Gatekeeping e Gatewatching: diálogos da participação do público na construção do jornalismo online

May 31, 2017 | Autor: Ricardo Fotios | Categoria: Gatekeeping, Jornalismo participativo, Jornalismo Online, Gatewatching
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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Gatekeeping e Gatewatching: diálogos da participação do público na construção do jornalismo online1 Ricardo FOTIOS2 Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo, SP

Resumo As tecnologias digitais, associadas à popularização das ferramentas de publicação pela internet, trouxeram inédito acesso da audiência aos sistemas de produção e circulação de notícias online, especialmente àqueles baseados em conceitos da Web 2.0. O resultado é que o ecossistema do ciberjornalismo passou a conviver com os formatos profissional e amador como se fossem antagônicos. Baseado nas teorias do gatekeeping e gatewatching, este artigo pretende estabelecer um diálogo entre essas duas forças na produção jornalística contemporânea ao sugerir que uma convergência está em curso. Palavras-chave: ciberjornalismo; webjornalismo; web 2.0; gatekeeping; gatewatching

Introdução A maneira como uma notícia era produzida e consumida foi gravemente impactada pelo aparecimento das redes e das tecnologias da informação e comunicação (TIC), principalmente a partir da metade da década de 1990. As novidades trazidas pela internet alteraram definitivamente as rotinas tradicionais do processo de produção da notícia, desde a apuração até sua circulação, formando um conjunto de sistemas e subsistemas complexo no que diz respeito ao gerenciamento de conteúdo (SCHWINGEL, 2012). Para Bruns (2011, p.122), esta evolução se deve a dois aspectos combinados: A multiplicação contínua dos canais disponíveis para a publicação e divulgação das notícias, especialmente desde o surgimento da World Wide Web como mídia popular, e o desenvolvimento dos modelos colaborativos para a participação dos usuários e para a criação de conteúdo, que atualmente são frequentemente resumidos sob o rótulo de Web 2.0.

Uma das mudanças mais significativas deste processo está relacionada à participação do público na construção da notícia, mais especificamente, na seleção ou no estabelecimento de filtros do que é ou não relevante para ser noticiado, seja através da 1 Trabalho apresentado no GP Gêneros Jornalísticos, XVI Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2

Jornalista, professor da graduação em Jornalismo da ESPM-SP, onde cursa o Mestrado Profissional em Produção Jornalística e Mercado. Professor licenciado da Universidade Metodista de SP. Gerente Geral na área de Conteúdo e de Plataformas de Comunicação e Publicação (CMS) do grupo UOL.

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curadoria de gatewatching (BRUNS, 2005) ou de uma versão atualizada da rotina de gatekeeping (SHOEMAKER; VOS, 2009). Trata-se, portanto, de uma nova abordagem da importância do público no êxito do resultado da produção jornalística: O jornalista deve pensar se conseguirá atrair a atenção do público. Não só é necessário que o tema seja considerado importante ou interessante por parte do jornalista, mas também deve ficar em sintonia com o que o público possa vir a considerar também como importante ou interessante (ALSINA, 2009, p. 184).

Este artigo busca expor fluxos recorrentes do jornalismo profissional, do ponto de vista dos filtros contemporâneos da notícia, que acabam por influenciar a produção do público e, por outro lado, valores percebidos pela produção da audiência que impactam o dia a dia do jornalista profissional. Nas mídias online, pode-se interpretar a audiência detendo um papel semelhante ao do gatekeeper em sua definição clássica, apresentada por David White, em 1950, uma vez que o público escolhe e publica informações em plataformas interativas. Assim, é razoável conceber o papel do público nos ambientes em rede como um terceiro canal do processo de gatekeeping, ao lado das fontes e da mídia de massa (SHOEMAKER; VOS, 2009). No mínimo, a audiência tornou-se uma força relevante e mensurável sobre os tradicionais portões de acesso ao noticiário online, estes sim, formados por profissionais das empresas de mídia, tanto individualmente quanto enquanto integrante de uma rede de comunicação na internet. Uma consequência desta formação de redes no ciberespaço é a transformação radical de como se produz e se consome conteúdo e serviços (BENKLER, 2006). Antes apenas consumidores de informações, internautas agora são prodsumidores, como define Ramonet (2012), ou produsage, como descreve Bruns (2008), pois têm função combinada de produção e consumo. No jornalismo online, esta mudança está sistematizada em conceitos próprios da rede, como na rotina denominada gatewatching (BRUNS, 2003), que propõe um diálogo entre as tradicionais portas de acesso da informação com a função do observador das notícias que trafegam pelas redes. Este acompanhamento é percebido com mais facilidade nas chamadas redes sociais, principalmente no Facebook e no Twitter, onde o comportamento do público dita a cadência das publicações a partir de observações do que outros usuários publicam, comentam ou curtem. Mas o jornalista, que a rigor é também internauta, é impactado em seu trabalho cotidiano tanto pelas informações em rede quanto pelo aparecimento constante

