odores articula percepções que tornam seus usuários articulados frente a uma série de novos odores. Neste passo, na articulação não existe essência nem imanência, já que existir é agir, e agir é ser articulado. Depois de treinados os narizes, a palavra «violeta» carrega finalmente a fragrância da violeta e de todas as suas tonalidades químicas. Através da materialidade dos instrumentos da linguagem, as palavras finalmente transportam mundos.[...] A semelhança não e o único meio de incorporar mundos nas palavras - como se prova pelo facto de a palavra violeta não cheirar a violeta, ou de a palavra «cão» não ladrar -, embora isto não signifique que as palavras pairem arbitrariamente sobre um mundo indizível de objectos. Além do mimetismo, a linguagem dispõe de vastíssimos recursos para se fixar na realidade. (LATOUR, 2009, p. 44).

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Ao contrário do que afirma o famoso enunciado de Wittgenstein, ao qual Latour se refere de forma irônica, o que não pode ser dito pode ser articulado. O enunciado de Wittgenstein é a tese 7 do Tractatus-Lógico-Filosófico, TLF7, (REALE, 2006): "Aquilo de que não se pode falar deve ser calado". A articulação jamais termina, e a referência sim, é essa a vantagem decisiva em relação às afirmações. Depois de validada a correspondência entre afirmação e situação de causa, nada mais pode ser acrescentado (menos quando surge uma dúvida quanto a qualidade dessa correspondência, aquilo que Kuhn chama, no contexto da ciência normal, de anomalia, que dá o caráter revolucionário à ciência). Na articulação isso não acontece, porque não se espera aqui que surja uma versão única que feche a discussão com uma afirmação, não há divisões entre vencedores e vencidos. Quanto mais controvérsias articulamos, mais vasto torna-se o mundo. Para se tornar sensível ao efeito de mais entidades diferentes, é necessário também ter mais mediações para adquirir um corpo. Quanto mais incorporado, melhor é o corpo. Mas se a chave está na articulação, então o que é, afinal, que é articulado? Nem palavras, nem coisas são articuladas. Nem o mundo imutável e sem história, nem a linguagem que transporta esse mundo. Nada o que passa pela frágil ponte da correspondência é articulado, que são inegociáveis e frágeis, que nada dizem enquanto não disserem a cosia em si. O que é articulado são as proposições. As articulações, que não partem de um plano de referência com o real, são tanto reais quanto construídas. Realidade e artificialidade são sinônimas.

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Imagem 8. O modelo das proposições e o modelo das assertivas. A imagem a seguir for tirada do livro “A Esperança de Pandora”, página 164.

3.1.3 Oito passos para fazer uma epistemologia política S-D Bruno Latour em seu texto Como falar do corpo nas dimensões normativas dos estudos da ciência, apresenta oito princípios básicos de falsificação da epistemologia política de Stengers e Despret (S-D). Todas essas distinções partem do princípio de proposições articuladas e inarticuladas apresentadas acima. 1) O científico é um raro ingrediente na ciência. Não há uma metodologia geral do científico aplicável a todas as instâncias. A objetividade mágica de um campo não pode ser transportada para o outro. Latour apresenta uma das mais básicas e principais distinções entre a epistemologia política S-D e a epistemologia de Popper. Esta segunda foi feita para distinguir o que é ciência, e, ainda, o que é ciência boa e o que é ciência má. Já a distinção de Stengers, sua epistemologia política, foi criada para “[...] cortar não só por dentro das ciências (mesmo das mais duras), mas também aceitar diligências

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articuladas interessantes, que os outros cortes teriam simplesmente deixado bastante de fora da ciência” (LATOUR, 2009, p.48). 2) Em segundo lugar, para ser científico o conhecimento precisa ser também interessante. Ser interessante significa ser fecundo, ser original, ser capaz de mover outros atores. Não basta ser científico ao modo Popper, em uma epistemologia política o conhecimento tem que atrair olhares, investimentos, ser capaz de gerar discussões e ser capaz de ser replicado entre diversos outros atores. Ser interessante é ingrediente fundamental para ser articulado. Se for chato, redundante ou meramente correto, então há uma má articulação. 3) Mas além de ser interessante, um conhecimento precisa ser também arriscado, nos princípios de S-D. Na verdade não é possível ser interessante se não for, também, arriscado, para a partir disso angariar o status de articulado. Para ser arriscado o cientista precisa colocar em cheque sua posição de estar no comando. As questões falsificatórias que impõe o “sim” ou o “não” devem ser repensadas, requalificadas pelas entidades alvo do experimento. De forma que, ser arriscado é questionar se as perguntas para falsificar que o cientista está fazendo estão certas. 4) A quarta norma de falsificação S-D descrita por Latour é que devemos procurar, tanto em ciências naturais quanto sociais, entidades recalcitrantes em humanos e não-humanos. Ser recalcitrante é fazer a diferença, é agir. Este ponto reforça o primeiro porque não procurar uma metodologia geral da ciência porque tanto ciências sociais quanto naturais tem que se arriscar para reformular seus métodos com base no que aqueles que elas articulam falam. As pesquisas no modelo S-D devem ser feitas de modo que maximizem a recalcitrância das entidades interrogadas. Este princípio é, no entanto, mais difícil de aplicar em humanos do que em não-humanos. Os humanos têm a tendência de perder suas recalcitrâncias quando confrontados com os cientistas, que tudo tem a dizer sobre eles e pouco escutam sua metafísica própria. 5) Ser científico em S-D é dar voz para aquilo que ainda não tem. Falar e escrever, portanto, não é representar entidades mudas, mas sim propriedades de proposições bem articuladas entre si. O quinto princípio S-D corta por dentro de todas as disciplinas. Para os protocolos serem científicos é preciso que o cientista seja interessado, e não desinteressado, por um objeto igualmente interessante. Só assim o cientista proporciona ocasiões ideais para dar recalcitrância ao que é estudado. Logo,

