Genealogia de um artefato urbanístico: o projeto de loteamento

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Thomas Jacques Cortado Doutorando PPGAS/MN

GENEALOGIA DE UM ARTEFATO URBANÍSTICO: O PROJETO DE LOTEAMENTO

Seminário dos Alunos do PPGAS 2015 (08/09 a 11/09) Mesa 7: Poder, Governo e Estado Debatedores: Ângela Facundo e Deborah Bronz

INTRODUÇÃO: DA FAVELA AO LOTEAMENTO Da primeira vez que pisei na localidade conhecida como Jardim Maravilha, no bairro de Guaratiba, Zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, eu não fazia muita ideia do tipo de lugar onde estava. Acontece que, naquela época, eu fazia um trabalho de campo na favela do Vidigal, próxima ao bairro de Leblon; embora o Vidigal fosse supostamente um refúgio exemplar da miséria urbana, o quadro do Jardim Maravilha me parecia sob vários aspectos ainda mais precário: a água nem chegava a todos os domicílios, ou era tão fraca que precisava de poços artesianos; os cortes de luz eram mais comuns; sobretudo, inúmeras ruas sequer possuíam algum tipo de revestimento. Em diversas partes, águas sujas corriam pelas valas negras na beira da rua. Se a maioria das casas era de alvenaria, encontrava-se também uma proporção não descartável de barracos, alguns no meio de verdadeiros manguezais, onde as águas pluviais se misturavam com o esgoto. Apesar das casas apresentarem uma cara semelhante àquelas do Vidigal, com lajão no último andar e parede de tijolo nu, ninguém chamava o Jardim Maravilha de favela. Havia, de fato, uma diferença de tamanha importância entre Vidigal e o Jardim Maravilha. No Vidigal, as ruas eram estreitas e sinuosas, mudando de perfil ao longo do caminho; muitas vezes nem tinha como identificar a porção de espaço ocupado por determinada casa. Já no Jardim Maravilha, todas as ruas possuíam a mesma largura e se cruzavam em ângulo reto; o espaçamento entre as ruas parecia regular, dando a impressão que o conjunto era regido por algum tipo de plano em xadrez. Os moradores de lá falavam em “lote” e “quadra” para designar a casa deles, um vocabulário desconhecido de quem habitava a favela do Vidigal: pois é, no Jardim Maravilha era mais simples identificar divisas entre as propriedades, divisas materializadas por muros altos e que se repetiam em intervalos regulares. Ou seja, o Jardim Maravilha tinha “cara de asfalto”. Ao consultar o Sistema de Assentamentos de Baixa Renda (SABREN) do Instituto Pereira Passos (IPP), também conhecido como Cadastro de Favelas, fiquei então sabendo que o Jardim Maravilha era considerado pela prefeitura como um “loteamento irregular”, um dos dois tipos de assentamento precário que compunham o SABREN, junto com o de favela. Foi então que decidi, no âmbito do meu doutorado, pesquisar o assunto do “loteamento irregular”. Isso me levou a um dédalo de leis e regulamentos, oriundos de diversos níveis administrativos, que se espalhavam da segunda metade do século dezenove até hoje. Fiz assim descobertas interessantes: havia uma planta do Jar-

dim Maravilha, confeccionada no início dos anos cinquenta pela companhia que loteou (figura 1), uma planta rica de detalhes e cujos traçados tinham sido globalmente respeitados. Esse tipo de planta era chamado pela prefeitura “Projeto Aprovado de Loteamento” ou P.A.L. Tentando encontrar as normas que enquadravam a execução desses projetos, com o fim de também entender por que as ruas do Jardim Maravilha possuíam determinado padrão, me dei conta do quanto elas eram importante para o governo da cidade. Ao mesmo tempo, não sabia muito bem como, enquanto antropólogo, analisar documentos como os P.A.L. – eu não sabia qual tipo de resposta etnográfica eu podia oferecer a esse tipo de material empírico (RILES, 2006). É que só recentemente os antropólogos se interessaram pelos documentos. Segundo Matthew Hull, um dos principais promotores da “ethnography of documents”, "documents have received little attention because they are the main mechanism and dominant emblem of the formal dimension of bureaucracy" (HULL, 2012b, p. 252). De fato, a atenção dos antropólogos que estudaram burocracias teve historicamente como foco as relações informais e cotidianas dentro das burocracias, e não as regras e estruturas formais, cujo estudo cabia à sociologia. Além disso, atribuímos espontaneamente aos documentos certa transparência, de acordo com o nosso ideário modernista segundo a qual a publicidade dos documentos apazigua as relações sociais, torna a sociedade mais legível para ela mesma (RILES, 2006, p. 6); há de se notar também que os antropólogos costumam usar documentos como fonte para contextualizar os dados de campo, mas não como parte desses dados. Falando como o Bruno Latour, diríamos que sempre tratamos os documentos como “intermediadores”, “qui véhicul[ent] du sens ou de la force sans transformation” e não como “mediadores”, que “transforment, traduisent, distordent, et modifient le sens ou les éléments qu’ils sont censés transporter” (LATOUR, 2007, p. 58). O desafio, para conferir uma visibilidade aos documentos, “to look at rather than through them”, “is to treat them as mediators”, o que implica reconhecer a materialidade desses artefatos (HULL, 2012a, “Introduction”).

Há várias maneiras de abordar a materialidade dos mundos burocráticos. A que seguiremos aqui foca nas propriedades semióticas, melhor dizer gráficas dos documentos, por isso recuperamos o conceito de “artefato gráfico”, forjado pelo Matthew Hull. A nossa aposta, fundamentada no estudo genealógico do P.A.L., é que essas propriedades

