Gênero, desenvolvimento e território: novas semânticas e antigas práticas

June 4, 2017 | Autor: Cynthia Miranda | Categoria: Estudios de Género, Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente, Género, Territorio
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José Melo de Oliveira

Governador do Estado do Amazonas

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS

Cleinaldo de Almeida Costa Reitor

Mário Bessa Vice-Reitor

EDITORA UNIVERSITÁRIA Allison Leão Diretor

Mauricio Matos Editor executivo

CONSELHO EDITORIAL Allison Leão Presidente

Adroaldo Cauduro Cleusa Suzana Oliveira de Araújo Dempsey Pereira Ramos Júnior Estevão Vicente Cavalcante M. de Paula Josefina Diosdada Barrera Kalhil Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda Maria da Glória Gonlves de Melo Roberto Sanches Mubarac Sobrinho

Esta edião foi revisada conforme as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Todos os direitos reservados © Universidade do Estado do Amazonas. Permitida a reproduão parcial desde que citada a fonte.

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Cynthia Mara Miranda Denyse Côté Milena Fernandes Barroso Marcos André Ferreira Estácio O������������

GÊNERO, DESENVOLVIMENTO E TERRITÓRIO: NOVAS SEMÂNTICAS E ANTIGAS PRÁTICAS

José Melo de Oliveira

Governador do Estado do Amazonas

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS

Cleinaldo de Almeida Costa Reitor

Mário Bessa Vice-Reitor

EDITORA UNIVERSITÁRIA Allison Leão Diretor

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Mauricio Matos Editor executivo

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Copyright © Cynthia Mara Miranda; Denyse Côté; Milena Fernandes Barroso; Marcos André Ferreira Estácio, 2015

ISAAC MACIEL TENÓRIO TELLES/NEIZA TEIXEIRA projeto gráfico EDITORA VALER capa IVO SOUSA revisão NÚCLEO DE EDITORAÇÃO VALER/LUCÍOLA LIMAVERDE normalização YCARO VERÇOSA editor

coordenação editorial

M326g Miranda, Cynthia Mara. Gênero, Desenvolvimento e Território: novas semânticas e antigas práticas / Organizado por Cynthia Mara Miranda; Denyse Côté; Milena Fernandes Barroso; Marcos André Ferreira Estácio. Manaus: Editora Valer, UEA Edições, 2015. 310p.

ISBN 978-85-7512-798-8

1. Ciências sociais – Amazônia I. Miranda, Cynthia Mara (Org.) II. Côté, Denyse (Org.) III. Barroso, Milena Fernandes (Org.) IV Marcos André Ferreira Estácio (Org.)

CDU: 300.9811 22. Ed.

2015 EDITORA VALER Av. Rio Mar, 63, Cj. Vieiralves – Nossa Senhora das Graças Cep: 69053 130 – Manaus, AM Tel.: [92] 3622 6141 www.editoravaler.com.br

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UEA EDIÇÕES Av. Djalma Batista, 357, – Flores Cep: 69050 010 – Manaus, AM Tel.: [92] 3878 4463 [email protected]

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SUMÁRIO DESAFIOS PARA “NOVAS SEMÂNTICAS E ANTIGAS PRÁTICAS”, DECOLANDO DE “DESENVOLVIMENTO REGIONAL E GÊNERO”– TENTANDO UM PREFÁCIO . . . 7 APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 PARTE 1 – DIÁLOGO SOBRE GOVERNANÇA DESCENTRALIZADA, TERRITÓRIO E DESENVOLVIMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 Território, desenvolvimento regional e igualdade de

gênero: algumas lições de Québec . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Qual a importância das desigualdades de gênero no

desenvolvimento rural dos países do Mercosul? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Desenvolvimento regional na perspectiva de gênero na

Região Norte brasileira: limites e possibilidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

PARTE 2 – AUTONOMIA DAS MULHERES E O ACESSO

ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 O surgimento de microempreendimentos de mulheres

rurais na Amazônia brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

Mulheres que plantam, mulheres que não colhem: perspectivas de gênero e desenvolvimento em assenta-

mentos rurais no Tocantins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

Políticas públicas para as mulheres no Estado do Pará: a

experiência dos seminários regionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159

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PARTE 3 – OS LIMITES DO DESENVOLVIMENTO NA PERSPECTIVA DE GÊNERO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 Entre enredos, encantos e desencantos: um estudo sobre saúde e o cotidiano de mulheres em contextos

de mudanças socioambientais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187

Gênero, pobreza e questões da adoção: os impactos

sociais da Lei n. 12.010/2009 na vida de mulheres

na cidade de Niterói/RJ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

Gênero e políticas públicas de trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249 Reflexão sobre o multi(inter)culturalismo e relações de

gênero no contexto da educação escolar indígena no

Amazonas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 275

POSFÁCIO – O INTERESSE DO GÊNERO

PELOS TERRITÓRIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299

SOBRE OS AUTORES

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DESAFIOS PARA “NOVAS SEMÂNTICAS E ANTIGAS PRÁTICAS”, DECOLANDO DE “DESENVOLVIMENTO REGIONAL E GÊNERO”– TENTANDO UM PREFÁCIO Mary Garcia Castro1

C

onfesso que resisti em prefaciar o livro organizado por Cynthia Mara Miranda, Denyse Côté, Milena Barroso e Marcos André Estácio. O primeiro estímulo foi o reconhecimento da contribuição dos estudos de Côté, que conhecia, para o campo de estudos sobre gênero e desenvolvimento, o fato de que o Brasil conta com limitado acervo, assim como a orientação da publicação por reunir textos relacionados a diferentes países, como Brasil, Argentina e Canadá (Quebec). Minha trajetória em um feminismo em se fazendo, cunhado como emancipacionista, no Brasil, mas se alimenta de análises sobre sujeitos na crítica ao capitalismo e estudos sobre o urbano. Esse feminismo desconfia da ênfase de agências internacionais em programas para mulheres em comunidades rurais, ainda que bem-intencionados, apostando em alguma autonomia das mulheres, produção para subsistência, geração de pequena renda, alguma cooperativa local e apoio contra re

1 Ph.D em Sociologia, professora da Universidade Católica de Salvador (Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea e Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais e Cidadania); pesquisadora do CNPq; pesquisadora da Flacso-Brasil; professora aposentada da UFBA; coordenadora do Grupo CNPq/ Ucsal – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Juventudes, Identidades, Cidadania e Cultura – e membro da diretoria da União Brasileira de Mulheres (ONG feminista, de orientação emancipacionista).

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produções de violências nas relações primárias, mas evitando debates sobre mudanças estruturais ou sobre o desvendamento de alquimias entre capitalismo – ou seja, classe como sistema político econômico cultural-simbólico – e os que sustentamos de raça, gênero e geração, indo, portanto, além do plano da igualdade. Aliás, reflexão que, no artigo de Côté, neste livro se esclarece.2 O feminismo emancipacionista resgata, por reconstrução conceitual, o termo patriarcado, considerando que há mais que explorar “formas contemporâneas de patriarcado” (PATEMAN, 1993; SAFFIOTI, 2004; CASTRO, 2011), e se pergunta, como o faz Saffioti (1998), se o conceito de gênero não seria “tão mais palatável que feminismo [e o de patriarcado contemporâneo]. Seria o gênero mais asséptico do ângulo ideológico ou seria percebido como neutro por muitos e muitas profissionais?”. Mas tal corrente, a que me alinho, não descarta potencialidades do conceito de gênero, considerando, como bem sublinha Zanotta Machado (2000, p. 16), que: Mais do que um construtivismo individual de gênero, seria desejável um construtivismo social e político baseado

na desnaturalização da desigualdade depoder entre os

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gêneros em todas as dimensões da vida social. O olhar

2 No capítulo que se intitula “Território, desenvolvimento regional e igualdade de gênero: algumas lições de Quebéc”, Côté pondera o recurso ao conceito de gênero por agências internacionais de fomento ao desenvolvimento local e aquele que se assume no feminismo, o qual enfatiza sua conjugação ao conceito de patriarcado. Segundo Côté, “o conceito de gênero representa um conjunto de fenômenos sociais, históricos, políticos, econômicos e psicológicos associados à filiação, ou não, dos seres humanos de um sexo ou outro assim que o conjunto de consequências geradas, como a desigualdade entre os homens e as mulheres (LÖW, 2006; YOUNG, 2005). Nesse sentido, as instituições internacionais e os governos nacionais há vinte anos se comprometem a integrar a igualdade entre as mulheres e os homens no centro de seus dispositivos e políticas. É necessário distinguir o feminismo, que é uma filosofia de defesa de igualdade, do movimento social, que ressalta os limites de um sistema patriarcal que reabsorve os pedidos de reformas”.

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utópico feminista que reivindica a desnaturalização do

poder político, politizou o conceito da desconstrução de gênero. Além de fazê-lo trabalhar enquanto conceito teórico e analítico, fez dele um conceito político e uma invenção feminista, por mais que queiram domesticá-lo.

Por sorte, não fiquei ancorada em minhas “verdades” e muito aprendi com a agradável tarefa que me pediu a amiga Côté. O livro em que se assenta este prefácio – Gênero, desenvolvimento e território: novas semânticas e antigas práticas – nos questiona em distintas formas. Desafia correntes do feminismo que circulam por debates da micropolítica, reduzindo gênero a relações sociais entre homens e mulheres e compreendendo o patriarcado apenas como ordem do pai, do marido, socialmente legitimada em várias instituições, mas que teria na família seu habitat original. Mercado, Estado e movimentos sociais são questionados em diversos artigos que compõem o livro. Seus capítulos circulam por distintos níveis, sugerindo nexos entre macropolíticas, modelos de desenvolvimento e reprodução de relações de gênero assimétricas tanto no âmbito das relações homem e mulher na família, com reprodução de divisões sexuais de trabalho, quanto no espaço público, da militância – quando, mesmo em movimentos sociais progressistas, elas não têm poder de mando. Sai-se da justa mas insuficiente perspectiva de vitimização das mulheres rurais para discutir como modelagens econômicas tipo microempreendimento, que tem mulheres na vanguarda, questionam e oferecem alternativas para modelos baseados na grande empresa rural, desafiando a nossa equação: desenvolvimento capitalista/condições objetivas para formação de novos sujeitos críticos ao capital, ou a fatalidade do agronegócio para um tipo de desenvolvimento que revele os próprios limites (viés de um marxismo funcionalista). Desafios para “novas semânticas e antigas práticas”, decolando de “desenvolvimento regional e gênero” – tentando um prefácio

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Não, vários artigos deste livro teorizam a partir de realidades concretas, vivências que aliam buscas de alternativas econômicas menos convencionais, baseadas na exploração, e que não tenham somente o lucro de alguns como a meta básica, mas a qualidade de vida de muitos, a preocupação com o meio ambiente, e nas quais gênero, como citamos em Zanotta Machado (2000), indica formação de sujeitos sociais, coletivos. Com tal chamada, desenhada por estudos de caso e análises sistemáticas de experiências, nossos conceitos de desenvolvimento modelados por ensaios abstratos são fragilizados. Novos sujeitos no agro são desenhados, mas fronteiras de poder são reasseguradas. Cito trecho de reflexão de Ferro (2015, p. 46-47), que muito me calou, pois me advertiu sobre ambiguidades das leituras pontuais sem debates dos limites do jogo do mercado quanto a sentidos em horizonte de sustentabilidade, ou seja, no aqui e no amanhã, de conflitos por assimetrias combinadas de gênero e classe. São muitos, e em muitos lugares estão os poderes patriarcais – e quão difícil é traçar identidades entre esses e a reprodução do capitalismo, em especial quando o foco é o desenvolvimento regional (a autora se refere a modelagens do Mercosul): Objetivos comerciais alcançados em detrimento de boas práticas de uso do solo, de preservação de florestas nativas e resultando em uma extensa contaminação de

ecossistemas devido a milhões de litros de agrotóxicos despejados em enormes áreas de superfície, assim como a alteração de cursos d’água, conflitos entre empresas agrárias, povos originários e comunidades camponesas

por terra e água, dentre outras razões que provocam [...]. Os crescentes conflitos entre os atores agrários tão desiguais e com visões de desenvolvimento rural antagônicas

são indicativos de que os Estados da região fortalecem 10

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ambos espectros: tanto a produção agrária empresarial de grande escala e com vocação à exportação que produz divisas, como as formas de produção agropecuária foca-

das na alimentação das populações locais, agroecológi-

ca, com objetivos de soberania alimentícia, revalorização territorial e do modo de vida rural, no retorno à conti-

nuidade dos projetos familiares de vida nos meios rurais a partir do estímulo às juventudes rurais, à igualdade de gênero, às políticas de reparação fundiária destinada aos

povos originários e à afrodescendência, à preservação de

florestas nativas, de umidade e muitos outros itens que produzem legitimidade política na base social.

Esta contradição tenta ser salva desde a proposta de coexistência de formas distintas de produção, o que também

significa a coexistência de atores rurais muito desiguais e assimétricos. Coexistência, afinal em um mesmo território de visões de modelos de desenvolvimento rural contraditórios.

Essa é apenas uma ilustração que se encontra em várias das peças deste livro, advertências bem fundamentadas por estudos de casos sobre o que seriam “boas práticas” no campo de desenvolvimento regional, embebidas em realidades de desigualdades profundas, como as que se realizam na Região Norte do Brasil e entre povos originários e sujeitos em agroexperiências, deserdados de capital, à margem da competição capitalista e que teimam em equacionar respeito ao meio ambiente, sobrevivência, reconhecimento de vivências em sistema de gênero, no privado e no público, e buscas de quinhão na distribuição de riquezas. A formação de sujeitos políticos mulheres, que reivindicam e se organizam por direitos no Norte agrícola, e os limites da retórica discursiva tanto do Estado e até do movimento feminista institucionalizado em planos e políticas são documentaDesafios para “novas semânticas e antigas práticas”, decolando de “desenvolvimento regional e gênero” – tentando um prefácio

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dos por sérias pesquisas empíricas e análises de textos. Afasta-se, assim, sublinarmente, das análises que se formalizam por se enquadrarem ou em estudos de casos ou em análises de tendência. Sugere-se que há de combinar níveis. Certas experiências, microrreferidas, como o microempreendimento, no caso das mulheres, beneficiam-se de tendências históricas, o avanço do movimento de mulheres na área rural. Citando Mello e Schmink (2015, p. 103), O surgimento de microempreendimentos de mulheres rurais encarna uma nova realidade econômica como uma estratégia para reduzir a desigualdade de gênero e aumentar a renda familiar. Na Amazônia brasileira, a

combinação de décadas de crescimento das organizações de mulheres rurais com condições políticas e eco-

nômicas ajudou a influenciar a expansão de grupos de mulheres microempreendedoras.

Contudo, mesmo reconhecendo avanços, em nível micro e macro, das organizações de mulheres no agro, na Região Norte, estudos neste livro avançam no debate de modelos de desenvolvimento, e como desigualdades regionais reforçam subordinações no gênero e na classe. É ilustrativo de tal chamada a reflexão seguinte: Para os movimentos feministas, conforme defende a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) apud Oliveira

(2010, p. 42), o modelo atual de desenvolvimento traz inúmeros problemas: bloqueia as possibilidades de au-

tonomia econômica para as mulheres, reforçando a exploração sobre seu trabalho. Para as rurais, limita as pos-

sibilidades de acesso à terra. Para as urbanas, dificulta o acesso à moradia. A todas as mulheres ameaça com um contexto cada vez mais conservador, racista, excludente 12

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e violento, posto que apoia na competição e lei do mais

forte, além de aprofundar a mercantilização, tudo trans-

formado em mercadoria: os bens comuns da natureza,

os serviços públicos, as pessoas, a sexualidade, a vida (MIRANDA; BARROSO, 2015, p. 81).

Ressalto a realização da proposta do título do livro – Gênero, desenvolvimento e território: novas semânticas e antigas práticas – consubstanciada em diversas análises. A busca por outra semântica na análise sobre perspectiva de gênero em desenvolvimento regional não isenta de um olhar crítico a produção feminista institucionalizada, como a que se materializa em Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres (PNPM). Observam Tavares e Parente (2015, p. 269-271), por análise de discurso do PNPM para 2015 e a situação de mulheres no mercado de trabalho, que Diante das metas e propostas analisadas, verifica-se que

há ações concretas, contidas no PNPM, no sentido de melhorar a condição das mulheres [...]. Quanto às metas de

redução das disparidades salariais e aumento das taxas

de ocupação e atividade, considera-se que o PNPM não traz propostas concretas que deem subsídio a estas metas e propiciem igualdade e eliminação da discriminação das mulheres no mercado de trabalho de forma geral.

Apesar de propor qualificação e creches, o plano não traz

ações afirmativas, que visem compensar as desvantagens anteriores vivenciadas [...]. Políticas públicas afirmativas

são fundamentais para reverter as desigualdades de gênero no mercado de trabalho e ainda não se verifica uma proposta de uma política consistente neste sentido.

[...] o desenvolvimento humano não pode ocorrer diante

do desemprego, da falta de autonomia das mulheres e das desigualdades presentes no mercado de trabalho. Ou

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seja, uma sociedade ou região que restringe as possibili-

dades de emprego e despreza a capacidade das mulheres limita também as suas próprias possibilidades de desenvolvimento.

Tantas citações em um texto, que se pretende prefácio, configura-o mais como um thriller, a estimular leitura cuidadosa do livro em pauta, inclusive por olhares diversos ao que aqui se sugere. Se a diversidade de textos contribui para debates sobre corpi explícito – gênero, desenvolvimento, território, experiências de mulheres rurais em distintas formas de organização econômica na Região Norte – e sentidos como práticas alternativas às lógicas de mercado, o que já o legitima como importante referência sobre desenvolvimento regional e gênero no Brasil, em muito também provoca debates em nível internacional sobre construções contemporâneas empírico-teóricas de conceitos como patriarcado e gênero e relações entre governabilidade, território e poder. Em que medida tais temas, além do debate conceitual pró-igualdade, não estariam a pedir mais radicalidade feminista e cuidados com as ciladas da perspectiva de governabilidade e de políticas públicas com enfoque de gênero (ver nesta linha o artigo de Côté)?

REFERÊNCIAS CASTRO, Mary Garcia. “Notas sobre a potencialidade do conceito de patriarcado para um sujeito no feminismo. Contribuições de Heleieth Saffioti – em memória e pelo devir”. Cadernos Crítica Feminista, ano V, nº 4, dez., 2011, p. 72-99.

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MACHADO, Lia Zanotta. “Perspectivas em confronto: relações de gênero ou patriarcado contemporâneo?” Série Antropologia, Gênero, desenvolvimento e território

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nº 284, Brasília, 2000. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2013. PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. SAFFIOTI, Helleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.

__________. “Prefácio”. In: ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary Garcia. Em-gen-dran-do um novo feminismo: mulheres líderes de base. Brasília: Unesco/Cepia, 1998.

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APRESENTAÇÃO

A

s discussões sobre o desenvolvimento fazem parte dos grandes temas da sociedade moderna. Atreladas a esse conceito, desenvolvem-se, nas esferas governamental, acadêmica e dos movimentos sociais, reflexões sobre os vários tipos de desenvolvimento, quais sejam: econômico, social, cultural e, ainda, sobre alternativas às problemáticas socioambientais. A questão, por sua vez, é bastante complexa, pois envolve nuanças que vão desde os vários significados relacionados ao termo até as controvérsias no debate intelectual e político. A proposta do livro Gênero, desenvolvimento e território: novas semânticas e antigas práticas, nesse âmbito, tem como objetivo contribuir para o debate do desenvolvimento sob a perspectiva de gênero, pondo em destaque a atuação das mulheres de forma autônoma ou organizada em movimentos de mulheres e/ou feministas nos governos locais e regionais. O livro busca integrar a reflexão de pesquisas cujas abordagens dialoguem com problemáticas referentes às inter-relações entre a construção do desenvolvimento e a participação das mulheres nos processos de tomada de decisão política, participação social e econômica em distintas sociedades. Os artigos aqui reunidos partem de diferentes reflexões teóricas e metodológicas para apresentar vertentes do desenvolvimento relacionadas com as questões de gênero, tais como desenvolvimento rural, desenvolvimento local e regional, desenvolvimento urbano ou econômico, políticas públicas de trabalho, educação, dentre outras. Apresentação

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Mulheres organizadas nos mais diversos contextos têm buscado acessar os direitos sociais em dinâmicas plurais para que a desigualdade entre os gêneros não as impeça de participar dos espaços de decisão, o que põe em evidência o papel delas como sujeitos políticos. Não por outro motivo, as políticas públicas, programas e legislações que surgem para reduzir as desigualdades entre os gêneros colocam-se como resultado dessa articulação constante das mulheres na reivindicação dos seus direitos. A discussão sobre desenvolvimento na perspectiva de gênero neste livro visa também a uma autorreflexão e a uma autocrítica, de forma a reconhecer o papel das mulheres na busca de um desenvolvimento capaz de dimensionar suas necessidades específicas em toda a sua diversidade étnico/racial, regional, geracional, sexual e de classe. O livro, além de contemplar as referidas discussões no Estado brasileiro, pretende ampliar o debate incorporando contribuições teóricas sobre o tema com base em experiências do Canadá, da França e dos países que integram o Mercado Comum do Sul (Mercosul). A obra é resultado de um esforço coletivo construído pelos projetos de pesquisa Desenvolvimento regional sob a perspectiva de gênero: um estudo sobre a atuação organizada das mulheres nos Organismos Governamentais de Políticas para Mulheres no Amazonas e Tocantins, que foi selecionado e financiado pelo edital MCTI/CNPq/SPM-PR/ MDA, e pelo projeto Integração das políticas de gênero no Estado: Tocantins, Pará e Amazonas em perspectiva comparada, que foi selecionado e financiado pelo edital Chamada Universal – MCTI/CNPq nº 14/2012. Os projetos desdobraram-se na organização do Grupo de Trabalho Desenvolvimento local, desenvolvimento regional e o direito das mulheres: um quebra-cabeça da descentralização, no Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 – Desafios Atuais dos Feminismos –, que se realizou em Florianópolis, Santa Catarina, no ano de 2013. Nessa ocasião, foi estabeleGênero, desenvolvimento e território

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cida uma parceria entre pesquisadoras do Núcleo de Estudos das Diferenças de Gênero (Nedig), da Universidade Federal do Tocantins, e o Observatoire sur le développement régional et l’analyse différenciée selon les sexes (Orégand), del’Université du Québec, en Outaouais, no Canadá, que coordenaram o referido grupo de trabalho. No cenário brasileiro, nas décadas de 1960 e 1970, o desenvolvimento configurou-se como um novo campo de estudos nas universidades brasileiras, baseada na influência norte-americana, que difundia a perspectiva evolucionista do desenvolvimento e que passou a contribuir decisivamente para a consolidação de determinadas linhas de pesquisa no Brasil, entre as quais os estudos sobre as virtudes do mercado e da globalização e, nas décadas posteriores, a reinvenção do novo desenvolvimento e da problemática da pobreza sem considerar as dimensões de gênero. As abordagens sobre desenvolvimento apresentadas nesta obra darão destaque aos diferentes componentes do desenvolvimento, como o território, a cultura e a sociedade na perspectiva de gênero. Além de questionar o próprio conceito de desenvolvimento, o livro também considera os limites do conceito de gênero, que ganharam grande importância nos estudos e debates acadêmicos nas últimas décadas no Brasil. Feministas filiadas a uma abordagem social crítica, apesar de reconhecerem a importância do conceito de gênero, chamam a atenção para a centralidade que o conceito de gênero assumiu ou a exclusividade de seu uso nos estudos feministas em detrimento ou em substituição ao debate do patriarcado, o que, no nosso entendimento, pode contribuir para obscurecer desigualdades e opressões, e deslocar a atenção da dominação masculina. Feita a ressalva, a presente elaboração propõe fomentar a articulação do debate sobre gênero e desenvolvimento em escala local e regional, apontando seus limites e suas possibilidades, ao passo que a situamos dentro das conApresentação