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não existe uma ordem hierárquica una dentro das disciplinas, o que importa aqui é se o cientista é interessado, se o objeto estudado é interessante e se as articulações são boas. Desse modo, o quinto princípio quer oferecer ocasiões para diferir entre a boa e a má ciência dentro das disciplinas. 6) Opor-se ao mito da objetividade científica não é dizer que a ciência deve ser empática. Ao contrário, é afirmar que não é nem empática e nem distante o que define a ciência bem articulada. Não é evitando os preconceitos e as empatias que conseguiremos atingir o conhecimento bem articulado, mas sim considerando todos esses preconceitos e colocando-os em risco no contexto do laboratório. A distância e a empatia devem, antes de tudo, servir para maximizar as articulações do que é estudado. Se a distância maximizar então ela deve ser usada, mas se for a empatia quem da maior recalcitrância aos atores, então vale a mesma regra. A distância deve existir como um princípio apenas para demarcar o mundo antes e depois da pesquisa. Se há distância entre o antes e o depois no novo repertório de ações do que foi estudado, então se fez boa ciência. 7) Científico, nos protocolos de S-D é aquilo que define uma articulação entre proposições que permita ser mais articulada. Dizer que a ciência deve avançar para mais proposições articuladas é romper totalmente com a tese popperiana da generalização do conhecimento científico, em que as leis devem ser sintéticas de forma que reúnam, em um só enunciado, fenômenos muito dispersos. Popper, ao excluir os vencidos da ciência, ignora as outras versões que um fato pode ter, elimina as versões alternativas. Pensar em proposições mais ou menos articuladas nos permite pensar em boas e más generalizações. As boas generalizações permitem relacionar fenômenos muito diferentes, criando mais reconhecimento de diferenças inesperadas. As más generalizações são aquelas que, ao conseguirem muito sucesso localmente, tentam produzir uma generalidade através da desqualificação como irrelevantes das diferenças. Não devemos não fazer generalizações, mas sim uma generalização que corra também o risco de ser ao mesmo tempo geral e compatível com versões alternativas. 8) As falseabilidade de S-D, ainda segundo Latour (2009) pedem mais articulações, descrições mais arriscadas, mais compatibilidade, então poderíamos até estar falando de política. Aqui qualquer epistemologia é uma epistemologia política. A oitava e última característica diz que os humanos tendem a obedecer à autoridade

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científica de uma forma jamais vista mesmo na política. O corte correto não é o que distingue ciência de política, mas sim o que distingue inarticulação (ciência ou política redundantes e desinteressantes) e proposições bem articuladas. É preciso permitir um mundo comum. O critério de demarcação de Popper é assimétrico, porque distingue em primeiro lugar o científico do não-científico de forma bastante limitada, comparado ao modelo SD. É científico apenas aquilo passível de ser falseado. O que é científico hoje pode não o ser amanhã, e vice-versa. E o que é científico se afirma pela oposição do verdadeiro e do falso, novamente sua marca assimétrica. Em sua lógica, pouco importa como é concebida uma teoria, vinda de um sonho ou da metafísica, mas para ser científico ela deve poder ser submetida à racionalidade da lógica acima descrita. Como se o pesquisador, ao narrar a verdade sobre o mundo, cruzasse o abismo que separa coisas e linguagem por meio de sua criatividade submetida à racionalidade. Nessa lógica de separação entre vencedores e vencidos, há uma distinção clara entre o que é científico e o que não é. Ao passo que se poderia, aos olhos de um racionalista lógico desses, até dizer que um certo filme de ficção científica deixou de ser ficção científica e passou a ser apenas ficção após ter sua “tese” futurista vencida pela ciência moderna, já que o ingrediente científico fora apontado posteriormente como algo não-científico. Todavia, isso, do ponto de vista da ficção, não faz nenhum sentido de qualquer forma, como apontamos no capítulo um. Mas é essa racionalidade que Stengers (2002) questiona na hora de propor outra linha de demarcação. Um dos argumentos de seu livro, A invenção das Ciências Modernas, é que existe uma forma de observar a ciência que visa o jogo nas controvérsias, e não a construção racional do fato, dividido entre vencedores e vencidos. Apenas a lógica seria o ingrediente que distingue um saber científico. Entretanto, o cientista não é apenas um ser inserido em um contexto social e histórico. Para a autora, o cientista é, na verdade, um ator que tira proveito e partido ativo de todos os recursos desse ambiente para fazer prevalecer suas teses. Ele também esconderia, segundo Stengers, todas as suas estratégias sob a máscara da objetividade. Essa visão coloca em cheque justamente a objetividade científica, apresentando o cientista como um homem que sempre está acompanhado de uma coorte de aliados, em que, em vez de privar-se heroicamente de qualquer recurso de autoridade política ou de autoridade ao público,

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utiliza-se de recursos sociais e políticos para fazer surgir um fato científico em suas lutas contra as controvérsias rivais. Trata-se de uma visão de racionalidade científica que traduz uma visão da realidade como manipulável. E é essa visão, que Latour (2009) chamou de “epistemologia política”, que nos interessa como ponto de partida para pensar o mundo como proposições articuladas ou inarticuladas. A assimetria entre confirmação e falsificação não dá origem, portanto, a nenhuma regra lógica. Para Popper, ela tem antes o estatuto de oportunidade para uma ética: é porque ele explora esta assimetria, o que a lógica não o obriga a fazer, mas que ele pode decidir-se a fazer, que o cientista é cientista. Esta decisão encontra seu sentido na "finalidade" da ciência: a produção de novidade, novas experiências, novos argumentos, novas teorias. Aquele que, como o marxista ou o psicanalista, segundo Popper, aproveita-se da relação de força que lhe permitira interpretar sempre um fato de maneira a deixar a sua teoria intacta, permanecerá logicamente irrepreensível, mas nunca criara uma ideia nova. Aquele que, como o Einstein popperiano, escolhe expor-se à refutação tomará a única via aberta na busca da verdade, que Popper conjuga, portanto com uma estética de risco e de audácia. (STENGERS, 2002, p. 41).

A articulação jamais termina, e a referência sim. Após passada pela lógica popperiana a assertiva só pode ser verdadeira ou falsa. Depois de estabelecida a relação nada mais pode ser acrescentada à referência. Na articulação, isso não acontece, porque não se espera aqui que surja uma versão única que feche a discussão com uma afirmação. Articulação é a capacidade de conseguir ser afetado pelas diferenças e de não conseguir falar com autoridade, e é essa capacidade que buscamos na hora de analisar um filme de ficção científica. Quando o sujeito é posto a agir, posto em movimento, e a interagir com outras entidades associadas, ele torna-se um sujeito articulado. Não se trata de uma simbolização arbitrária de um mundo feito por um sujeito. Num maravilhoso caso de loucura paradoxal, aqueles que imaginam que as afirmações têm uma correspondência simples com o mundo perseguem um objetivo absolutamente autocontraditório: querem calar-se e ser tautológicos, ou seja, repetir exatamente no modelo o original. Isto e, evidentemente, impossível, e daí o esforço constante dos epistemólogos - e o seu constante fracasso, a sua constante infelicidade. Já as articulações podem facilmente proliferar sem deixarem de registrar diferenças. Pelo contrário, quanto mais contraste se acrescenta, a mais diferenças e mediações se fica sensível. As controvérsias entre cientistas destroem afirmações que tentam desesperadamente reproduzir matters of fact; mas reforçam as articulações, e reforçam-nas bem. (LATOUR, 2001, p. 44).