gráficas não só serviram para representar os loteamentos a serem edificados, dentro das formas previstas pela lei, elas também construíram o loteamento. DO “FACHADISMO” AO PLANO GERAL: RE-CONCEITUANDO AS RELAÇÕES ENTRE CASAS E RUAS Da colonização até o último quartel do século dezenove, a atuação regulatória em relação ao parcelamento do solo1 se deu de uma forma esporádica e fragmentária. Editado em 1838, o Código de Posturas do Município Neutro do Rio de Janeiro incluía algumas disposições sobre o “alinhamento das ruas”, dentre as matérias ditas de “polícia”, exigindo, por exemplo, a intervenção de profissionais chamados “arruadores”, muitas vezes homens do mar ou agrimensor (VERISSIMO, 2006, p. 20), para definir e implementar o traçado dos novos logradouros, fixando uma largura mínima para todas as vias da cidade e instituindo licenças para a execução de obras nas fachadas dos prédios. Era característica desta legislação o enfoque nas fachadas: a própria noção de “alinhamento” se referia à continuidade nas fachadas dos edifícios, fazendo com que “ao arruador compet[isse] alinhar e perfilar o edifício, e regular sua frente”. Os problemas com “edifícios que tiverem sahido do alinhamento” eram resolvidos pelo recuo ou pelo avanço das construções, com possibilidade de multar os donos dos edifícios, e até de demoli-los. É que, nas concepções daquela época, “as ruas eram definidas pelas casas” (REIS FILHO, 1970, p. 27); “não seria possível pensar em ruas sem prédios; ruas sem edificações, definidas por cercas, eram as estradas”, e reciprocamente, a arquitetura residencial se caracterizava por lotes uniformes, “com residências construídas sobre o alinhamento das vias públicas e paredes laterais sobre os limites dos terrenos” (ibid., p. 22). Assim, a prática do alinhamento nos períodos colonial e imperial ficou sempre atrelada ao papel que a fachada desempenhava na concepção nativa dos espaços públicos. Embora mínima, a legislação sobre parcelamento do solo nem sempre era respeitada, principalmente nos subúrbios da cidade, o que por muito tempo não incomodou tanto as elites locais, a não ser determinados segmentos, como os engenheiros. Foi, por exemplo, o caso daqueles que integraram a Commissão de Melhoramentos, criada pelo poder imperial em 1875 para identificar as intervenções urbanísticas – chamadas naquela época de “melhoramentos” – pelas quais a cidade precisava passar, “com o fim de 1

É importante entender que o loteamento envolve duas operações diferentes: a divisão do solo e a abertura de vias públicas. Já o desmembramento resulta só na divisão do solo, aproveitando o sistema viário existente. Ambas as operações são consideradas como formas de parcelamento.

melhorar suas condições hygienicas e facilitar a circulação entre seus diversos pontos, dando ao mesmo tempo mais belleza e harmonia às suas contrucções”. A comissão, que contava entre seus integrantes Francesco Pereira Passos, futuro prefeito da cidade, entregou várias propostas de melhoramentos, expostas em dois relatórios, nos quais se insistia muito na “abertura de ruas, praças e avenidas”, “para a salubridade pública e para a facilidade de comunicações”, sobretudo na região central da cidade: Um dos maiores defeitos que se notam na parte antiga da cidade são a estreiteza e grande sinuosidade de suas ruas, do que resultam não somente dificuldades à circulação dos vehiculos e das pessoas a pé, mas ainda impedimento sensível à renovação do ar viciado por tantas causas no interior das habitações. No traçado das ruas nos novos bairros a comissão teve muito em vista evitar este inconveniente, dando às que projectou, e que devem servir de base as subdivisões em quarteirões, larguras muito acima do commum no Rio de Janeiro2.

É de se notar que, neste relatório, mudava-se a concepção do alinhamento que prevalecia até então: de acordo com o ideário higienista da época, as vias de comunicação deviam ser dispostas “de modo que a ventilação das casas e o escoamento das águas pluviaes sejam feitas com facilidade”, sendo neste último caso preciso endireitar também o “perfil longitudinal das ruas”, para que as águas não estagnassem em algum recanto. Além disso, ao invés das fachadas, o que chamou a atenção dos engenheiros é o interior das casas, o agenciamento dos cômodos internos, o que eles chamaram de “systema de distribuição interna” ou “systema de construcção das casas”, denunciando, por exemplo, a presença de “alcovas humidas escuras, onde dormem várias pessoas, guarda-se a roupa suada, ajuntam-se águas sujas e outras immundices”. Enfim, a concepção que os relatores tinham do alinhamento estava também atrelada à noção de plano. O primeiro cuidado deles foi assim de “organizar uma planta geral, comprehendendo toda a área da cidade em que tinh[am] de projectar os referidos melhoramentos”, contando que, para isso, usaram duas folhas com escala 1:1000, “distinguindo-se ahi com tinta preta as construcções existentes e com tinta de carmim as que project[aram]”. Explicam também, no segundo relatório, que o objetivo do estudo não era a execução imediata dos melhoramentos propostos, “mas sim a organização de um plano geral ao qual fiquem subordinados os futuros alinhamentos” 3. Cabia então à prefeitura “assental-o [o plano geral] sobre as largas bases do futuro a que está destinada esta grande cidade, ainda que a sua execução tenha lugar lentamente, acompanhando pari 2

Primeiro Relatório da Commissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeir, 1876. Os grifos são meus. 3 Segundo Relatório da Commissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, 1876.