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tradições básicas da estrutura social, patriarcado, racismo e capitalismo, que, de forma imbricada, sustentam o modelo de desenvolvimento em curso. O livro conta com contribuições provenientes de áreas como sociologia, ciência política, geografia, serviço social, direito e educação, as quais, ao dialogarem, promovem interlocuções com diversas áreas do conhecimento, com base na abordagem do desenvolvimento na perspectiva de gênero. Os estudos de gênero, por sua vez, propiciam um diálogo crítico com diferentes disciplinas e com o pensamento feminista, o que favorece o exercício da interdisciplinariedade entre os distintos campos do saber. Essa interdisciplinaridade do campo de estudos feministas, segundo Zanotta Machado (1992),3 é resultado do estabelecimento de um diálogo constante feito pelos movimentos feministas com a academia. A primeira seção do livro apresenta diálogos sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento. No artigo Território, desenvolvimento regional e igualdade de gênero: algumas lições do Quebéc, Denyse Côté discute as relações que os movimentos de mulheres construíram no Estado do Quebéc, no Canadá, para participarem dos processos de tomada de decisão política e no acompanhamento das políticas públicas. No contexto da América do Sul, Silvia Ferro questiona as desigualdades de gênero no desenvolvimento rural baseado no espaço do Mercado Comum do Sul (Mercosul), considerando que o enfoque de gênero é transversal a toda a atividade agrária e econômica no geral, havendo, contudo, nesse espaço, limitações para a promoção de um desenvolvimento rural igualitário entre os gêneros. No último capítulo da seção, as autoras Cynthia Miranda e Milena Barroso discutem os limites

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3 MACHADO, Lia Zanotta. “Feminismo, academia e interdisciplinaridade”. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

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e as possibilidades para se pensar o desenvolvimento regional na perspectiva de gênero na Região Norte do Brasil e apontam a ausência de uma agenda de desenvolvimento regional e gênero na área considerada. Na segunda seção da coletânea, as discussões estão centradas na questão da autonomia das mulheres e em seu acesso às políticas públicas. O primeiro artigo, das autoras Denyse Mello e Marianne Schmink, discute a criação de microempreendimentos formados por mulheres rurais com base na atuação dos movimentos de mulheres, pontuando que tais empreendimentos representam uma estratégia para reduzir a desigualdade de gênero e aumentar a renda familiar. O artigo seguinte, de autoria de Gleys Ially Santos, enfatiza a participação das mulheres no desenvolvimento regional/local baseado nos assentamentos de reforma agrária no Estado do Tocantins, bem como os desafios da luta pela terra, que se torna, também, uma perspectiva de igualdade de gênero no âmbito rural brasileiro. No último artigo da seção, de Rosana Ribeiro Morais, o tema das políticas públicas para as mulheres é tratado com base na experiência do Governo do Estado do Pará por meio da realização de Seminários Regionais de Políticas para as Mulheres nas 12 regiões de integração do Estado e, nesse sentido, aponta para a necessidade de compreender as realidades específicas dos municípios para se pensar o desenvolvimento regional na perspectiva de gênero. A terceira seção do livro reúne artigos que dialogam em torno dos limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero. As autoras Virgínia Alexandre e Maria Teresa Nobre levantam reflexões sobre as questões de saúde das mulheres em contextos de mudanças socioambientais, enfatizando as estratégias que possuem para resistir às consequências da expansão urbana desenfreada em um cenário de crescimento urbano da cidade de Aracaju, capital do Estado do Sergipe. Na sequência, o artigo de Maria Izabel Barros, Nívia Barros e Rita de Cássia Apresentação

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Freitas trata sobre a ausência de políticas de adoção que, existindo, garantiriam mais autonomia para as mulheres, tornando a questão menos sofrível para as mulheres pobres. O artigo de Ariane Tavares e Temis Parente tem como foco as ações do Estado para a busca da autonomia econômica das mulheres como um passo importante para a equidade de gênero. O último artigo da seção, de autoria de Marcos André Estácio e Diana Andreza Almeida, almeja promover uma reflexão sobre multi(inter)culturalismo e relações de gênero no contexto da educação escolar indígena no Amazonas e, nesse processo, apesar da tentativa de enfatizar as diferenças, estas não são consideradas em sua totalidade, pois, como será identificado, as questões de gênero têm sido negligenciadas. A obra finaliza com o posfácio de Sophie Louargant, que questiona as inter-relações entre os gêneros no espaço e território, e aponta a necessidade de abordar pontos de vista atuais para compreender essas relações, como ecofeminismo, emancipação e movimentos sociais. Por fim, almejamos que as discussões apresentadas nesta obra contribuam para a compreensão dos diferentes componentes do desenvolvimento baseadas em uma visão crítica que busca considerar o papel das mulheres na articulação e reivindicação de um desenvolvimento capaz de promover a igualdade entre os gêneros. Cabe dizermos também que os referidos artigos são de total responsabilidade das/os suas/seus autoras/es, e as ideias neles expressas não correspondem, necessariamente, à opinião de suas/seus organizadoras/es.

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PARTE 1 DIÁLOGO SOBRE GOVERNANÇA DESCENTRALIZADA, TERRITÓRIO E DESENVOLVIMENTO

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TERRITÓRIO, DESENVOLVIMENTO REGIONAL E IGUALDADE DE GÊNERO: ALGUMAS LIÇÕES DE QUÉBEC4 Denyse Côté

E

m todo o globo, constatamos que os mecanismos de governança em escala local ganham importância. Basta recordar as múltiplas reformas que criaram novas distribuições de poder entre o Estado e as regiões ou ainda a renovada atenção à governança das cidades (HORAK; YOUNG, 2012). O interesse das instituições políticas e econômicas focaliza cada vez mais sobre os territórios locais e regionais (TREMBLAY; KLEIN; FONTAN, 2009). Do mesmo modo, as reformas privilegiam geralmente um modelo consensual e de consulta, tendo por objetivo deixar as coletividades locais mais autonômas em matéria administrativa e política. Essas reformas descentralizantes, assim como a institucionalização dos mecanismos de consulta e de coordenação, respondem às dificuldades crescentes dos Estados centralizados e visam também a acalmar suas finanças públicas, a melhorar a eficácia do sistema e valorizar a integração social (JALBERT, 1991). Depois de mais de uma década, a descentralização torna-se, assim, uma ferramenta importante de reengenharia, assim como um espaço privilegiado de transformação do Estado (JOUVE, 2004). Órgãos locais e regionais desempenham agora um papel mais relevante na tomada de decisão na vida

4 Texto original em francês, traduzido para esta obra por Elaine Cristina Rodrigues Aguiar.

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econômica, social e ambiental (VACHON, 2005). Novas estruturas locais assim criadas fazem um chamado à contribuição da sociedade civil em geral (HOELL; PEARCE, 2001; CÔTÉ et. al., 2011); elas também recebem cada vez mais mandatos para aplicar uma “perspectiva de gênero” em suas políticas e programas. Isso atende aos trabalhos de desenvolvimento do território (BULOT; POGGI, 2004). Essa popularidade de escalas restritas no mundo político e econômico está acompanhada por sua vez de uma renovação de interesses pela territorialidade nas ciências sociais. Entretanto, dentro desse contexto, a análise de gênero5 do território continua relativamente marginal. Os temas largamente documentados do direito à cidade (MAYER, 2009), do desenvolvimento urbano, da democracia municipal (TARDY; BÉDARD, 1997; TRUDELLE et. al., 2006), do desenvolvimento local (BARBIERI et. al., 2007; ANDREW, 1997), do desenvolvimento rural (ASTER, 1999; SEMBLAT, 1997), dos conflitos urbanos, da ruralidade (LAFONTAINE; THIVIERGE, 1997), para não citar somente esses exemplos, têm suscitado um interesse restrito e esporádico da parte das(os) pesquisadoras(es) feministas, apesar do fato de que eles sejam, todavia, centrais para a compreensão das relações sociais de sexo e do território (LOUARGANT, 2002). Além da diferenciação dos espaços públicos/privados, a inclusão do gênero dentro da análise do território revela-se na microescala de espacialidades (DAY, 1999) e de tempora

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5 O conceito de gênero representa um conjunto de fenômenos sociais, históricos, políticos, econômicos e psicológicos associados à filiação, ou não, dos seres humanos de um sexo ou outro, assim como o conjunto de consequências geradas, como a desigualdade entre os homens e as mulheres (LÖW, 2006; YOUNG, 2005). Nesse sentido, as instituições internacionais e os governos nacionais há vinte anos se comprometem a integrar a igualdade entre as mulheres e os homens no centro de seus dispositivos e políticas. É necessário distinguir o feminismo, que é uma filosofia de defesa de igualdade, do movimento social, que ressalta os limites de um sistema patriarcal que reabsorve os pedidos de reformas.

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lidades sociais cotidianas (TREMBLAY; ROCHMAN, no prelo; BARRÈRE-MAURISSON; TREMBLAY, 2009). Na média escala, ela traduz a elaboração de códigos e de normas para grupos sociais, e na macroescala social ela permite ler os jogos de negociação dentro da construção de territórios. A atual conjuntura de descentralização política e administrativa, as questões éticas recentes em matéria de governança de proximidade, assim como o interesse renovado para os negócios municipais (TREMBLAY; KLEIN; FONTAN, 2009), reprojetam também a pertinência do tema. Dentro desse contexto, os grupos de mulheres locais e regionais são cada vez mais chamados a contribuir, e diversas experiências de integração do gênero ao território são propostas (WCI, 2012). Entretanto, se os atores locais são muitas vezes responsáveis por integrar o gênero, pensar o gênero como categoria de ação local é uma tarefa difícil para eles, uma vez que diferentes paradigmas clássicos guiam suas decisões e suas ações. De fato, a rejeição do paradigma da neutralidade das políticas e das ciências sociais por uma análise, decisões e políticas locais na perspectiva de gênero tem se consolidado de forma clara ao longo dos anos: desenvolvimento urbano (HUNING, 2011), segurança das mulheres dentro de seus espaços de vida (WCI, 2011; WERKELE et. al., 1995), mulheres e cidade (FENSTER, 2005; HAYDEN, 1981), impactos locais da integração das mulheres ao emprego (FELSENSTEIN; PERSKY, 2011), violência dentro das cidades (YAVUZ; WELCH, 2010; FALU, 2009), as mulheres em situações de catástrofes naturais (MAGLOIRE; LAMOUR, 2013; HORTON, 2012), políticas de desenvolvimento local e regional (MIRANDA, 2014), descentralização das cidades (PARÉ et. al., 2008), eis que tantos temas produziram intervenções apoiadas por uma literatura científica. Ainda assim, trata-se de dinâmicas muitas vezes paralelas, não tendo sido até agora objeto de um projeto comum. Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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Ademais, as traduções operadas por essas iniciativas, tanto as ferramentas como as análises, são ainda efêmeras, e, sobretudo, encontram pouco revezamento entre os territórios e sofrem de uma falta de integração transversal. No entanto, os regimes de cidadania emergentes se querem inclusivos do gênero e focados na escala subnacional: eles suscitam debates e ao mesmo tempo resistências, em certos casos; eles reconfiguram o espaço público local e regional (WALBY, 2004). Enfim, eles revelam então certos efeitos de luzes e certos efeitos de sombra, estão repletos de boas práticas, mas também de efeitos perversos.

DESENVOLVIMENTO REGIONAL OU OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO?

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Durante muitas décadas de adoção do conceito de desenvolvimento das regiões ou de desenvolvimento regional, o governamento de Québec utiliza o conceito de ocupação do território para designar suas intervenções nas 17 regiões de Québec. Mesmo que essa modificação responda sem dúvida a uma lógica administrativa e política, ela traz em si consequências discursivas. O conceito de ocupação do território oculta, de fato, a natureza das ligações entre o centro (Québec, Montreal) e a periferia (as regiões que produzem recursos naturais) e para as regiões ditas distantes ou limítrofes dos grandes centros urbanos. Popularizado após a Segunda Guerra Mundial e durante o período de decolonização, o conceito de desenvolvimento se inspira nas teses evolucionistas surgidas por volta dos séculos 18 e 19. Ele postula a evolução linear de uma sociedade, ou, no caso que nos interessa, de uma região, segundo algumas etapas (sociedade tradicional, decolagem, modernização) antes de atingir a etapa “avançada” da sociedade do consumo de

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massa (RIST, 1996). Contrariamente ao conceito de ocupação de território, o conceito de desenvolvimento regional refere-se então diretamente a um atraso postulado das regiões periféricas aos grandes centros urbanos. Dito isso, as intervenções governamentais orientam a escolha das prioridades econômicas de produção e de repartição da riqueza, não tendo, portanto, sido modificadas por essa mudança de nomenclatura. A adoção do conceito de ocupação do território teve como efeito distanciar os conceitos e ações relevantes do desenvolvimento local ou regional, do desenvolvimento feminista e do desenvolvimento durável. Emprestado da geografia, o conceito de território refere-se a um espaço social, político e econômico construído dentro e circunscrito pelos limites de um espaço físico. Os grupos que vivem em um território constroem habitualmente uma representação coletiva deles mesmos, dividem sua história por meio de um sentimento de pertença definido pela proximidade. Cada um à sua maneira, os territórios rurais e urbanos despertaram o interesse de sociólogos, geógrafos, paisagistas, economistas e cientistas políticos que analisaram alternadamente a ocupação do território, as migrações, as interações sociais, a dispersão e as trajetórias espaciais (PARKER, 2012), a consolidação territorial da produtividade, a governança (FAURE, 2007) e os serviços de proximidade.

GOVERNANÇA REGIONAL E MOVIMENTO FEMINISTA QUEBEQUENSE O desenvolvimento regional refere-se também ao modo de tomada de decisão sobre um dado território. Os sucessivos governos quebequenses, neoliberais ou social-democratas, tiveram, entre 1989 e 2014, depois da falência da planificação centralizada dos anos 1960, um projeto de descentralização Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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regional segundo diversas configurações e filosofias. O último e atual modelo é o da governança regional, que integra uma perspectiva participativa e interpelante da sociedade civil. Ele torna a igualdade como uma obrigação de trabalhar a igualdade entre mulheres e homens, e solicita a participação dos grupos comunitários e dos grupos feministas. Essa experiência apresenta importantes fracassos que estudaremos abaixo. A história do Québec foi marcada pelos movimentos de mulheres. Trinta e cinco anos depois de seu apogeu, o território quebequense ainda apresenta grupos de mulheres. Suas intervenções mudaram ao longo dos anos, por exemplo, de temáticas relacionadas a agressões sexuais, violência conjugal, integração no trabalho, direitos sociais, representação política e empreendedorismo feminino. Desde seu início, o movimento das mulheres dirigiu seus pedidos ao Estado do Québec,6 que pouco a pouco se portou como fiador de políticas e de programas para as mulheres, assinando em 1997, com o governo canadense, a Declaração de Beijing. Entretanto, nessa época, as autoridades regionais consideram os grupos de mulheres de seu território como exteriores ao seu mandato. Assim, o desenvolvimento regional foi justaposto pela continuação da espera por igualdade entre mulheres e homens, e os fóruns regionais de grupos de mulheres foram associados à estrutura de governança e aos planos de desenvolvimento regional (MASSON, 2006). Propriamente quebequense (CÔTÉ; SIMARD, 2010), essa nova configuração se inscreve dentro de uma tendência mundial e apresenta novas questões (ASHWORTH, 1996), como a ligação entre o movimento feminista e as autoridades regionais. Até recentemente cegos ao gênero (BALLMER-CAO, 2006), como as intervenções quebequenses em matéria de de

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6 Recorremos aqui à expressão “Estado quebequense”, que faz referência, em sociologia política quebequense, ao aparelho governamental da Província de Québec.

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senvolvimento regional podem ajudar os grupos de mulheres? Em que medida e “como elas participam dos debates e das escolhas democráticas” de sua região (LAFONTAINE; THIVIERGE, 1997, p. 147)? Os grupos de mulheres adquirem ou não um novo poder de influência (BARON, 2007) por intermédio dessa nova estruturação da democracia e da cidadania regional (LAMOUREUX; PEDNEAULT, 1999)? Essas questões emergem de uma perspectiva longitudinal após nossa observação participante diante de instâncias de governança regional do Québec e confirmadas por entrevistas com as líderes dos grupos de mulheres das regiões. E, assim, apresentaremos na próxima seção uma análise de conteúdo dos acordos específicos concluídos em 2007 nas 17 regiões do Québec.7

MODALIDADES DE INCLUSÃO DE IGUALDADE ENTRE MULHERES E HOMENS NO ÂMBITO DOS MECANISMOS DE GOVERNANÇA REGIONAL Um novo modelo de governança conclamando a sociedade civil tem sido posto em prática nas regiões quebequenses. Ele se estrutura, entre outros, em torno do tema da igualdade entre mulheres e homens (CÔTÉ; TREMBLAY-FOURNIER, 2011). Substituto do conceito de governo, o novo conceito de governança,8 entretanto, é ambíguo: local, nacional ou mundial, econômico, político ou social (DENEAULT, 2013). Ele é ao mesmo

7 Nós abordamos a participação dos grupos feministas nas regiões por meio dos processos de governança regional, e não da presença das mulheres em instâncias regionais. 8 A palavra inglesa governança ganhou visibilidade em 1990 por economistas e cientistas políticos anglo-saxões e por certas instituições internacionais (ONU, Banco Mundial e FMI) para designar a arte ou a maneira de governar, mas com duas preocupações suplementares; de um lado, para marcar a distinção com o governo como uma instituição; de outro lado, para usar um termo raramente usado e de pouca

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tempo analítico e normativo (no sentido de boa governança) e se instala no momento da redução da intervenção do Estado. O discurso sobre a governança de igualdade na região quebequense põe em evidência a negociação entre diferentes atores em torno de problemas ditos comuns, deixando na sombra seus interesses divergentes, assim como as diferenças de poder. Ele se instala no quadro das instituições não parlamentares que advogam a transversalidade e a coconstrução, definindo unilateralmente as regras de participação. Esta pesquisa destacou os acordos específicos regionais em matéria de igualdade entre mulheres e homens, assinados em 2007 pelas autoridades regionais das 17 regiões do Québec. As questões da pesquisa foram as seguintes: Como os grupos feministas participavam nos acordos específicos? Esses acordos permitiram pôr em prática prioridades próprias dos grupos feministas? Para responder a essa questão, nós analisamos os 21 acordos, assim como seu plano de ação, e entrevistamos as pessoas-chave desse processo. Esses acordos específicos em matéria de igualdade que analisamos são, na verdade, compromissos contratuais entre as direções regionais de ministérios quebequenses e organismos não governamentais visando à adaptação as normas e prioridades governamentais em uma região (QUÉBEC, 2011). Esses acordos determinam as prioridades, os orçamentos, a partilha de responsabilidades, os recursos e as tarefas entre os parceiros selecionados de uma região. Enquadrados pela Secretaria da Condição Feminina do Québec, elas são geradas pela Conferência Regional de Eleitos (CRE) de cada região.9 Inicialmente, as CREs foram percebidas pelos fóruns regionais de grupos de mulheres como um lugar de debate democrático em torno da

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conotação, para promover um novo modo de gestão da coisa pública fundados sobre a participação da sociedade civil em todos os níveis (PAYE, 2005, p. 13-4). 9 As CREs são compostos pelas autoridades regionais.

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igualdade (CÔTÉ; TREMBLAY-FOURNIER, 2011), mas a realidade se revelou bem diferente. Na análise dos 21 acordos específicos sobre a igualdade entre mulheres e homens firmados nas 17 regiões quebequenses, constatamos que, apesar do convite de participação lançado a todos os fóruns de acordos regionais de grupos de mulheres, a média ficou em 6,6% assinantes por acordo. A razão? A exigência de pagar para assinar os acordos poderia transformar as instituições de acordo com as suas prioridades e seus mandatos, mas não foi possível para os fóruns, pois esses acordos são também uma fonte de financiamento.10 Os fóruns de consulta descobriram inesperadamente que as decisões sobre as prioridades e os orçamentos do acordo e do plano de ação seriam daqui em diante tomadas pelos assinantes reunidos em um comitê de gestão. Em várias regiões, o financiamento disponível no campo da igualdade se limitaria às somas disponíveis por meio de acordo específico (CÔTÉ; TREMBLAY-FOURNIER, 2011). Na verdade, as decisões que orientariam o acordo específico sobre a igualdade, na maioria das regiões quebequenses, foram tomadas por doadores de fundos não eleitos e longe do campo da igualdade. Na maioria dos casos, essas decisões foram tomadas na ausência de representantes do movimento feminista regional, que vinham lutando durante várias décadas nessas regiões. A inclusão dos grupos de mulheres nos lugares decisivos regionais em Québec ainda não parece estar na ordem do dia. O tema da participação das mulheres nas instâncias decisivas foi um dos mais contraditoriamente presentes nesses acordos específicos, assim como o tema das mulheres na economia e no mercado de trabalho (empreendedorismo feminino, igualdade econômica das mulheres e diversificação dos empregos) e, em terceiro lugar, na implantação de plano de ação 10 Certas regiões contornaram essa exigência.