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A proposição não é a palavra destinada a distinguir o verdadeiro do falso, como o termo assertiva, que vem da epistemologia. As afirmações ou são reais ou são construídas. Já nas articulações, que não partem de um plano de referência com o real, essa divisão não existe. Uma vez que realidade e artificialidade são sinônimas, e não antônimas, como foi mostrado ao longo dessa monografia, partimos da ideia de que toda a realidade é construída por meio de articulações de proposições. A proposição é aquela palavra que procura distinguir em sentido ontológico o que um ator pode oferecer a outros atores. Neste caso, é interessante conceder às entidades a capacidade de unirem-se umas às outras através de eventos, de ligarem-se em forma de rede a atores que tenham actância. Dessas proposições, devem-se analisar suas articulações; a articulação não é uma propriedade da fala humana, não diz respeito às formas de produção de sentido sobre o mundo; é, antes disso, uma propriedade ontológica do universo, que diz respeito às próprias coisas, se essas proposições sobre o mundo são ou não bem articuladas. (LATOUR, 2009, 2001). A visão tradicional de análise não nos interessa muito, porque ela se foca, em parte, em uma noção de constructo social (identificam, por exemplo, os tipos sociológicos, como se atores fossem meros intermediários que desempenham um papel preestabelecido na estrutura do social, ou aplicam teorias fenomenológicas que procuram estabelecer uma relação da linguagem com o mundo). No filme de ficção científica, proposições são apresentadas, o objetivo de nossa análise fílmica é descrever suas articulações e suas inarticulações. Levando em consideração o ambiente de criação do filme e todos os elementos que trazem alguma actância para o ambiente diegético e também para a compreensão da história pela audiência. É este justamente o principal postulado da TAR: os atores fazem tudo, seus quadros de referência, suas teorias, suas metafísicas e até mesmo suas ontologias. A boa descrição, portanto, é aquela que não precisa de uma explicação; acrescentar uma explicação a uma descrição é acrescentar uma força, uma energia, para que os atores possam agir. Ora, se o ator precisa de uma explicação, então não é um ator, e sim um mero intermediário. Por isso, a palavra análise não é a melhor palavra para ser utilizada nesta monografia. Talvez a expressão descrição fílmica caiba melhor no que estamos propondo. Contudo, vamos manter a utilização da palavra análise, pois entendemos que

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descrever articulações também é um processo analítico. A TAR não é uma teoria que foi construída para representar um argumento positivo sobre alguma coisa, ela não diz nada sobre a coisa estudada, sendo, portanto, inaplicável no sentido tradicional do termo em sociologia. É uma teoria que, em vez de explicar alguma coisa, procura conceder, (do ponto de vista metodológico) aos atores, meios para se expressarem. Ora, não foi justamente a aplicação universal de teorias (especialmente na psicologia, onde uma teoria podia ser aplicada a qualquer fenômeno, mas também nas ciências sociais) o que incentivou Popper (1972) a combater o método indutivo? Verdades universalmente aplicáveis são perigosas. Se aplicarmos algo analisando um objeto, podemos provar a aplicabilidade da teoria, mas de que isso serve para entendermos melhor o objeto? Melhor é quando uma teoria social não pode, nunca, ser aplicada; a TAR são lentes de óculos que fazem nossa vista tomar outras cores, e não tintas que nos permitem pintar o social da cor que quisermos.

3.2 Algumas característica do texto O texto não é apenas uma vidraça transparente que transporta uma verdade, uma realidade, uma explicação (LATOUR, 2012). Não é um espelho fidedigno da realidade. O texto é o próprio método do fazer científico. Não é mera comunicação do resultado final de uma pesquisa, ou de uma análise, mas sim parte integral da análise, da pesquisa, da descrição. É no texto que podemos descrever a rede de atores envolvidos no social. Cada um desses atores cria seus próprios quadros de referência, sistematizam suas próprias informações, descrevem suas próprias ontologias. O texto é o equivalente funcional de um laboratório. Enquanto o químico manipula substâncias construindo representantes da realidade (ou a própria realidade) em tubos de ensaio, o pesquisador das ciências humanas deve aprender a descrever. O mantra da TAR, diz Bruno Latour (2012), sempre será: descreva, escreva, descreva, escreva. Para isso, é ideal que não tentemos preencher lacunas; se os atores não agem, não sistematizam, não dizem sobre si mesmos, nada mais podemos, nós, acrescentar. Uma metáfora cartográfica descrita por Latour (2012) explica bem essa ideia: não é possível, para um cartógrafo do século XVIII, descrever um mapa de um lugar jamais