passu o desenvolvimento da população.” Só com tal plano talvez se conseguisse “dar à cidade a regularidade desejável”. Logo enterradas, as propostas da comissão voltaram sob a administração de Candido Barata Ribeiro, que promulgou novas normas a respeito do alinhamento das ruas e dos prédios, com a Postura do dia 15 de setembro de 1892: esta decretava, em seu sétimo artigo, que “não será permittida a divisão de terrenos em praças e ruas, sem que previamente sejam apresentados a planta e os perfis longitudinal e transversal”: tornavase necessário, para autorizar uma obra de loteamento, a apresentação de um determinado documento, uma planta com as coordenadas topográficas da obra. Tal planta tinha de obedecer a certo padrão geométrico, já que a licença podia ser recusada “se as ruas e praças apresentarem ângulos em seus alinhamentos”, “ou se oppuzerem ao plano geral da cidade” – o mesmo artigo concluía dizendo que “a divisão dos terrenos procurará sempre approximar-se da fórma de quadrados nos rectangulos pouco alongados”. Esta postura teve vida curta, sendo substituída pelo Decreto nº 43 do dia 2 de agosto de 1893, o qual legislava explicitamente, e unicamente, sobre “a abertura de novas ruas e o prolongamento das já existentes”. Todavia, o decreto retomou muitas das disposições contidas na postura de 1892, com alguns acréscimos notáveis. O primeiro artigo era ainda mais explícito quanto ao padrão geométrico a ser seguido no traçado das vias: “quando interceptarem, ou cortarem outras ruas, as intercepções ou córtes dos alinhamentos serão em angulo recto”; “em zonas de terrenos, que ainda não estejam arruados, as ruas serão equi-distantes, e a largura do terreno, comprehendido entre cada duas ruas, nunca será inferior a 100 metros”, o que igualava dizer que os quarteirões deviam possuir a forma exata de um quadrado, com uma superfície sempre superior a 10.000 m². Ou seja, o decreto cumpria com o desejo da Commissão de Melhoramentos, segundo o qual o traçado das novas ruas “dev[ia] servir de base as subdivisões em quarteirões”. Revertia-se assim a relação do prédio com a rua. Agora, a situação das construções era subordinada ao traçado prévio das ruas, fazendo com que se tornasse possível definir uma rua desprovida de edifício; caso ocorresse, a existência da rua se resumia simplesmente ao desenho contido na planta original do parcelamento. Coerente com esta nova concepção do alinhamento era a sujeição de aberturas, prolongamentos e alargamentos de ruas e praças ao “plano de viação organisado pela Prefeitura”, assim como a mudança no foco da repressão, pois se o proprietário infrator continuava sujeito à multa, o alvo físico agora era a própria rua, que corria o risco de ser fechada.

DOCUMENTANDO O ALINHAMENTO: OS PROJETOS APROVADOS DE ALINHAMENTO (P.A.A.) Esta documentação do alinhamento só ganhou força com o decorrer dos anos. Vale ressaltar que esta tendência à documentação gráfica não era nem um pouco específica ao caso do alinhamento, atingindo também, e antes de tudo, a regulação edilícia: foi sob o governo Barata Ribeiro que se criou um moderno sistema de licenciamento para obras de construção e reconstrução de prédios, baseado em plantas e planos de obras; foi também neste governo que a prefeitura fechou com o Professor de astronomia (!) Manoel Pereira Reis, da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, um contrato para o levantamento da Carta Cadastral da Cidade, marco importante pois a carta cadastral se firmou em seguinte como a pedra angular de toda a documentação urbanística. O decreto n. 489 do dia 20 de dezembro de 1897, promulgado enquanto a carta ainda estava sendo confeccionada, determinou assim que, “para as concessões e contractos a celebrar com a Prefeitura, que versarem sobre viação, só serão aceitos traçados projectados em plantas que procederem da Planta Cadastral”. Quando o engenheiro Pereira Passos foi nomeado prefeito do Distrito Federal em dezembro de 1902, pelo recém-eleito Presidente Rodrigues Alves, o ex-integrante da Commissão de Melhoramentos teve plena liberdade para implementar a tão desejada reforma urbana, que ia remodelar a paisagem da cidade. Menos conhecida é a reforma administrativa impulsionada pelo famoso prefeito, mesmo que entre as primeiras medidas tomadas por ele contasse a reorganização da comissão da carta cadastral: além de passar sob a tutela da Directoria Geral de Obras e Viação, era acertado que a comissão “auxili[aria] a Directoria Geral de Obras e Viação na execução de quaesquer outros trabalhos tecnicos, relativos à viação publica”. Tal reforma só faz plenamente sentido frente ao novo papel das práticas documentárias na economia geral das práticas urbanística: foi o governo Passos que “introduziu a uniformização dos projetos de alinhamento, também chamados de melhoramentos, em folhas de tela imperial transparente, de 30 x 50 cm” (REIS, 1977, p. 18, grife meu), assim como a numeração deles (desde então sempre indicada no canto superior direito do plano e cercada de vermelho), de maneira a facilitar o arquivamento, responsabilidade da comissão da carta cadastral. Ao definir esta técnica de compilação física dos planos, a administração Passos deu início à série dos Projetos Aprovados de Alinhamento (P.A.A.), tal como ainda existe hoje. Além disso, elaborou um procedimento para a aprovação dos planos, que se tornou padrão:

esses deviam ser visados primeiramente pelos engenheiros da comissão da carta cadastral, depois pelo Engenheiro Chefe e Diretor de Obras da prefeitura, para ser enfim aprovados pelo prefeito. Ficou então claro o poder dos engenheiros sobre os destinos da cidade; de fato, foi este fortalecimento dos engenheiros municipais o marco decisivo do período, já que logo no começo Passos cercou-se de engenheiros, topógrafos e desenhistas. Enfim, para Passos, a função da Commissão da Carta Cadastral não era apenas de cartografar o território do município, ou melhor: o mapeamento cadastral da cidade pela comissão a levara a formular propostas de melhoramentos, nas quais Passos pretendia embasar seu plano para a remodelação da cidade (ibid., p. 17). A reforma administrativa, portanto, era necessária à reorientação na economia das práticas urbanísticas; ela vai junto com a compilação física dos planos de alinhamento. De fato, pode-se ler a história da reforma urbana pelos projetos de alinhamentos aprovados naquela época, e reciprocamente, às grandes obras do governo Passos correspondem determinados P.A.A. O primeiro P.A.A. (figura 2), por exemplo, refere a abertura da Avenida Salvador de Sá, no centro da cidade. Já os projetos seguintes tiveram a ver com aberturas, prolongamento e alargamento de ruas, sempre de acordo com as obras promovidas pelo prefeito. Houve também muitos planos de melhoramento, que na maioria dos casos visavam retificar o alinhamento das ruas – no sentido etimológico da palavra retificar: tratava-se de substituir ao traçado às vezes conturbado das ruas uma única linha reta. A explicação mais simples para esta correspondência seria de considerar os P.A.A. como mera representação, projeção ou objetivação dos projetos aos quais eles referem. É da nossa opinião que não: as operações de abertura, alargamento, prolongamento e alinhamento envolviam um componente eminentemente gráfico. Tomemos como exemplo o décimo-terceiro P.A.A., que detalha um projeto de alargamento da Rua Camerino, também no centro do Rio (figura 3). Á tinta preta foram executados o traçado das ruas e das propriedades adjacentes, desde que afetadas pelo projeto, mais algumas inscrições, do nome das ruas àquele do projeto, passando pelo número das propriedades. Já a tinta vermelha serviu exclusivamente para o traçado projetado4. Como se pode perceber, a rua projetada não é só mais larga, ela também é uniformemente mais larga e perfeitamente reta, duas qualidades que só aparecem por conta do próprio desenho; ou seja, a relevância do projeto não se manifesta na escala da rua, 4

