Genealogia, Tradução e Paradigma na Construção da Arqueologia Pré-histórica

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Estudos do Quaternário, 13, APEQ, Braga, 2015, pp. 48-54 http://www.apeq.pt/ojs/index.php/apeq.

GENEALOGIA, TRADUÇÃO E PARADIGMA NA CONSTRUÇÃO DA ARQUEOLOGIA PRÉ-HISTÓRICA

ANA VALE (1)

Resumo:

O presente texto pretende abordar, de forma resumida, alguns princípios inerentes à interpretação/explicação arqueológica, normalmente dados como adquiridos e não questionados pela prática arqueológica. Propõe-se abordar a disciplina como genealogia, o processo interpretativo como tradução e o estudo de qualquer unidade (de análise em Arqueologia) como paradigma. Palavras-Chave: Arqueologia, Pré-História Recente, Genealogia, Tradução, Paradigma

Abstract:

Genealogy, Translation and Paradigm in the Construction of Prehistoric Archaeology The aim of this paper is to address some inherent principles of archaeological interpretation/explanation, which are usually taken for granted and go unquestioned in the practice of archaeology. The paper attempts to address the discipline as genealogy, the interpretative process as translation, and the study of each individual archaeological element as a paradigm. Keywords: Archaeology, Late Prehistory, Genealogy, Translation, Paradigm

Received: 10 November 2015; Accepted: 1 December 2015

1.

INTRODUÇÃO

as quais se escreve “passados”. Escrever um texto aparentemente teórico não pode ser tido como uma reflexão abstracta, por vezes lida como vazia, pois ele é iminentemente prático. Surge num tempo em que continuamos a viver em Arqueologia o que G. Lucas (2012) apelidou de “dilema interpretativo”, a permanente inquietude perante a prática e a teoria. E surge também sob o peso (inspiração, repto, perseguição) das palavras de W. Benjamin quando diz: “E engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do passado” (BENJAMIN 2004: 220). A abordagem dos problemas inerentes à construção do passado, sobretudo do passado préhistórico, tem sido realizada em contexto nacional segundo diversas perspetivas (teóricas) (e.g. VALERA 2008; JORGE, V.O. 2008) e vários autores portugueses têm analisado os regimes discursivos em que as narrativas sobre o passado são construídas (e.g. ALVES-FERREIRA 2011; GOMES 2011; MARTINS 2015). É necessário também sublinhar que se insere numa discussão mais alargada acerca da produção de conhecimento nas ciências sociais e humanas (e.g. SOUSA SANTOS 1987, 2003). Ressalvamos igualmente que a reflexão que agora se publica não aspira percorrer todos os autores e problemáticas associados a esta discussão mas porque resultou de um trabalho académico (VALE 2011) resume um conjunto de problemas e autores que nos acompa-

Walter Benjamin escreveu nos inícios do século XX um pequeno texto que permaneceu inédito durante a vida do autor intitulado “Escavar e Recordar” e onde se lê “um bom relatório arqueológico não tem apenas de mencionar os estratos em que foram encontrados os achados, mas sobretudo os outros, aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes”. (BENJAMIN 2004: 220). É imprescindível pensar os estratos pelos quais um trabalho arqueológico teve de passar antes de “enterrar a pá de forma cuidadosa e tacteante no escuro leito da terra” (idem). Este exercício poderá ser realizado a várias escalas e de várias formas: pela análise do enquadramento institucional, financeiro e das estruturas, interesses e conflitos políticos, refletindo sobre os enquadramentos/ constrangimentos teóricos subjacentes à interpretação/explicação arqueológica, pensando a construção do arquivo, os pressupostos, técnicas e procedimentos subjacentes. Parece-nos, hoje, urgente a discussão acerca da forma como escrevemos o passado. Neste breve texto propomos abordar de forma sucinta algumas bases fundacionais da Arqueologia Pré-Histórica, refletindo sobre a produção de conhecimento arqueológico, sobre a estruturação dos discursos acerca do passado, sobre a leitura dos materiais passados, sobre a forma como a Arqueologia localiza no Agora esses mesmos materiais e a inerente seleção e hierarquização das “coisas” com (1)