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da análise diferenciada segundo os sexos (ADS). Esses temas correspondem a cinco das seis orientações do Plano de Ação Governamental 2007-2010 em matéria de igualdade (QUÉBEC, 2007). Pelos anos estudados, a integração dos registros de igualdade no centro dos acordos específicos corresponde assim a uma implementação do Plano de Ação Governamental, mas poucas iniciativas foram financiadas fora dos objetivos desse plano (CÔTÉ; TREMBLAY-FOURNIER, 2011). Os projetos endógenos não se enquadram com as prioridades retidas pelas autoridades regionais e tiveram, então, poucas possibilidades de serem financiados, pois suas iniciativas inovadoras não se enquadravam com o espírito e a prática dos acordos específicos. Parceiros não deliberativos, os grupos de mulheres regionais foram também chamados cada vez mais a ocupar um nicho de terceirização privilegiado. Assistimos também à generalização do financiamento por projeto, da concepção tecnocrática da eficácia, do aumento de licitações e de recursos para consultores poucos conhecedores do discurso da igualdade, do desenvolvimento de modos operatórios próprios ao setor privado, mas pouco conhecidos no setor associativo-comunitário. Finalmente, o voluntariado exigido pelo processo de consulta dos fóruns aumentou de modo exponencial os investimentos in natura exigidos pelos grupos de mulheres regionais. Hoje, eles são reconhecidos por instituições regionais, mas o preço a pagar foi alto: conformidade aos objetivos governamentais, perda de controle da agenda dos direitos das mulheres nas regiões, ausência de poder deliberativo, incerteza de financiamentos, negligência da cultura comunitária, falta de reconhecimento de competência feminista e de sua contribuição ao desenvolvimento regional. Mas, sobretudo, a capacidade desses movimentos de inovar e de defender os direitos das mulheres foi seriamente reduzida (CÔTÉ; TREMBLAY-FOURNIER, 2011). Gênero, desenvolvimento e território

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O caso de Québec ilustra uma forma de controle institucional da questão da mulher com base na reconfiguração de ligações entre instituições e o movimento feminista na escala local. Constatamos que os discursos institucionais de inclusão do gênero não permitiram integrar a riqueza dos saberes e a competência feministas nas esferas de decisão. Os novos tabuleiros e as novas regras do jogo impostos por essas instituições, na verdade, complexificaram a ação dos grupos feministas, silenciando e orientando suas intervenções. Na teoria, essas regras foram negociadas; mas elas continuam sob controle das autoridades regionais. A nova institucionalização da igualdade reduziu, ao mesmo tempo, o potencial de emancipação do movimento feminista, assim como sua legitimidade (DAHL, 2000). As autoridades regionais assumem, assim, a própria legitimidade no domínio de igualdade sobre a dos grupos feministas – que elas reduzem ao papel de executores. Elas geram (FREITAG, 1995), então, a igualdade, e consolidam ao mesmo tempo certos paradigmas dominantes que eliminam paradoxalmente a defesa dos direitos das mulheres. São deixadas de lado ou invisibilizadas a competência feminista, a utilidade dos grupos feministas na construção da cidadania das mulheres (MARQUES-PEREIRA, 2000), assim como sua função de inovação social. Relegados à sombra, esses grupos feministas são reduzidos ao papel de formadores de agentes institucionais ou de consultores. Suas bandeiras são assim incorporadas de modo seletivo e variável à discrição da agenda e das imagens que as instituições querem transmitir à população quebequense, gerando em vários casos uma nova fonte de ineficácia estrutural. Essas novas relações institucionalizadas questionam de fato a qualidade da democracia local e regional. Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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QUAL A IMPORTÂNCIA DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO NO DESENVOLVIMENTO RURAL DOS PAÍSES DO MERCOSUL?11 Silvia Lilian Ferro

INTRODUÇÃO

A

s desigualdades de gênero no espaço público dos países que compõem o Mercosul12 têm ganhado destaque por conta das desigualdades de gênero dos modelos de desenvolvimento rural adotados pelos Estados membros e associados dessa instituição de integração regional que é o Mercosul. Nota-se que, no geral, o debate coletivo pelo desenvolvimento rural desejável em nossos países incorporou tardiamente a perspectiva de gênero nas agendas reivindicatórias da igualdade em outras áreas de atividade econômica e das políticas públicas a elas associadas. 11 Artigo original em espanhol, traduzido para esta obra por Cymara Miranda. 12 O Mercado Comum do Sul (Mercosul) surgiu com o Protocolo de Assunção, em 1991. É composto por Argentina, República Federativa do Brasil, República do Paraguai, República Oriental do Uruguai, República Bolivariana da Venezuela e do Estado Plurinacional da Bolívia. Os Estados partes do Mercosul partilham valores comuns que encontram expressão em políticas democráticas, pluralistas, defensoras das liberdades fundamentais, direitos humanos, proteção ambiental e desenvolvimento sustentável e seu compromisso com a consolidação da democracia, a segurança jurídica, o combate à pobreza e o desenvolvimento econômico e social com equidade. Tem como Estados associados: Chile, Colômbia, Peru, Equador, Guiana e Suriname.

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O maior interesse na questão é resultado do crescente espaço conquistado na área das organizações de agricultura familiar e de sua vinculação com a soberania alimentar13 e seus impactos sobre a proposta da necessidade de democratização das relações sociais e econômicas das estruturas agrárias dessa região que, no entanto, é um dos polos agroalimentares mais importantes do mundo. Os países fundadores do Mercosul – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – se caracterizam por possuir uma inclinação eminentemente agroexportadora em suas balanças comerciais e estão na lista dos dez maiores produtores e exportadores mundiais de soja, por exemplo, e de diferentes mercadorias de origem agrícola e de produção de alimentos. Tais semelhanças na orientação de suas políticas comerciais coexistem com uma também marcada estratificação entre os atores socioagrários e relações assimétricas de força estabelecidas historicamente e sustentadas até hoje – apesar de breves intervalos históricos de tentativa de equiparação de oportunidades para os setores subalternos da agricultura em meados do século 20, graças às experiências de governos populares que foram abruptamente segregados na região por processos ditatoriais cívico-militares e por ideologias neoliberais quando a democracia formal foi recuperada. Isso resultou numa grande concentração de recursos agrários, da propriedade e do uso de fatores de produção como a terra, o trabalho, o acesso ao capital e à inovação tecnológica. 13 “O conceito de ‘soberania alimentar’ foi introduzido como um novo paradigma pela Via Campesina, um movimento internacional que engloba organizações camponesas de pequenos e médios agricultores, mulheres rurais, comunidades dos povos indígenas, sem-terra, jovens rurais e trabalhadores agrícolas migrantes de 70 países na Ásia, África, Europa e América, durante a Cúpula Mundial de Alimentação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 1996”. Trecho do Royalty Chair Soberania Alimentar (CLSA) da Universidade Nacional de La Plata (UNLP). Disponível em: .

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A partir dos primeiros anos do século 21, com o retorno à região de governos populares de tendência progressista, os movimentos sociais agrários que representam os setores rurais subalternos encontraram uma conjuntura de legitimação política para incorporar suas agendas reivindicatórias nos âmbitos de decisão das políticas agropecuárias dos Estados e para explicitar em nível coletivo sua visão sobre modelos de desenvolvimento rural baseada em paradigmas de igualdade e sustentabilidade. Essa visão sobre modelos de desenvolvimento rural desejavelmente inclusivos socialmente e sustentáveis ecologicamente também pugna por organizações que representem os setores campesinos, de povos originários e especialmente das organizações de pequenos agricultores familiares, orientando à democratização do acesso, uso e controle dos fatores de produção e delineando objetivos mais amplos da produção agrária do que a mera produtividade e aumento de excedentes exportáveis. Esse último ponto é fonte de contradições que provocam tensões e conflitos, já que a política que se expressa em governos progressistas, os quais deram grande impulso às organizações da agricultura familiar, de povos originários, da afrodescendência em meios rurais e às organizações campesinas, em geral, é a mesma que impulsiona as políticas públicas que promovem metas de produção e de incremento exponencial dos volumes de exportação da produção agrária dos Estados. Isso significa, na prática, que oferecem uma gama de estímulos à agricultura em grande escala (por exemplo, pools de siembra) e à pecuária extensiva (por exemplo, feed lots). Pools de siembra é uma expressão generalizada na Argentina e que se refere a uma modalidade de gestão produtiva baseada na produção em larga escala por meio da combinação de propriedade da terra e arrendamento mercantil, como extensas unidades produtivas geridas exclusivamente como contraDiálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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tos de locação com grande aporte financeiro na figura de fideicomissos ou fundos de inversão que injetam capital financeiro extra na produção agrária em larga escala, com predominância para a soja. Os atores que expandiram essa modalidade desde os anos 80 do século 20 em diante são tanto proprietários de terra que somaram grandes superfícies para arrendamento, que administraram as possibilidades dos fideicomissos orientados à produção agrária, como agentes financeiros extragrários, estes últimos em menor proporção (BASUALDO, 2008). Essa modalidade de gestão é reconhecida em grande parte da região que engloba o Mercosul e que tem grande desenvolvimento de sua produção e exportação de soja, como Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, extendendo-se a outras regiões sul-americanas na atualidade. Esses atores da produção em larga escala são os que disputam, com os anteriormente mencionados, a apropriação do território rural, da água para irrigação e de tudo o que engloba a infraestrutura para a produção agrária financiada pelos Estados ou em consórcios mistos com atores privados – em suma, as vantagens fiscais, creditícias e tecnológicas para incrementar a superfície cultivável, rendimentos por hectare, qualidade de produtos com destino exportável, facilitações do comércio (missões comerciais no exterior, acordos bilaterais etc.), entre outras muitas ferramentas que promovem os Estados, além de uma maior obtenção de divisas em seu saldo comercial. Objetivos comerciais alcançados em detrimento de boas práticas de uso do solo e de preservação de florestas nativas resultam em uma extensa contaminação de ecossistemas por conta de milhões de litros de agrotóxicos despejados em enormes áreas de superfície, assim como a alteração de cursos d’água, conflitos entre empresas agrárias, povos originários e comunidades camponesas por terra e água, dentre outras razões que provocam deslocamentos dos agricultores de pequeGênero, desenvolvimento e território

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na escala, na maioria dos casos, além de outros fatores preocupantes a serem considerados. Os crescentes conflitos entre os atores agrários tão desiguais e com visões de desenvolvimento rural antagônicas são indicativos de que os Estados da região fortalecem ambos os espectros: tanto a produção agrária empresarial de grande escala e com vocação à exportação que produz divisas como as formas de produção agropecuária focadas na alimentação das populações locais, agroecológica, com objetivos de soberania alimentícia, revalorização territorial e do modo de vida rural, no retorno à continuidade dos projetos familiares de vida nos meios rurais com base no estímulo às juventudes rurais, à igualdade de gênero, às políticas de reparação fundiária destinada aos povos originários e à afrodescendência, à preservação de florestas nativas, de umidade e muitos outros itens que produzem legitimidade política na base social. Essa contradição tenta ser salva desde a proposta de coexistência de formas distintas de produção, o que também significa a coexistência de atores rurais muito desiguais e assimétricos – coexistência, afinal, em um mesmo território de visões de modelos de desenvolvimento rural contraditórios. Esse é o cenário real onde a questão da igualdade de gênero começa a surgir com maior força nas organizações que representam os setores subalternos da agricultura. Lamentavelmente não se visualiza sua enorme potencialidade de reconhecer desigualdades em toda a estrutura agrária intersectando-se com outros vetores que a potencializam, como o pertencimento étnico, territorialidade, modo de produção, enfoque geracional etc. Fica reduzida a parte de uma demanda ética por políticas compensatórias destinadas às mulheres rurais, sem possibilidades de dimensionar seu caráter estrutural como enfoque de gênero, e não como sinônimo de mulheres, em respeito à ampla agenda temática agrária debatida no bloco regional e sua capacidade de atravessar verticalmente toda Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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a estrutura agrária, transversalmente a todos os tipos de atores agrários. Esse tipo de reducionismo é causado em primeira instância por insuficiências conceituais e metodológicas de seus promotores/as e, em segunda instância, por resistências de interesses que se expressam primeiramente em atribuir igual conceito aos vocábulos “gênero” e “mulheres”, posicionando erroneamente o denominado “enfoque de gênero” como um satélite adicionado e descontextualizado nas políticas e debates que se implementam no bloco regional e nas políticas agrícolas domésticas dos países que o compõem. Os setores subalternos das estruturas agrárias dos países do Mercosul fortalecidos na conjuntura política regional conflitam com as alianças agrícolas que representam os setores médios e da grande propriedade e produção agrária, que têm sido os interlocutores privilegiados ante o Estado e grande parte da sociedade civil desde a emergência e consolidação dos modelos agroexportadores no século 19 na região. Essa conjuntura de intenso debate entre os distintos atores socioagrários e suas diferentes relações de força, somada à crescente presença na opinião pública, nas organizações civis, nas universidades, sindicatos etc., mostrou-se propícia para incorporar paulatinamente demandas de igualdade de gênero nas agendas reivindicatórias por oportunidades sociais, econômicas, políticas e culturais dos setores subalternos da agricultura, especialmente no que atine à agricultura familiar. As tensões pelos alcances efetivos do conceito de agricultura familiar (AF) mostram claramente as enormes diferenças de atores agrários que disputam a área de reconhecimento público e estatal como sujeitos de políticas de promoção diferenciada e devidas da inclusão da AF a questões institucionais do Mercosul e, nos casos nacionais, por meio da legislação emergente federal e subnacional, além da criação de áreas estatais, nacionais e subnacionais para sua promoção. Gênero, desenvolvimento e território

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Assim, o empresariado agrário que gere familiarmente uma combinação de propriedade familiar pequena e média com locação de grandes extensões, que produz orientado a mercados externos, são proprietários de fatores produtivos e têm acesso a créditos significativos, denominados nos estudos agrários como de agricultura familiar capitalizada (AFC). Pugnam por serem incluídos em uma definição que necessita se ajustar melhor para que os fundos e vantagens que ali se destinam cheguem efetivamente aos setores socioagrários subalternos que impulsionaram o reconhecimento público da AF como protagonista da soberania alimentar de seus países e que correspondem com as definições de agricultura familiar de subsistência (AFS) ou pequena agricultura familiar (PAF), integradas pelos setores rurais do campesinato, povos originários e afrodescendência. Esses últimos são os que exigem ser protagonistas em uma redistribuição de oportunidades e reparação histórica por haverem sido historicamente prejudicados por ações ou omissões de políticas públicas comerciais, agrícolas e econômicas por parte de seus países, desde as campanhas militares de extermínio dos povos originários do século 19, para destinar as terras férteis à agricultura e pecuária a cargo dos imigrantes de origem europeia, até a subordinação da população crioula e afrodescendente a condições de exploração em favor dos recém-chegados da Europa, pobres e analfabetos em sua maioria, para que lograssem adaptação à produção agrária em contextos agroecológicos tão distintos de suas regiões de origem, e que se tornaram ao longo de quatro ou cinco gerações seguintes nos atores agrários privilegiados pelas políticas públicas e agrárias dos Estados nacionais. É nessa sinergia de processos sociais e políticos que levam à renovação da equidade de gênero em todos os aspectos de interesses produtivos que este estudo se encontra. Considerando pontualmente o sistema produtivo agrário, se faz evidente Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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a necessidade de inovação das ferramentas epistemológicas e metodológicas para que esse tema deixe de ser uma extensão reduzida a seus aspectos éticos reivindicatórios, que é assumido em forma mais “politicamente correta” do que efetivamente operativa na discussão regional institucional dos grandes temas de desenvolvimento rural de uma região. Chegando a esse ponto e tendo em vista a situação presente na região, cabe perguntar-se: Quanto importa a igualdade de gênero na discussão pelo desenvolvimento rural desejável e em seus instrumentos de realização como são as políticas agropecuárias nacionais? Este artigo tentará clarear os elementos que conformam esse questionamento para apresentar as respostas possíveis em seus cenários atuais e prospectivos.

CONTEXTUALIZANDO O DEBATE

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Para começar a elaborar uma resposta às interrogações propostas, impõe-se a necessidade de abordar um diagnóstico baseado em metodologias quantitativas, num quadro de variáveis com indicadores que permitam medir as disparidades de gênero (gender gap) nos fatores produtivos agrários (terra, capital, trabalho e tecnologia). É pertinente, do mesmo modo, medir as disparidades em termos quantitativos considerando as articulações fundamentais da produção alimentícia: produção, distribuição, comercialização e consumo, porque a satisfação alimentar da população de cada país é – ou deveria ser – o primeiro objetivo soberano de qualquer política agrária nacional. Por desse enfoque, também é possível examinar as distintas fases do despejo do excesso da produção agrária nos mercados alimentícios internacionais por meio da análise do impacto das políticas comerciais nessas lacunas. Gênero, desenvolvimento e território

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Lamentavelmente, os estudos de gênero no desenvolvimento rural têm mostrado um viés majoritário das abordagens qualitativas, identificando eixos de análise desde as demandas éticas e reivindicatórias – o que conduz muitas vezes a obter, por parte das decisões públicas e privadas, respostas “politicamente corretas” também baseadas na dimensão ética e reivindicatória. Algumas menções à questão de gênero nos discursos de responsáveis por ministérios de agricultura trazem algum componente secundário na legislação agrária, como a criação e manutenção de tipos cerimoniais de “áreas mulher”, sem muitos recursos, endossos políticos e por conta de âmbitos consultivos e de realização de diagnósticos e estudos especializados, no melhor dos casos, mas sem possibilidades de transversalização do enfoque de gênero no desenho e instrumentalização principal (mainstreaming) das políticas agrárias nacionais. É um discreto avanço para três ou quatro décadas, segundo cada caso nacional de existência em áreas estatais especializadas na promoção de direitos à igualdade entre mulheres e homens, dada a vitalidade, persistência e qualidade de liderança dos movimentos sociais e dos movimentos de mulheres desde a década de 1960 nessa região. Eles inseriram paulatinamente, com crescente intensidade, as demandas de igualdade de gênero no espaço da opinião pública, fazendo conhecer suas agendas reivindicatórias e também, mesmo que tardiamente, suas visões sobre o benefício coletivo de incorporar a igualdade de gênero como variante e indicativo de modelos de desenvolvimento rural com uma base social mais ampla e, por fim, mais sustentável nos meios rurais. Portanto, por essa visão é que se exige a adoção de estratégias mais eficazes para inserir o enfoque da igualdade de gênero em cada aspecto do desenho das políticas agrárias dos países da região do Mercosul, assim como na avaliação de seus impactos e no monitoramento de sua implementação, não só Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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como meras extensões de frases que incluam a palavra gênero e que dificilmente se operacionam de forma universalizada como o conjunto de normas gerais ou ao programa do qual derivam. Mas apelar somente aos Estados, por intermédio de suas políticas específicas para a atividade agrária, e a sua extensão normativa não é suficiente: é necessário começar a estudar como o mercado de ativos patrimoniais agrários e seu principal âmbito de mobilidade e intercâmbio é um protagonista decisivo no aprofundamento das desigualdades de gênero no acesso, uso e controle dos insumos agrícolas. Seguindo em importância no modo de produção de assimetrias e desigualdades de gênero está a organização sexual do trabalho agrário familiar – variável transversal a toda a estrutura socioagrária mas que, especialmente nos setores médios (AFC) e altos do âmbito rural, são os menos estudados na perspectiva de gênero, de onde podemos evidenciar que são motores de produção, transmissão e sustentação de desigualdades baseadas na ordem de gênero de tipo patriarcal. O mercado de fatores produtivos agrários também é o maior responsável pela produção, sustentação e transmissão de desigualdades baseadas no pertencimento étnico, na escala produtiva, na orientação da perspectiva geracional, entre outros indicadores que se intersectam e interatuam. Por isso, deveria ser um âmbito de estudo pelos cientistas sociais preocupados em analisar e sistematizar desigualdades.

O PESO DA ATIVIDADE AGRÍCOLA NA REGIÃO A matriz agroexportadora comum dos Estados membros do Mercosul e em grande parte de seus associados14 mostra, em

14 A incorporação recente da Venezuela ao Mercosul – primeiramente a do Chile de maneira associada – e a introdução pendente de ratificação do Estado Pluri-

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sua persistência, quão dificultoso é desprimarizar as balanças comerciais das economias da região, apesar das lideranças políticas progressivas e neodesenvolvimentistas que predominam nos países signatários nessa etapa particular. Esses perfis são consequência de políticas comerciais comuns que, desde a década de 70 do século 20, relançaram, em muitos casos mediante golpes de Estado cívico-militares, os modelos primário-exportadores anteriores à etapa de industrialização por substituição de importações em meados do século 20, os quais haviam delineado, no século 19, a inserção desses Estados aos mercados internacionais recém-consolidados em seus processos de independência. A modernização agrária chegou à região entre as décadas de 1940 e 1960 como pedagogia política da Revolução Verde originada nos países centrais em consequência da transferência de maior invisibilidade dada às mulheres em seu protagonismo no desenvolvimento rural, por considerá-las parte inseparável das famílias e da mera reprodução da população nos meios rurais. O paradigma de ação da extensão rural chega até nossos dias, tendo a “família” como um local de interesses diferenciados que se expressam por meio do chefe de família, destinatário quase exclusivo de todas as prestações oriundas das políticas e programas governamentais, especialmente aqueles orientados à assistência técnica e extensão rural. nacional da Bolívia são as economias nacionais que irão colorir a predominância de economias agrícolas de exportação como características comuns dos Estados fundadores do Mercosul e também considerada nesta análise os seus associados. Embora ambos os produtos combustíveis agrícolas e minerais permaneçam dominantes, em todos os casos a característica comum da balança comercial é fortemente ponderada para mercadorias, ou seja, mesmo que a economia seja primária em alguns setores, nos últimos anos o Brasil e a Argentina alcançaram os artigos de origem industrial (MOI), por vezes, amarrados nos percentuais de origem agrícola (MOA) exportados, mas não em preços obtidos (forex) nos volumes.

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A extensão rural é o “catecismo” da Revolução Verde, processo desenvolvido desde meados do século 20 no Ocidente e, por sua vez, como produto histórico, foi e é a possibilidade de adoção do pacote tecnológico e especialmente da transformação de mentalidades e identidades, buscando erradicar a identidade do agricultor familiar, substituindo-a pela de empresário agrário. A mudança de identidade é necessária para substituir uma concepção da atividade agrária como projeto geracional de vida familiar e, portanto, com uma relação mais próxima da preservação do solo e das formas de produção mais amigáveis com o entorno ecológico por uma concepção da atividade agrária como negócio (business) e nas zonas rurais como um âmbito de obtenção de rentabilidade, como poderia acontecer com uma fábrica ou qualquer outro espaço físico. Sua difusão até o sul global foi promovida por agências agrotecnológicas dos EUA, e sua chegada coincidiu, em alguns casos, com governos que chegaram ao poder de fato por via autoritária e por golpes de Estado que, no entusiasmo, adotaram a missão de promover a modernização agrária, especialmente como essa tarefa era auxiliada por linhas de financiamento internacional, convênios de colaboração técnica e científica com os EUA. Assim se criaram institucionalidades estatais nessa etapa, condenada à tarefa da transferência de conhecimentos e tecnologia agropecuária e à extensão rural. As ideias dominantes nos estudos rurais e nas políticas agropecuárias consideravam as mulheres (e continuam fazendo em grande medida) integrantes exclusivas dos núcleos familiares que, com exceção de alguns casos, desenvolviam tarefas prediais tanto na pecuária como na agricultura propriamente dita, fazendo-o em caráter de “ajuda familiar”, e não em sua dimensão de produtoras e trabalhadoras rurais. As instituições de assistência técnica e extensão rural do Brasil e da Argentina refletem nessa etapa essa concepção, imGênero, desenvolvimento e território

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pulsionando a criação de programas como Hogar Rural do Inta e Clube de Mães, surgidos na etapa da Associação de Crédito e Assistência Rural (Acar) e continuadas nas etapas iniciais da Emater (1971) e pelos projetos Bem-Estar Social da Embrater a partir de 1975, que tiveram como objetivo a capacitação vinculada à domesticidade da atividade das mulheres, cuidado dos filhos e filhas, cuidado dos homens da família por meio de cursos de cozinha, tecelagem e fiação, produção de conservas de alimentos, cuidados com animais de granja etc. O relançamento do projeto político e econômico regional de inserção nos mercados mundiais, antes provedores de matérias-primas entre as décadas de 1960 e 1970, que poderíamos sintetizar na expressão “celeiro do mundo”, teve o protagonismo das elites proprietárias, que veicularam seu programa de desenvolvimento por seus encarregados de negócios implantados no poder político e institucional dos Estados, apesar de nem sempre estarem graças ao violentamento das instituições democráticas. Também nessa etapa se produz um acesso significativo das mulheres de setores médios da agricultura, dada a difusão das tecnologias químicas de controle de fertilidade e as conquistas sobre reconhecimento de direitos no espaço público, a educação superior, o trabalho qualificado – em suma, um projeto de vida para as mulheres, além da maternidade e constituição de uma família. Se bem que nas universidades os estereótipos de gênero se reproduziram na “escolha” de carreiras seguidas pelos homens (ciências exatas, aplicadas, tecnológicas, engenharias etc.) e mulheres (ciências e disciplinas vinculadas ao cuidado dos outros, pedagogia, comunicação, humanidades, artes etc.). As que, em sua minoria, chegam às ciências agrárias vão impugnando, apesar de timidamente, essa visão hierárquica e dual baseada em estereótipos de gênero de ordem patriarcal sobre os quais se baseiam os pressupostos desses campos de conhecimento. Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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No processo de recuperação da democracia formal em nossos países, foi significativa, especialmente na década de 1980, a visão política que orientou uma visão comum do desenvolvimento econômico: foi a que conhecemos como neoliberalismo, fortemente consolidado nos anos 1990 e que aprofundou um modelo de desenvolvimento rural orientado para fora e focando suas ações promocionais nos parques tecnológicos que possibilitam uma agricultura de tipo empresarial de grande escala fortemente baseada na inovação biotecnológica, maquinário de ponta, acesso de capitais, insumos químicos e na alta qualificação de gestores que se organizam em redes associativas de negócios verticais e horizontais que conhecemos sob o termo de agronegócios agribusiness (GRAS; HERNANDEZ, 2013).