Reproduzindo, assim, a convenção gráfica que prevaleceu quando a Commissão de Melhoramentos fez seus planos para a cidade, e a convenção que vigorava para as licenças de construção de prédios.

onde pequenas variações na largura e no traçado das ruas são difíceis de se perceber, mas na escala do plano – da mesma maneira, a retidão e homogeneidade da rua torna-se visível na escala do plano. O elemento gráfico aqui é essencial à operação urbanística; a operação urbanística é uma operação gráfica: tirando o elemento gráfico, retidão e homogeneidade não fazem sentido. Além disso, pelas propriedades gráficas do plano é possível sobrepor o novo traçado ao traçado original, sem risco de confusão graças ao uso de cores diferenciadas; da sobreposição resulta o efeito do alargamento, ou seja, dáse uma percepção clara de quem são os sujeitos afetados pela operação. Alargar vai implicar em apagar as linhas (pretas) do traçado original que ficam entre as linhas (vermelhas) do traçado projetado. É possível entender então por que o plano é o projeto. Em seu clássico Seeing like a state, o cientista político James Scott identificou como característica fundadora do estado modernista a tentativa de tornar o real mais legível, o que, para uma instituição supralocal como o estado, significava antes simplificar o real, pensá-lo separadamente dos contextos locais (SCOTT, 1980, p. 2). Scott detalhou vários exemplos de simplificações, muitos deles com fundamento em práticas documentárias, como os planos em xadrez, os censos, as plantas cadastrais ou as unidades de peso e medida (ibid., p. 77). Até listou as propriedades comuns às simplificações modernistas: eram utilitárias, escritas, estáticas, agregadas e padronizadas (ibid., p. 77-82). Aparentemente, o P.A.A. mereceria entrar na categoria das simplificações modernistas: ele serve para operações urbanísticas que têm como fim a higienização do espaço urbano e sua adequação com as necessidades econômicas do momento; é um documento escrito; grava certa imagem do espaço urbano a certo momento; associado à planta cadastral, serve virtualmente para formar uma imagem completa da cidade; obedece a um padrão de composição gráfica e de compilação física. E, obviamente, oferece uma imagem extremamente simplificada do real urbano, reduzido a seus elementos geométricos essenciais, aos nomes e números de suas ruas. Há, porém, várias restrições a fazer com relação à tese do Scott. Em primeiro lugar, evidenciamos que a simplificação do real é paradoxalmente um processo bastante complexo, que necessita todo um trabalho de codificação material e jurídica das ditas simplificações, assim como certo agenciamento das instituições responsáveis por essas simplificações. O jogo de assinaturas e carimbos presentes nos P.A.A. é o indício desta agência complexa, envolvendo não “o estado” em geral mas atores particulares, como a comissão da carta cadastral, a diretoria geral de obras e viação, e por fim o próprio pre-

feito (figura 4): a aprovação de um plano de alinhamento, portanto, é o produto de uma atuação complexa. Encontramos aqui um atributo típico das burocracias, identificado com clareza por vários etnógrafos dos documentos: ao mesmo tempo em que as burocracias buscam individualizar ao máximo os atores envolvidos na produção de documentos e decisões, por meio de assinatura pessoal, elas coletivizam a autoria desses documentos e dessas decisões, de tal maneira que se torna extremamente difícil identificar quem é exatamente o responsável5. Esta disseminação da autoria tem uma função explicita no caso dos P.A.A.: ela é a garantia de que o documento está conectado com outros documentos. Considerando a economia das práticas documentárias e urbanísticas que acabamos de descrever, era preciso haver nos P.A.A. o sinal inegável de uma conexão com a planta cadastral, sinal dado pelo selo da comissão da carta cadastral junto com a assinatura de seu chefe. Em seguinte, o P.A.A. é um artefato muito menos estático do que parece, e pelo mesmo motivo não tão fácil de ser agregado. De fato, raríssimos são os P.A.A. que permaneceram em seu estado de origem, muitos são cobertos de anotações, nem sempre legíveis. Tomemos o caso do P.A.A. nº 5.793, referente ao projeto de alargamento da Estrada do Magarça, situada no bairro de Guaratiba, Zona oeste do Rio de Janeiro. Observando a folha quatro do projeto (figura 5), encontramos, na parte superior do desenho, diversas anotações, algumas originais, como aquelas que apontam para uma modificação nos P.A. 4.432 e 3.105: o primeiro é um projeto de alargamento para a Estrada do Aterrado do Rio, que faz esquina com a Estrada do Magarça, exatamente no lugar indicado pela folha quatro; já o segundo remete ao alargamento da Estrada do Canhanga, que também faz esquina com a Estrada do Magarça, na altura do lugar indicado pela folha quatro. Encontramos também anotações posteriores, indicando que o P.A.A. nº 5.793 foi modificado pelos P.A.A. nº 8.857, 9.326, 9.354, 10.329, 10.832 e 10.908, assim como pelo P.A.A. nº 65-DER. Este jogo de referências “hipertextuais” ou “hipergráficas” permite ao mesmo tempo manter a integridade do desenho original e adequálo às mudanças urbanísticas que sempre acontecem; ou seja, é possível usar de artifícios gráficos para conectar documentos, de proveniência variada, entre eles, e fazer com que a tecnologia documentária possa assim dar conta da ação do tempo.

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"Bureaucratic agency is at once individualized through autographic writings and collectivized through the dialogic discursive and circulatory construction of those writings" (HULL, 2012a, “Chapter III: Files and the Political Economy of Paper”). Ver também RILES, 2006, p. 21-22.