Bolseira de pós-doutoramento FCT; investigadora CEAACP – DCTP/FLUP. E-mail: [email protected]

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nharam ao longo dos últimos anos no estudo de um sítio arqueológico específico, Castanheiro do Vento (Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa), um recinto murado do III /inícios do II milénios AC. Neste contexto apresentamos o conceito de genealogia, de tradução e de paradigma, refletindo sobre os limites e condições da construção de passado(s) em Arqueologia. 2.

origem. Este desejo tem sido concretizado através de uma narrativa histórica sequencial, baseada na sequência do tempo cronológico. No entanto, a linha temporal que se tenta recuperar parece ter-se deteriorado. A possível sequência temporal entre construção de determinado edifício do passado e a intervenção arqueológica de hoje não pode ser traçada de forma linear, sequencial, mas integrando a multiplicidade de escalas temporais, pensando tempos que não são necessariamente passíveis de cronometrar, como a memória ou o tempo cíclico da vida e da morte (LUCAS 2005)4. É também necessário ter presente os preconceitos que enformam a nossa forma de estar no mundo e questionar a sua aplicabilidade no passado. Não é possível ver em contextos préhistóricos a origem, por exemplo, da desigualdade de géneros na medida em que essa mesma desigualdade nasce no discurso explicativo sobre o passado e não no “passado.” (e.g. DIAZ-ANDREU 2005) Importa, portanto, procurar um “Passado novo” (na linha de Nietzsche (s.d.: 96-122). Seguindo Agamben (2009), o que identificamos hoje como passado é o que nunca deixou de ser, o que permaneceu presente, na ruína. Mas a ruína não é contentor de um passado acontecido, que o arqueólogo pode desvelar tal como ele foi, mas sim, como que terá sido, ou nas palavras de Benjamin, “articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo tal como ele foi”(BENJAMIN 2010: 11). É o arqueólogo que escolhe as “fontes” do passado, as ruínas que remetem para um passado que ainda permanece, para o que poderíamos chamar de arquiteturas da ausência. Ausência essa que, sublinhamos, é criada por nós hoje na medida em que validamos a ruína (o passado que ainda é) como evidência de um passado que terá sido. Julian Thomas assinala que o passado está à nossa volta, que o “habitamos” (THOMAS 2004: 170), e segundo o autor, se esta imagem não está presente em Arqueologia talvez seja porque a disciplina se concentrou em estudar o que estava enterrado nas profundezas, o misterioso que o arqueólogo procura desvendar pela remoção de solo. Assim o passado tem sido coincidente com o que é distante, o que se traz à luz do dia pela escavação. De que forma a investigação arqueológica é condicionada por este paradigma interpretativo? Será que é possível escapar ao espartilho do pensamento binário

GENEALOGIA

Segundo Nietzsche, a genealogia não se reconhece na história linear que explica o percurso evolutivo do homem e das coisas. A genealogia não procura as origens. Não procura revelar a essência primeira das coisas, o seu significado primeiro e autêntico (FOUCAULT 2004: 171). A genealogia demora-se “nas meticulosidades e nos acasos dos começos” (ibid: 19), na emergência de algo quando começa a ser e não no seu ponto de origem; na emergência que se cria nos interstícios, no não-lugar da origem (AGAMBEN 2009: 84), sem responsáveis que se possam auto-glorificar (FOUCAULT 2004: 242). A genealogia não permite o nosso reencontro, o reconhecimento do outro no passado, como o outro igual a mim, ou o outro exótico que contrasta comigo. Não permite o reconforto da familiaridade do passado. Nada é estável, nem o nosso próprio corpo, para que se possam dar reconhecimentos passivos nas narrativas sobre o passado (ibid: 273). “A genealogia é cinza” (FOUCAULT 2004: 15), é o interstício, o choque, a incerteza. A genealogia é o percurso e o processo da investigação questionado porque expõe dúvidas e acidentes. A genealogia é paciente, descritiva, acumula informações, procura o detalhe. Em Arqueologia é comum a criação de discursos que buscam a origem, procurando cartografar o ponto primeiro do qual parte a linha evolutiva (contínua) até ao presente (a sua outra extremidade) (já denunciado por ALVES-FERREIRA, 2011). Essa linha ligaria assim o passado (a origem) ao presente, e desta forma ao longo da sua extensão revelaria, por intermédio da História, as causas e efeitos que conduziram à construção do nosso mundo. V. O. Jorge (2010) sublinhou o desejo da Arqueologia Tradicional em perseguir o original, o mais antigo, o fundamento. Este impulso lê-se na própria palavra “arqueologia”, construída a partir da palavra grega arché, que designa o arcaico, a 1