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visitado. O mapa fica em branco. O caso é que quando as entidades agem geralmente elas deixam rastros, pois agem ligadas a alguma rede. Pode-se, então, rastrear essa rede e descrever o assunto. Caso contrário, nada deve ser dito sobre o que é invisível e não deixa rastros. Sabemos que há um homem invisível na areia, mas não sabemos que há um homem invisível sobre o mármore frio e liso. E é rastreando as evidências dos actantes, descrevendo suas articulações e associações ao longo da história, que iremos escrever e descrever os filmes de ficção científica. Não se trata, portanto, de analisar a obra cinematográfica aplicando uma teoria, mas sim de descrever a rede de articulações que de seus atores ramificam para mover a história. Iremos analisar a obra sim, mas apenas o que os atores dizem sobre si. Mas, como aplicar isso à uma obra de arte? Diríamos que da mesma forma como é aplicada para descrever o social. Sem análises estruturalistas e fenomenológicas, apenas descrições. Não se podem fazer inferências sobre o que é indescritível. Isso não quer dizer que os simbolismos devem ser descartados ou ignorados. Se são móveis imutáveis, assim os descreveremos, mas, se forem alegorias, outra descrição ocorrerá. Se há uma intertextualidade explícita, uma referência, um simbolismo, então o actante (neste caso a obra de arte) liga-se a uma rede; deve-se descrever esse movimento. Se sua ação alegórica transmite uma mensagem, essa mensagem indireta estabelece uma relação entre a coisa alegórica e a sua realidade ontológica. Se for possível descrever essa relação, então a descrição deve ser feita. Tampouco esse movimento deve ser forçado. Se queremos saber mais sobre a ontologia dos atores frutos de obras de arte, então devemos dar ouvidos às suas descrições ontológicas, ver o percurso de atuação desses atores e jamais tratá-los como alegorias que querem dizer outra coisa, sem que na verdade haja essa relação alegórica. Se forem de fato alegorias, então devemos conseguir descrever essas alegorias, mas não devemos classificá-las enquanto tal a priori, para poder fazer, depois, uma análise. Essa classificação deve ocorrer caso consiga-se fazer uma descrição do movimento que dá sentido à alegoria, ou seja, o actante deve conseguir por ele mesmo, explicar sua ontologia. Um mundo futurista, com máquinas futuristas e pessoas futuristas. Uma nave espacial. Uma máquina do tempo. Um supercomputador. Um homem feito com partes de outros homens. Um robô com sentimentos humanos. O que esses atores

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representam? Não representam. A resposta é que, se buscarmos representações, se olharmos para esses atores como meros intermediários em vez de olharmos para eles como mediadores, então nos limitaremos a preencher lacunas, a explicar o subliminar (que por estar abaixo do limiar não deveria ser explicado), a descrever inferências. Esses atores não representam nada (a menos que sua ontologia seja representativa e alegórica). Esses atores são o que são, agem como agem, e nossa função é descrever como agem e como a história se move. Tratando-se de uma abordagem sociológica das associações, o leitor pode questionar o quão científico essa descrição poderia ser. Como será possível manter uma postura crítica sem recorrer ao estruturalismo puro e simples, com “meras descrições”? A questão é que não é preciso descrever um habitus para ser científico, não é preciso conhecer as funções sociais preestabelecidas, em que atores são substituíveis, e analisar como o social transforma as ações dos atores para ser científico. Ao contrário, fica impossível para nós explicar ou analisar essas ações de atores utilizando o social, porque é da ação desses atores que emerge o social. Como usar o social para explicar ou analisar uma ação que faz o próprio social surgir? Impossível tarefa.

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4. OS COSMONAUTAS : DESCRIÇÕES PRELIMINARES

Os Cosmonautas Gênero: Comédia e Ficão Científica Diretor: Victor Lima Duração: 90 minutos Ano de Lançamento: 1962 País de Origem: Brasil Elenco: Ronald Golias, Grande Otelo, Álvaro Aguiar, Neide Aparecida, Telma Elita, Carlos Tovar, Brigitte Blai, Wilson Grey, João Loredo, Suzy Montel, Dilma Cunha. Um grande prédio com os letreiros “Centro de Pesquisas Espaciais Base de Cabo Carnaval” anuncia o programa espacial brasileiro, motor central de Os Cosmonautas. Vemos, também, já no início do filme, prédios de arquitetura semelhantes às de Oscar Niemeyer contrastando com um grande foguete. Uma base com esse nome expressa, já no início da história, uma informação peculiar sobre o programa: ele parte de uma imitação do Programa Espacial Americano, já que, naquele país, os lançamentos eram feitos da Base Cabo Canaveral, no estado da Flórida. Entretanto, há, ao mesmo tempo, uma nacionalização nessa cópia, um afirmar da “brasilidade” do programa. O que poderia ser mais brasileiro do que o carnaval, em um contexto globalizado em que a cultura nacional é percebida pelos outros países? Junto ao prédio, alguns homens transitam, todos com capacetes de proteção; provavelmente são técnicos ou engenheiros que trabalham para o Centro de Pesquisa. A movimentação dessas pessoas mostra que a instituição está em plena atividade. Outro importante ponto coincidente é o foguete Nacionalista Primeiro, lançado logo nos primeiros minutos do filme. O foguete Nacionalista Primeiro (IMAGEM 8) é cópia do americano Mercury Redstone (IMAGEM 9), tanto em forma, quanto em conteúdo. Foi no projeto Mercury Redstone que, em 1961, os estadunidenses enviaram um macaco ao espaço, e, logo em seguida, o americano Alan Shepard, segundo homem a ir ao espaço. No filme, o Nacionalista Primeiro enviou o macaco Frederico para a órbita da Terra, representando o pontapé inicial de um programa que teria como objetivo colocar o Brasil no contexto da corrida espacial.

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Meses antes, Yuri Gagarin havia sido o primeiro homem a ir ao espaço. Feito que, juntamente com o lançamento do Sputnik – primeiro satélite artificial a ser lançado ao espaço, o Lunik, primeiro satélite a orbitar a Lua e a fotografar seu lado oculto, e o envio da cadela Laika (primeiro ser vivo a ir ao espaço), colocaram a União Soviética em posição de supremacia em relação aos Estados Unidos, que, em reposta, prometeram que enviariam o homem à Lua em, no máximo, dez anos. O projeto Mercury Redstone foi o embrião dessa promessa.

Imagem 9. À esquerda, foguete americano Mercury Redstone, responsável por enviar o primeiro macaco ao espaço e, também, o primeiro homem americano. Imagem 10. À esquerda, um take do filme Os Cosmonautas (1962), em que se mostra o lançamento do foguete brasileiro Nacionalista Primeiro, lançado da base de Cabo Carnaval. Devido à diferença de fotografia entre o restante do filme e o take em que aparece esse foguete, podemos dizer que ocorre, inclusive, uma colagem das imagens do próprio Mercury Redstone.