GRAVIDADE DO PARADIGMA ANDROCENTRISTA LIBERAL DO MARXISMO GENDER BLIND NAS POLÍTICAS PÚBLICAS E NOS DEBATES DAS ORGANIZAÇÕES RURAIS

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Embora muito do paradigma neoliberal de desenvolvimento agrário permaneça vigente na visão não só das decisões políticas, mas especialmente nas agremiações que representam o setor privado de média e grande escala da produção agrária, o que se destaca é que ele está bem presente em muitos acadêmicos/as, investigadores/as e técnicos/as que continuam nutrindo-se de categorias epistemológicas arcaicas e androcêntricas. Como exemplo, temos as teorias econômicas neoclássicas para produzir conhecimento técnico especializado, especialmente evidente nas entidades estatais autárquicas orientadas à transferência, investigação e inovação em matéria de produção agrária, que são referência essencial para as decisões relativas à extensão rural às políticas agrárias de diferentes jurisdições, Estados nacionais e subnacionais. Gênero, desenvolvimento e território

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Esse último ponto é importante em relação às assimetrias de gênero, já que a teoria econômica neoclássica,15 de enorme influência nas carreiras universitárias de ciências agrárias na região, é um marco de ideias que tendem a naturalizar as diferenças entre homens e mulheres como agentes econômicos, sejam ou não do âmbito rural. Nessa perspectiva, homens e mulheres simplesmente “pactuariam”, ou seja, escolheriam se desenvolver em mundos distintos – o público remunerado e reconhecido e o doméstico de trabalho não remunerado e não reconhecido –, especializando-se naquilo em que suas diferenças biológicas lhes permitiriam obter vantagens comparativas. “As inversões especializadas e a alocação do tempo, assim como as vantagens comparativas, devidas a diferenças biológicas, implicam que os homens casados se especializem no mercado e as mulheres casadas com o lar” (BECKER, 1981, p. 43). Mas essa especialização em diferentes trabalhos, em esferas produtivas separadas para homens e mulheres, implica vantagens e desvantagens para uns e outros. A desvantagem mais evidente é que, quando termina o contrato conjugal ou mesmo o convívio, os homens continuam no mercado de trabalho assalariado ou produtivo no geral, e muitas mulheres se vêm no cenário de empobrecimento abrupto, com a responsabilidade econômica adicional de sustentar os filhos e filhas. Essa explicação na eleição “natural” das mulheres em investir no capital humano doméstico, desinteressando-se no investimento no capital humano para o mercado, está errada, já que 15 No livro Treatise on the Family (1981), um dos líderes dessa escola importante de pensamento, Gary Becker, argumenta que a divisão sexual do trabalho histórico responde a “diferenças biológicas, em parte, à diversidade de experiências, diferem porque diferentes investimentos em capital humano” (BECKER, 1987, p. 30). Esse seria o resultado de um acordo voluntário entre homens e mulheres e que “As mulheres tradicionalmente delegam aos homens que fornecem alimentos, abrigo e proteção, enquanto os homens geralmente delegam às mulheres nutrir e cuidar dos filhos e manter a casa” (BECKER, 1981, p. 46).

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a população economicamente ativa de nossos países mostra que a maior qualificação média é possuída pelo setor feminino.16 Isso tem suas raízes na economia política clássica, onde Adam Smith, no século 18, considerava completamente inútil instruir as mulheres nas coisas que não fossem úteis à administração da casa e ao desempenho de seu rol exclusivamente doméstico. Toda essa harmonia entre homens e mulheres nos núcleos de convivência que utilizam sabiamente as vantagens comparativas, afirmando que suas diferenças biológicas lhes concedem “complementariedade”, pactuando-os como iguais – harmonia que seria racional e altruísta –, Becker a transporta como analogia desde a organização sexual do trabalho familiar à divisão internacional do trabalho quando afirma, no mesmo livro fundamental para a teoria neoclássica, Nova economia da família, que é o mesmo modo como o norte global se “especializa” em produzir bens industriais tecnológicos com alto valor agregado por suas vantagens comparativas de capital científico e técnico, enquanto o sul global se “especializa” em vender commodities de baixo valor agregado às “vantagens comparativas” de seus recursos naturais. Nunca foi tão explícita a contradição entre a ideia que propõe a escola neoclássica de “complementariedade” pactuada entre iguais e a profunda assimetria, hierarquia e desigualdade que expressam em suas implicações diretas. As metáforas de gênero finalmente são poderosas porque constituem uma pedagogia da desigualdade a toda a estrutura 16 Na verdade, no Uruguai e na Argentina, a maioria das matrículas nas universidades é do sexo feminino, considerando-as como um todo; mas dentro das “escolhas” de carreira, preconceitos de gênero dominam e as mulheres se sobrerrepresentam nas disciplinas de cuidados, comunicação, arte e ensino, enquanto estão sub-representadas em tecnologia, nas ciências exatas e até mesmo com um intervalo menor e são uma minoria nas ciências naturais, especialmente em ciências agrárias.

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social e à ordem hegemônica global, que exerce largamente a aceitação aos locais domésticos de onde se nutrem. Sul, natureza, povos de pele escura, pobres e mulheres são igualmente vistos como dependentes, passivos e desvalidos em oposição binária ao norte como gerador e líder de bens tecnológicos e industriais, povos ricos, homens brancos igualmente vistos como competitivos, predominantes, autônomos e de alto valor social. Para os neoclássicos, a família está inserida especificamente no nível de microeconomia, tem uma função de utilidade conjunta e um chefe de família altruísta que tomaria as decisões em nome do grupo familiar de maneira que maximizaria o rendimento da atividade concorrente dos membros. Em termos agrários, isso se expressa na simultaneidade e superposição das figuras de produtor/chefe da exploração/chefe de família rural incorporadas no homem adulto do núcleo familiar de forma individual e hierárquica. É evidente o arcaísmo e a inadequação dessas teorias para serem aplicadas nas estruturas agrárias da região que, além de considerar em sua visão só as mulheres casadas, e estas como passivas e dependentes perpétuas, se baseiam em um só modelo conjugal biparental e familiar nuclear que deixa de fora todas as demais formas de família, como aquelas encabeçadas por mulheres, atualmente em crescente expansão em todo o Ocidente, como também as famílias polifuncionais e de “montagem”, em crescimento em todos os setores sociais e típicas dos setores populares. Sem dúvida, essas teorias seguem como base epistemológica da formação profissional agrária em todos os níveis em nossos países, especialmente quando se concentram na organização familiar da produção e trabalho agrário, forma predominante em termos quantitativos em toda a região do Mercosul, assim como na economia agrária e muito especialmente no extensionismo rural, o que explica em grande parte as dificulDiálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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dades para reconhecer a contribuição de homens e mulheres como atores agrários e de igual valor e interesse no conjunto social, político e institucional. Nas correntes críticas, como a institucionalista da teoria econômica, aparece com mais clareza o peso da vida social, pondo em destaque como as construções sociais e as formas criadas pelas instituições localizam as pessoas em diferentes posições de poder, dando-lhes vantagens segundo condições de sexo, classe e etnia para tomar decisões. Põem em evidência, ainda, que não há um nível estritamente privado nem para a família, nem estritamente público para o mercado e para o Estado. Ou seja, questionam de plano a caracterização neoclássica dos indivíduos como agentes econômicos que realizam escolhas livres e condicionadas só por suas preferências (NANCY FOLBRE, 1986; NAYLA KABEER, 1994; BINA AGARWAL, 1994), incorporando as variáveis contextuais que determinam em grande parte essas escolhas “individuais” com base em estereótipos, preconceitos, discursos normativos, religiosos, culturais, jurídicos etc. e em particular com base em uma ordem de gênero em que sujeitos homens e mulheres são socializados desde que nascem. Se bem que a maioria das críticas – não feministas – à análise neoclássica assume as diferenças de gênero em nível micro e não logra incluí-las nos níveis médio e macro, pois lhes parece inconcebível esse tipo de análise em campos em que não se veem as pessoas concretas (TODARO, 2006). Esse é mais um problema de insuficiência teórica, metodológica, epistemológica ou operativa para incorporar o enfoque de gênero como variável, como indicador, como “fotografia” mais aproximada em âmbitos que se mostram como pretendidamente neutros ou abstratos, mas que não o são em absoluto, como mostram os censos e estatísticas agrárias. Todo tipo de amostragem é elaborada com base em questionários de seleção de informação a ser coletada, pelo que também estão forGênero, desenvolvimento e território

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temente caracterizados por seus desenhos de instrumentos construídos baseados em fontes que representam o conjunto real de pessoas, insumos e energias valoradas no tempo e que implicam funcionamento e sustentação de um sistema produtivo agrário nacional. É necessário construir um marco conceitual que supere a mera extensão de um conhecimento construído sobre pilares androcentristas, abrangendo mais que uma mudança conceitual a camponesas, produtoras, chacareiras, empresárias rurais, de forma estendida, como geralmente ocorre quando o assunto é discutido em nível regional sobre o tema com propostas por ativistas e especialistas “de gênero”, assim como o eco das lideranças de movimentos e decisões estatais, especialmente na institucionalidade do Mercosul, que oferece uma ampla visão regional inapreciável para a observação comparativa e sistêmica. Isso é facilmente verificável na leitura sistematizada de documentos, estudos e legislação dos países da região, quando se aborda o tema “gênero” como se fosse equivalente a “mulher/es”, como essência da identidade feminina estereotipada, uniformizada, igualando todas as mulheres que habitam e produzem no meio rural, desconhecendo que nesse âmbito há mulheres com diferentes interesses, perspectivas e identidades e em distintos estratos socioagrários, e que por isso estão inseridas de forma também diferenciada na produção agrária. Que interesses e perspectivas comuns podem ter uma camponesa e uma produtora de uma grande escala produtiva? Ter órgãos sexuais femininos não torna idênticas as mulheres e muito menos uniformizam suas expectativas e interesses. Outro reforço à subalternação que é usada habitualmente é o reforço da identidade sexuada nas denominações das categorias ocupacionais e de status produtivo agrário no geral, quando se trata de mulheres, pondo-as como “mulher/es camponesa/s”, “mulher/es produtora/s”, mulher/es rurais”, reforDiálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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çando que o principal a ser tratado é a identidade sexuada, e em segundo plano a identidade ocupacional. Não ocorre o inverso, ou seja, tratando-se de homens não se utilizam as expressões homem/ns rural/is, homem camponês, homem produtor, homem assalariado etc.; nessa ordem de coisas, o masculino se identificaria como a norma (produtor, camponês, chacareiro etc.), e o feminino como a exceção a esta (GÁLVEZ, 2004, p. 77). No entanto, é incipiente a incorporação de matrizes de pensamento da economia institucionalista crítica e de outras correntes heterodoxas que superem o binômio teoria clássica/teoria marxista, em que se repartem influências as quais se correspondem nas ciências agrárias e nos estudos de desenvolvimento rural, compartilhando ambos sua resistência ao incorporar o enfoque de gênero em sua vertente epistemológica e metodológica. O fator comum entre os paradigmas liberais, neoliberais e marxistas – muito influentes na formação profissional agrária e sua projeção nas decisões e ações de funcionários/as e técnicos/as dos ministérios e instituições públicas agrárias – é que possuem um traço comum de não poder ver os desequilíbrios que originam as desigualdades e injustiças de gênero, os quais atravessam a toda a estrutura agrária nos sistemas produtivos agrários da região. Sua cegueira para a questão de gênero aprofunda o traço androcêntrico no reconhecimento dos atores agrários e de suas contribuições. Para Lourdes Beneria (2003), “a transformação é difícil por mexer com prejuízos fortemente instalados e desafiar formas arraigadas de gerar conhecimento, de teorizar e fazer ciência”. As políticas agropecuárias da história agrária contemporânea regional têm construído os homens dos meios rurais, especialmente aqueles descendentes da imigração europeia desde a segunda metade do século 19, como os atores agrários protagonistas, tendo por defeito a sua dependência em relação Gênero, desenvolvimento e território

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à sua localização nos núcleos familiares que subalterniza as mulheres rurais. Por fim, “o produtor e sua família” são a denominação usual nas normas e políticas agrárias dos países da região, obviamente subsumindo as mulheres à categoria de habitante das zonas rurais e integrante de núcleos familiares rurais e, em proporções bem minoritárias, reconhecendo-as somente por defeito como produtoras, camponesas, chacareiras ou empresárias rurais quando esse status não pode ser concebido, prima facie, a um homem do núcleo familiar ou empresarial.

CONCLUSÕES Que lições podem ser extraídas desses processos institucionais, políticos, econômicos e seu impacto na produção teórica que os expressa? A produção agrária nacional, seja voltada ao mercado interno ou externo, tem uma razão de ser primordial desde os tempos do neolítico superior: a alimentação humana. Sem consumo alimentício não existiria a atividade agrária, mesmo que nas últimas décadas cresça a sua utilização sucedânea com combustíveis alternativos como o biodiesel e o combustível à base de álcool de cana-de-açúcar na região do Mercosul. No entanto, a alimentação de milhões de pessoas não é um ato meramente privativo no interior das famílias, semelhante a um gesto amoroso cuja responsabilidade e exigência é geralmente esperável das mulheres na perspectiva da provisão e consumo; nem redutível à ação estatal de uma pasta ministerial na perspectiva da produção agroalimentícia; nem livre do jogo de forças do mercado em nenhuma de suas quatro fases: produção, distribuição, comercialização e consumo. A alimentação diária, permanente, ótima, saudável e de acordo com as pautas culinárias de cada lugar para milhões Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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de cidadãos em um espaço nacional ou regional – nesse caso, de mais de 300 milhões de pessoas, considerando o Mercosul ampliado – é a primeira condição material e cotidiana da existência de um país, já que se trata da existência biológica de sua população. E esse objetivo é primordial para a existência de um Estado e de um mercado. Em alguns momentos da história universal, onde se apresenta o paradoxo de que nunca se produziu tanto alimento com os avanços na produtividade e tolerância às adversidades climáticas graças à incorporação de avanços tecnológicos de terceira geração na atividade agrícola de grande parte do mundo, e também se verifica uma maior quantidade de seres humanos padecendo de déficits alimentares e importantes parcelas da população sofrendo de fome enquanto a dissenso se mantêm cifras mundiais espetaculares de produção agrícola (FAO, 2013), constata-se que os poderes públicos devem interferir nos desajustes que produzem as desigualdades em toda a cadeia, desde a produção agrária até o acesso à população. E todas as desigualdades produzem desequilíbrios. Contemplar desigualdades transversais como as de gênero é um vetor de muita importância por sua capacidade de atravessar vertical e horizontalmente regiões, estruturas e atividades. A visão neoliberal sobre a questão alimentícia se centra na ideia de “segurança alimentar” basicamente com estímulos monetários, de transferência tecnológica e de promoção fiscal aos agricultores pelas transferências estatais e em nível de ingresso da população consumidora em relação à estabilidade desejada dos preços dos alimentos, que também devem ser inócuos. As restrições para esse enfoque reducionista e neoclássico estariam dadas, fundamentalmente, pelo ingresso dos indivíduos, os preços das mercadorias e o tempo disponível. Essa visão própria dos organismos internacionais do multilateralismo, com ingerência nas políticas agrícolas dos países membros do Sistema de Nações Unidas, deixa de fora uma Gênero, desenvolvimento e território

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complexidade tão grande de fatores e de variáveis que demorou a ser contrastada precisamente desde as organizações rurais que representam os setores agrários subalternos até a chamada soberania alimentar. Nas palavras das organizações promotoras, A Soberania Alimentar defende o direito dos povos a

alimentos nutritivos e culturalmente adequados, aces-

síveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e o direito de decidir seu próprio sistema alimentar e produtivo. Situa os que produzem, distribuem e consumem alimentos no coração dos sistemas e das políticas

alimentares, acima das exigências dos mercados e das

empresas. Defende os interesses deles e inclui as futuras gerações. Oferece uma estratégia para resistir e desarticular o comércio livre e corporativo e o regime alimentar

atual, para englobar os sistemas alimentares, agrícolas,

pastoris e de pesca até sua gestão por produtores e produtoras locais. A Soberania Alimentar dá prioridade às

economias locais e aos mercados locais e nacionais, outorga o poder aos camponeses e à agricultura familiar,

à pesca artesanal e ao pastoreio tradicional e coloca a

produção alimentária, a distribuição e o consumo sobre a base de sustentabilidade ambiental, social e econômica. A Soberania Alimentar promove o comércio transpa-

rente, que garanta ingressos dignos para todos os povos, e direitos aos consumidores para controlar sua própria

alimentação e nutrição. Garante que os direitos de aces-

so e gestão da nossa terra, de nossos territórios, nossas

águas, nossas sementes, nosso gado e a biodiversidade estejam nas mãos daqueles que produzem alimentos. A Soberania Alimentar pressupõe novas relações sociais

livres de opressão e desigualdades entre os homens e Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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mulheres, povos, grupos étnicos, classes sociais e gerações.17

A soberania alimentária é uma ideia, um programa político e uma visão do desenvolvimento rural que gravita entre as organizações que representam os setores subalternos da agricultura da região e que participam plenamente da atividade institucional do Mercosul, mas não é uma visão desejável pelo resto das estruturas agrárias no caso nacional da região. No geral, os setores médio e grande da atividade rural seguem o agrobusiness como o modelo de produção agrária desejável, e as economias exportadoras como modelos nacionais de desenvolvimento econômico. Assim como se constata nos debates e políticas agrárias dos países da região, há uma sorte de desdobramentos da conotação “políticas agropecuárias”, como aquelas destinadas à melhoria da produtividade, da escala, da inovação tecnológica, da comercialização em grandes ciclos e da rentabilidade, em desdobramento com “políticas para o desenvolvimento rural” focadas no alívio da pobreza rural e subsistência de comunidades rurais carentes, comercialização assistida pelo Estado e de pequeno ciclo, pequena agricultura familiar, agroecológica e também incipientemente “juventudes” e “mulheres rurais”. Essa dupla lógica implica uma assimetria hierarquizada e é pertinente refletir, já que permite que enfoques como o de gênero se restrinjam à pobreza rural, como se as desigualdades entre homens e mulheres fossem só um problema verificável em setores subalternos e não estivessem presente nos setores médios e altos – mesmo se reconhecendo, em alguns casos, que o enfoque de gênero é transversal a toda a estrutura e atividade agrária e econômica no geral, mas põe a resguardo os setores 17 Excerto do Livre Presidente da Soberania Alimentar (CLSA) da Universidade Nacional de La Plata (UNLP). Disponível em: .

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médio e grande da agricultura de qualquer demanda pela igualdade, seja ela de gênero, etnia, territorialidade, sustentabilidade ecológica, sustentabilidade geracional, entre outras.