“Porque Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa da origem (Ursprung)? Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência exacta da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exactamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira” (FOUCAULT 2004: 17). 2 “Ninguém é portanto responsável por uma emergência; ninguém pode se autoglorificar por ela; ela sempre se produz no interstício” (FOUCAULT 2004: 24). 3 “A história ‘efectiva’ se distingue daquela dos historiadores pelo facto de que ela não se apoia em nenhuma constância: nada no homem – nem mesmo o seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Tudo em que o homem se apoia para se voltar em direcção à história e apreendêla em sua totalidade, tudo o que permite retraçá-la como um paciente movimento contínuo: trata-se de destruir sistematicamente tudo isto. É preciso despedaçar o que permitia o jogo constante dos reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histórica não significa ‘reencontrar’ e sobretudo não significa ‘reencontrar-nos’. A história será ‘efectiva’ na medida em que ela reintroduziu o descontínuo em nosso próprio ser” (FOUCAULT 2004: 27). 4 Isto não significa que os estudos detalhados de datações absolutas não sejam extramente importantes (veja-se os importantes exercícios de Whittle et al. 2011 e VALERA 2013), no entanto, estes também não procuram a explicação/validação do presente através do estudo do passado.

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tos/unidades estratigráficas, a descrição de sedimentos e inclusões, a definição a lápis do contorno das unidades, a identificação da proveniência do fragmento cerâmico, as listas de materiais, a fotografia de campo e do objecto, o desenho do possível vaso, o relatório, o artigo científico, o livro ou panfleto de divulgação, são traduções diversas. Diferentes códigos são empregues na tradução de um sítio arqueológico. “Traduzir é compreender” segundo Steiner (2002). Seguimos esta afirmação. Mas de que forma realizamos esse exercício? Com que ferramentas e quais as expectativas? Segundo Ricoeur (2005), o exercício da tradução é também a abertura ao estranho, a possibilidade de estranharmos a nossa própria língua e de nos abrirmos à estranheza da língua outra, o que é sempre inquietante. Somos compelidos a traduzir. O desejo e o prazer de traduzir levam a uma compulsão para traduzir. Pela tradução, convocamos sobretudo para a nossa “língua” a estranheza de uma outra que é, paradoxalmente, apenas falada por nós. Derrida, no texto Des Tours de Babel, refere o desejo do tradutor em tocar o intocável (2007: 214). Talvez seja exactamente este o desejo do arqueólogo: tocar o intocável, chegar perto do que foi, combinando a nostalgia do todo, do absoluto, do texto original, com a surpresa do presente, a necessidade da descoberta, de desvelar o escondido. Benjamin referiu que a tradução não é recepção, comunicação ou representação. Não é imagem nem cópia. No entanto, o arqueólogo/tradutor não se movimenta livre de constrangimentos no texto. Barrento (2002), numa aproximação entre a tradução e a arqueologia textual do arqueólogo Ian Hodder, refere que o arqueólogo não colecciona apenas “peças e fragmentos significantes” em museus mas pode dar aos materiais (arqueológicos) a sua “chama original”. Barrento reescreve assim uma afirmação de Hodder: “Só podemos compreender o passado a partir do presente [e de um sujeito hermenêutico nesse presente, J.B.], mas temos de fazer um esforço enorme para perceber que o passado [o objecto do acto hermenêutico, incluindo a tradução, J.B.] é diferente do presente. Se assim não for, estaremos apenas a impor o nosso presente ao passado” (BARRENTO 2002: 99). No entanto essa tradução que não é cópia nem imitação também não pode ser egoísta e resultar numa versão livre. A tradução tece-se no dilema entre fidelidade (o que se viu – o arquivo na acepção tradicional) e liberdade (a imaginação arqueológica) nos estudos arqueológicos. No entanto, a fidelidade é impossível neste trabalho de amor e a liberdade obedece a constrangimentos. A tradução, enquanto escavação, entra em relação íntima com a sobrevivência do original. Escreve-lhe outra(s) sobrevida(s). Como refere E. Vilela, “a relação entre o texto original e o traduzido é a mesma que existe entre a maturação e a pósmaturação, entre a vida e a sobre-vivência, sendo esta última entendida, por um lado, como uma