O líder da Base de Cabo Carnaval é o Professor Inacius, um homem respeitado, apresentado como o construtor do foguete e o gênio por trás do programa espacial brasileiro. Embora trabalhe como líder de um grande centro de pesquisas, todos os créditos são dados ao professor e os outros cientistas parecem desenvolver apenas o papel de supertécnicos: desprovidos de criatividade, agem sob os mandos e desmandos

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do Professor. Suas falas são frequentemente confusas, troca palavras de lugar no meio do enunciado, se distrai fácil e parece não estar atento ao mundo ordinário. Esse perfil o coloca, um pouco, como o clássico cientista louco; embora seja um gênio, parece viver em lapsos com a realidade. As proposições apresentadas até aqui se articulam muito bem: o fato do cineasta ter utilizado imagens reais de um foguete contrastadas com toda a contextualização da história mostra algumas associações sendo feitas. A base brasileira é bem estruturada: o filme mostra, logo no início, alguns aparelhos, canos, mostradores analógicos e digitais, o que constrói bem o contexto de um laboratório. Além disso, toda a operação de lançamento é pautada pela imprensa brasileira, mostrando as repercussões que o lançamento do foguete brasileiro causou, e também a pergunta que fica entre todos: “Quem será o próximo Cosmonauta a embarcar no Nacionalista Segundo?”. O professor Inacius faz uma mudança nos planos e decide enviar dois Cosmonautas ao espaço, em vez de enviar apenas um. E reforça qual é o ideal de seu programa: chegar à Lua antes das outras potências que lutam pelo espaço, para, com isso, conquistar o respeito do Brasil em nível internacional. Para escolher quais homens são mais apropriados, ele constrói um aparelho chamado Cosmonautrômetro (IMAGEM 10). O Cosmonautrômetro é um aparelho altamente tecnológico, criado por Inacius, para analisar a constituição orgânica de cada candidato, indicando se poderá ou não ser lançado ao espaço. Quando todas as luzes do aparelho se acendem, então há a indicação do Cosmonauta.

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Imagem 11. O Professor Inacius mostrando sua criação para seus colegas cientistas. O Cosmonautrômetro é um aparelho feito para identificar a melhor pessoa para ser um Cosmonauta.

Muito diferente foi a forma de seleção feita pela União Soviéticaao enviar o primeiro homem ao espaço; Yuri Gagarin passou por uma rigorosa seleção baseada nas habilidades técnicas, as dimensões do corpo e seus resultados em diversos exames. No final da seleção, o astronauta ficou empatado com outro piloto russo, mas foi escolhido porque era de origem humilde e representava um ideal socialista. O caso do filme é bem diferente. O professor Inacius utiliza-se de uma artimanha para respaldar um problema ético. Quer enviar à Lua um homem que seja inútil para a sociedade; caso o projeto dê errado e o homem morra, ninguém iria sentir sua falta. Para isso, chama Zenóbio, que é chefe do FBI – Fiscalização Brasileira de Investigação – para encontrar alguém que tenha esse perfil. Zenóbio chega à Base de Cabo Carnaval em companhia do macaco Frederico, que, ao sentar-se no cosmonautrômetro, faz com que todas as luzes se acendam, comprovando que o aparelho realmente funciona. É com essa missão dada a Zenóbio que entramos em contato com os brasileiros médios, encontrados na rua e não no contexto do laboratório apresentado até então. O chefe do FBI, que achava que conseguiria encontrar “gente desnecessária” com facilidade, surpreende-se ao ver que não seria tão fácil assim. Tenta encontrar no

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pedinte e no gari esse tipo de pessoa. Contudo, o Gari se mostra irritado, e diz que tem estabilidade, que ganha mais de 30 mil cruzeiros (pouco menos de 3 salários mínimos na época, segundo site do Governo Federal16). O pedinte também mostra que já faturou muito e que não é nada desnecessário. Ao mesmo tempo, um outro personagem, Gagarino, tenta vender um aspirador de pó, se metendo em diversas encrencas. O vendedor, que tem “recordes absolutos de vendas negativas”, se esforça para vender o equipamento, senão irá perder o emprego. Depois de se meter em diversas enrascadas na tentativa de efetuar a venda, Gagarino chega até uma falsa loja de bíblias, onde funciona um cassino clandestino. Neste momento, Zenóbio, que já estava entediado da tarefa de encontrar gente desnecessária, encontra alguns amigos policiais e os acompanha para uma batida policial no mesmo prédio em que Gagarino está. Quando entram no local, os homens já renderam Gagarino, mas fingem estarem fazendo um culto evangélico. Zenóbio e Gagarino entram em conflito com os jogadores clandestinos e saem rendidos pelo bandido Zeca. Zeca leva Gagarino e Zenóbio até à beira do mar, e, usando uma pistola, manda que eles tirem as roupas, porque quer jogálos no mar. É então que Gagarino, ao se sentir ameaçado, consegue dar vários golpes em Zeca. Querendo vingar-se, Gagarino sugere a Zenóbio que tire as roupas de Zeca para jogarem-no no mar, pois trata-se de homem inútil para a sociedade. É neste momento que Zenóbio tem a ideia de levá-lo, com a ajuda de Gagarino, até a Base de Cabo Carnaval, para que se torne um dos Cosmonautas. No Cosmonautômetro, confirmam-se os atributos necessários para um homem ser um Cosmonauta, e o professor Inacius, com muita felicidade, manda Zenóbio partir em busca do próximo Cosmonauta. Enquanto todos estão conversando sobre o novo Cosmonauta, Gagarino sai da sala onde foi colocado e começa a transitar pelo laboratório. No mesmo instante, ocorre um exercício de abastecimento do foguete. Este momento do filme é interessante, porque os muitos técnicos envolvidos em um simples exercício dão uma boa dimensão da grandiosidade do projeto do Professor Inacius. As roupas dos cientistas, com crachás, gravatas, capacete de proteção, e a própria forma de os atores operacionalizarem as ações, além das falas em si, sugerem uma certa estabilidade da instituição brasileira. O filme deixa claro, também, a dependência do projeto com as verbas públicas. 16

http://www.portalbrasil.net/salariominimo.htm

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Gagarino, que começa a andar pelo laboratório, fica impressionado com a quantidade de aparelhos estranhos que encontra (IMAGEM 11). São diversas caixaspretas, tecnologias de ponta utilizadas para controlar o lançamento dos foguetes, e, também, para calcular a trajetória das cápsulas espaciais e fazer a comunicação. Além de vários canos de ferro, alavancas, luzes piscando e grandes painéis, Gagarino passa por um laboratório de química, o que já dá uma ideia dos outros tipos de pesquisas realizados no laboratório. Gagarino, encontrando a alavanca de lançamento dos foguetes, pensa que os tais foguetes são os rojões de São João; na verdade, acaba ativando o lançamento do foguete Nacionalista Segundo, sem nenhuma tripulação a bordo.