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DESENVOLVIMENTO REGIONAL NA PERSPECTIVA DE GÊNERO NA REGIÃO NORTE BRASILEIRA: LIMITES E POSSIBILIDADES18 Cynthia Mara Miranda Milena Fernandes Barroso

INTRODUÇÃO

O

debate sobre o desenvolvimento no mundo e particularmente no Brasil tem, nos últimos anos, se qualificado e sido objeto de interpretações diferentes e opostas. Essas interpretações vão desde as que consideram o desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico até as que o questionam. Estudos de gênero, por seu turno, têm apontado tanto o impacto negativo do desenvolvimento na vida das mulheres como a importância deste com base na incorporação das demandas dos movimentos de mulheres e da perspectiva de gênero nas políticas públicas. Segundo o Global Gender Gap Report (2014), um índice produzido pelo Fórum Mundial Econômico que avalia a disparidade de gênero no mundo, o Brasil ocupa a 71ª posição no ranking da disparidade de gênero. O índice avalia, desde 2006, as diferenças entre homens e mulheres na área da saúde, educação, economia e indicadores políticos. Na atual edição da pesquisa (2014), foram avaliados 142 países. Apesar de 18 O artigo é resultado de uma pesquisa sobre desenvolvimento regional e políticas públicas de gênero na Região Norte do Brasil, realizada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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ter mantido a igualdade entre os gêneros nas áreas de saúde e educação, o Brasil perdeu posições em relação à pesquisa realizada em 2013 nos índices que medem a participação feminina na economia e política. Outros fatores têm incidido sobre a desigualdade de gênero, como é o caso da desigualdade regional. Levando em consideração que o Brasil é um país de vasta extensão territorial, nota-se que as cinco regiões brasileiras (Norte, Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste), além de apresentarem especificidades decorrentes de aspectos culturais e ambientais, apresentam também diferenças sociais e econômicas que têm origem na própria formação “colonial” brasileira, as quais hoje decorrem, entre outros motivos, do lugar que o Brasil ocupa na relação com os países centrais e internamente entre regiões. As regiões brasileiras (ou complexos exportadores) foram sendo delineadas ao longo da história do país, tornando algumas regiões – por exemplo, o Sudeste, economicamente mais forte e com capacidade de diversificação da sua base produtiva mais acelerada. Por outro lado, a Região Norte, em razão do movimento diferente da acumulação capitalista tanto no passado como no presente, tem se realizado por meio do extrativismo vegetal e mineral, ou seja, prioritariamente como fornecedora de matéria-prima e espaço de reprodução da força de trabalho. Além do desenvolvimento econômico desigual entre as regiões brasileiras, o acesso da população às políticas públicas tem sido diferenciado, e isso também se reflete nos obstáculos que se apresentam para a interiorização das políticas públicas de gênero, aqui tratadas especificamente como políticas públicas para as mulheres. Contudo, cabe considerar que as políticas públicas de gênero não se referem apenas às mulheres: dizem também respeito às demais identidades sexuais. Tais políticas buscam, dessa maneira, reduzir as desigualdades entre os distintos sujeitos sociais em razão da sua sexualidade. O gênero, assim, seria apenas uma das Gênero, desenvolvimento e território

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dimensões que têm reforçado a desigualdade das mulheres; outras dimensões, tais como classe, raça, etnia e geração, têm sido intercruzadas, reforçando a desigualdade em relação aos homens, mas também entre as próprias mulheres. As demandas das mulheres brasileiras decorrentes dessa desigualdade passam a ser institucionalizadas pelo governo federal na primeira década do século 21. Políticas públicas para as mulheres voltadas à igualdade entre os gêneros foram impulsionadas graças ao diálogo entre movimentos feministas e governo federal, destacando-se: a criação da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres e a reestruturação do Conselho Nacional de Direitos das Mulheres em 2002, a realização de três conferências nacionais (2004, 2007 e 2011) para discutir as políticas públicas para as mulheres e formular planos de políticas públicas para as mulheres com participação popular, entre outras políticas e estratégias. No entanto, cabe mencionar que tais ações estão distantes de atender, de forma mais ampla, toda a diversidade de seu público-alvo por várias razões, entre elas as desigualdades regionais. O orçamento da SPM, por exemplo, não chega a 0,1% do orçamento geral da União, e, nas demais áreas, as ações e projetos (mães da paz, saúde materno-infantil), em sua maioria, reforçam os papéis tradicionalmente atribuídos às mulheres. Avançar na interiorização das políticas públicas para as mulheres requer considerar as diferenças e desigualdades regionais como aliadas da igualdade entre os gêneros – o que implica um desafio maior, tendo em vista que o debate sobre o desenvolvimento regional na perspectiva de gênero é algo recente no país. O governo federal realizou, em 2013, a I Conferência Nacional de Desenvolvimento Regional, com o objetivo de formular princípios e diretrizes para uma nova política regional brasileira. No relatório final da conferência, que resultou em 21 propostas prioritárias, apenas duas fazem referência indireta Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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às questões de gênero: as relativas à valorização dessa diversidade no âmbito das gerações, etnias e raças. A principal proposta, que trataria do desenvolvimento regional na perspectiva de gênero – respeito às diversidades regionais e de gênero –, ficou fora da lista das 21 prioridades em destaque, por baixa votação. Ela estabeleceria critérios para a distribuição de recursos que fortaleçam as regiões com menor índice de desenvolvimento e equidade de gênero. Assim, poderia incentivar a organização produtiva das mulheres e tornar as políticas públicas mais acessíveis. Como é possível notar, a temática ainda enfrenta obstáculos para ser pautada no âmbito governamental. O enfoque do gênero no desenvolvimento regional busca satisfazer as necessidades das mulheres partindo de uma análise das relações nas comunidades e instituições que questionam o modelo de desenvolvimento dominante. Ele propõe uma alternativa de desenvolvimento socialmente referenciado, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática, aliado à busca da igualdade entre os gêneros e o combate ao racismo e sexismo. A desigualdade regional evidencia-se como um problema que tem impacto na vida da população e das mulheres de forma particular. É fato evidente a diferença na qualidade de vida das mulheres que vivem nas Regiões Sul e Sudeste do país se comparada com as demais regiões do Brasil. Elas têm sido mais exitosas no acesso aos direitos sociais básicos, ao passo que aquelas residentes na Região Norte19 têm enfrentado mais 19 A Região Norte concentra o maior percentual de mulheres sem rendimentos: 32,1%, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2012). Já na Região Sul, o percentual cai para 25,3%, e é de 28,7% no Sudeste. O rendimento médio das mulheres brasileiras que compõem a população economicamente ativa é de apenas R$ 904,00 na Região Norte, enquanto o das mulheres da Região Sudeste é de R$1.307,00, sendo esta a melhor média nacional (PNAD, 2012).

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obstáculos para conseguir o acesso à educação, ao trabalho ou aos serviços públicos de modo geral. Os sete Estados que compõem a Região Norte pertencem à área denominada Amazônia Legal e correspondem a 59% do território brasileiro. Além dos Estados da Região Norte, o território amazônico ocupa parte do Estado do Maranhão e abriga 56% da população indígena brasileira. Para contornar os problemas sociais presentes na Região Norte do país, mulheres têm se organizado em distintos movimentos. Diferentemente das Regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, que são consideradas de vanguarda no que se refere à emergência dos movimentos feministas brasileiros no período da ditadura militar brasileira, especialmente nos anos 1970 e 1980, a Região Norte caracteriza-se por uma atuação mais marcante dos movimentos de mulheres, nos quais se destacam os movimentos de trabalhadoras rurais, quebradeiras de coco, ribeirinhas, mulheres indígenas, pescadoras, parteiras tradicionais, entre outros. Não existe consenso quanto à distinção entre movimentos de mulheres e movimentos feministas. Consideramos, assim, no contexto da Região Norte, que os movimentos de mulheres, muitas vezes, não se intitulam feministas, embora suas práticas estejam alicerçadas no que Ávila (2001) destaca como sendo um pensamento crítico e uma prática política – objetivos estes do feminismo. Assim, para compreender a organização das mulheres na Região Norte, adotamos a nomenclatura dos movimentos de mulheres, embora não neguemos a existência de uma diversidade de movimentos feministas na região. Nela estão os movimentos de mulheres que apresentam uma atuação mais intensa e maior incidência nos espaços políticos institucionais que contribuem para pôr em pauta a importância da transversalidade da perspectiva de gênero nos conselhos estaduais e municipais de direitos e nas demais políticas públicas. Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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Pensar o desenvolvimento regional na perspectiva de gênero é um exercício reflexivo que implica indagar até que ponto as mulheres da Região Norte, especialmente dos Estados do Amazonas e Tocantins, têm sido exitosas na sua busca pela reinvenção de novas formas de fazer política e participar do desenvolvimento regional.

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES NA PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL20 As políticas públicas para as mulheres consistem em um conjunto de programas e ações que contribuem para a redução das desigualdades, das opressões e das relações de exploração vivenciadas pelas mulheres. Tais políticas têm como objetivo transformar essa realidade, exigindo do Estado que atue de forma a promover a autonomia das mulheres e a justiça social. Diferente das políticas públicas de gênero que incluem mulheres, homens, transgêneros e outras identidades sexuais, com foco na discussão dos papéis socialmente construídos, as políticas públicas para as mulheres reconhecem a centralidade das desigualdades de gênero na vida das mulheres. As políticas para as mulheres, contudo, não são excludentes das políticas de gênero. Embora pareça ter uma perspectiva restrita, pontual, de menor abrangência, ao atender a demandas das mulheres, elas expressam a permanência de históricas desigualdades sociais no Brasil, pois partem da análise de que 20 A versão premilinar da discussão apresentada aqui sobre as políticas públicas para as mulheres na perspectiva do desenvolvimento regional foi apresentada por Milena Fernandes Barroso no Seminário Internacional Fazendo Gênero 10, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, no ano de 2013, no Grupo de Trabalho “Desenvolvimento local, desenvolvimento regional e o direito das mulheres: um quebra-cabeça da descentralização”, coordenado por Cynthia Mara Miranda e Denyse Côté.

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nossa realidade se estrutura por um tripé de desigualdades: gênero, classe e raça/etnia. As políticas públicas também expressam correlações de forças, por isso só garantem direitos na medida em que as mulheres atuam como sujeitos durante todo o seu processo – da elaboração à execução. É nesse sentido que, para os movimentos feministas brasileiros, as políticas públicas para as mulheres têm o papel de promover “cidadania e considerar os movimentos de mulheres como sujeitos legítimos e com autoridade para interlocução com o Estado e tal perspectiva contribui para a transformação das relações de gênero” (AMB, 2004, p. 11). No Brasil, ainda na década de 1980, por meio da luta dos movimentos feministas, foram implantadas as primeiras políticas públicas para as mulheres, entre as quais: programa de assistência integral à saúde da mulher, educação não sexista e antirracista nos parâmetros curriculares do ensino básico, defesa dos direitos das mulheres lésbicas, delegacias da mulher, casa-abrigo para mulheres vítimas de violência, entre outras. No bojo do processo de lutas pela redemocratização do país à época, os conselhos foram criados, constituindo-se como os primeiros organismos governamentais de defesa dos direitos das mulheres. Em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher é criado, vinculado ao Ministério da Justiça, ampliando a participação política das mulheres, tornando visível, naquele cenário, as demandas do movimento de mulheres por direitos e políticas públicas para a promoção da igualdade (OLIVEIRA, 2010, p. 31). As questões de gênero e o desenvolvimento regional, contudo, só aparecem nos anos 1990 como alvo de abordagens dos organismos de governança mundial, tais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Fórum Mundial Econômico (FMI). Como exemplos, podemos citar a Conferência de Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento ocorrida Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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no Cairo (Egito), em 1994, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing (China), em 1995. Destarte, as duas primeiras não tratavam especificamente da condição das mulheres, porém foram centrais na legitimação das feministas como atores importantes da política internacional e para inclusão do debate em torno das questões de gênero. Os governos nacionais, pela participação nessas conferências, começaram a assumir compromissos com foco na redução das desigualdades de gênero pela assinatura de acordos internacionais e da aprovação de legislações progressistas. Contudo, poucas experiências vieram a torná-los uma realidade, pois a década de 1990 configura-se com o avanço do neoliberalismo por intermédio da vulnerabilização do trabalho e da erosão do sistema de proteção social, caracterizada por um enxugamento dos gastos públicos no social em detrimento dos investimentos e ajustes econômicos e da “desresponsabilização” do Estado para com as políticas públicas, especialmente via terceiro setor e privatização destas. Por outro lado, os organismos internacionais, como FMI e Banco Mundial, instituem uma nova linguagem hegemônica a partir da apologia à “cidadania”, direcionando suas ações sob a imagem de uma sociedade harmoniosa e de colaboração entre os indivíduos. Essas mudanças de cunho neoliberal vão repercutir diretamente nas políticas públicas e, conforme aponta Oliveira (2010, p. 37), apesar da diplomacia brasileira ter assumido uma postura avançada nas Nações Unidas, não houve mudanças

substantivas na política interna. Manteve-se a condição subalterna e desprestigiada em que estavam os organismos governamentais de defesa dos direitos da mulher.

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A redução das desigualdades regionais no Brasil, por sua vez, está presente na Constituição de 1988 e, posteriormen-

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te, tem como marco a Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), instituída pelo Decreto nº 6.047, de 22 de fevereiro de 2007, a qual tem como objetivo “a redução das desigualdades de nível de vida entre as regiões brasileiras e a promoção da equidade no acesso a oportunidades de desenvolvimento, e deve orientar os programas e ações federais no Território Nacional”. É evidente a ausência das discussões em torno das políticas públicas para as mulheres no campo teórico e jurídico do “desenvolvimento regional”. Essa relação aparece como um eminente campo dos estudos de gênero pautado pelas feministas a partir da década de 1990, com ênfase no questionamento ao modelo de desenvolvimento dominante e na luta por justiça socioambiental. O conceito de desenvolvimento regional dentro da concepção de um desenvolvimento integral se refere ao território em si próprio apreendido em sua posição geográfica, social, política ou econômica. As mudanças em curso nas estruturas do Estado, impulsionadas pela atuação dos movimentos sociais, têm buscado a descentralização do poder e a criação de mecanismos de governança, inclusive da sociedade civil, para influenciar no desenvolvimento regional (MIRANDA; BARROSO apud MILHOMENS et. al., 2015). Faustino (2010), ao refletir sobre essa questão a partir de uma perspectiva feminista crítica, aponta que pensar as opressões nos faz pensar também que, mais do que construir uma nova concepção de desenvolvimento, nosso maior desafio é a construção de outras racionalidades, de outras formas de conceber a vida e a história, apresentando a humanidade com diferentes espaços e temporalidades. A introdução da pauta feminista no campo das discussões sobre “desenvolvimento” denuncia, além das desigualdades entre as classes sociais, que “riqueza e pobreza, participação e poder têm cor e sexo” (FAUSTINO, 2010, s/p.). Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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A discussão sobre o desenvolvimento está presente no II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, lançado em 2008. Ao destacar em seu capítulo 6 o “Desenvolvimento sustentável no meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de justiça ambiental, soberania e segurança alimentar”, reconhece, como um dos eixos prioritários de intervenção pública na área de promoção da igualdade de gênero, a questão do desenvolvimento sustentável na perspectiva de gênero e a consequente ampliação da justiça ambiental. Na II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, foram eleitas e aprovadas prioridades relacionadas à necessidade da universalização do direito à terra e à água, garantia da segurança alimentar e de uma educação ambiental que inclua ações de capacitação para o controle social, sempre na perspectiva de se garantir visibilidade e reconhecimento à contribuição das mulheres em todos esses espaços, bem como o respeito às diversidades étnico-raciais, de orientação sexual, geracionais, entre outras (BRASIL, 2008). Referido tema conseguiu centralidade na III Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, ocorrida em 2011, em que o eixo central foi a “questão do desenvolvimento”. A conferência teve início com o painel intitulado: “As mulheres no momento atual do desenvolvimento econômico e social – desafios de um projeto de país com igualdade entre mulheres e homens e sustentável”. A discussão deu-se em torno da necessidade de problematizar o conceito de desenvolvimento, de um conceito que só priorizava a dimensão econômica, para pautar um conceito que valorizasse a dimensão social e ambiental. Tânia Barcelar, uma das conferencistas, sugeria que o conceito de desenvolvimento sustentável é um conceito em construção e que interessa ao Brasil, porque

temos uma grande dívida social e um enorme patrimônio ambiental. Ao Brasil interessa que a sociedade 80

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brasileira tenha, como conceito de desenvolvimento, a busca de um desenvolvimento que equilibre econo-

mia, investimentos sociais e respeito ao meio ambiente (BARCELAR, 2011, p. 22).

Para os movimentos feministas, conforme defende a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) apud Oliveira (2010, p. 42), o modelo atual de desenvolvimento traz inúmeros problemas: bloqueia as possibilidades de autonomia econômica para as mulheres e reforça a exploração sobre seu trabalho. Para as trabalhadoras rurais, limita as possibilidades de acesso à terra. Para as urbanas, dificulta o acesso à moradia. A todas as mulheres, ameaça com um contexto cada vez mais conservador, racista, excludente e violento, posto que se apoia na competição e lei do mais forte, além de aprofundar a mercantilização, tudo transformado em mercadoria: os bens comuns da natureza, os serviços públicos, as pessoas, a sexualidade, a vida. A construção de um conjunto de estratégias institucionais voltadas para a redução das desigualdades de gênero nas últimas décadas não tem rompido com a lógica, tampouco com as regras impostas pelo modelo de desenvolvimento vigente. A pauta dos movimentos sociais, inclusive os movimentos de mulheres e feministas, tem buscado a redução das desigualdades, por meio da descentralização do poder e da criação de mecanismos de participação para influenciar na elaboração de políticas públicas com vistas no desenvolvimento das cidades e regiões. Contudo, apesar da institucionalização da proposta de “políticas para as mulheres” e do aumento das mulheres nos espaços da gestão pública nas diversas esferas governamentais, as estruturas do Estado continuam a reproduzir uma cultura política que exclui as mulheres dos espaços de poder e secundarizam as políticas públicas para as mulheres. Tais situações são comprovadas na precarização dos Organismos de Políticas Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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para as Mulheres e na descontinuidade de ações e projetos, como veremos na análise dos governos da Região Norte – especialmente dos governos do Amazonas e Tocantins. Em um contexto em que as políticas públicas para as mulheres são precárias, as estruturas do Estado não têm favorecido a descentralização e o fortalecimento de mecanismos de controle social; pensar as políticas públicas de desenvolvimento regional na perspectiva de gênero implica dar um passo adiante para reduzir as distintas formas de desigualdades, como as de gênero, classe e étnico-raciais na Região Norte.

AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES NO AMAZONAS O Amazonas é o maior Estado brasileiro, com área de 1.570.745,680 km², e é a segunda unidade federativa com maior população da Região Norte, com seus 3,5 milhões de habitantes. No entanto, apenas dois de seus municípios possuem população acima de cem mil moradores: Manaus, a capital, com 1,8 milhão de habitantes, que concentra 60% da população do Estado, e Parintins, com pouco mais de 102 mil habitantes. Segundo o último Censo brasileiro (IBGE, 2010), o Amazonas é habitado por 3.483.985 pessoas, sendo que 2.755.490 residem em área urbana e 1.730.806 em área rural. Desse conjunto, 1.753.179 são homens e 1.730.806 são mulheres. O Estado do Amazonas é conhecido mundialmente pela sua beleza e reservas naturais, bem como por sua diversidade cultural e étnica. Segundo informações divulgadas no Portal do Governo do Estado (http://www.amazonas.am.gov.br/) em janeiro de 2014, o IBGE identificou 65 grupos indígenas no Estado, o que permite afirmar que o Amazonas detém a maior população indígena do país. 82

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O deslocamento ao Estado é feito principalmente por via fluvial ou aérea, fato que dificulta a mobilidade dentro do próprio Estado em razão da demora do transporte por embarcações (via fluvial) e do alto custo por via aérea. Além da geografia que impõe grandes desafios à atuação dos movimentos de mulheres, diversos problemas sociais oriundos do isolamento, dos conflitos de terra, das condições precárias dos serviços de saúde, das elevadas taxas de desemprego, são cotidianos na vida das mulheres, como os advindos da feminização da pobreza, dos postos de trabalho precarizados, da sub-representação das mulheres nos cargos de decisão, da violência contra as mulheres e da mortalidade materna. Entre os movimentos de mulheres presentes no Estado, podemos citar o Fórum Permanente das Mulheres de Manaus, a Articulação de Mulheres do Amazonas (AMA), o Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas), o Movimento de Mulheres por Moradia Orquídea (MMMO) e o Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia Legal (Mama). Tais movimentos atuam na defesa dos direitos das mulheres em diversas áreas, abrangendo desde lutas mais gerais dos movimentos de mulheres até a afirmação da identidade amazônica. No Amazonas também está situada a maior parte das organizações de mulheres indígenas, entre as quais se destacam a Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (Amarn), a Associação das Mulheres Indígenas de Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié (Amitrut) (SACCHI, 2003) e a Associação das Mulheres Indígenas Sateré-Mawé. Apesar da atuação dos movimentos de mulheres, as políticas para as mulheres no Amazonas são precárias e não as atendem de forma ampla. O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim/AM) é um dos Organismos de Políticas para as Mulheres com quem os movimentos conseguem dialogar. Mesmo que esse diálogo não tenha resultado em mudanças sigDiálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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nificativas na política, é um espaço importante para a relação entre Estado e sociedade civil. Foi criado em 13 de novembro de 2006 com o objetivo formular e implementar diretrizes e programas visando a eliminar as formas de discriminação que atingem as mulheres, assegurando-lhes a plena participação no plano político, econômico, social e cultural. O conselho é composto por seis representantes do poder público, entre eles uma da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas e cinco da sociedade civil, estas últimas indicadas pelo movimento de mulheres. A indicação das representantes da sociedade civil pelo movimento de mulheres pode ser considerada importante conquista. Em 2012, o Estado criou uma Coordenadoria Estadual dos Serviços de Atenção em Defesa dos Direitos da Mulher, que centralizava as ações da política estadual de atenção à mulher. No dia 8 de março de 2013, Dia Internacional da Mulher, foi anunciada a criação da Secretaria Executiva de Políticas para as Mulheres, e em 20 de março foi implantada, vinculada à Secretaria de Governo do Amazonas (Segov), porém com pouco destaque no governo. Dentro desse contexto, não podemos deixar de mencionar o papel importante que os movimentos de mulheres tiveram para sua criação, pois havia a necessidade de um organismo que pensasse políticas específicas para as mulheres amazonenses. Apesar de a secretária que assumiu a pasta ter trajetória nos movimentos de mulheres, o diálogo com o governo estadual não resultou em avanço no que tange às políticas públicas para as mulheres. A transição entre os governos também tem prejudicado a manutenção das políticas para as mulheres, principalmente quando não há continuidade nas ações e falta reconhecimento quanto à importância da política em questão. Outro fator que inviabiliza o acesso das mulheres às políticas públicas é a centralização dos serviços especializados na 84

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capital, muito embora a Secretaria Executiva tenha como objetivo interiorizar a rede de serviço. No Amazonas existe a Rede de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher, da qual fazem parte: a Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher (DCCM), a Casa-Abrigo, a Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar, o Serviço de Apoio Emergencial à Mulher (Sapem), o Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Savvis) e o Núcleo de Atenção à Mulher Vítima de Violência, todos localizados em Manaus, capital do Estado. Esse fato acaba inviabilizando o acesso aos serviços para as mulheres que vivem em municípios mais distantes em decorrência das especificidades regionais, bem como do número insuficiente de instituições para atender a demanda. O fato de os espaços de governança descentralizada e de os serviços de atenção e defesa dos direitos da mulher no Amazonas se concentrarem em Manaus, gerenciados por órgãos do governo do Estado, deixa descoberta uma população de 808,5 mil mulheres residentes nos outros 61 municípios do Estado. Entre as demandas dos movimentos de mulheres no Amazonas estão a implementação da rede de atendimento para mulheres vítimas de violência e a criação de comissões dentro do conselho estadual (divididas por área: saúde, segurança, educação etc.) para que as políticas possam ser efetivadas e interiorizadas com maior agilidade. Atualmente, quatro municípios do Amazonas possuem Conselho Municipal dos Direitos da Mulher: Manaus, Manacapuru, Coari e Parintins, este último em fase de estruturação. A ausência dos conselhos nos demais municípios, 58 no total, prejudica a interiorização das políticas para as mulheres, bem como a criação de um diagnóstico sobre os principais problemas das mulheres nesses municípios. Em setembro de 2012, foi realizada no Amazonas a I Conferência Estadual de Desenvolvimento Regional. Em nenhum dos cinco princípios e das 20 diretrizes presentes no relatório Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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final da conferência foi registrada qualquer referência às desigualdades de gênero e/ou propostas no sentido de superar tais desigualdades. Essa invisibilidade, somada ao retrato das políticas públicas e ações voltadas para as mulheres, revela que, no Amazonas, apesar dos avanços em nível nacional no campo da participação, os movimentos de mulheres pouco têm influenciado para a incorporação da perspectiva de gênero nas políticas e programas governamentais (MIRANDA; BARROSO apud MILHOMENS et. al., 2015). Diante do cenário pouco otimista para a implementação de projetos que possam reduzir as desigualdades (de gênero, classe, étnico-raciais) a partir da promoção de políticas públicas para as mulheres, pensar políticas públicas de desenvolvimento regional com a perspectiva de gênero no Estado seria uma etapa posterior ainda distante da realidade e que só poderá ser desenhada com a participação dos movimentos de mulheres.