que divide o passado/presente; interior/exterior; profundidade/superfície? Será possível a articulação de um discurso que fuja ao tempo linear e sequencial e potencie o encontro de tensões, o choque das contradições, elaborado no interstício, na fissura de tempos desencontrados? Aceitar que o passado é o que permanece hoje e aceitar a contingência da produção de discursos acerca desse passado não significa a negação desse mesmo passado. Ou seja, como herdeiros, interpretamos um conjunto de traços materiais que vivem connosco mas que necessariamente trazem consigo a ausência de outras mãos, de outras relações, de outros entendimentos, de outros seres humanos. No entanto, o estudo genealógico alerta para a impossibilidade de criação de uma linha explicativa que nos ligaria a esses outros seres humanos na ambiguidade da sua irredutível diferença e da sua estranha semelhança. Mas as “coisas” do passado são passíveis de tradução (enquanto interpretação). 3.

TRADUÇÃO

Os problemas inerentes à interpretação dos traços do passado são essencialmente os problemas da tradução. O trabalho arqueológico baseia-se em muitos casos na tradução como cópia. O que o arqueólogo vê em campo é copiado através de desenhos, fotografias, esquemas e palavras que pretendem criar um arquivo que representa o contexto arqueológico original (LUCAS 2012: 237). Nesta linha, a tradução do registo arqueológico numa explicação acerca do passado parece derivar de uma relação estreita entre forma e significado, onde um objecto é traduzido por uma palavra/ imagem que o identifica e que o substitui. A explicação de um traço do passado em texto revela-se enquanto tradução de um texto original. Esta tradução afigura-se enquanto cópia, tida como reprodução/representação fiel de um (con)texto primeiro. A tradução, enquanto conversão de um objecto ou de uma estrutura, por intermédio de palavras ou desenhos, numa tipologia ou numa função, admite que o trabalho da tradução pode converter o passado em estruturas familiares do presente e admite a possibilidade de reconstituir, de aceder à língua original, ao vaso inteiro, ao passado tal como aconteceu. No entanto, segundo Walter Benjamin, a tradução nunca poderá ser cópia do original; “nenhuma tradução seria possível se a sua aspiração fosse a semelhança com o original” (VILELA 2010: 473) Benjamin, no seu texto “A tarefa do tradutor” (2015: 91106), escrito como introdução a uma tradução feita pelo próprio Benjamin da obra Tableaux Parisiens de Baudelaire, considera que a tradução não é a substituição de uma palavra por outra, a conversão de uma língua numa outra. A que diferentes tempos se processam as traduções em Arqueologia? Em que suportes? Quais as expressões, gramáticas e técnicas de tradução? A escavação, a criação de contex50