Entretanto, os P.A.A. não referem só a P.A.A., há outros documentos envolvidos neste sistema “hipergráfico”, como os decretos municipais, na medida em que a aprovação plena de um projeto de alinhamento necessita um ato oficial do poder executivo, referências aos textos que mudaram a nomenclatura dos logradouros ou ao número do processo administrativo ao qual o projeto é vinculado. Estas então colocam o documento na série dos atos ligados ao processo. E esta centralidade das interligações gráficas explica também por que os P.A.A. não formam uma tecnologia do tipo panóptico: se era para ter uma “God’s-eye view, or the view of an absolute ruler” (SCOTT, 1998, p. 57), esta é distribuída ao longo das conexões entre artefatos gráficos, e não em um único dispositivo sintético. Para ter uma visão geral dos alinhamentos, é necessário então seguir as conexões entre os artefatos; ao contrário dos preconceitos populares e eruditos acerca das burocracias, o caso dos P.A.A. revela o quanto as burocracias são fundamentalmente construtivistas. DO ALINHAMENTO AO LOTEAMENTO: DOCUMENTANDO O MERCADO DE LOTES NA CIDADE O caso dos Projetos Aprovados de Loteamento é mais um exemplo deste construtivismo burocrático. Em primeiro lugar, é importante lembrar que, até os anos vinte, não se tinha o conceito de loteamento (a própria palavra ainda era trata como neologismo, SAMPAIO, 2010), ou seja, o conceito de uma operação que envolvesse simultaneamente a abertura de vias e a divisão de uma mesma gleba em lotes individualizados. Já se loteava no Rio de Janeiro, mas a crítica ao loteamento desordenado de terras nos subúrbios da capital tinha como alvo central o perfil das ruas, estreitas demais, geometricamente irregulares e sem ligação natural com o resto do sistema viário; além da falta de infraestrutura. As legislações adotadas a partir de 1892, portanto, regulamentaram a abertura de ruas, mas não a divisão da terra em lotes. Consequentemente, quem quisesse lotear legalmente tinha de submeter à prefeitura uma planta indicando o traçado das ruas a serem abertas, e esta planta, depois de aprovada pelo prefeito, era “organizada” pelo serviço da comissão da carta cadastral para dar lugar a um projeto aprovado de alinhamento. Por isso, os primeiros projetos aprovados de loteamento foram projetos aprovados de alinhamento, à imagem do P.A.A. nº 679, que apresenta uma planta de “ruas projectadas nos terrenos da Companhia Brazileira de Immoveis e Construcções”, no Grajaú (figura 6). A composição gráfica deste projeto, aprovado em outubro de 1913, é idêntica à de qualquer plano de alinhamento, com a numeração no canto superior direi-

to, o selo da comissão da carta cadastral e as anotações sobre a aprovação do projeto. Típico de ruas abertas por iniciativa particular, elas não possuem nomenclatura na versão original da planta, sendo identificadas por números. As divisões fundiárias, porém, estão ausentes. É claro que o contorno das quadras é facilmente reconhecível pela maneira como as ruas estão alinhadas, entretanto, elas não foram identificadas como tal. Quanto aos lotes, sequer se menciona a existência deles. A partir dos anos vinte, o quadro mudou muito, com o lote se tornando um objeto jurídico6. Assim, no Decreto nº 2.086 do dia 16 de janeiro de 1925, faz-se referência pela primeira vez ao lote enquanto “porção de terreno situado ao lado de um logradouro publico, descripta e assegurada pelo titulo de propriedade”. Outros conceitos se articularam ao de lote, como “frente ao lote” ou “profundidade do lote”, que tinham sempre em comum sua articulação ao conceito de alinhamento 7. Importantíssimo a respeito disso foi o décimo-quarto artigo da lei, que, além de instaurar, pela primeira vez, o reconhecimento oficial de logradouros, obrigou os arruadores a apresentarem um “plano de retalhamento em lotes”, fazendo com que se multiplicassem os “projectos de abertura de ruas e divisões de lotes”, vários sob a iniciativa de companhia imobiliária, à imagem do P.A.A. nº 1790, de junho de 1928 (figura 7). Aí se pode perceber logo que as convenções gráficas vigentes no Departamento de Viação e Obras foram adaptadas ao “retalhamento de terra em lotes”: se a tinta preta continua indicando o traçado das vias já existentes, a tinta vermelha, além de referir às novas ruas, ordenadas por caracteres alfabéticos, serve também para estabelecer os limites dos lotes. Vale ressaltar que, ao lado dos P.A.A., sempre existiu outra série de documentos, reconhecível pela numeração própria, mas com características muito semelhantes às dos projetos de alinhamento: os que deram início à série dos P.A.L. Esses documentos eram em folhas de tela imperial, com número indicado no canto superior direito; além do selo da comissão da carta cadastral, eram assinados pelos diretores da comissão e da Secretaria Geral de Obras e Viação, e aprovados diretamente pelo prefeito; a tinta vermelha era usada para assinalar os elementos projetados, em contraposto com os elemen6

Encontra-se a palavra “lote” na postura do dia 15 de setembro de 1892, porém acrescido da palavra “terreno”: “nenhum lote de terreno com largura inferior a sete metros de frente poderá receber construcção alguma” (artigo sétimo, parágrafo primeiro), provavelmente porque a palavra “lote” ainda era muito vinculada ao léxico do sorteio, do qual é oriundo (SAMPAIO, 2010). 7 A definição da “frente ao lote” é particularmente esclarecedora, na medida em que não faz nenhuma referência à área interna do terreno: “é a linha que separa o lote do logradouro publico e que coincide com o alinhamento” (artigo primeiro).