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O Tocantins, Estado mais novo da Região Norte (criado em 1988), é constituído por 139 municípios e apresenta 1.373.551 habitantes. A população urbana do Tocantins é composta por 1.090.241 moradores, enquanto a população rural é de 293.212 habitantes. O Estado divide-se em 18 regiões administrativas ou territórios de planejamento e uma região metropolitana. A capital, Palmas, possui 223.817 habitantes, e a segunda maior cidade do Estado é Araguaína, com 149.313 pessoas, conforme pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2012. O Estado apresenta uma diversidade de movimentos de mulheres, nos quais podemos destacar: Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais, Movimento das Mulheres da Via Gênero, desenvolvimento e território

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Campesina, Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu, Movimento das Mulheres Quilombolas, Movimento de Mulheres Pescadoras e, mais recentemente, têm emergido movimentos feministas no âmbito das universidades, ligados a organizações internacional e nacional, como é o caso da Marcha Mundial das Mulheres e a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). Segundo Miranda e Barroso (apud MILHOMENS et. al., 2015), As mulheres tocantinenses também têm buscado a organização via associações para dar maior visibilidade às

suas reivindicações como Associação Regional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio (Asmu-

bip); a Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais

Quebradeiras de Coco Babaçu do Tocantins (AMTQC), Associação das Pescadoras de Axixá, Associação das Ri-

beirinhas da Região do Bico do Papagaio, a Comunidade Sete Barracas (Casb); a Associação de Mulheres do Buriti (AMB), entre outras.

A violência doméstica tem sido um problema social marcante na realidade do Estado, e por essa razão os movimentos de mulheres têm se articulado para cobrar ações pontuais do Estado para o fortalecimento da Rede de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher. De acordo com o Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (2013), resultado da investigação sobre a situação da violência contra a mulher no Brasil e apuração de denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência, a Rede de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher no Estado do Tocantins é precária. Assim como no Estado do Amazonas, os serviços da rede estão mais concentrados na capital. Palmas conta com duas Delegacias Especializadas em Crimes Contra a Mulher, uma Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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Casa-Abrigo e uma Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar. Os movimentos de mulheres, diante da limitação de ações do Estado para reverter a desigualdade entre os gêneros, têm atuado nos poucos espaços existentes que ainda possibilitam uma interlocução com o Estado, como é o caso dos conselhos de direitos. O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim), que é um desses espaços de interlocução dos movimentos, foi instituído pela Lei nº 1.141, de 8 de março de 2000, com o objetivo de assegurar à mulher tocantinense as condições ideais de liberdade, com igualdade de direitos e de plena participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do Estado e da Nação. O Cedim atua de forma precária, sem estrutura, uma vez que o Estado não dispõe de uma Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres para dar suporte às ações do conselho; não há espaço de funcionamento próprio nem realiza projetos de grande impacto na vida das mulheres. Segundo Miranda e Barroso (apud MILHOMENS et. al., 2015), O conselho é composto por 26 membros e, desses, cinco vagas são destinadas à sociedade civil, que são representadas atualmente pela Liga Feminina de Combate ao

Câncer, Associação de Mulheres Negras e Quilombolas,

Casa da Mulher 8 de Março, Movimento Estadual dos Di-

reitos Humanos e Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Tocantins (Fetaet).

O Estado, que tem 139 municípios, apresenta apenas 19 conselhos municipais em funcionamento. O atual Organismo Estadual de Políticas para as Mulheres (OPMs) é uma Supervisão de Assistência à Mulher que atua com muita dificuldade, pois falta orçamento para desenvolver as ações e não há estrutura ade88

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quada para seu funcionamento. A supervisão é vinculada à Secretaria Estadual de Defesa Social e foi criada em maio de 2014. Nota-se, nos últimos oito anos, que as políticas para as mulheres têm perdido espaço dentro da estrutura governamental. Durante o final do mandato de Marcelo Miranda (PMDB), quando cassado em 2009, a Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres havia sido criada via decreto, porém não foi institucionalizada. Com a cassação de Miranda, Carlos Henrique Amorim (PMDB) assumiu o governo e não institucionalizou a secretaria, criando apenas uma Superintendência Estadual de Assistência à Mulher, que funcionou até o final de seu mandato. Quando o governador Siqueira Campos (PSDB) assumiu o governo, em janeiro de 2011, a superintendência foi reduzida a uma Diretoria Estadual de Assistência à Mulher. Com a renúncia de Siqueira Campos, em abril de 2014, mais mudanças ocorreram. O governador que assumiu o cargo, Sandoval Cardoso (Partido Solidariedade), reduziu o status da diretoria, tornando-a uma Supervisão de Assistência à Mulher. Além da supervisão, o Estado possui três Centros de Referência e Atendimento às Mulheres em Situação de Violência em funcionamento (Natividade, Augustinópolis e Arraias) e onze Delegacias de Atendimento às Mulheres, sendo duas localizadas na capital. As demais delegacias estão distribuídas nos municípios de Araguaína, Augustinópolis, Colinas, Guaraí, Gurupi, Miracema do Tocantins, Paraíso do Tocantins, Porto Nacional e Tocantinópolis. O município de Palmas tem Centro de Referência e Atendimento às Mulheres próprio, gerido pela Superintendência da Mulher, Direitos Humanos e Equidade (Sumudhe), graças a uma parceria firmada com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. No Estado, apenas três municípios apresentam em sua estrutura governamental uma Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres: Colinas, Paranã e Tocantinópolis. A capital Palmas Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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conta apenas com uma Superintendência da Mulher, Direitos Humanos e Equidade (Sumudhe) ligada à Secretaria Municipal de Integração Social e Defesa do Consumidor. O diálogo dos OPMs com os movimentos de mulheres no Estado acontece por meio do Cedim. Tendo em vista a fragilidade do Organismo Estadual de Políticas para as Mulheres, evidenciada pela falta de estrutura e orçamento, pela invisibilidade que ele tem perante o aparato estatal em geral, nota-se que os movimentos de mulheres não têm obtido êxitos nesse diálogo. O Estado tem se destacado nacionalmente nos últimos anos pelo agronegócio, se tornando o maior produtor de grãos da Região Norte do Brasil, sobretudo de arroz, milho, mandioca, feijão e soja. Contudo, o desenvolvimento dos empreendimentos gerados pelas grandes obras e pelo agronegócio, que são amplamente difundidos no Estado, não considera a sustentabilidade como componente do desenvolvimento – ponto esse questionado pelos movimentos de mulheres. Eles têm questionado o tipo de desenvolvimento que não prioriza as demandas das mulheres, pois, para os movimentos, investir nesse tipo de desenvolvimento não melhora a qualidade de vida da população, já que tais investimentos concentram a renda. Não há política de desenvolvimento regional no Estado que incorpore a questão da sustentabilidade e a perspectiva de gênero. No relatório final da I Conferência Estadual de Desenvolvimento Regional, ocorrida em 2012 no Tocantins, por exemplo, nota-se a ausência de princípios e diretrizes que se atentem a considerar as relações de gênero no desenvolvimento regional.21 21 No que se refere às 95 diretrizes, somente duas destacam as questões de gênero. São elas: assegurar a participação das populações historicamente excluídas (mulheres, crianças/adolescentes, idosos e povos e comunidades tradicionais) nas políticas de desenvolvimento e adotar mecanismos de redução das desigualdades regionais e intrarregionais, considerando as dimensões ambientais, culturais,

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Não é possível reduzir a desigualdade entre os gêneros sem considerar as especificidades regionais, as opressões decorrentes de classe, raça, etnia, geração e orientação sexual, bem como a necessidade de investimentos dos governos estaduais e municipais na pauta das mulheres. A desigualdade entre os gêneros é um problema social de ampla proporção no Brasil, e assim as políticas públicas para a redução das desigualdades não podem depender única e exclusivamente de recursos do governo federal. Alavancar o desenvolvimento regional implica reconhecer que as mulheres têm um papel fundamental nesse processo. Assim, resta aos movimentos das mulheres, diante da escassez de OPMs, continuarem atuando para que oportunidades políticas sejam criadas. Atuar no controle social ou por meio de ações de advocacy é uma estratégia imediata para redução das desigualdades, pois pode favorecer mudanças estruturais, que possam extrapolar os limites institucionais e mudar de fato a condição das mulheres. A abertura do diálogo com o Estado é necessário para ampliar o orçamento para as suas demandas nos planos plurianuais. Isso consequentemente fortalecerá as políticas para as mulheres e reduzirá as desigualdades de gênero, especialmente nas regiões fora do eixo Sul-Sudeste. O desenvolvimento regional na perspectiva de gênero ainda está distante da realidade dos Estados do Amazonas e Tocantins. Os movimentos de mulheres vivenciam constrangimentos políticos na atuação e intervenção nesses Estados para criação de organismos de governos descentralizados com força política para mudar a ação do Estado em prol das mulheres. econômicas, sociais, de gênero e étnico-racial, “dado que mesmo nas regiões mais ricas existe má distribuição de renda”, afirma o documento.

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Iniciativas de políticas estaduais e municipais que rompam com as desigualdades são raras na Região Norte. Quando existem, geralmente estão associadas às políticas do governo federal. O fato de a Região Norte ser uma das que mais carecem de investimentos do governo federal impõe obstáculos ao acesso das mulheres aos serviços públicos. Elas enfrentam cotidianamente problemas advindos da feminização da pobreza, dos precários postos de trabalho, da sub-representação nos cargos de decisão e dos altos índices das violências às quais estão expostas – além de lidar com diversas intempéries sociais oriundas do isolamento, dos conflitos de terra, das condições insatisfatórias dos serviços de saúde, do acesso limitado à qualificação ou das elevadas taxas de desemprego. Mudar esse quadro implica reconhecer que as desigualdades regionais também podem aprofundar a desigualdade entre os gêneros. Assim, o diálogo entre movimentos de mulheres e governos é de fundamental importância para a construção de políticas públicas que tenham a capacidade de identificar as necessidades específicas que as mulheres têm em decorrência da região em que vivem.

REFERÊNCIAS ARTICULAÇÃO DE MULHERES BRASILEIRAS. Articulando a luta feminista nas Políticas Públicas. Recife, 2004.

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PARTE 2 AUTONOMIA DAS MULHERES E O ACESSO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS

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O SURGIMENTO DE MICROEMPREENDIMENTOS DE MULHERES RURAIS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA Denyse Mello Marianne Schmink

INTRODUÇÃO

N

a década de 1980, microempreendimentos surgiram na Amazônia brasileira como uma alternativa para promover a geração de renda para as populações rurais, com base na valorização dos produtos florestais e contribuindo para o esforço de redução do desmatamento (ANDERSON; CLAY, 2002). Os microempreendimentos rurais surgiram dentro de grupos organizados de pequenos agricultores, indígenas, extrativistas florestais, pescadores e descendentes de escravos (“quilombolas”). E várias dessas iniciativas econômicas foram formadas por mulheres rurais que se organizaram em grupos e criaram seus microempreendimentos coletivos, possuindo como característica comum o uso de produtos de recursos naturais (GOMES; AMARAL, 2005). Nas décadas de 1970 e 1980, a política de desenvolvimento do governo federal para a Amazônia resultou em desmatamento e degradação florestal, na expulsão de populações rurais para as áreas urbanas, gerando assim conflitos de terra, tanto pela desapropriação quanto em decorrência da especulação (SCHMINK; WOOD, 1992). Essa dinâmica resultou em aumento da pobreza entre as pessoas que dependem da floresta e Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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na precariedade de serviços prestados para sua subsistência (SHANLEY et. al., 2008). Durante os anos 1990, com a descentralização da política de desenvolvimento da Amazônia, começou-se a devolver os direitos sobre a terra às comunidades rurais. Nesse processo, comunidades retomaram as práticas de acesso a produtos florestais e testaram formas de manejo florestal. Esse processo foi visto como importante na proteção das florestas por utilizar práticas de uso sustentável, referendadas pelos meios científicos como um importante modelo de repartição de benefícios econômicos (SHANLEY et. al., 2008). Além disso, políticas ambientais começaram a ser trabalhadas com o pressuposto de que a conservação ambiental passa pela valorização econômica da floresta, incluindo valor de uso direto, que é a valorização dos produtos florestais, e de uso indireto, relacionado com a proteção ambiental, como melhoria do fluxo de chuvas e redução da concentração de carbono na atmosfera (PEARCE; TURNER, 1990). Nesse contexto, diversas categorias de populações rurais na Amazônia, como seringueiros, indígenas e pequenos agricultores, organizaram-se por intermédio de movimentos sociais, realizando protestos e lutas de forma a garantir direitos à terra (HOCHSTETLER; KECK, 2007; SCHMINK; WOOD, 1987). A aliança dos seringueiros e povos indígenas com grupos ambientalistas nacionais e internacionais trouxe a força necessária que influenciou na mudança de projetos das grandes agências de desenvolvimento internacionais, como o Banco Mundial, que financiaram muitos dos projetos de desenvolvimento brasileiros, os quais foram responsáveis pelos danos ambientais e sociais descritos. Novas prioridades e garantias nos empréstimos foram estabelecidas para proteger os direitos territoriais dos povos e promover a conservação dos ecossistemas naturais (CHARNLEY; POE, 2007). O ápice dessa estratégia foi uma proposta inovadora, um novo tipo de direito fundiário, Gênero, desenvolvimento e território

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que reconhecia o direito de uso à população local manejadora da floresta. A criação de reservas extrativistas combinou a estratégia de direitos humanos com a conservação da floresta, gerando benefícios econômicos e sociais para os seus residentes (ALLEGRETTI; SCHMINK, 2009). Nesse mesmo bojo de propostas e processos sociais que uniram populações tradicionais com conservação da natureza, os microempreendimentos surgiram como uma estratégia econômica para responder à necessidade de melhorar a renda com base em produtos da biodiversidade da floresta. Havia três razões principais para apoiá-lo. O primeiro é a introdução de produtos florestais na cadeia de mercado verde, que ligava as estratégias de conservação com os consumidores ambientalmente conscientes, os quais pagariam melhores preços por produtos florestais, elevando assim a renda das populações rurais por meio da venda desse tipo de produtos – o que consequentemente aumentaria o valor da floresta. A segunda é que microempreendimentos autogestados pelas comunidades rurais teriam o potencial para agregar valor aos produtos, bem como gerar emprego nas comunidades locais, quebrando a dependência dos agentes mercantis intermediários, processo considerado como causador do baixo preço de produtos florestais. Por fim, os microempreendimentos criariam poder econômico para as populações locais marginalizadas, o que possibilitaria a elas disputarem o poder político com as oligarquias rurais tradicionais (ANDERSON; CLAY, 2002; HECHT, 2007). Dessa forma, a emergência de microempreendimentos rurais na Amazônia brasileira está intimamente ligada ao debate ambiental e sua inter-relação com a gestão dos recursos naturais da floresta, às políticas ambientais, ao manejo florestal comunitário e aos mercados alternativos (ANDERSON; CLAY, 2002; CHARNLEY; POE, 2007; VARGAS, 2000). Eles são instrumentos que, potencialmente, podem permitir a manutenAutonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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ção das florestas pelo uso sustentável e econômico, gerando renda para as comunidades florestais e estabelecendo novas e diferentes formas de construir relações entre a floresta e as comunidades, além de criar novos mercados para os produtos, assim como novos produtos para mercados (ANDERSON; CLAY, 2002; VARGAS, 2000). Por outro lado, muitos fatores têm influenciado as mulheres rurais a iniciar um microempreendimento. As expectativas de obter respeito, reconhecimento como agentes econômicos, oportunidade de aumentar a renda familiar, entre outras, estão movendo as mulheres para um campo anteriormente dominado por homens (JALBERT, 2000). Autores como Cooper (1981) e Bullough (2006), estudando quais os fatores que levam as mulheres a criarem uma iniciativa econômica, identificaram que se trata de uma consequência das condições pessoais e ambientais, sendo esses os fatores explicativos para o estabelecimento de microempreendimentos pelas mulheres. Natividade (2009) analisou o surgimento de microempreendimentos de mulheres no Brasil e descobriu que a necessidade das mulheres de entrar no mercado de trabalho, sem perder os seus deveres familiares, foi a principal motivação para a criação de microempreendimentos, onde era possível ter um horário mais flexível do que em um emprego formal. Outros estudos, como o de Bullough (2006), Bock (2004) e Cliff (1998), ressaltaram que as mulheres desempenharam um papel importante na expansão dos microempreendimentos, especialmente para atividades não agrícolas, contribuindo para a economia rural. Além disso, destacam que as motivações das mulheres para criação de iniciativas foram centradas em questões sociais, pois o lucro ainda se apresenta como um objetivo secundário. A Amazônia e suas peculiaridades oferecem um ambiente único, que potencialmente influencia no surgimento de microGênero, desenvolvimento e território

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empreendimentos. Segundo Gnyawali e Fogel (1994), as combinações de condições socioculturais ambientais e políticas influenciam a disponibilidade de serviços de assistência e de apoio que direcionam o processo de start-up de empreendimentos. Nesse contexto, este artigo analisa os fatores que influenciaram o surgimento de microempreendimentos de mulheres rurais na Amazônia, incluindo a expansão do movimento de mulheres brasileiras, a crescente atenção ambiental para as florestas da Amazônia, a evolução das políticas públicas para as mulheres no Brasil e as ações de instituições incubadoras no apoio à criação de microempreendimentos. Baseando-se em 150 empreendimentos coletivos de mulheres rurais da Amazônia, o trabalho mostra como as características peculiares das mulheres, nesses microempreendimentos, habilita-as a serem classificadas como empreendedoras sociais.

CONCEITO E METODOLOGIA Cooper (1981) sugere um framework para explicar o surgimento de pequenas empresas baseado em três fatores gerais: características pessoais do empreendedor, serviço prestado pelas instituições incubadoras e o ambiente favorável. Enquanto as características pessoais do empreendedor podem ser importantes, para a análise desenvolvida neste artigo não se dispunha de informações suficientes sobre o contexto pessoal das mulheres participantes em microempreendimentos da Amazônia. Desse modo, a análise centra-se nas duas outras dimensões, cujas informações estão disponíveis: o ambiente favorável e os serviços de incubadoras. A metodologia adotada para estudar a criação de microempreendimentos de mulheres rurais na Amazônia brasileira foi um desafio porque a maioria deles não está registrada, enconAutonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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trando-se dispersa por uma imensa área geográfica, invisível para os livros de estatísticas oficiais. Trabalhos anteriores com microempreendimentos na Amazônia foram compilados por meio de cópias impressas, coletadas diretamente nas organizações em todos os Estados da Amazônia, sobre os quais recebemos autorização para usar. O maior banco de dados sobre microempreendimentos de mulheres na Amazônia, e talvez o único em sua área, produzido pela Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais (RMERA) para os anos de 2003 e de 2008 (organizados pela autora), abrangeu 150 empresas de mulheres rurais registradas em nove Estados da Amazônia: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia, Pará, Maranhão, Tocantins e Roraima. O banco de dados RMERA tinha perguntas sobre características da empresa, sobre seus membros, produção, organização e sobre a organização social, como a participação da União, organização de filiações, técnica e apoio financeiro. O banco de dados foi organizado em Microsoft Access© e os dados foram codificados e importados para o SPSS 20© Statistical Package para realizar as análises estatísticas descritivas.

RESULTADOS

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Entre os elementos relevantes definidos por Cooper (1981) como os fatores ambientais que favorecem os microempreendimentos – elementos que foram adaptados para este trabalho no contexto amazônico com base na literatura analisada –, foram definidas: a expansão do movimento de mulheres, a atenção ambiental para a floresta amazônica, além da evolução de políticas para as mulheres no Brasil e a organização do suporte de incubadoras. Assim como observado por outras organizações, nossa hipótese é de que o surgimento de microempreendimentos de Gênero, desenvolvimento e território

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mulheres rurais na Amazônia brasileira está fortemente ligado ao crescimento das organizações sociais dessas mulheres, que ocorreu desde a década de 1970. Isso tornou possível o surgimento de microempreendimentos, criados e implementados para responder às necessidades das mulheres rurais da região. Quanto à segunda dimensão analisada, tem-se que as condições empresariais para a criação de microempreendimentos de mulheres foram se dando mediante ajustamento estrutural – com políticas neoliberais macroeconômicas, especialmente com a redução de gastos do Estado, com privatizações e com uma economia desregulamentada – que ocorreram na América Latina durante a crise dos anos 1990, com algumas diferenças regionais, dependendo do contexto político, social e econômico (CHANT; CRASKE, 2003). O surgimento de microempreendimentos de mulheres rurais encarna uma nova realidade econômica como uma estratégia para reduzir a desigualdade de gênero e aumentar a renda familiar. Na Amazônia brasileira, a combinação de décadas de crescimento das organizações de mulheres rurais com condições políticas e econômicas ajudou a influenciar a expansão de grupos de mulheres microempreendedoras. Tais fatores são apresentados, na sequência do texto, utilizando os dados dos 150 microempreendimentos, com o intuito de testar as hipóteses do estudo.

EXPANSÃO DO MOVIMENTO DE MULHERES RURAIS O primeiro fator que influenciou a criação dos microempreendimentos de mulheres na Amazônia foi o da organização das mulheres rurais, com o apoio do movimento feminista, das ações da Igreja Católica para organizar grupos de mulheres e pela participação em debates de políticas públicas. Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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Durante a década de 1960 e 1970, o movimento feminista foi ampliado pela articulação entre os grupos feministas, grupos populares e da Igreja Católica para lutar contra o regime autoritário do governo militar brasileiro (SARTI, 2004). Na década de 1980, o movimento feminista se expandiu no Brasil, com forte influência nas esferas políticas e sociais, e os conselhos de mulheres foram criados, trabalhando para inserir a perspectiva de gênero nas políticas e abordar questões de violência contra mulheres (SARTI, 2004). Como estratégia de expansão, o movimento feminista se organizou pela região, compondo os conselhos ou grupos formados no seio de instituições relevantes como igrejas, educação, saúde, entre outros. O objetivo foi o de promover a participação das mulheres na liderança de sindicatos de trabalhadores rurais e federações, trabalhando a pauta de direitos sociais das mulheres. Como resultado, o movimento nacional de mulheres rurais surgiu no Brasil na década de 1980, em associação com o movimento sindical rural. Uma das primeiras conquistas do movimento de mulheres rurais, aliado ao movimento sindical, foi quando a Central Única dos Trabalhadores (CUT) criou um departamento das mulheres, que teve um papel importante na criação do comitê nacional para mulheres trabalhadoras rurais, e estabeleceu cotas de participação para as mulheres no movimento sindical (AMARAL, 2007). Outra ação importante do departamento de mulheres da CUT foi a grande influência nas diretrizes da Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag), o que resultou em forte participação das mulheres rurais na elaboração da Constituição Federal de 1988.22 Suas principais reivindicações eram: o reconhecimento das mulheres agricultoras – e 22 A primeira Constituição Federal do Brasil, na qual apareceu uma política pública específica para lidar com as demandas das mulheres rurais.