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de tecnologias inovadoras, cada vez mais disponíveis e aderentes ao modo de vida do cidadão do século XXI. O acesso quase universal de internautas aos sistemas de produção da notícia online expõe, na verdade, fragilidades deste novo paradigma que precisam, a seu tempo, ser considerados por quem vai produzir conteúdo noticioso. Embora tragam a carga de inovação pressuposta na nova realidade informativa, essas ferramentas parecem fazer parte da mesma estrutura político-econômica que sustentou e ainda sustenta parte da indústria da informação do século XX (RAMONET, 2012; FANTINATTI, 2010).

Mais que isso,

possibilitaram o surgimento de novos domínios hegemônicos, um tecnopólio, para usar uma terminologia proposta por Neil Postman (1993), que coloca a cultura de massa aos pés da tecnologia através de conglomerados baseados em algoritmos automatizados que mimetizam o comportamento humano, quase todos pertencentes aos mesmos grupos empresariais que reivindicam a liderança global das inovações no ciberespaço, como Google, Apple, Microsoft e Facebook.

Gatekeeping: a audiência e o porteiro A tarefa de escolher o que vai ser destacado ou não nos sites de grupos de mídia é uma rotina profissional que vem sofrendo influência da produção participativa ou do público nos meios digitais. Direta ou indiretamente, o público exerce uma força sobre a seleção da notícia no sistema de produção do ciberjornalismo, afetando apuração, produção e circulação. Em um dos níveis de análise propostos por Shoemaker e Vos (2009), por exemplo, o que relaciona as instituições sociais na teoria do gatekeeping, a audiência é concebida, ao mesmo tempo, como um mercado e um produto. Não há regras rígidas e rápidas sobre a divisão em níveis desse continuum; pesquisadores usam tantos níveis quanto julgam necessário para ajuda-los a construir teorias, e definem esses níveis para suas próprias pesquisas (SHOEMAKER; VOS, 2009, p. 49).

Em sua função de mercado, a audiência online acaba por pressionar produtores de conteúdo a publicarem aquilo que lhe é mais conveniente por meio de métricas de acesso, cada vez mais exatas e acessíveis aos jornalistas. Assim, o jornalista que está na função de porteiro deixa passar os temas que, ele sabe, terão maior aceitação de seu público, pois compreende que a audiência é um fator importante para determinar o êxito de seu trabalho.