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continuação da vida (Fortleben) e, por outro, como a vida que excede a vida, que vai mais além da morte (Überleben)” (VILELA 2010: 473). Neste sentido, o sítio (o texto original), sobre-vive mediante a acção (tradução) dos arqueólogos (tradutores, entendidos como agentes de sobrevivência). Pela identificação e registo, o sítio sobrevive. O arqueólogo conta histórias de relações, de coisas, e nesse contar o sítio emerge e transforma-se. Transforma-se pela escavação, pelos diferentes usos do espaço, mas sobretudo pelo próprio discurso construído, pela tradução/interpretação do que resta hoje. O passado que se infere nas coisas que reconhecemos como construídas, usadas, descartadas por outros que nos antecederam, é herança e memória. Nesta linha, a tradução não é o contar do que foi, mas interpretação do que terá sido. Como herdeiros, como tradutores, e continuando pela mão de Ricoeur (2005), a tradução faz -se pela construção de comparáveis, de equivalências (sem identidade)5. A construção nasce, desde logo, da impossibilidade de transposição de uma língua para outra. Mas também da própria praxis que é o acto de traduzir. E na medida em que qualquer construção envolve opções, a tradução é também um problema ético: “parece-me, de facto, que a tradução não coloca apenas um problema intelectual, teórico ou prático, mas um problema ético. Conduzir o leitor ao autor, conduzir o autor ao leitor, correndo o risco de servir e trair dois amos” (RICOEUR 2005: 43). Em Arqueologia este problema é premente. Que discursos produzimos acerca do passado6? Como traduzimos a nossa própria prática? Como interpretamos um conjunto de materialidades que revelamos segundo um conjunto de práticas e técnicas definidas no contexto preciso da Modernidade (segundo THOMAS 2004)? Enquanto responsáveis pelas “coisas”, pela sua sobrevida, estamos comprometidos no cuidado da própria materialidade e na construção de histórias, como contadores de histórias. A “torre de Babel” enquanto construção, enquanto dispositivo arquitectónico que pretendia alcançar o céu, é a criação que origina a divisão das línguas por vontade divina. Depois de Babel somos compelidos a traduzir, mas como refere Barrento (2002: 123 e 124), através de uma outra poderosa metáfora, essa tradução “faz-se como um trabalho arqueológico”, escavando o “poço de Babel” (imagem de um aforismo de Kafka) com o intuito de perceber o momento em que as línguas se desencontram e atingir o estrato comum que partilham. O poço de Babel é resultado da escavação que pretende alcançar os alicerces da grande torre inaca-

bada e a comunidade humana no seu estado mais puro (o momento pré-Babel), revelada para lá da diversidade das línguas. A imagem mítica de Babel e o aforismo de Kafka parecem representar as fundações da própria Arqueologia tradicional. No entanto, se a Arqueologia teve já na sua agenda a definição de “estratos comuns”, de momentos de origem dos quais procederam diferentes opções, hoje devido à multiplicidade de questões e influências vindas de outras áreas (das ciências naturais e exatas ou das ciências sociais e humanas, com especial enfâse para a Antropologia e Filosofia), os objetos de análise desdobram-se (do fragmento cerâmico à paisagem) assim como os método de análise (das análise químicas ao andar pelo território). Mas em todos os casos a construção dos discursos (textuais ou icónicos) parece procurar o momento primeiro, o início e obedece a uma hierarquização de coisas (em análise) e de linhas de discussão. A criação de exemplos (de sítios ou de artefactos) permite o posterior reconhecimento e muitas vezes a explicação de particularidades (de um sítio específico, de um fragmento particular), processando-se a produção de conhecimento por dedução e/ou indução. Desafiando os métodos estabelecidos, o filósofo italiano, Giorgio Agamben, refletiu acerca do “significado e função do uso de paradigmas em Filosofia e nas Ciências Sociais” (AGAMBEN 2009: 9). Apresentamos em seguida o estudo paradigmático tal como definido pelo autor de forma a pensar o processo de construção de conhecimento em Arqueologia. 4.

PARADIGMA

O estudo paradigmático tem como principal objectivo o estudo de singularidades e das suas relações. Não pretende alcançar generalizações (ou inversamente partir do universal para o particular) e segundo Agamben (2009) permite neutralizar um pensamento dicotómico (universal/singular; geral/ particular) pois investe na relação entre estes pólos, no processo de tensões entre opostos, que por não apresentarem limites bem definidos, interconectam -se, criando áreas de indefinição7. O autor (ibid.) considera o estudo do panóptico de Michel Foucault como um paradigma na medida em que permite questionar e dar inteligibilidade a um conjunto alargado de problemáticas interrelacionadas. Foucault (1997 [1975]) estudou os dispositivos arquitectónicos panópticos (como prisões e hospitais), o que lhe permitiu questionar um conjunto de outros problemas que se interligam, como: disciplina, vigilância, observação, punição, poder, sujeito.