Imagem 12. Gagarino andando pelo laboratório do Professor Inacius

O deputado galanteador que tenta convencer a bela cientista a ser sua secretária vive visitando o laboratório, e é a ponte entre o parlamento e a Base de pesquisas espaciais. Todo o projeto brasileiro de pesquisas espaciais é feito com dinheiro público. O deputado tem interesse em ampliar as verbas do laboratório do Professor Inacius, mas ao mesmo tempo, precisa justificar muito bem essa verba; diz que consegue liberar mais dinheiro se o professor confirmar a existência de uma bomba de cobalto. Trata-se, no contexto, de uma bomba capaz de destruir uma grande área, talvez até um estado inteiro; esse recurso é o que faria as verbas saírem, pois dariam prestígio internacional

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ao Brasil. Para consegui-lo, o deputado estuda reduzir os recursos dos ministérios da saúde, agricultura e educação: só assim o Prof. Inacius teria seus recursos para angariar o prestígio internacional. Sugere, também, que deem uma coletiva à imprensa dentro do laboratório, para que as pessoas entendam o que é feito ali, com o intuito de aumentar a visibilidade do laboratório. Todos no laboratório se assustam quando o foguete Nacionalista Segundo é lançado antes da hora prevista, sem nenhum cosmonauta a bordo. Zenóbio briga com Gagarino, dizendo que ele jogara fora 300 milhões de Cruzeiros; afirma, ainda, que seria condenado a, no mínimo, trinta anos de cadeia. O professor Inacius ataca Gagarino, diz que ele é um ser insignificante, um inútil, até que Gagarino cai sentado no Cosmonautrômetro; todas as luzes se acendem. O professor Inacius muda o tom e sorri, diz que é perfeito, que foi encontrado o segundo cosmonauta. Gagarino será o equivalente brasileiro de Yuri Gagarin, mas com diferenças bem claras. Rapidamente, os cientistas do professor Inacius instalam na base de lançamento o Nacionalista Terceiro, desta vez sem alavancas de lançamento; o foguete só poderia sair de lá para a Lua: o desperdício do foguete anterior causara muitas críticas da imprensa e do Congresso. Gagarino fica trancado no mesmo quarto que o bandido (agora também Cosmonauta) Zeca. Mas, quando acorda e tenta sair, encontra a porta trancada. Uma alienígena aparece, do nada, para ajudá-lo. A alienígena é uma mulher bonita com habilidades especiais, como atravessar portas. Ela se chama Kriníris e veio de Kóston, um planeta muito distante da Terra e, segundo ela, muito mais evoluído. Ela também expressa certa inocência e falta de malícia para alguns aspectos; não sabendo o significado da palavra “medo”, por exemplo. Entretanto, sabe exatamente o que tem que fazer na Terra para tentar salvá-la de um futuro ruim. A alienígena fala com Gagarino sobre a bomba de Cobalto que o professor guarda em seu cofre, e diz que ela poderia trazer o fim do mundo. Coisa que não poderia acontecer no planeta de onde ela viera, pois, no mundo dela, as guerras foram totalmente abolidas, não existindo mais bombas. É por isso que ela veio para a Terra: na tentativa de convencer os humanos a gastar o dinheiro que usam nas guerras para diminuir a miséria e melhorar as condições de vida do povo. Para conseguir isso, ela

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quer utilizar a visibilidade que o Nacionalista Terceiro vai dar aos cosmonautas e então forçar os governantes da Terra pararem as guerras. Gagarino, que não havia entendido ainda que iria para a Lua, embora tivesse gostado do tratamento que recebera como cosmonauta, queria mesmo era ir embora do laboratório para se livrar da encrenca. Gagarino não acredita que vai para a Lua, e se recusa a conversar com um “fantasma que atravessa as paredes”; é então que a alienígena o leva para uma sala cheia de mulheres em suspensão criônica. Essas máquinas (IMAGEM 12) serviriam para “climatizar” as mulheres, para parar seu metabolismo e prepará-las para uma possível colonização da Lua. Isso mostra o caráter em longo prazo da pesquisa do professor Inacius. Depois que a máquina é desligada, as mulheres despertam de seu “sono gelado” e conversam com Gagarino, confirmando toda a história do plano de ir até a Lua.

Imagem 13. Gagarino em frente aos “climatizadores” do professor, que param o metabolismo das pessoas com a finalidade de testar uma suspensão criônica para uma possível colonização futura da lua.

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Imagem 14. Controladores de temperatura do climatizador de suspensão criônica feito pelo professor Inacius.

Um cofre cheio de dinheiro no laboratório secreto do professor Inacius desperta a cobiça do bandido Zeca, o primeiro a ser escolhido cosmonauta. Zeca e Gagarino acabam pegos dentro do laboratório e, para mantê-los de fato quietos, o professor decide colocar os cosmonautas no climatizador até o dia seguinte, quando começariam os treinamentos militares intensivos. O treinamento feito com a Força Aérea Brasileira conta com salto de paraquedas, simuladores de voos e simuladores de ambientes rarefeitos. Diferente de todo o ambiente de pesquisas espaciais, as tecnologias no campo da Aeronáutica parecem não serem tão avançadas, se limitando ao comum para a época. Talvez o laboratório de Inacius fosse um reduto da tecnologia brasileira bastante hermético em relação às outras instituições, embora o treinamento tenha sido feito na Força Aérea, com a supervisão de alguns cientistas que trabalham para Inacius. No final do treinamento, Zeca propõe à Zenóbio que furtem o dinheiro, rachem meio a meio e fujam do laboratório. Zeca não quer ir à Lua, não quer ser cosmonauta, quer apenas o dinheiro para se dar bem. Entretanto, Zenóbio se diz incorruptível e deixa Zeca irritado. Gagarino, por sua vez, começa a se envolver com a cientista assistente do Professor Inacius, Alice. Kriníris se irrita, achando que Gagarino se esquecerá de sua missão. Gagarino diz que ela está com ciúmes. Kriníris não sabe o significado de

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ciúmes, e Gagarino se questiona como ela pode não saber dessas coisas, o significado de ciúme ou de medo, se o mundo dela é tão avançado e evoluído. Quando Kriníris diz não saber o que é um beijo, Gagarino diz que, na verdade, o planeta da alienígena é muito atrasado, por não conhecer coisas tão simples como essas. A aura de inocência que envolve Kriníris é interessante porque diz respeito também a sua pretensão em acabar com as guerras no mundo. Quando Gagarino vai ensinar o que é um beijo para Kriníris, se aproximando dela e preparando-se para beijá-la, a cientista Alice entra na sala e Kriníris desaparece instantaneamente. A cientista assistente do professor Inacius se irrita com Gagarino, que estava muito estranho quando ela entrou na sala, e o manda dormir. No dia do lançamento do Nacionalista Terceiro, os maiores veículos da imprensa brasileira estão no laboratório para fazer a cobertura do grandioso feito. Os Cosmonautas brasileiros aparecem já preparados para embarcarem no foguete, usando suas roupas espaciais. A roupa espacial dos cosmonautas segue o estilo geral de roupas espaciais, com um capacete para poderem respirar oxigênio e conversar livremente. Há também um amplificador de voz, sem o qual não é possível escutar o que o cosmonauta diz.