tos já existentes, desenhados com tinta preta. Havia, porém, um elemento de primeira importância que os diferenciava graficamente dos P.A.A.: o número do projeto era duas vezes cercado de vermelho, ao contrário dos P.A.A. cujo número ficava dentro de um só círculo de vermelho. Enfim, esses primeiros projetos, como o P.A.L. nº 9, aprovado no segundo ano da gestão de Pereira Passos (figura 8), tratavam de matérias diversas, relacionadas a obras de “melhoramentos”, como a realização de uma ponte ou o calçamento de uma rua. Em muitos casos, os projetos eram implicitamente ligados a projetos de alinhamento, na medida em que as obras descritas atingiam logradouros visados pela reforma urbana. O P.A.L. nº 9, por exemplo, era ligado ao projeto de abertura da Avenida Beira-Mar, uma das principais obras do governo Passos (P.A.A. nº 22, figura 9). Isto não mudou muito nos governos seguintes, porém algumas inovações gráficas foram introduzidas, no sentido de multiplicar as conexões entre P.A.A. e P.A.L., de reforçar a função “hipergráfica” da tecnologia documentária: assim, ficou a cada vez mais comum os projetos de meios-fios referirem explicitamente aos P.A.A. dos quais eles decorriam; surgiram também projetos que receberam números de P.A.A. e de P.A.L., quando, por exemplo, eram simultaneamente “de alinhamento e de meio-fio”. A partir dos anos 1910, o quadro começa a mudar, com casos de P.A.L. que descrevem operações de desmembramento, a exemplo do P.A.L. nº 366 (figura 10). Se não temos muitos elementos para explicar o motivo da mudança, ela nos parece ser vinculada a intensificação da fiscalização sobre alinhamento: em seu décimo-oitavo artigo, o decreto nº 1.392 do dia 28 de junho de 1912, que “regula a concessão de licença para a construcção e reconstrucção de predios no Districto Federal”, estipulava que “nenhuma obra que affecte os logradouros publicos sera executada sem que pela Directoria de Obras sejam dados os alinhamentos e nivelamentos a que deverão obedecer.” De fato, o desmembramento da terra impacta os logradouros públicos em um de seus aspectos fundamentais: a numeração das casas. Olhando para o P.A.L. nº 366, constatamos que a tinta vermelha, tão importante para entender o que interessa a administração urbanística, é usada para identificar as novas divisões dos lotes assim como os trechos de logradouros afetados pelas divisões e a nova numeração delas decorrente. Com efeito, já na segunda metade dos anos 1910, a série de documentos confeccionados pelo serviço cadastral da prefeitura e caracterizada por números cercados duas vezes de vermelho no cantinho superior direito estava se tornando, na verdade, um instrumento para fiscalizar o desmembramento da terra urbana, mesmo que não fosse proposital.

A lei 2086/25 foi bem mais explícita quanto ao objetivo de fiscalizar o desmembramento. Assim, no já citado artigo décimo-quarto, ficou estipulado que “não poderá ser feito retalhamento em lotes... sem que seja o plano desse retalhamento submetido à aprovação da Prefeitura”; o licenciamento de prédios em logradouros projetados também passou a exigir o “plano de retalhamento da quadra respectiva, em lotes”. Daí para frente, cresceu então o número de projetos de desmembramento aprovados pela prefeitura, ultrapassando os alinhamentos, e aquela série de documentos com números cercados duas vezes de vermelho especializou-se nos projetos de desmembramento. Ao mesmo tempo, pelo fim dos anos vinte, foram mais comuns os projetos de loteamento aprovados pela prefeitura que receberam dois números, um como P.A.A., outro como P.A.L. (figura 11): estava surgindo, por meio de um recurso gráfico (a numeração dupla) a figura moderna (e ambivalente) do loteamento, ao mesmo tempo operação comercial, porque procura dividir um mesmo terreno em lotes individualizados a fim de colocá-los à venda, e urbanística, devido à abertura de vias públicas. É importante mencionar que, por cima do decreto 2086/25, tinha uma comissão de engenheiros e arquitetos, chefiada por Armando Augusto de Godoy; segundo Godoy, a cidade era, além de um sistema viário, um “sistema econômico”, dentro do qual se destacava a habitação enquanto mercadoria. Por isso, enxergava no loteamento mais do que uma operação urbanística: esse era também uma das formas, privilegiadas no contexto econômico daquela época, pela qual se conseguia acesso ao mercado habitacional. Com base na tecnologia gráfica dos projetos de loteamento, era possível determinar a natureza exata das mercadorias, ou seja, dos lotes ofertos, e controlar o perfil das casas a serem construídas. Acontece que o mesmo Godoy se encontra por trás do grande marco regulatório do período: o Decreto-Lei nº 3.549 do dia 15 de junho de 1931, que dispunha sobre abertura de ruas e divisão em lotes. Este decreto trouxe significativas inovações. Em primeiro lugar, regulamentou com muito detalhe o dimensionamento dos lotes e das quadras. Pelo quarto artigo, era acertado que a “Divisão de Urbanisação” da prefeitura podia rejeitar projetos de loteamento “se o numero de ruas exceder ao maximo tolerado e se os terrenos não forem divididos em lotes com as dimensões convenientes”. As quadras tinham de apresentar uma superfície média entre 10.000 e 12.000 m² ou, e as duas fórmulas eram consideradas pelo decreto como equivalentes, ser traçadas, “em média, de 200 em 200 metros num sentido e de 60 em 60 metros no outro”. A largura mínima das avenidas era de 18 m, já a das ruas residenciais podia descer até 9 m. Os

lotes não podiam apresentar uma testada inferior a 12 m, e uma superfície abaixo de 360 m², o que implicava, portanto, um padrão mínimo de 12 m de largura por 30 m de profundidade. Sobretudo, a comercialização e até mesmo a publicidade dos lotes só podiam ser iniciadas após aprovação do projeto, calçamento das ruas e assentamento das canalizações de água e esgoto: ficaram então obrigados os loteadores a depositar na prefeitura, além da planta, um programa indicando “as condições nas quaes o grupo ou o loteamento ser[ia] estabelecido (logradouros, distribuição de água potável, arborização, evacuação das águas pluviaes e residuaes e de matérias usadas, iluminação, etc.)”. O requerente tinha também que deixar na prefeitura um “registro de obrigações” das vendas, “estipulando as servidões hygienicas, archeologicas e paisagísticas do grupo ou dos lotes”. À semelhança do que já acontecia no licenciamento de prédios, o projeto de loteamento remetia agora não só a uma planta como a um conjunto de documentos. A planta, contudo, continuava sendo protagonista. O decreto-lei 3594/31 foi assim o primeiro a conter especificações técnicas quanto à composição gráfica da planta, ao fixar um valor de escala (1:200), ao determinar que as ruas projetadas na planta compreendessem ligação com os logradouros públicos, ao exigir que figurasse também “a situação eschematica e as superficies maximas dos futuros edificios nos lotes respectivos” ou ao requerer que a planta viesse acompanhada de perfis longitudinais e secções transversais. Como se pode perceber, as especificações gráficas não tinham a ver só com a legibilidade da planta; esta tinha se tornado antes um instrumento de fiscalização do mercado imobiliário no Rio de Janeiro, pelo menos da fatia correspondente aos loteamentos. Com efeito, os P.A.L. daquela época enriqueceram-se de detalhes: no caso do P.A.A. nº 2.525, aprovado em janeiro de 1936, e que trata da “abertura de ruas e loteamentos” no bairro de Madureira (figura 12), cada lote foi delimitado, numerado e dimensionado; dentro de cada lote, uma área listrada de vermelho indica onde pode ter edificações; no logradouro, encontram-se anotações sobre “focos de luz”, canalizações d’água e passeios. Há algo de simultaneamente preciso e abstrato nesses elementos; os lotes estão sendo reduzidos a um determinado agenciamento de linhas e números, o que os torna perfeitamente substituíveis uns aos outros, se não fosse a localização específica de cada um. É como se a tecnologia gráfica ressaltasse só algumas propriedades materiais dos lotes – aquelas pelas quais eles adquirem um valor de troca. Com isso, é possível sustentar, à maneira de James Scott, que o estado tornou o loteamento, enquanto operação urbanística e instrumento de acesso à moradia própria,

