Galileu em sua órbita. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, p. 40 - 43, 10 fev. 2014.

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15/05/2016

Galileu em sua órbita ­ Revista de História

Galileu em sua órbita Aos 450 anos de nascimento, o cientista toscano merece ser compreendido no contexto da época e sem idealizações Carlos Ziller Camenietzki 1/2/2014  

Temos o costume de celebrar os cientistas do passado de maneira romântica, como se suas retumbantes realizações fossem fruto exclusivo de um trabalho solitário, levadas adiante em condições adversas. Mas basta um pouco de bom senso para reconhecer que toda grande descoberta é fruto do trabalho coletivo de muitos homens de ciência. Alguns nomes se tornam personagens quase míticos, considerados verdadeiros divisores de águas da História. Nesses casos, é ainda mais difícil compreendê‐los na dimensão que de fato tiveram em seu tempo. Galileu Galilei é um deles. O sábio nasceu em Pisa, na Itália central, em 1564, e morreu em Florença no ano de 1642, após uma vida agitada e bastante produtiva. A Galileu são atribuídas algumas das mais importantes descobertas e invenções da astronomia e da física da primeira metade do século XVII: Galileu num retrato do sec. XVII. Seu prestígio começou a luneta astronômica, o enorme com Siderus Nuncius, um texto em que narrava as número de estrelas, os satélites de observações celestes feitas com uma luneta ainda em Júpiter, as fases de Vênus, as 1609. manchas solares. Ele teria ainda descoberto a “lei” da queda dos corpos e também aquela do lançamento de projéteis. Sua defesa entusiasmada das teses de Nicolau Copérnico – entre as quais a de que a Terra é que gira em torno do Sol (heliocentrismo), e não o contrário – lhe valeu um processo no Tribunal da Inquisição. Condenado ao silêncio e ao recolhimento, ele teria passado os derradeiros anos de sua vida vigiado em uma residência, sem poder publicar livremente os resultados de seus últimos trabalhos. Essa biografia inspirou diversos historiadores a considerarem Galileu um “gênio itálico”, incompreendido e perseguido. Um herói laico no confronto com uma Igreja obscurantista e retrógrada. Um símbolo da liberdade de pensamento, em antecipação ao Iluminismo. http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/galileu­em­sua­orbita

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Essas interpretações falam mais do tempo em que foram escritas, dos engajamentos dos seus autores do que dos reais acontecimentos do passado. Escolher um grande cientista antigo para celebrar a unificação nacional italiana contra uma Igreja Católica que ainda controlava politicamente espaços enormes da península, por exemplo, foi a opção de inúmeros intelectuais do século XIX. O “gênio itálico” pode ser mais bem explicado pela unificação política do que pela excelência da obra de Galileu. Considerar que a Igreja é uma organização que combate inovações filosóficas só tem cabimento em períodos curtos e em locais específicos. Afinal, trata‐se de estrutura religiosa multissecular e pluriterritorial que muito se transformou ao longo de séculos e séculos de cristianismo. Foram os religiosos que preservaram e cultuaram os escritos dos antigos filósofos gregos e latinos após a derrocada do Império Romano. Foram esses homens que garantiram o conhecimento do pensamento da Antiguidade, coisa tão importante na construção da própria Ciência Moderna. Mesmo envolta em todas essas intrincadas questões, a obra de Galileu continua a interessar jovens estudiosos e a apaixonar cientistas consagrados. Afinal, os homens de ciência foram formados à imagem e semelhança deste matemático e filósofo. Seu prestígio começou com o texto em que narra observações celestes feitas com uma luneta, ainda em 1609. O livreto foi publicado em latim com o título Sidereus Nuncius – “A mensagem das estrelas” – e correu o mundo. O impacto foi enorme e seus contemporâneos celebraram as descobertas com entusiasmo; afinal, ali estavam descritas coisas que ninguém imaginava e, ainda por cima, o autor explicava como vê‐las. Galileu foi chamado a expor seus achados no Colégio Romano da Companhia de Jesus – grande centro de formação filosófica da Europa naqueles anos. O matemático foi homenageado pelos padres jesuítas, especialmente por Cristóvão Clavius, bastante idoso, mas ainda muito prestigiado por ter participado da reforma do calendário – que estabeleceu o atual calendário gregoriano – uns 30 anos antes. A novidade que mais atraiu as atenções foi a descoberta dos satélites de Júpiter: quatro pequenas estrelas que giravam ao redor do grande planeta. O assunto era atual e confirmava um certo policentrismo no mundo. Astrônomos daquele tempo discutiam um novo sistema proposto pelo dinamarquês Tycho Brahe (1546‐1601), que facilitava muito os cálculos de previsões astronômicas. Em síntese: a Terra ocupava o centro e o Sol girava ao seu redor, enquanto cinco planetas giravam em torno do Sol. Os astrônomos mais dedicados do começo do século XVII só tinham a aplaudir a demonstração de que haveria mais de um centro dos movimentos planetários. No entanto, nem todos os religiosos tinham boa formação astronômica, ou preocupações com os movimentos dos planetas. Galileu foi denunciado em 1616 na Inquisição florentina por defender que a Terra se movia ao redor do Sol. Os denunciantes eram dois dominicanos especialmente zelosos da disciplina religiosa. Em suas arguições de denúncia no Tribunal, tiveram que responder sobre as presumidas relações entre Galileu e teólogos de Veneza, onde ele vivera até a publicação de seu livreto. Os inquisidores tinham motivação política: queriam provar as ligações entre o matemático toscano e o teólogo Paolo Sarpi (1552‐1623), vigoroso defensor da autonomia secular da República de Veneza diante da Igreja de Roma. Esse imbróglio foi resolvido com argumentos que o próprio Galileu trouxe ao cenário. Como não foi apresentada prova de que a Terra girava ao redor do Sol e de que era possível ver esse movimento da Terra, o próprio cardeal Roberto Bellarmino (1542‐1621) – grande antagonista público de Paolo Sarpi – recomendou a Galileu o silêncio sobre a tese copernicana. Ele aceitou só falar disso quando tivesse uma comprovação definitiva. Mas nada parecia abalar o prestígio obtido com a luneta em 1609. Galileu retomou os temas astronômicos em 1632, com a publicação do Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo. http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/galileu­em­sua­orbita