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Indiretamente, a força que a audiência exerce está ligada ao financiamento do trabalho jornalístico, uma vez que a atenção do público pode ser vendida aos anunciantes e, portanto, “seu tamanho e sua composição são fatores importantes para os gatekeepers da mídia” (SHOEMAKER; VOS, 2009, p.114). Mas não é só como força pressionando portões da indústria de comunicação que a audiência atua no jornalismo online. O público da internet também tem papel de porteiro ao deixar passar em seus blogs, perfis e sites temas que outras forças fazem chegar até ele, além da própria observação que faz das redes. Atualmente, até mesmo fluxos profissionais de divulgação para a imprensa, como assessorias e agências, objetivam subsidiar a produção deste prodsumidor. Trata-se, portanto, de uma força positiva para este grupo, pois garante o conteúdo com pouco ou nenhum recurso utilizado pelo produtor, neste caso chamado de amador. Em um paralelo com o mesmo trabalho em grupos industriais de mídia, a ação de uma assessoria de imprensa pode ser considerada negativa, dado o grau de desconfiança que jornalistas nutrem em relação aos relações públicas, como pontuam Shoemaker e Vos. De forma automatizada, mas não menos importante, o público internauta também seleciona destaques noticiosos, ou seja, funciona como um gatekeeper através dos algoritmos das ferramentas de busca, cujos bancos de dados são alimentados pela navegação da audiência, ainda que esta não se dê conta disso. Assim, critérios para expor resultados de busca por notícias no Google ou para entregar postagens no Facebook, por exemplo, são consideravelmente impactados pelos hábitos da própria audiência, oferecendo um conteúdo uniforme, sem margem para pontos de vista contraditórios (PARISIER, 2012). Finalmente, a teoria do gatekeeping aplicada ao jornalismo contemporâneo permite considerar a audiência na internet um terceiro canal no processo de seleção das informações até sua circulação. Este novo canal pode levar o conteúdo de blogs e de redes sociais diretamente a outras audiências, através de redes de afinidade, ou pode impactar o processo de seleção e construção da notícia nos outros dois canais clássicos: o das fontes e o da mídia (Fig. 1). Ou, como argumenta o catalão Miquel Alsina (2009), o procedimento de seleção de notícias é resultado da interação das fontes, do jornalista e do público. Ao reconhecer que o público tem um canal próprio e, consequentemente, detém um portão de acesso de informações, é razoável supor que a audiência, na internet, é impactada por critérios individuais e pessoais de relevância e de valor-notícia para decidir produzir um conteúdo ou enviar, via compartilhamento, e-mail ou mensagem eletrônica, uma notícia

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para terceiros. “Isso resulta em um aumento exponencial da leitura das reportagens mais populares ao longo do tempo (SHOEMAKER; VOS, 2009, p. 174).

Fig. 1 - Adaptação do fluxo dos três canais baseada na ilustração de Shoemaker e Vos (2009)

Gatewatching: a audiência e o vigia A assimilação de características do jornalismo praticado na internet por profissionais e amadores já pode ser notada tanto na rotina industrial quanto na prática cidadã. O público da internet consome cada vez mais notícias relacionadas às suas preferências e valores, e utiliza mecanismos participativos para indicar suas vontades à mídia. Por outro lado, o jornalista de grupos de mídia também se interessa e já reproduz algumas narrativas utilizadas por cidadãos em suas produções industriais. O público produz e publica em blogs, plataformas compartilhadas e redes sociais o fruto da observação do que acontece a seu redor, especialmente o que se dá ou é divulgado

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no ciberespaço, em um processo de curadoria. Esta inclinação do público internauta na direção do jornalismo colaborativo está sistematizada na rotina conhecida por gatewatching (BRUNS, 2003). O internauta observa o que outros membros da audiência produzem e/ou compartilham e pode decidir por publicar também, em versões originais ou modificadas, de forma opinativa, resultante de apuração ou em formato de comentário. Em seus estudos sobre o jornalismo cidadão nos países de idioma inglês, especialmente nos EUA e no Reino Unido, e fundamentado em trabalhos do sociológico e pesquisador da Universidade de Columbia Hebert Gans (2003), Bruns (2011, p.122) argumenta que “fundamentalmente, este jornalismo público não muda em nada as práticas jornalísticas principais”. No entanto, o que se observa é uma tendência de o jornalismo industrial se apropriar de características desta função de observador em sua rotina na grande mídia (Fig.2).

Fig. 2 - Adaptação do diagrama de Bruns para o processo de gatewatching (2008)

Cabe ressaltar que o jornalista é também um internauta em potencial, não podendo estar alheio ao que acontece no ciberespaço. Pelo contrário, é cada vez mais comum que grandes redações destaquem jornalistas para acompanhar a movimentação nos blogs e redes sociais. O resultado deste acompanhamento pode vir em forma de compartilhamentos feitos pelos perfis oficiais da mídia ou até em forma de pauta para a reportagem. Funcionando como uma espécie de vigia da produção do público, estes jornalistas dedicados a levar para as redes sociais a produção de sua empresa acabam por incorporar não somente o conteúdo do público, mas absorvem as narrativas utilizadas pela produção amadora. Em um segundo momento, esses profissionais levam para dentro das redações o estilo do amador, coloquial e imagético, muitas vezes repleto de emojis. Não por acaso, o noticiário profissional se apropria do que circula com grande intensidade nos perfis do público e inclui em sua ronda jornalística o conceito de “bombou na web”, em referência ao sucesso que aquele tema está fazendo nas redes e, portanto, deve ser percebido como um valor-notícia na hora de selecionar um assunto ou evento.