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“…uma boa tradução só pode visar uma equivalência pressuposta, não baseada numa identidade de sentido demonstrável. Uma equivalência sem identidade. Essa equivalência só pode ser procurada, trabalhada, pressuposta. É a única forma de criticar uma tradução – o que se pode sempre fazer – é propor uma outra, pressuposta, pretensa, melhor ou diferente” (RICOEUR 2005: 41) 6 Esta questão foi já levantada por Susana Oliveira Jorge, no contexto da musealização do sítio arqueológico de Castelo Velho de Freixo de Numão (JORGE, S.O. 2005). 7 Esta perspectiva poderia colocar-se em relação com a posição de Boaventura Sousa Santos já avançada em 1987, na definição do paradigma emergente. O paradigma emergente sublinha o carácter criativo da ciência, a superação das “distinções tão familiares e óbvias tais como natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjectivo/objectivo, colectivo/individual, animal/pessoa” (SOUSA SANTOS 1987:40). O paradigma emergente baseia-se na analogia e na transgressão metodológica porque precisa de uma “pluralidade de métodos” pois “só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta” (ibid:48). Num jogo que pressupõe a “nudez total, que será sempre a de quem se vê no que vê” que resultará “das configurações de analogias que soubermos imaginar” (ibid.:45).

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Para além do panóptico, Agamben enuncia também: a confissão, a investigação, a examinação, o cuidado do eu, como paradigmas estudados por Foucault (AGAMBEN 2009: 17). Poderíamos também referir o projecto de Walter Benjamin, Passegen-Werk (obra inacabada, da qual existem apenas fragmentos), como um estudo paradigmático. O autor dispunha-se a analisar um dispositivo arquitectónico particular: as arcadas parisienses (precursoras das modernas galerias comerciais) – em decadência já na década de vinte do século XX – juntamente com outros materiais como os manequins, e de figuras como o flanêur. Pretendia problematizar um conjunto de elementos do mundo burguês ocidental do século XIX, procurando na descrição atenta e detalhada dos objectos do quotidiano inspiração filosófica, tentado estabelecer a ponte entre a vida de todos os dias e os corredores da academia, o que certamente rompia com os modelos vigentes da estrutura académica (BUCK-MORSS 1989). Cada caso paradigmático revela-se enquanto singularidade que pode ser trabalhada na sua particularidade e revela-se também enquanto exemplo do conjunto de particularidades das quais emerge e com as quais se relaciona. Não como exemplo tipo que pode ser encontrado numa tabela tipológica porque o caso paradigmático rompe com a relação do exemplo/modelo e a amostra. Não se trata do exemplo modelo de um tipo que encerra em si grande parte das características de todas as unidades a partir das quais é definido o tipo (apresentado enquanto modelo). Outro autor trabalhado por Agabem foi Aby Warburg. Agamben salienta uma obra específica deste historiador de arte, o painel 468, chamado de Pathosformel “Nymph”, exatamente para questionar a relação entre exemplaridade e singularidade de um caso paradigmático. Trata-se de um painel constituído por 27 imagens (muitas vezes fotografias tiradas pelo próprio Warburg a peças de arte ou ilustrações de livros) relacionadas com o tema da mulher em movimento ou ninfa mas sem qualquer hierarquia ou ordem temporal aparente. Agamben (2009) pergunta: “What is the relation that holds together the individual images? In other words, where is the nymph?” (ibid: 28). Segundo o autor nenhuma das imagens pode ser identificada como a primeira imagem que sustem e inicia a sequência de imagens que lhe são adicionadas posteriormente, ou seja, nenhuma das imagens é a original e nenhuma é apenas cópia ou repetição. Também nenhuma declara o início da construção do painel, nenhuma é posterior. A diacronia e a sincronia das imagens são inde-