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A obra é uma belíssima discussão em torno das vantagens do heliocentrismo em relação ao antigo sistema geocêntrico de Cláudio Ptolomeu. No primeiro século depois de Cristo, Ptolomeu, aperfeiçoando o sistema de Eudoxo de Cnidos de três séculos antes, afirmou que esferas giravam ao redor de centros móveis, que giravam ao redor da Terra. O filósofo toscano, por sua vez, simplesmente ignora a proposta de Tycho Brahe, como se fosse apenas uma solução de compromisso entre coisas incompatíveis. E a reação da Igreja, àquela altura, teve a ver com as enormes tensões políticas pelas quais passava. A Guerra dos Trinta Anos (1618‐1648) na Europa mostrava‐se francamente desfavorável aos aliados católicos. A obra de Galileu foi censurada e seu autor forçado a abjurar o heliocentrismo e a residir sob vigilância, sem lecionar e sem publicar quaisquer obras. Mesmo nessas circunstâncias, Galileu conseguiu enviar aos Países Baixos um outro livro de sua autoria: Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências. Na obra, publicada em 1638, ele avança em suas teses sobre a queda dos corpos, integrando resultados mais antigos e propondo uma boa solução para o problema do lançamento de projéteis. O sábio oferece uma alternativa, calculável matematicamente, à ideia de que a queda dos corpos ocorria de modo uniformemente disforme: numa sucessão de intervalos de tempo iguais, o corpo em queda percorria distâncias proporcionais aos números ímpares. A esta ideia, Galileu agregou a noção de que o movimento de um corpo pode ser analisado separadamente: o lançamento de um projétil pode ser estudado como a superposição de dois movimentos: um lançamento vertical e outro horizontal. Dessa forma, ficou mais fácil calcular a posição de impacto do projétil lançado por um canhão. Essas proposições são uma síntese matemática de diversos estudos levados a cabo por uma grande série de filósofos bastante anteriores a Galileu. Há registros desses trabalhos em obras manuscritas e mesmo impressas dos séculos XV e XVI. O grande mérito do sábio toscano estava exatamente na apresentação de suas conclusões na forma de “leis” matemáticas do mundo natural. Ele não apenas defendia que o mundo era governado por essas “leis”, como também apresentava as que havia “descoberto” em suas investigações. Isto certamente lhe garantiu o lugar que ocupa entre os mais importantes homens de ciência de todos os tempos – mesmo que a física do século XXI tenha abandonado a ideia do governo do mundo por “leis” deterministas, ao menos nas dimensões atômicas. Carlos Ziller Camenietzki é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de A Cruz e a luneta (Access, 2000).   Os múltiplos centros Tycho Brahe (1546‐1601) foi um astrônomo dinamarquês que identificou o aparecimento de uma estrela nova. Com o prestígio obtido com essa descoberta, ele conseguiu construir o maior observatório anterior ao uso de telescópios: Uraniburg. Sob o comando de Tycho, foram feitas inúmeras observações que permitiram um conhecimento mais apurado dos movimentos planetários. Seu observatório foi um ponto de atração de jovens estudiosos que lá concluíam sua formação. O mais famoso deles foi Johannes Kepler (1571‐1630), que viveu em Uraniburg por alguns anos. Brahe propôs um sistema policêntrico: o Sol, a Lua e as estrelas giravam ao redor da Terra, enquanto Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno giravam ao redor do Sol. Com isso, ele conseguiu compatibilizar as observações ordinárias do dia a dia com uma precisão bastante elevada dos posicionamentos dos planetas, obtida com seus instrumentos astronômicos. Além de propor uma mudança significativa na centralidade da Terra, ele também teve que acabar com a ideia das esferas cristalinas que carregavam os planetas, segundo os sistemas herdados da http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/galileu­em­sua­orbita

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Antiguidade. Com o avançar do século XVII, suas proposições resistiram na preferência dos astrônomos, mas foram cedendo lugar ao heliocentrismo de Kepler, Galileu e, mais tarde, de Isaac Newton (1643‐1727).   Saiba mais ‐ Bibliografia GARIN, Eugenio. Ciência e vida civil no Renascimento Italiano. São Paulo: Unesp, 1996. KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense, 1982. REDONDI, Pietro. Galileu herético. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. TATON, René. História geral das ciências. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960. Teatro: A vida de Galileu, de Bertolt Brecht Filme: Galileo, de Liliana Cavani (Itália, 1968) Internet: Portale Galileo, http://portalegalileo.museogalileo.it

   

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