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Considerações finais As tecnologias da informação e comunicação (TIC) impulsionam as atividades da audiência enquanto produtores de conteúdo ao disponibilizar plataformas e sistemas completos de edição e publicação de material em texto, foto, vídeo ou áudio. Antes de uso quase exclusivo de profissionais das organizações de mídia, ao se tornarem acessíveis a todos que se conectam à internet, tais recursos retiram do modelo industrial a hegemonia no processo de produção da notícia (newsmaking). Do ponto de vista do acesso, portanto, todo o fluxo de apuração, publicação e circulação da notícia ficou mais democrático com as novas tecnologias. Mas esta vantagem tecnológica não redunda automaticamente em socialização plena da informação no ambiente online brasileiro. Ao cair sobre o jornalismo, o meteorito da internet traçou uma fenda no jornalismo contemporâneo, separando a produção profissional daquela feita por cidadãos. O processo aparenta seguir as mesmas regras de mercado já conhecidas pela mídia no sistema industrial tradicional sem que haja, necessariamente, um ganho em produção e circulação socialmente orientadas. No entanto, à luz das teorias do gatekeeping e do gatewatching, observa-se um diálogo entre a produção industrial e aquela realizada pela audiência. Esta aproximação ainda é embrionária, mas deve impactar o fazer jornalismo em geral, seja nas redações ou na casa dos internautas. O resultado deve ser uma rotina profissional mais participativa e um fluxo amador mais fundamentado.

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Referências bibliográficas ALSINA, M.R. A construção da notícia. Rio de Janeio: Vozes, 2009. BENKLER, Y. The wealth of networks: how social production transforms markets and freedom. New Haven: Yale University Press, 2006. BRUNS, A. Gatewatching, not gatekeeping: Collaborative online news. In: Media International Australia Incorporating Culture and Policy: quarterly journal of media research and resources, 2003, 107, p. 31-44. __________. The Active Audience: Transforming Journalism from Gatekeeping to Gatewatching. In: PATERSON; CHRIS & DOMINGO; DAVID (Eds.) Making Online News : The Ethnography of New Media Production. New York: Peter Lang, 2008. P. 171-184 ______. Gatewatching: collaborative online news production. New York: Peter Lang, 2005. ______. Gatekeeping, Gatewatching, realimentação em tempo real: novos desafios para o jornalismo. In: Brazilian Journalism Research, vol. 7, n. 2, p. 119-140. SBPJor, 2011. FANTINATTI, M. Jornalismo em tempos de internet: sob a aparência de radical ruptura, consolida-se um modelo. In: Estudos em Comunicação, vol. 1. n.1, p. 185-203. LabCom, 2010. JENKINS, H; GREEN, J; FORD, S. Cultura da conexão: criando valor e significado por meio da mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2013. KOVACH, B; ROSENSTEIL, T. Elementos do Jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir. São Paulo: Geração, 2003. PARISER, E. The Filter Bubble: how the New Personalized Web Is Changing What We Read and How We Think. New York: Penguin Books, 2012. POSTMAN, N. Technopoly: the surrender of culture to technology. New York: Vintage Books, 1993. RAMONET, I. A explosão do jornalismo: das mídias de massa às massas de mídias. São Paulo: Ed.Publisher, 2012. SCHWINGEL, C. Ciberjornalismo. São Paulo: Paulinas, 2012. SHOEMAKER, P.J.; VOS, T.P. Teoria do Gatekeeping: seleção e construção da notícia. Porto Alegre: Artmed, 2009. WHITE, D.M. O gatekeeper: uma análise de caso na seleção de notícias. In: Traquina, N. (org.) Jornalismo: Questões, teorias, estórias. Lisboa: Veja, 1993

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