cidíveis. A ninfa é o caso paradigmático das imagens e cada imagem o exemplo da ninfa, ou seja, a ninfa é o paradigma de cada imagem, e cada imagem é o paradigma da ninfa. Retomamos aqui o problema da procura das origens, esboçado anteriormente, e que em Arqueologia, ainda que não explícito em muitas narrativas, está implícito nas explicações que se tecem acerca do passado baseado numa suposta “realidade arqueológica” que é passível de tradução linear. Ora, cada paradigma não é a origem dos seus exemplos nem é a origem de um fenómeno qualquer, porque todo o fenómeno é a origem. Por outras palavras, a origem pode ser entendida como um ponto fixo no tempo e determinado no espaço de onde irradiam as imagens que a partir deste ponto se criam, mas também como emergência, como quando algo começa a ser. A emergência é fluida, não especificada, não determinada, está em acontecimento. Assim todas as imagens no painel de Warburg são a origem, todas são arcaicas, assim como todas são contemporâneas. Tratados enquanto paradigmas a sua diacronia e sincronia não são enunciadas separadamente. Como começamos por referir, o paradigma move-se entre singularidades. Não é uma forma de conhecimento indutiva nem dedutiva. Neste sentido, por exemplo, o estudo de um dispositivo arquitectónico enquanto paradigma não pretende a explicação de um sítio, de uma região ou de um período temporal, mas sim a compreensão de casos particulares que podem ser interconectados uns com os outros. E estes “casos” não são troços de muro ou qualquer outra unidade estática. São as práticas e as teias de atividades que hoje intuímos na nossa relação com as ausências pressentidas ao longo do diálogo com os materiais e com os outros (em trabalho de campo). Traduz-se no estudo da relação entre duas ou mais relações, por exemplo, entre um dispositivo construído – enquanto nódulo de relações – e outro9. Não pretende a obtenção de linhas explicativas gerais para um sítio arqueológico, por indução, partindo do particular para o universal, nem pretende a explicação das unidades contextuais por dedução, partindo do universal para o particular. Esta proposta não invalida a construção de tipologias em Arqueologia. São poderosas formas de comunicação (de partilha de dados entre investigadores que familiares com a gramática das imagens apreendem imediatamente a informação contida em tabelas tipológicas) e como formas de organização da informação (perante milhares de fragmentos cerâmicos e dada a impossibilidade de partilha do estudo (de descrição) de cada unidade

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Aby Warburg colecionou entre 1924 e 1929 (ano da sua morte) um conjunto de imagens (reproduções de quadros, manuscritos, fotografias…) que distribuiu por 63 painéis, aos quais deu o nome de Mnemosyme. 9 Ensaiamos (Vale 2011) no estudo do sítio arqueológico de Castanheiro do Vento (Vila Nova de Foz Côa) a análise de estruturas construídas enquanto singularidades em relação com um conjunto de outros paradigmas, como: labirinto, forma e função, planta e arquitetura, luz e sombra. Os dispositivos construídos comparados atendendo à sua singularidade não se resumem às paredes de pedra que os definem mas integram as pequenas coisas que com estes tecem relações. Estas pequenas coisas, apelidadas de componente artefactual, foram entendidas enquanto elementos construtores de espaços, porque condicionam movimentos, porque interagem com os elementos mais estáveis e num estudo atento ao detalhe, foi também perguntado acerca do tamanho e grau de erosão dos fragmentos cerâmicos de forma a dar espessura temporal à própria arquitetura.

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(cada fragmento) e seu contexto (de registo) é inevitável a criação de tipos que representem um conjunto). As tabelas tipológicas tradicionais parecem no entanto anular dois vectores essenciais: o estudo de cada unidade na sua singularidade (e não como mera parte de um todo) e o estudo das relações entre unidades registadas enquanto singularidades. Contudo, o estudo de J. Muralha Cardoso (2007) acerca do sítio de Castanheiro do Vento (Vila Nova de Foz Côa) rompe este problema ao elaborar uma tipologia dos elementos construídos atendendo a cada unidade na sua especificidade, procurando o gesto técnico presente em cada dispositivo construído. A sistematização dos dados não ocultou a singularidade de cada unidade.

ra, assim como a Joana Alves-Ferreira e André Tomás Santos pelas discussões apaixonadas, pelo estímulo e pelos comentários a versões anteriores deste texto. Agradeço a toda a equipa de coordenação de Castanheiro do Vento, João Muralha, Bárbara Carvalho e Sérgio Gomes, com quem discuti alguns destes temas. Gostaria também de agradecer a Maria de Jesus Sanches, orientadora deste novo projeto de pós-doutoramento, e a Sérgio Monteiro Rodrigues pelo incentivo e liberdade.