legível, o que facilitou o controle sobre a abertura de vias e o tipo de moradia oferto pelo mercado imobiliário. Ao mesmo tempo, uma planificação dessas servia ao próprio mercado para se organizar. O engenheiro Washington Azevedo, projetista de planos de loteamento na época que o decreto foi baixado, tomou assim a defesa do decreto, afirmando que ele “veio melhorar consideravelmente a disposição de ruas e lotes no Distrito Federal, dar uma oportunidade aos compradores para adquirirem um lote razoavelmente disposto e veio ainda aumentar as possibilidades de lucro das companhias que exploram a venda de terreno. Em resumo, o decreto veio proteger diretamente o vendedor e o comprador de lotes” (AZEVEDO, citado em VERÍSSIMO, 2006, p. 38). Há de se notar que, antes mesmo da legislação obrigar o loteador a depositar o “plano de retalhamento da terra em lotes”, foram aprovados projetos de loteamento, como da Companhia de Administração Garantida (figura 13), que já mostravam as divisões em lotes. Contudo, ao exigir um programa de obras, um registro de obrigações e ao condicionar a venda de lotes à aceitação do projeto, o governo ia muito além: o próprio projeto se tornava uma peça chave na definição de uma relação contratual entre loteador, adquirente e prefeitura. A partir deste decreto, comentava o Procurado do Estado do Rio de Janeiro Letácio Jansen, “cristalizou-se... a conceituação do loteamento como uma espécie de “empreitada”, constituída de um conjunto de obrigações do proprietário e loteador perante dois credores diversos: o Município e o adquirente dos lotes” (JANSEN, 1987). Esta tendência em conceituar o loteamento “como uma espécie de empreitada” ganhou força com a produção legislativa dos anos seguintes. O decreto nº 6.000 do dia primeiro de julho de 1937, estabeleceu assim a necessidade de depositar na prefeitura um “título de propriedade dos terrenos a serem arruados” e uma “certidão negativa do Registro de Imóveis”, hoje conhecido como “certidão de ônus negativo”. Os projetos aprovados, como já acontecia no caso do licenciamento de prédios, tinham que ser assinados pelo proprietário e pelo engenheiro projetista. O decreto previa também que, após aprovação do projeto, fosse firmada entre o loteador e a prefeitura um “termo de cessão e de obrigação”, no qual constavam o programa de obras, o compromisso em não iniciar a venda dos lotes até a conclusão das obras e a declaração de cessão à prefeitura dos terrenos reservados à construção de escola e abertura de praça); por parte da prefeitura, esta se engajava em reconhecer os novos logradouros – desde então, tornou-se uma prática recorrente o fato de anotar nos P.A.L. a data de assinatura do “termo de cessão e de obrigação”. O Decreto-Lei nº 58 do dia 10 de dezembro de 1937 traduziu no corpo da

legislação federal, teoricamente a única que pode se pronunciar sobre assuntos relativos à comercialização das terras, as concepções dos decretos-lei 3594/31 e 6000/37: os projetos aprovados de loteamento precisavam agora ser depositados “no cartório de registro de imóveis da circunscrição respectiva” antes de anunciar e iniciar a venda dos terrenos, junto com uma “relação cronológica dos títulos de domínio” e um “exemplar de caderneta ou do contrato-tipo e compromisso de venda dos lotes”. Com este decreto, era definitivamente assegurado o reconhecimento do loteamento como operação simultaneamente urbanística e comercial, viária e fundiária, e isto com base em um artefato gráfico: o projeto aprovado de loteamento ou P.A.L. CONCLUSÃO Era a nossa hipótese que a tecnologia documentária contida nos P.A.A. e P.A.L. não se reduzia a mera ferramenta para representação de alguma realidade externa ou a mera tela para projeção de certa ideologia (LATOUR, 1996). Em vez de tratar a tecnologia documentária como intermediária entre uma realidade que lhe preexistiria e os agentes que a acionam, abordamo-la enquanto mediação necessária de um processo que levou a definição do loteamento como operação urbanística e comercial (LATOUR, 2007). Como vemos já, as propriedades gráficas do P.A.A./P.A.L. desempenharam um papel central neste processo. O plano de alinhamento foi fundamental no deslizamento semântico da categoria de alinhamento, de tal modo que não é mais possível entender este sentido do alinhamento sem se referir a existência de tal plano. O plano de alinhamento literalmente arrancou das fachadas o alinhamento, para torná-lo uma propriedade geométrica eminente daquela nova realidade urbana descrita nos planos, realidade que não tinha mais nada ver com as fachadas tradicionais, realidade que era a do urbanismo recém-nascido – por isso, o plano de alinhamento só pôde existir em relação com outros planos, tipo carta cadastral ou plano diretor, que também são marcos fundamentais na gênese do urbanismo. Da mesma maneira, os recursos gráficos do plano de alinhamento fizeram com que ele se tornasse um instrumento de fiscalização do loteamento enquanto operação comercial: reduzindo o lote a seus “elementos geométricos essenciais” (divisões, superfície e localização), os planos “de abertura de ruas e de divisões em lotes de terreno” apontavam justamente para as qualidades materiais do lote que lhe conferiam um valor de troca, as qualidades que faziam dele uma mercadoria. Aqui, como em vários outros casos, a extensão das técnicas de governo veio junto com o fortalecimento