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não apenas como empregadas domésticas, mas como trabalhadoras produtivas, com o objetivo de quebrar a invisibilidade do trabalho das mulheres na agricultura; os direitos sociais, especialmente o direito à aposentadoria e ao salário-maternidade; o direito de confederar no sindicato e na Federação de Trabalhadores Rurais, além do direito relativo à saúde das mulheres (HEREDIA; CINTRÃO, 2006). Em 1988, a participação de mulheres rurais amazônicas no primeiro encontro nacional de mulheres rurais da Contag para se preparar para os debates constitucionais contribuiu com a elaboração da pauta, juntamente com outras mulheres rurais brasileiras, em um movimento nacional para trabalhar pelo direito de participar no movimento sindical rural, bem como pela inserção delas no contexto político nacional.23 Nesse contexto, o primeiro esforço foi para o reconhecimento do seu papel como importante agente dentro das organizações de trabalhadores rurais: sindicatos, federações de trabalhadores rurais e associações de bairro. Como resultado, as secretarias de mulheres foram criadas nos estatutos do movimento, formalizando a existência do departamento para trabalhar com suas demandas (AMARAL, 2007). Embora se tratasse de uma fase crucial para a expansão da organização das mulheres rurais, havia muitos conflitos dentro do movimento sindical para buscar reconhecimento da importância de incluir as mulheres como representantes do movimento sindical. Um bom exemplo ocorreu em 1990, em Nova Timboteua, uma cidade no Estado do Pará, onde mais de cem mulheres ocuparam o sindicato durante uma semana para adquirir o direito de participar e poder fazer parte da direção 23 O primeiro encontro nacional de mulheres trabalhadoras rurais ocorreu em 1988, para preparar as mulheres para participar dos debates constitucionais. Nessa reunião havia representantes de todos os Estados e sindicatos rurais, o que ajudou ainda mais a expansão das organizações de mulheres no Brasil.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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na organização sindical (ASSOCIAÇÃO DE MULHERES MARGARIDA BARBOSA [AMMB], 2002). A Igreja Católica, cuja atuação era centrada nos impactos do modelo de desenvolvimento econômico para as famílias rurais da Amazônia, apontava tal modelo como responsável pela pobreza das famílias, com desconsideração dos direitos sobre a terra, e pela geração de conflitos violentos (SCHMINK; WOOD, 1992). A Igreja, com seu movimento de base eclesial orientado pela teologia da libertação, teve uma forte influência na formação dos líderes mais importantes nas áreas rurais da Amazônia, com propostas de lutar por seus direitos pela terra e contra o modelo de desenvolvimento pregado pelo Estado brasileiro. A teologia da libertação foi um movimento formado pela Igreja Católica na América Latina, e especialmente no Brasil durante o regime militar na década de 1960. No contexto de opressão que as pessoas pobres viviam, a teologia enfatizou a libertação social e política como a antecipação da salvação final. A ideia central focava em pessoas pobres de duas maneiras: como objetos de ajuda e benevolência e como protagonistas de sua história e de libertação da opressão, da exploração e da exclusão (BOFF; BOFF, 1987). Uma das ações da Igreja Católica foi a organização das mulheres rurais em torno das necessidades da família, porém sem abordar a desigualdade de gênero no interior da família. Nesse processo, foram estabelecidos diferentes tipos de organizações de mulheres rurais (clubes de mães, grupos de parteiras, grupos de mulheres pastorais, associações de mulheres e movimentos nacionais de mulheres) (AMARAL, 2007). As ações da Igreja contribuíram muito para a organização em torno de iniciativas de produção, bem como para as demandas sociais de mulheres, familiares e comunidades. As mulheres rurais ganharam conhecimento sobre os seus direitos e melhoraram as habilidades produtivas para desenvolver pequenas manufatuGênero, desenvolvimento e território

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ras de produtos dentro de casa. Em muitos casos, esses programas de treinamento resultaram em pequenas iniciativas produtivas com o fim de gerar recursos para melhorar ou manter as ações sociais das comunidades. Consequentemente, as mulheres rurais também aprenderam a se organizar e promover ações comunitárias, porque o trabalho da Igreja também tornou possível às mulheres deixarem o espaço da casa e entrarem na esfera pública, criando novas redes sociais que promoveram a quebra do seu isolamento, dando-lhes a consciência sobre os seus direitos civis (SHANLEY; SILVA; MACDONALD, 2011). As organizações de mulheres, associadas com o movimento sindical rural e grupos religiosos, lutaram pelo reconhecimento delas como trabalhadoras na agricultura e pelo direito à terra, direito à saúde, direito a salário-maternidade, aposentadoria, educação, bem como contra qualquer tipo de discriminação e violência doméstica (HEREDIA; CINTRÃO, 2006). Enfim, todas essas ações promoveram informações básicas sobre direitos civis, melhorando a capacidade das mulheres de participação, que resultou em acesso a direitos e políticas públicas. Durante a década de 1990, direta e indiretamente o movimento feminista e da Igreja Católica, juntamente com outras organizações não governamentais, estimularam iniciativas econômicas como uma estratégia para a inclusão social e econômica das mulheres rurais na área rural da Amazônia brasileira. Eles procuraram, assim, responder aos efeitos negativos da crise econômica na região e do desenvolvimento econômico com base no desmatamento. Durante a década de 1990, o movimento social das mulheres rurais, apoiado pela Federação dos Trabalhadores Rurais, com o apoio de ONGs e da Igreja – Comissão Pastoral da Terra (CPT) – investiu na capacitação de pessoas e organizações para melhorar a produção e o desempenho empresarial na reAutonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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gião amazônica. Em 2000, a Secretaria das Mulheres Rurais da Federação de Trabalhadores Rurais do Estado do Pará, juntamente com o Grupo de Assessoria em Agroecologia na Amazônia (GTNA) e a Federação de Assistência Social e Educacional (Fase) – duas organizações não governamentais –, organizou uma reunião com mulheres rurais envolvidas em microempreendimentos que utilizavam diretamente recursos naturais. Esse evento teve o objetivo de proporcionar a troca de conhecimentos entre as iniciativas, bem como a discussão de articulação e cooperação entre elas. As 70 mulheres rurais representando microempreendimentos de sete Estados da região amazônica indicam que o desmatamento, a falta de valor dado às atividades das mulheres, a falta de recursos financeiros, os baixos preços dos produtos e a pequena capacidade técnica de produção foram fatores críticos que influenciaram o desempenho das iniciativas econômicas (RENDEIRO; GOMES, 2000). Como resultado dessa reunião, a Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais da Amazônia (RMERA) foi criada. A articulação da RMERA expandiu-se para toda a região amazônica, integrando não somente os microempreendimentos, mas também importantes movimentos de mulheres na sua coordenação, como, por exemplo, o Movimento de Mulheres do Nordeste Paraense (MMNEPA) e a Rede Acriana de Mulheres e Homens (RAMH). Em 2003, a segunda reunião teve a participação de representantes de iniciativas das cem mulheres rurais de todos os Estados da Amazônia. Esse evento teve como objetivo criar uma rede de comunicação, elaboração de um programa de treinamento e de negociar com o setor público a respeito das políticas públicas para as mulheres, tais como crédito, assistência técnica e as questões sociais (GOMES; RENDEIRO, 2003). O terceiro encontro ocorreu em 2006, com o objetivo de articular e aumentar a participação de grupos de mulheres envolvidas em microempreendimentos em fóruns políticos Gênero, desenvolvimento e território

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na Amazônia e também na esfera nacional. Elas avaliaram a trajetória da Rede e planejaram dar visibilidade à posição das mulheres rurais no Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) como uma estratégia para ganhar visibilidade para as demandas das mulheres rurais e seus empreendimentos. Essa reunião aconteceu no Rio de Janeiro, em 2006, com a participação de mulheres rurais da Amazônia e de outras regiões do Brasil (VALENTE, 2006). Na realidade, o que era para ser apenas uma reunião para compartilhar suas experiências terminou com a construção de uma rede já no primeiro encontro (2000), onde microempreendimentos das mulheres rurais estabeleceram como missão e estratégia a de trabalhar em conjunto para melhorar as condições para seus empreendimentos. Nessa reunião, elas definiram-se a si mesmas como [m]ulheres que lutam para serem reconhecidas na sociedade, as mulheres que trabalham de sol a sol na agricultura, no extrativismo, em cooperativas, em associações e

nos sindicatos... enfim, para obter o sustento da família [...], as mulheres que lutam para serem reconhecidas e

respeitadas pela sociedade como trabalhadoras que podem alavancar a economia e aumentar a expectativa de vida de cada pessoa na comunidade.

A missão definida para a rede era “consolidar a rede através do intercâmbio de informações, organizar e articular os microempreendimentos das mulheres; e facilitar o intercâmbio entre os mesmos”. O objetivo da rede era o de contribuir para a articulação e a visibilidade dos micro-

empreendimentos das mulheres da Amazônia; treinar as mulheres para ganhar habilidades profissionais em processos de produção, marketing e gestão de microAutonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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empreendimentos, e para contribuir com propostas e implementação de políticas públicas para fortalecer

as organizações de mulheres e igualdade de gênero (RENDEIRO; GOMES, 2000).

Entre as estratégias estabelecidas pela RMERA, estão: a) desenvolver e implementar um programa de treinamento na área comercial, estabelecendo mecanismos para mobilizar e fortalecer o intercâmbio na região e nos Estados; b) reunir informações sobre o status das iniciativas de grupos de mulheres empreendedoras, com destaque para os problemas e perspectivas na busca da promoção de políticas públicas alternativas; c) incentivar e estruturar uma proposta de ações planejadas pelas Secretarias de Mulheres da Federação dos Trabalhadores Rurais dos Estados da Amazônia, visando à consolidação das ligações entre os grupos; e, ainda, e) consolidar vínculos com outras redes e fóruns que discutiam as questões do agronegócio e agroecologia, da assistência técnica e extensão rural, do comércio justo, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável da Amazônia. Ao longo dos últimos dez anos, a RMERA realizou ações para aumentar a participação das mulheres rurais nos movimentos sociais e em fóruns para discutir as políticas públicas voltadas para a promoção de seus interesses. Os principais resultados alcançados podem ser sistematizados da seguinte maneira: I) criação de uma estrutura organizacional com um facilitador que articulava a Amazônia e facilitadores regionais; II) promoção de vários espaços e oportunidades de formação específica para o negócio; III) visibilidade em alguns fóruns e conselhos, como representante de microempreendimentos de mulheres rurais, como, por exemplo, o conselho do programa de política de empreendedorismo federal de políticas de inclusão, o Programa de Geração de Renda e Emprego (PPIGRE), o Conselho 110

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Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e o grupo de Gênero e Agroecologia da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Análise das informações do Banco de Dados da RMERA de 2003 e 2008 mostra a forte relação entre os microempreendimentos das mulheres rurais e o movimento de mulheres: 95% desses microempreendimentos apresentam seus membros participando de organizações de mulheres rurais fortemente ligadas à Igreja ou ao movimento feminista, além de participarem de movimentos sindicais de trabalhadores rurais. Apesar disso, 59% das representantes dos microempreendimentos entrevistadas afirmaram que a ideia de criar um empreendimento foi originada internamente, nos grupos em que elas atuam, e não de uma demanda externa. Isso reforça a ideia da forte relação entre os grupos e as incubadoras, que não conseguem distinguir os efeitos da interação com grupos externos, uma vez que essa criação foi, na maioria das vezes, estimulada por informações baseadas em ações de organização das mulheres: formação, experiência em relacionamentos e participação em eventos promovidos pela Igreja Católica, organizações de mulheres rurais ou urbanas e do movimento feminista. Além da evidência da influência do movimento social de mulheres rurais sobre o surgimento e expansão desses grupos de mulheres integrados no RMERA, eles também se tornaram um grupo com características próprias da Amazônia brasileira. Baseado em Cooper (1981), Dee (2001), Alvord (2004) e Shane (2007), eles compartilham características comuns com empreendimentos sociais: adotam uma missão para criar e sustentar os valores sociais, envolvendo o grupo em um processo de inovação e aprendizado, exibindo a responsabilidade que inclui valor social como resultados (DEES, 2001). Microempreendimentos coletivos de mulheres rurais são empreendimentos sociais, em primeiro lugar, porque o trabalho que fazem não se concentra apenas em critérios econômicos, mas também nos aspectos social, ambiental, político e Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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em esferas culturais. Eles se concentraram em uma variedade de questões sociais, tais como: violência doméstica, direitos à saúde da mulher, gênero, saúde da família, organizações de mulheres; questões econômicas (produção, manufatura, negócios); questões ambientais (reflorestamento, reciclagem, educação ambiental, água potável); questões de política (a participação das mulheres nas políticas públicas, por intermédio da participação em diversos conselhos sobre escolas e saúde, bem como em sindicatos de trabalhadores rurais) e participação cultural na organização de eventos da Igreja Católica. Em segundo lugar, a missão desses microempreendimentos articulados pelas mulheres está relacionada com fatores sociais (Figura 1): 44% das mulheres mencionaram o empoderamento como a principal meta, 29% citaram o fortalecimento das organizações de mulheres, 19% mencionaram o aumento da renda familiar e 8% disseram que seu objetivo era um melhor bem-estar da comunidade. A questão econômica de geração de renda, assim, aparece diluída entre as funções sociais do empreendimento. Figura 1 – Mulheres Rurais – Metas – Microempresas Coletivas.

Fonte: Banco de Dados RMERA (2008), adaptado pelas autoras, novembro de 2013. 112

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ATENÇÃO AMBIENTAL PARA A FLORESTA AMAZÔNICA A atenção ambiental para a conservação da floresta amazônica aumentou no final de 1980, com o trabalho de movimentos sociais contra o modelo de desenvolvimento econômico vigente com base na intensificação do desmatamento implementado na região. Durante a década de 1970, o governo militar brasileiro definiu um modelo do agronegócio para o desenvolvimento rural; naquela época, pecuária e setor empresarial privado, em geral, foram financiados com incentivos significativos e infraestrutura. Essa tendência regional desencadeou um forte processo de grilagem de terra, acompanhado por conflitos pelo acesso e posse da terra (SCHMINK; WOOD, 1987) e também mudou o papel histórico da região amazônica para a sociedade brasileira. Na década de 1980, a crise econômica e a redução do papel do Estado no financiamento que rege o processo exacerbaram a dualidade de modelos de desenvolvimento, com base, em um dos lados, nos pequenos produtores agricultores/extrativistas da floresta e, do outro, em grande escala voltada para exportação da produção. Os resultados incluíram aumento dos conflitos, empobrecimento do meio rural, forte migração para os centros urbanos e mudanças nos padrões de produção e consumo por parte da população rural. Conflito de classes intenso e ausência de governo contribuíram para criar o ambiente para o surgimento de fortes organizações sociais como estratégia para enfrentar o desequilíbrio de poder (ALLEGRETTI, 1990). A noção emergente de profissionais do desenvolvimento e ambientalistas de que o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental deveriam ser ligados entre si abriu as discussões de florestas tropicais, com resultados importantes em dimensões sociais, políticas e econômicas de desenvolvimento da Amazônia (KUSTER et. al., 2006). Talvez a iniciativa Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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mais significativa tenha sido a criação, em 1990, do conceito de reservas extrativistas, pelo qual as populações tradicionais foram reconhecidas como as protetoras florestais, dando o direito à terra para essas populações. Tal modelo especial de posse da terra reforçou a importância do papel das comunidades locais nas estratégias de conservação, por meio da promoção do uso sustentável da floresta (WADT et. al., 2008). O movimento seringueiro criado no Estado do Acre foi o movimento mais importante nesse processo, apresentando uma proposta socioambiental com base em produtos da floresta como um modelo de desenvolvimento alternativo para a região. No início dos anos 1970, no Estado do Acre, os incentivos oferecidos à atividade pecuarista por parte do governo do Estado provocou a expulsão de populações rurais para as áreas urbanas, a especulação de terras e o desmatamento discriminatório das áreas produtivas de borracha. Esse movimento, que constantemente era ameaçado por fazendeiros no Acre, lutou contra o desmatamento dos seringais, contra a transformação da área de floresta em pasto e pelo direito à terra (SCHMINK; CORDEIRO, 2008). Durante o mesmo período, a produção de itens florestais não madeireiros (PFNM) recebeu estímulos de reforço na promoção comercial (DUBEY, 2007) como parte de uma estratégia para desenvolver políticas alternativas para apoiar as iniciativas comunitárias inovadoras (KAINER et. al., 2003). Além disso, a proposta da reserva extrativista proporcionou alianças entre movimentos sociais e ambientais (ALLEGRETTI, 1990). Desde a década de 1990, as políticas públicas brasileiras para o setor ambiental têm-se centrado sobre a importância de agregar valor aos produtos da biodiversidade da floresta. O cenário ambiental pós-ECO 92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, com a estratégia de conservação e uso sustentável das florestas, levou à criação e Gênero, desenvolvimento e território

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expansão de mercados para produtos florestais, especialmente para as florestas tropicais no Brasil (ANDERSON; CLAY, 2002). As mulheres rurais, tradicionalmente vinculadas, boas manejadoras da floresta, apropriaram-se do espaço político que se abriu com as crises ambientais relacionadas ao desmatamento, a fim de obter recursos financeiros e de visibilidade. Nesse contexto, as discussões ambientais, associadas com o desenvolvimento econômico para uma melhor utilização dos recursos naturais, mostraram um novo caminho para as organizações de mulheres rurais indígenas e não indígenas, no sentido de integrar demandas sociais com oportunidades ambientais e alcançar visibilidade como agentes de desenvolvimento sustentável na região, participando nos debates sobre trabalho, conservação e meio ambiente (SIMONIAN, 2001). Isso proporcionou, nesse período, o surgimento de muitas outras categorias importantes de organizações de mulheres rurais que anteriormente não participavam de movimentos sindicais na Amazônia, como o movimento das pescadoras mulheres; movimento de mulheres indígenas; movimento extrativista das mulheres; quilombolas (descendentes de escravos), mulheres em organização; organizações coletoras de coco babaçu e da Articulação de Mulheres da Amazônia (Mama). O Mama visa arepresentar todas as categorias de mulheres que vivem na área rural da Amazônia (SIMONIAN, 2001). Ao mesmo tempo, a sequência de transformações sociopolíticas estava ocorrendo no Brasil, e apoiava em nível local a emergência das organizações de mulheres locais. Dados da RMERA mostram como as mulheres dependem de recursos florestais para as atividades produtivas nas suas iniciativas econômicas. Um total de 88% dos microempreendimentos de mulheres rurais amazônicas estudadas estava trabalhando com matérias-primas da floresta para a confecção de produtos florestais não madeireiros, incluindo artesanato, plantas medicinais, aromáticas, frutas e geleias. As suas caracAutonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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terísticas particulares, incluindo o tempo de trabalho, formas de organização da produção e processos de fabricação estavam relacionadas também com a disponibilidade de matéria-prima florestal. Embora alguns empreendimentos tivessem obtido apoio financeiro, 90% das microempreendimentos de mulheres rurais não tinham acesso a apoio financeiro externo para investir em sua iniciativa. Um total de 60% deles não podiam acessar crédito oficial, ou porque eles ainda trabalhavam no setor informal, ou por não possuírem documentos oficiais exigidos, e os restantes 40% não sabiam como acessar esse tipo de financiamento. Finalizando, os resultados da pesquisa mostraram também que 85% desses microempreendimentos receberam apoio técnico dos movimentos de mulheres, ONGs de mulheres, ONGs ambientais, da Igreja e de alguns setores das universidades da Amazônia.

INSTITUIÇÕES INCUBADORAS

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O apoio das instituições incubadoras é mais um dos fatores fundamentais para o surgimento de microempreendimentos em uma nova região. As instituições incubadoras são empresas, universidades ou qualquer outra organização que têm como objetivo promover as condições de ambiente adequadas para o estabelecimento de novas empresas. Eles trazem capacidades técnicas para reduzir o risco de fracasso do negócio e desenvolver as capacidades de formação para os empreendedores que irão gerenciar seus negócios (COOPER, 1981). A presença de instituições incubadoras de microempreendimentos é recente na Amazônia. Até os anos 1980, o desenvolvimento da Amazônia foi baseado em ações voltadas fortemente para iniciativas estatais (REPETTO, 1988). O desenvolvimento de incubação foi baseado no sistema de extensão Gênero, desenvolvimento e território

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oficial e teve o objetivo de produzir orientando a exportação de produtos agrícolas. O surgimento de empresas locais para suprir demandas ou o desenvolvimento de novas cadeias comerciais para produtos amazônicos locais foi negligenciado. Como resultado, os institutos de pesquisa da Amazônia focaram seus estudos sobre melhorias na pecuária, sobre as características físicas da madeira e sobre geoprospecção (COSTA, 2005). O cenário mudou com a crise econômica do Brasil durante a década de 1980, quando o governo foi incapaz de levar adiante o plano para os Estados da Amazônia como parte do plano de ajuste estrutural realizado com tutoria do Fundo Monetário Internacional para implementar políticas neoliberais (FRANCO, 2003). Durante esse processo, os agentes multilaterais começaram a questionar a capacidade do Estado como provedor de serviços, canalizando fundos para ONGs locais e movimentos populares nas suas novas funções como prestadores de serviços (LIND, 1997). Esse contexto foi a base para a criação de organizações amazônicas capazes de responder às demandas locais emergentes, tais como a necessidade de estimular microempreendimentos, assim como ressaltar a importância ambiental da floresta amazônica como mais um fator que impulsionou esse fenômeno na Amazônia. O novo olhar sobre a região trouxe novos conceitos, como o desenvolvimento sustentável, a conservação da floresta, o uso da biodiversidade, o conhecimento local e outros, que vieram depois culminar com a Cúpula da Terra das Nações Unidas (RIO 92). Isso criou uma oportunidade única para levantar fundos para apoio às iniciativas locais (JACOBS, 2002). Muitos grupos de mulheres se beneficiaram dessa condição ambiental para implementar os microempreendimentos com o apoio técnico dessas recém-chegadas instituições incubadoras. Os grupos de mulheres tinham todas as características desejáveis para obter Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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apoio: são auto-organizados, tinham o conhecimento de como usar produtos da biodiversidade, representavam minorias sociais e as próprias áreas florestais. Por outro lado, eles não tinham conhecimento técnico para estabelecer um negócio e para acessar recursos financeiros. Descobrimos que 85% desses microempreendimentos receberam apoio técnico para o seu estabelecimento do empreendimento, mas ninguém mencionou o apoio técnico do Estado. Apenas 7% receberam apoio de universidades e outras instituições públicas, e 8% deles não tinham acesso a nenhum suporte técnico. Nos Estados onde o governo local foi mais sensível à importância dos microempreendimentos de mulheres rurais, a presença de agências governamentais incubadoras ocorreu de forma intensiva, como foi o caso do Estado do Acre. No Acre, por exemplo, onde a conjuntura política local apoiou grupos locais, o percentual de empreendimentos que recebeu apoio do governo foi três vezes mais do que a média, em comparação com lugares como o Estado de Tocantins, onde as prioridades do governo local foram a promoção do agronegócio, onde nenhum apoio governamental foi mencionado. Além disso, 66% das incubadoras foram criadas pelos movimentos sociais, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, os grupos religiosos e movimentos de mulheres, e 34% foram criados por organizações não governamentais de conservação ambiental e por universidades federais. Na verdade, as mulheres rurais têm se organizado em uma diversidade de organizações, a fim de melhorar as condições sociais, econômicas, ambientais e políticas. E seus empreendimentos refletem essas mesmas características como um instrumento para suprir as necessidades sociais, econômicas, ambientais e políticas da região (GOMES; AMARAL, 2005).