Imagem 15 Gagarino e Zeca, os dois Cosmonautas escolhidos pelo Cosmonautrômetro para ir à Lua. Nesta imagem, estão usando seus trajes espaciais e sendo assediados pela imprensa.

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Os parlamentares do Congresso Nacional Brasileiro também estão no laboratório. Zenóbio mostra aos políticos todos os tipos de maquinários estranhos e interessantes que existem lá, como a “pilha atômica de modelo especial” que possibilitou ao professor Inacius a construção da primeira bomba de cobalto, a de maior poder destruidor de todo o mundo. Um dos parlamentares diz que é esse tipo de coisa que enche de orgulho a nação. Outro diz que para projetos úteis e práticos como esse será um prazer conceder verbas. São os instrumentos, diz Alice, que irão fazer os cálculos necessários para enviar o foguete na direção correta rumo à Lua. E serão os instrumentos que trarão os cosmonautas de volta até a Terra.

Imagem 16. Painel de lançamento do foguete Nacionalista Terceiro

O professor Inacius faz a demonstração à imprensa e aos parlamentares de como o foguete Nacionalista Terceiro vai até a lua (IMAGEM 16). Fala ao público com linguagem científica, mostra como o ato será feito, a velocidade atingida, a distância percorrida, etc. O deputado, que está ao seu lado, “traduz” o que o cientista disse para uma linguagem popular, e todos aplaudem o professor.

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Imagem 17. Demosntração pública de como o Foguete Nacionalista Terceiro Irá até a Lua.

Enquanto isso, Zenóbio leva Zeca e Gagarino até o foguete, para que partam rumo à Lua. Mas, quando chegam na cápsula, Zeca golpeia Zenóbio, que cai desacordado. Gagarino também é preso antes que pudesse reagir. Zeca troca de lugar com Zenóbio, coloca nele a roupa de cosmonauta e sai em busca dos milhões que estão no cofre. Antes de sair, Zeca desliga o amplificador do traje de Gagarino e de Zenóbio, para que os dois não falem ao professor que foram rendidos. Avisa, também, pelo rádio, que está tudo pronto e que podem lançar o foguete. Todo o experimento do professor Inacius é visto com bons olhos pelos políticos ali presentes. Todos se dizem favoráveis a conceder mais verbas para o professor fazer o que, na visão deles, realmente faria o Brasil ser projetado como potência de primeira grandeza: mais bombas e mais foguetes. Como Zeca havia dito antes de sair da cápsula que os Cosmonautas estavam prontos para partir, o professor Inacius lança o foguete. Logo depois do lançamento, a base de Cabo Carnaval tenta fazer contato com os Cosmonautas pelo rádio; eles, que estão presos, não respondem. Além disso, a cápsula está completamente fora da rota. Todo o Brasil se paralisa para acompanhar o drama narrado pela emissora de TV. É com o auxílio do “cérebro eletrônico” (IMAGENS 16, 17) que os cientistas tentam corrigir o desvio. Contudo, o aparelho informa que a cápsula está entrando em órbita em torno da Terra, em vez de se dirigir para a Lua.

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Imagem 18. Na imagem da esquerda, vemos dois dos cientistas do professor utilizando o “cérebro eletrônico”. Imagem 19. Na imagem da direita alguns rolos, partes do cérebro eletrônico, registram e calculam vários dados.

Kriníris, que tem habilidades especiais por ser alienígena, entra na cápsula espacial do Nacionalista Terceiro e desamarra os cosmonautas. Entretanto, ela lhes diz que só vai ajudar caso a ajudem também. Kriníris leva a bomba de cobalto para dentro da cápsula espacial, dizendo para os Cosmonautas que façam contato com a base e digam que, se os líderes mundiais não entrarem em paz e abolirem as guerras, eles jogarão a bomba em qualquer parte do mundo, destruindo algumas cidades. Embora contraditórios (já que pedem paz ameaçando guerra) os Cosmonautas conseguem a atenção dos líderes mundiais.

Imagem 20. A cásula espacial dando voltas no espaço, na imagem da esquerda. Imagem 21. Os Cosmonautas “voando” dentro da cápsula, devido à falta de gravidade. Contudo, Kriníris liga o “campo magnético do chão”, uma tecnologia desenvolvida pelo professor Inacius para que a cápsula simule a gravidade.

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Os cosmonautas entram em contato com a base e dizem sobre seus planos. Se as guerras não acabarem, irão lançar a bomba de cobalto a qualquer momento em alguma grande cidade da terra. Todo o dinheiro de guerras e de foguetes espaciais deve ser usado para acabar com a miséria e com a fome. Temendo a ameaça, os líderes mundiais conversam entre si; Estados Unidos, Brasil, Rússia e Cuba decidem parar com as guerras temendo serem destruídas pela bomba. Em seguida, ainda há um encontro na ONU para decidir sobre essa questão. Em um tempo recorde, os líderes decidem suspender todas as guerras, destruir todas as armas e acabar com todos os gastos bélicos. Agora, as verbas, que seriam destinadas para construir bombas atômicas, armas e foguetes, serão usadas para a melhoria de vida da população, como pedem os cosmonautas. Os Cosmonautas voltam à Terra como heróis; as manchetes, nos jornais, destacam que são os responsáveis pelo fim da miséria e das favelas; marchas públicas são realizadas em sua homenagem. E, mesmo não saindo como o esperado, o Político ainda assim faz uso do ocorrido para seu proveito próprio, dizendo que, graças ao programa espacial brasileiro, a miséria e as guerras terminaram. No epílogo do filme, Gagarino e a cientista Alice estão juntos na praia, namorando. A alienígena Kriníris chega até Gagarino, quando este está longe de Alice, e pede-lhe que lhe explique o que é o Beijo, já que ele havia prometido uma explicação. Novamente, Alice vê Gagarino em uma posição estranha depois de Kriníris sumir, e briga com ele. Kriníris, por sua vez, escuta uma má notícia no rádio: os líderes mundiais retomaram os programas bélicos, a construção de foguetes e armas, bem como as pesquisas nucleares. Kriníris pega o rádio e o lança no mar, desistindo de escutar o que a notícia fala, ou mesmo desistindo de ajudar a humanidade por esses meios. O futurismo deste filme é especialmente interessante, porque apresenta uma visão utópica da ciência brasileira em um contexto de guerras tecnológicas e disputa pelo espaço. Graças às trucagens e à utilização de imagens reais da ciência, que se misturam com as imagens ficcionais do filme, podemos ver diversas proposições sendo articuladas. A realidade se imprime unindo as tecnologias já conhecidas pelo grande público acercados programas espaciais (já que o filme foi feito exatamente no ano em que se iniciaram a maioria desses programas), mas também o jeito brasileiro, a cultura nacional. Os Cosmonautas é uma mitologia científica brasileira. Ainda hoje, no ano de