do mercado: a preocupação do governo em fiscalizar o mercado de terras e as construções residenciais encontrou os interesses das companhias loteadoras8. Apontamos também para outra qualidade gráfica dos planos que chamamos de função “hipergráfica”: aberta as anotações, a superfície do plano serve para criar conexões com outros documentos, quer sejam outros planos de alinhamento e loteamento, quer sejam documentos de outra natureza, como decretos e contratos. Os próprios elementos da planta são vinculados a outros documentos: no caso dos projetos de loteamento, por exemplo, as linhas que indicam a localização das infraestruturas só fazem sentido com referência aos programas de obras e ao termo de cessão e de obrigação. Por outro lado, os planos são citados por inúmeros documentos. Assim, os “termos de compra e venda” que têm objeto um lote por mencionam a localização dele no P.A.L.; quem quiser conseguir regularizar definitivamente seu título de propriedade tem que levar ao cartório uma cópia do P.A.L. onde fica seu terreno. É claro que ninguém nunca explora todas as ligações hipergráficas de um mesmo plano, porém, o fato delas existirem garante o funcionamento da tecnologia; além disso, a função hipergráfica permite aos planos de loteamento ou alinhamento incluírem as mudanças que afetam esses loteamentos ou alinhamentos... desde que essas mudanças sejam documentadas! Aí temos que voltar para uma tese fundamental do Matthew Hull. Ao perguntar o que representam as curvas e formas presentes nas plantas produzidas pelo departamento de urbanismo de Islamabad, Hull responde: “they represent graphic artifacts that mediate the relation between maps and the built environment", ou seja, “a map is a more trustworthy representation of bureaucratic process, more like an organizational chart than a photograph of the built environment”, e por isso mesmo, "the maps function slowly as monitoring instruments" (HULL, 2010, “Conclusion”). Em outras palavras, a tecnologia documentária dos planos urbanísticos, justamente por apoiar-se principalmente em documentos, enfrenta limitações óbvias: tudo que não é documentado não existe para esses planos. Portanto, os planos são muito dependentes dos esforços constantes das burocracias em atualizá-los, esforços aos quais, como se pode imaginar, as burocracias nem sempre podem ou querem se dedicar. O que é perfeitamente compreensível, já que as burocracias constroem sua atuação em cima de documentos: questionar sistematicamente a fidedignidade deles levaria a um acúmulo enorme de trabalho, e a 8

Até certo ponto. Infelizmente, não cabe aqui tratar dos conflitos entre loteadores e prefeitura, impulsionados pela lei de 1931.

uma paralisia geral das burocracias. Com efeito, a administração urbana do Rio de Janeiro ficou, por muito tempo, pouco reativa diante dos loteadores que não queriam ou não podiam cumprir com suas obrigações, especialmente no que diz respeito à execução das obras de infraestrutura. De fato, a prefeitura só começou a tomar providências quando documentou a realidade desses loteamentos, que passaram a ser chamados de loteamentos irregulares.

ANEXOS

FIGURA 1: P.A.L. nº 16.810, P.A.A. nº 5815, Folha 1, projeto de loteamento “Jardim Maravilha”, Guaratiba.

FIGURA 2: P.A.A. nº 1, projeto de abertura da Avenida Salvador de Sá, Centro.

21

FIGURA 3: P.A.A. nº 13, Projeto de alargamento da Rua Camerino, Centro.

22

.

FIGURA 4: P.A.A. nº 33, Projeto de alargamento da Rua 7 de Setembro, Centro

23

FIGURA 5: P.A.A. nº 5.793, Folha 4. Projeto de alargamento da Estrada do Magarça, Guaratiba.

24

FIGURA 6: P.A.A. nº 679, Folha 3, Projeto de loteamento nos terrenos da Companhia Brasileira de Imóveis e Construções.

25

FIGURA 7: P.A.A. nº 1.790, Projeto de loteamento nos terrenos da Companhia Imobiliária Kosmos.

26

FIGURA 8: P.A.L. nº 9, planta de doca, Glória.

27

FIGURA 9: P.A.A. nº 22, projeto de abertura da Avenida Beira Mar, Glória.

28

FIGURA 10: P.A.L. nº 366, projeto de desmembramento.

29

FIGURA 11: P.A.L. nº 873, P.A.A. nº 1.932, projeto de loteamento da Companhia Jardins Gávea.

30

FIGURA 12: P.A.L. nº 2.142, P.A.A. 2.525, projeto de loteamento.

31

FIGURA 13: P.A.L. nº1.426, Folha 1.

32

BIBLIOGRAFIA HULL, M. S. Government of Paper: The Materiality of Bureaucracy in Urban Pakistan. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 2012a. E-book Kindle. HULL, M. S. Documents and Bureaucracy. Annual Review of Anthropology, v. 41, p 251-267, 2012b. JANSEN, L. Reconhecimento de Logradouros na Cidade do Rio de Janeiro. Revista da Diretoria da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro, n. 39, p 62-88, 1987. LATOUR, B. Changer de société, refaire de la sociologie. Paris: La Découverte, 2007. 401 p. REIS J. d. O. O Rio de Janeiro e seus prefeitos: Projetos de alinhamento. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1977 (O Rio de Janeiro e seus prefeitos, v. 1). REIS FILHO, N. (1970). Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. 214 p. RILES, A. Introduction: In Response. In: RILES, A. (Org.). Documents: Artifacts of Modern Knowledge. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2006, p. 1-40. SAMPAIO, M. R. A. d.; LIRA, J. T. C. d. L. loteamento. In: TOPALOV, C., et al. (Org.). Les aventures des mots de la ville. Paris: Robert Laffont, 2010, p. 670-677. (Bouquins). SCOTT, J. C. Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. New Haven, London: Yale University Press, 1998. 445 p. (Yale Agrarian Studies). VERÍSSIMO, A. A. Parcelamento do solo na cidade do Rio de Janeiro: um estudo sobre a produção informal da década de 40 aos anos 90. 2005. 168 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

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