4.

AGAMBEN, G. 2009. The Signature of All Things. On Method. Brooklyn, Zone Books

BIBLIOGRAFIA ALVES-FERREIRA, J. 2011. The Neolithic. The fantasy of the Origins. II Jornadas de Jóvenes en Investigación Arqueológica, Ed. OrJIA. Madrid, Libros Pórtico: 783-787.

CONCLUSÃO

Como começamos por referir na abertura deste texto, a genealogia de Nietzsche pela mão de Foucault reclama a demora nas pequenas coisas, nas “meticulosidades e acasos do começo” (FOUCAULT 2004: 19); Agamben propõe o método analógico de casos paradigmáticos atento ao detalhe, na medida em que o estudo de singularidades demora-se, tal como a genealogia, “exige a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados, exige paciência” (ibid: 15). Mas não se trata da acumulação de dados, da inventariação exaustiva de objectos, de citações, ou de situações. Não é um trabalho de catálogo, mas sim um pensar com (o) detalhe. É o estudo atento, que necessariamente requer descrição, para que cada particularidade possa ser enunciada e partilhada, e que cada particularidade possa entrar em relação com outra. Contudo o método descritivo não é apenas atento às qualidades físicas de cada coisa, mas antes atento aos detalhes de relação. É necessário dirigir a atenção ao pormenor, não só no trabalho de gabinete, em relação às peças, fotografias e desenhos, mas também em escavação, pois a demora da atenção no detalhe, a identificação e observação pode fazer emergir as meticulosidades das relações encadeadas. No entanto, este estudo paradigmático faz-se acompanhar também da identificação das condições do “achado” e do seu registo. O trabalho paciente de tradução, de interpretação, exige “assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que [se] guarda as coisas do passado” (BENJAMIN 2004: 220).

BARRENTO, J. 2002. O Poço de Babel. Para uma poética da tradução literária. Lisboa, Relógio D’Água. BENJAMIN, W. 2004. Escavar e Recordar. Imagens de Pensamento, Ed. e tradução J. BARRENTO. Lisboa, Assírio & Alvim: 219-220. BENJAMIN, W. 2010. O Anjo da História. Ed. e tradução de J. BARRENTO. Lisboa, Assírio & Alvim. BENJAMIN, W. 2015. A Tarefa do Tradutor. Linguagem. Tradução. Literatura (filosofia, teoria e crítica). Ed. e tradução J. BARRENTO. Lisboa: Assírio & Alvim: 91-106. BUCK-MORSS, S. 1989. The Dialectics of Seeing. Walter Benjamin and the Arcades Project, The MIT Press. DERRIDA, J. 2007. Des Tours de Babel. Psyche. In KAMUF, P. & ROTTENBERG, E. (eds) Inventions of the Other, volume

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AGRADECIMENTOS

Este texto foi primeiramente apresentado como capítulo introdutório a um trabalho académico apresentado à Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2011, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Nasce assim de um trabalho de investigação que tomou como exemplo paradigmático um sítio arqueológico, Castanheiro do Vento (Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa); aí emerge e aí regressa. Gostaria de agradecer a Vítor Oliveira Jorge, meu orientador na altu-

JORGE, V.O. 2010. A Arqueologia e as sua Metáforas. Lição de sapiência proferida na sessão solene de abertura do ano lectivo de 2010/2011 da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Em linha http://www.youtube.com/ watch?v=ws_Y1sXvapE&feature=related (última consulta novembro de 2015). 53

Genealogia, Tradução e Paradigma na Construção da Arqueologia Pré-Histórica

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