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2013, não estamos nem perto de consolidar um grande projeto de pesquisas espaciais e astronáutica. Embora Marcos Pontos, o primeiro brasileiro a ir ao espaço, tenha feito experimentos de cientistas brasileiros na Estação Espacial Internacional, ele foi até lá de carona com os russos. O que tínhamos de mais próximo à Base de Cabo Carnaval era a Base de Alcântara, que construiu o foguete brasileiro VLS-1 V03 com o objetivo de lançar ao espaço o primeiro satélite artificial brasileiro. Contudo, há exatos dez anos, houve nela um grande acidente, que destruiu completamente a Base de Alcântara, fazendo o sonho do foguete brasileiro continuar na ficção. Outro ponto importante no filme Os Cosmonautas é a utilização das instalações da AEG – Companhia Sul-Americana de Eletricidade. Já nos créditos iniciais, há um agradecimento ao exército, à aeronáutica e à AGC. Provavelmente o cineasta utilizou as instalações da AEC para rodar o filme, por isso o grande número de mostradores, computadores e instalações similares às de um laboratório. Todas as amostras do futuro do presente no passado apresentadas por esse filme são, em sua aparência, de três tipos : (1) amostras do futuro frutos das colagens, cópia de tecnologias internacionais e nacionalização das mesmas;(2) amostras do futuro criadas pelo cineastas, aqueles tipos em que a máquina, em sua aparência externa, não existe, e foi inventada, como o cosmonautrômetro; (3) amostras do futuro adaptadas pelo cineastas: tratando-se de caixas pretas, pouco importa para o cinema seu funcionamento interno, de modo que o cineasta pode filmar um painel de controle de energia elétrica e dizer à audiência que é, na verdade, um painel de controle de lançamento de foguete. A relação da alienígena com a humanidade é parecida com aquela apresentada no filme O Dia em Que a Terra Parou, rodado dez anos antes por Robert Wise nos Estados Unidos. Em O Dia em Que a Terra Parou, um alienígena surge na Terra trazendo um ultimato aos líderes para que parem com as guerras e com as corridas armamentistas. Em Os Cosmonautas, a alienígena faz o apelo pacifista através do Brasil, o que também é interessante do ponto de vista que, de uma forma geral, na ficção científica tradicional o mundo sempre acaba primeiro nos Estados Unidos, ou os alienígenas sempre fazem suas atividades visando dominar os Estados Unidos.

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5. CONCLUSÃO

A ficção científica é um dos gêneros cinematográficos mais populares e com o maior número de fãs pelo mundo inteiro. Além do cinema, vários outros formatos também se valem dos princípios apresentados no capítulo I desta monografia, como games, histórias em quadrinhos, desenhos animados e romances. Esse gênero, como vimos, é muito interessante para pesquisar socialmente o futuro da humanidade. Com um formato de ensaio, o cineasta e o escritor de ficção científica propõem contextos diferentes para a vida humana frente à novas tecnologias. Com o passar do tempo, essas obras criadas há muitos anos para falar sobre o futuro guardam também importantes dados histórico-sociológicos sobre a sua criação. Um filme feito em 1929 que fala sobre os anos 2000 é muito interessante de ser estudado, principalmente quanto à aspectos ligados à criatividade, inventividade, e pensamento tecnológico do homem de 1929. Por isso, essas obras trazem à tela uma dupla informação; se, por um lado, temos amostras do futuro, porque apresentam tecnologias futuristas e criadas para um ensaio ficcional; por outro, temos uma amostra do futuro do passado, porque se trata de um futuro que foi pensado nos contextos científicos e sociais do presente que hoje é passado. A capacidade da ciência em criar o real e o instaurar como fato científico mediante uma epistemologia política é demonstrada nos mais diversos estudos dos Science Studies. Esses estudos nos dão bases para estudar a construção da realidade por meio das articulações das proposições, juntamente com a Teoria Ator-Rede, que nos proporciona, também, boas bases para estudar o social sendo reagregado nos futuros alternativos. Entretanto, para a construção de uma sólida metodologia de análise fílmica, seria necessário dialogar todos os conceitos trabalhados nesta monografia com teorias narrativas. A TAR e os Science Studies oferecem importantes recursos para falar sobre a ficção científica enquanto gênero, falar genericamente dela. Todavia, a quantidade de informações presentes em um filme é absolutamente devastadora, podendo ir além dos aspectos materiais e semióticos. Certamente essas questões pudessem ser melhor

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atendidas com um diálogo dos já consolidados estudos literários, cinematográficos e narrativos. Para a continuação dessa pesquisa, pretendemos aprofundar os estudos da Teoria Ator-Rede, principalmente no que diz respeito às teorias narrativas da TAR., e, também, estudar teorias narrativas tradicionais para dialogar as visões. Existem muitos autores da Teoria Ator-Rede produzindo material importantíssimo sobre narrativas, mas, devido à vastidão das publicações na teoria, e ao nosso recorte temático, nos restringimos à Latour e Stengers nesta monografia. Para tornar essas formas de análise fílmica mais fortes, é preciso entrar em contato com as teorias narrativas da Teoria Ator-Rede ligadas principalmente a John Law, Annemarie Mol, Donna Haraway, Isabelle Stengers, além de aprofundar mais ainda em Bruno Latour.

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