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EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES NO BRASIL A evolução da política pública pode ser considerada como outro fator importante para o surgimento de microempreendimentos das mulheres em geral. Ao longo dos últimos 20 anos, a condição das mulheres tem melhorado no Brasil. O movimento de mulheres rurais alcançou políticas públicas para responder parte das exigências de suas organizações. Exemplo disso foi a criação de instituições governamentais federais com um enfoque de gênero, tais como o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em 1985, e da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2003. O primeiro Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, criado em 2003, com garantia de direitos sociais, políticos e econômicos das mulheres, promoveu várias ações e programas baseados na igualdade de gênero, fomentou a autonomia financeira das mulheres como trabalhadoras e como empreendedoras em artesanato e turismo, criado e ajustado a programas de crédito para as mulheres (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, SECRETARIA ESPECIAL DE POLITÍCAS PARA AS MULHERES, 2008). Como exemplo, tem-se a proposta governamental de melhorar o empreendimento feminino brasileiro, por meio de apoio financeiro pelo crédito. No entanto, a incorporação da igualdade de gênero na prática de ministérios do governo federal nem sempre aconteceu, e os recursos financeiros não estavam disponíveis para promover as políticas específicas para atender esses microempreendimentos femininos, demonstrando ainda as dificuldades de participação feminina no setor político-econômico (NATIVIDADE, 2009). O Plano Nacional para a Promoção da Sociobiodiversidade é um subprograma do Programa Piloto para a Conservação e Manejo de Florestas Tropicais, cujas linhas de apoio incluem Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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o “Fortalecimento das áreas protegidas e uso sustentável” e o “Ordenamento do território e do desenvolvimento regional na Amazônia”. A adoção dessa estratégia de gênero no âmbito do programa piloto esteve voltada principalmente para a democratização do acesso aos processos de tomada de decisão participativa, bem como para a igualdade de acesso de homens e mulheres a políticas e benefícios gerados pelas ações do programa. No projeto, o tema da igualdade de gênero foi estabelecido como uma chave para o desenvolvimento sustentável, que deve ser inserida nas ações estratégicas de funcionamento do programa (DEUTSCHE GESELLSCHAFT FÜR INTERNATIONALE ZUSAMMENARBEIT GMBH, 2012). Os questionários e entrevistas realizados com gestores sobre o tratamento de “relações de gênero” em subprogramas e projetos do PPG7, no entanto, revelou uma grande lacuna na formação técnica das mulheres, especialmente para a produção e gestão de recursos naturais (HEREDIA; CINTRÃO, 2006). Programas que lidavam diretamente com as comunidades locais (Negócios Sustentáveis; Promanejo; Proteger; ProVárzea; projetos de demonstrativo [PDA]) tiveram algumas atividades com foco em gênero, geralmente em resposta a demandas de organizações locais de mulheres. Tais projetos de formação e de geração de renda para as mulheres muitas vezes foram os primeiros passos para capacitá-las a participar na vida política local e para ocuparem cargos políticos locais ou representarem a comunidade em conselhos locais (HEREDIA; CINTRÃO, 2006). A análise da incorporação da abordagem de gênero nas ações do Plano Nacional para a Promoção da Sociobiodiversidade (PNPSB) (MELLO, 2012) mostra que os três ministérios brasileiros, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) – coordenação geral, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) enfatizam a imporGênero, desenvolvimento e território

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tância do gênero no PNPSB, com destaque para a importância que o papel das mulheres rurais teve para o desempenho do programa. No entanto, entre essas instituições federais, o MDA e o MDS apresentaram avanços mais práticos na incorporação de gênero dentro da instituição. O MDA criou um departamento específico para trabalhar o referido enfoque. Isso influenciou a inclusão de demandas das mulheres usando pressões internas para lidar com os interesses estratégicos e práticos das trabalhadoras rurais em todos os programas do ministério. Permitiu-se, assim, a inclusão e participação mais ativa das mulheres rurais na área das políticas produtivas de responsabilidade legal do MDA – enquanto o MDS, a cargo de políticas sociais nacionais, possui plano de ação específico para promover as mulheres, como programa de saúde para as mulheres rurais e expansão de benefícios sociais para as mulheres do programa rural (MELLO, 2012). No caso do Ministério do Meio Ambiente, este tem trabalhado diretamente com as iniciativas econômicas de grupos de mulheres que trabalhavam com produtos florestais incluídos no valor de produtos da cadeia dada como prioritária, a fim de promover a sociobiodiversidade: babaçu, fibra de palma, oleaginosas e produção do umbu. Essas ações atingiram um público feminino, tornando as mulheres participantes públicas mais ativas do que os beneficiários indiretos, pois os tomadores de decisões de gerenciamento, dentro dessas cadeias específicas dos produtos, eram de domínio feminino. Em caso de organizações mistas beneficiárias do programa, embora as mulheres rurais que trabalhavam com esses produtos florestais tenham acesso aos benefícios gerados pelo programa, elas ainda estão em desvantagens em relação aos homens no que diz respeito à participação na composição dos conselhos de administração dessas organizações produtivas atendidas pelo programa. Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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Em resumo, a baixa representação feminina está diretamente influenciada pela baixa participação das mulheres nas diretrizes das políticas decisórias dentro da PNPSB, assim como pela baixa participação nas atividades do programa (formação, reuniões, eventos em geral), e pela representação limitada nas organizações envolvidas (MELLO, 2012). As limitações quanto ao alcance das políticas públicas para as mulheres são expressas de forma mais geral nos microempreendimentos de mulheres rurais analisados. Apenas 15% de todos esses microempreendimentos receberam apoio técnico do governo e do setor privado: formação, consultoria, bem como a capacidade para participar de eventos promocionais, tais como feiras e congressos, para exporem seus produtos. A maioria (80%) desses microempreendimentos começou com o próprio suporte financeiro e continuou sem receber nenhum tipo de recursos do governo para melhorar as suas atividades produtivas e econômicas por meio do investimento em infraestrutura. Em suma, muitas condições ambientais contribuíram para o surgimento de microempreendimentos de mulheres rurais na Amazônia brasileira: a expansão do movimento de mulheres, a atenção ambiental para a floresta amazônica e a evolução da política pública para o empreendedorismo feminino no Brasil. O movimento de mulheres incluiu o empoderamento econômico pelo aumento da autonomia financeira, participação e tomada de decisão, como uma resposta para reduzir a desigualdade de gênero. O cenário ambiental da Amazônia abriu oportunidades para as organizações feministas, a Igreja e as organizações ambientais trabalharem para a garantia do apoio técnico, para a criação de microempreendimentos e a melhoria do seu desempenho. Finalmente, as políticas, para melhorarem as condições das mulheres no Brasil, trouxeram muitas ações e programas com base na igualdade de gênero, dos quais o empreendedorismo feminino é um segmento importante. No entanto, na Gênero, desenvolvimento e território

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prática, as ações e programas voltados para o empreendedorismo feminino ainda não – ou pouco – estavam atendendo as demandas das mulheres rurais na região amazônica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As mulheres rurais na Amazônia brasileira têm mudado o seu papel na sociedade. Elas integraram as demandas sociais, políticas e econômicas em suas iniciativas criadas para responder às questões ligadas às desigualdades de gênero, bem como a crise econômica causada por um modelo de desenvolvimento da economia baseado no uso destrutivo dos recursos naturais, exclusões de grupos minoritários e aumento da pobreza rural. O surgimento de microempreendimentos de mulheres rurais na Amazônia brasileira foi liderado por uma conjunção de fatores que ocorreram nas últimas décadas, como a expansão dos movimentos de mulheres, a atenção da política ambiental para a floresta amazônica e para as comunidades tradicionais e, por último, a evolução das políticas públicas voltadas para as mulheres no Brasil. Por sua vez, os microempreendimentos das mulheres rurais estão contribuindo para o seu empoderamento por intermédio da promoção de uma maior autonomia financeira e da participação delas na sociedade. Eles foram criados com base nas motivações e objetivos sociais, harmonizados com as necessidades das mulheres, tal qual é apresentado pelo movimento de mulheres. Esses movimentos feministas deram oportunidades às mulheres rurais para aprenderem sobre os seus direitos civis e melhorarem sua participação nas políticas públicas e tomadas de decisão, bem como no sentido de incentivá-las a criarem iniciativas econômicas que aumentasAutonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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sem sua autonomia financeira, com potencial para promover o empoderamento das mulheres. A combinação dessas características sociais tem levado a considerar que esses microempreendimentos das mulheres rurais realizaram o empreendedorismo social. Com base na pesquisa rural Rede de Mulheres Empreendedorismo entre 2003 e 2008 – um dos conjuntos de dados mais completos sobre os microempreendimentos das mulheres na Amazônia –, conclui-se que eles tinham relações fortes com movimento social das mulheres, com as ações da Igreja e do movimento sindical. Na maioria dos microempreendimentos, as mulheres eram membros de sindicatos rurais. O crescente envolvimento das mulheres rurais amazônicas em microempreendimentos e em outros esforços de base para prosseguir com alternativas de desenvolvimento sustentável é um componente importante para fortalecer a capacidade das comunidades da floresta amazônica de continuarem a se adaptar e prosperar em harmonia com seus valores e práticas tradicionais, bem como abrirem oportunidades emergentes no mercado dos produtos florestais. Mais visibilidade e apoio são necessários para destacar as suas contribuições sociais, políticas e produtivas para o bem-estar de suas famílias e comunidades, assim como é necessário o fortalecimento dos mecanismos para o acesso das mulheres aos recursos financeiros e técnicos essenciais para apoiar seus empreendimentos.

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MULHERES QUE PLANTAM, MULHERES QUE NÃO COLHEM: PERSPECTIVAS DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO EM ASSENTAMENTOS RURAIS NO TOCANTINS Gleys Ially Ramos dos Santos

INTRODUÇÃO

A

s análises que apresentamos aqui são resultados da pesquisa sobre relações de gênero na luta pela terra em assentamentos rurais no município de Porto Nacional (TO) e visam a discutir perspectivas de gênero no contexto do desenvolvimento regional no campo brasileiro. O objetivo do artigo é analisar as narrativas de mulheres assentadas que vivenciaram o conflito social referente à posse de terra em Porto Nacional, município localizado na região central do Estado do Tocantins, a 64 quilômetros da capital, Palmas. A premissa de que o processo de reforma agrária pode levar a um avanço no que diz respeito ao desenvolvimento regional permite que nós evidenciemos, nessa ideia, um paradoxo histórico que a acompanha. Segundo Deere e Léon (2002), a experiência de reforma agrária latino-americana leva a um pressusposto geral: as mulheres rurais foram, em grande parte, excluídas como beneficiárias diretas dos processos ligados às reformas no campo. Entretanto, quais as percepções dessas mulheres sobre esse processo? São as versões dessas mulheres sobre desenvolvimento, sobre assentamento e sobre gênero que orientaram nosso trabalho. Por meio dos depoimentos das assentadas Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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do Padre Josimo I e II (o assentamento foi o local onde realizamos as pesquisas relativas a este trabalho), analisamos como as propostas e os discursos sobre o desenvolvimento as afetam. As assentadas nos deram a possibilidade de analisar por outros ângulos como estão sendo implantadas as políticas de reforma agrária e como estão sendo essas políticas na relação e questão de gênero no campo. O procedimento metodológico adotado foi orientado pelo uso da história oral, por ser uma metodologia de pesquisa voltada para o conhecimento do tempo presente que nos permite conhecer a realidade atual e o passado ainda próximo, pela experiência e pela voz daqueles que o viveram (LANG, 2001). Entrevistamos oito mulheres, com idades de 20 a 70 anos, a maioria titular da terra, que participaram das primeiras ocupações de terra em diferentes lugares no município de Porto Nacional e que foram assentadas no Assentamento Padre Josimo I e II. Entrevistamos também dois homens, líderes do assentamento e do movimento. As entrevistas foram realizadas no próprio assentamento. As mulheres entrevistadas estão distribuídas por toda a área do assentamento. A fim de preservar a identidade, as referências às mulheres serão feitas com nomes fictícios, extraídos de uma dinâmica aplicada com as assentadas, voltada para elas dizerem o que pensavam sobre o que é ser mulher e, assim, expressar suas percepções em forma de desenho. A dinâmica foi um espaço para que elas pudessem se ver como agentes do processo de desenvolvimento do seu assentamento. Escolhemos suas designações sobre si para identificá-las aqui neste trabalho, ficando assim denominadas: Rosa, Guerreira, Estrela, Vida, Coração Grande, Flor do Cerrado, Jardim e Sol. Por intermédio das narrativas, buscamos entender as percepções das mulheres envolvidas na disputa pela terra, mapeando suas experiências, projetos e ideários em que elas mosGênero, desenvolvimento e território

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tram pequenos e grandes gestos feitos para além do controle e dos discursos dos homens que lideraram o conflito. Logo, a visão dessas mulheres se torna importante na análise das identidades das forças envolvidas no conflito dentro do Assentamento Padre Josimo I e II. Analisamos também quais as expectativas e perspectivas das mulheres com relação ao desenvolvimento do assentamento, bem como suas percepções sobre as relações e papéis de gênero nesse contexto, com a posse e título da terra.

PERCEPÇÃO DE GÊNERO SOBRE O ASSENTAMENTO PADRE JOSIMO I E II O processo de formação dos assentamentos rurais no Brasil intensificou-se principalmente a partir da década de 1990, quando o MST realizava suas primeiras ocupações em vários cantos do país, principalmente no Sul e Norte do Brasil. No município de Porto Nacional (TO), origem das reivindicações dos assentados do Padre Josimo I e II, o MST iniciou seu trabalho de base reunindo 200 trabalhadoras/es rurais no final do ano de 2004, ocupando margens de rodovias estaduais e federais. Essa forma de reivindicação por terra a partir dos acampamentos (lócus de moradia e reinvindicações provisórios) regidos pelo MST, a qual o ainda Acampamento Padre Josimo adotou, é, via de regra, a forma como o Brasil se organiza no campo hoje, confrontando a realidade dos latifúndios. Com a implantação de um assentamento rural, aos poucos as relações começam a ser tecidas – na maioria das vezes, diferentes de como ocorriam no acampamento e da vida que se levava antes da militância. Tais relações refletem, principalmente, como e qual é o modo de vida dessas pessoas nos lugares onde agora estão inseridas e quais as perspectivas com relação ao assentamento. Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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No Assentamento Padre Josimo I e II, as mulheres estão procurando construir seu espaço social, uma vez que seu espaço físico dia após dia vem sendo conquistado. Essa é uma perspectiva resultante da conquista da terra. Para as assentadas do Padre Josimo I e II, a conquista do título da terra, apesar de ser uma vitória parcial, representa hoje inúmeras possibilidades para essas mulheres. Atualmente, no Assentamento Padre Josimo I e II, a posse da terra atingiu pelo menos 21% de mulheres beneficiárias diretas num total de 65 – número considerado pequeno tendo em vista o número de mulheres assentadas, que é de 243, quase a metade da população do assentamento, o qual tem 497 assentados no total. Ainda assim, o saldo é positivo, já que a média nacional de beneficiárias diretas é de apenas de 12% das mulheres nos assentamentos. As mulheres estão presentes ainda como segundas beneficiárias: são 53 mulheres (12%) beneficiadas dessa forma, isto é, como cônjuge capaz de exercer alguma influência sobre a terra, ainda que em segundo plano. Para entendermos melhor, beneficiárias ou beneficiadas são as pessoas que receberam o benefício da terra ou do lote nos assentamentos rurais no Brasil. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) institui que beneficiárias/os diretas/os são aqueles que recebem a titulação do lote diretamente em seu nome, e beneficiárias/os indiretas/os são aqueles casos em que a titulação do lote vem em seguimento a um primeiro nome/beneficiária/o, geralmente cônjuge ou filhos do primeiro nome/ beneficiária/o. Esse número, possivelmente, pode ser influenciado pelo seguinte aspecto: o homem não é obrigado a citar um segundo nome para beneficiário da terra, mesmo sendo casado oficialmente, enquanto a mulher no mesmo estado civil deve citar um segundo nome, segundo as normas instituídas pelo Incra/ TO. Mesmo não havendo um documento oficial que dê respalGênero, desenvolvimento e território

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do a essa normativa, o Incra/TO cadastrou as famílias dessa forma. Assim, o número de mulheres que foram beneficiadas como cônjuge é de apenas 17% dentro do Assentamento Rural Padre Josimo I e II. Isso reforça a pouca visibilidade das mulheres no assentamento, as quais, além de não terem a igualdade na divisão dos lotes feita pelo Incra, também não são vistas pelos seus cônjuges, que não as indicam como segunda beneficiária para aquisição dos lotes no assentamento. E, mesmo como primeira beneficiada, na maioria dos casos elas indicaram um segundo nome (cônjuge, filhos), o que reflete na sua não autonomia nos direitos à posse da terra. No assentamento, os números de mulheres beneficiadas direta e indiretamente somam 33% das assentadas atingidas. Mas, ao mesmo tempo em que esses números podem representar aspectos positivos, como a possibilidade de essas mulheres trabalharem nas suas terras de acordo com suas necessidades, é perceptível no Padre Josimo I e II que, no segundo caso das mulheres beneficiárias com base no aspecto cônjuge, o modo de produzir poderá, na maioria dos casos, ser regidos pelo esposo (companheiro), e no primeiro caso ser influenciado por eles, já que a mulher, segundo o Incra/TO, deve citar um segundo nome como beneficiário indireto. Na percepção das mulheres entrevistadas, esse total é considerado relevante, uma vez que é maior do que elas previam. Em suas previsões, apenas as mulheres solteiras ou sem companheiros legais receberiam a posse e título do lote. É o que explica Flor do Cerrado: Olha, as coisas aqui andavam tão sem rumo, que nem

pensei que eu ia ganhar a posse do lote, não, achei que ia para meu marido. Ele mesmo queria no meu nome, mas

o Incra é quem ditava as coisas. Todo mundo pensou que as mulheres que ia receber os lotes era as solteira, ou as Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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“largadas” (Entrevista realizada dia 27/9/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II).

A posse e o título sobre os lotes as tornam, nesse caso, institucionalmente, a primeira titular na negociação sobre a terra a partir de créditos, empréstimos, plantio, entre outros, além de possibilitar autonomia de uso e ocupação dos lotes pelas mulheres. Na análise das entrevistas, é possível perceber que o Incra/ TO leva em consideração somente as opiniões dos homens, fator determinante para que muitos lotes saíssem nos nomes dos seus companheiros/maridos, filhos mais velhos. É o que mostra o relato de Rosa: O pessoal do Incra vem aí e nem chama todo mundo, não, só vai lá no C*** [coordenador] e conversa com uns cinco

ou sete e decide tudo, depois volta porque tudo deu errado lá. Eu acho é bom, porque eles tinha era que conversar com todo mundo, homem e mulher. Ah, bom! E é só

homem que pensa e decide? Por isso que eu digo que não

dá certo, tem muita mulher aqui de ideia boa, mas não

fala nada elas, ou por medo, por vergonha ou por “bobi-

ça” mesmo, daí o povo do Incra faz tudo que quer porque os homens lá não têm ideia boa. Eu mesmo falo, mas só eu, eles pensam que é pra caçar conversa, até mesmo o

C*** [coordenador] manda eu ficar quieta, dizendo que se eu ficar com “resenha” as coisas demoram mais pra

sair. Eu fico pensando: meu Deus, ô ideia pequena, gente. A gente não pode aceitar as coisas assim, não, isso não é esmola, não, é um direito da gente, ninguém tá roubando

nada, não, o pessoal do Incra vem aqui, olha pra gente de um jeito que só a senhora vendo, parecendo que tá falando com uns ladrão, marginal, sério! (Entrevista realizada dia 27/9/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II). 136

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Pela fala de Rosa, é possível perceber a invisibilidade das mulheres trabalhadoras rurais quando, no cadastramento do Incra, é dada a preferência ao homem; somente quando este tem algum impedimento para realizar o cadastramento é que a mulher é aceita como titular da terra, pois a condição social das mulheres trabalhadoras rurais demonstra a falta de oportunidades e de igualdade de gênero no campo e nos assentamentos implantados nessa área. É possível perceber também, nas falas das entrevistadas, que tanto os homens como as mulheres trabalham nos serviços pertinentes ao assentamento, como a derrubada de roça, o manejo com os animais. Em quase todas as falas das mulheres, elas estão sempre executando as tarefas ditas femininas, arrumando o barraco, olhando as crianças, lavando e cozinhando, enquanto o homem conserta a plantadeira de arroz e milho, vacina os animais e vai à sede saber de informações sobre o assentamento. No que diz respeito ao modo de produção coletiva do assentamento e de cada família, essas atividades ainda não estão definidas, pois, em relação às divisões das atividades domésticas ou plantações, percebe-se que as discussões sobre o setor de gênero ficam em segundo plano. Dentro das prioridades das/ os assentadas/os, estão as preocupações com o que vão produzir no sentido de engajar todos as/os assentadas/os na produção. Na fala de Guerreira, é possível perceber essa afirmação: Olha, nós estamos tentando organizar a produção aqui,

mas ainda não conseguimos porque ainda tem muita coisa amarrada no Incra, mas já decidimos que não vamos

plantar as mesma cultura, nem os mesmo tamanho de roça, até porque cada um aqui é que sabe de sua necessi-

dade. [...] Se eu te falar que sei quando isso sai (subsídio de produção) e quando o pessoal vai começar a plantar,

eu vou estar te enganando, porque tem gente aqui que Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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já até começou plantar sem ordem dos coordenadores, nem do Incra e já deu problema. [...] Produzir eu ainda

não comecei, não! Eu decido sobre meu barraco, sobre

meu lote, eu tenho um marido aí, que arranjei aqui mesmo dentro do Padre Josimo, mas ele não opina em nada,

não. Ele vai “pras” reuniões comigo, ele me ajuda na

casa, conserta as coisas, vacina os bichos, conversa com o Casi, ainda não me dá trabalho, não. Ah, o lote tá no

meu nome, né? (Entrevista realizada dia 25/10/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II).

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O que produzir nos lotes se constitui uma das atuais preocupações das/os assentadas/os, uma vez que, não havendo inicialmente uma atividade produtiva comum a todas/os do Assentamento Padre Josimo I e II, cada família busca de alguma forma viabilizar seu sustento. Daí surgem as mais diversas atividades, desde a roça plantada nos lotes até mesmo a montagem de um comércio no assentamento ou nos perímetros urbanos que rodeiam o assentamento. A fala de Guerreira também reflete certa autonomia sobre suas atividades e funções no lote, uma vez que ela é a primeira titular da terra. Ainda na fala de Guerreira, podemos perceber mais do que a preocupação com o futuro da produção local: percebemos também que, com a aquisição dos lotes, bem como da posse e do título deles, as mulheres sentem-se mais autônomas para tomarem decisões dentro e fora dos lotes. Isso porque, no geral, no Assentamento Padre Josimo I e II, as mulheres que possuem a posse e o título dos lotes são as que mais participam da discussão interna do assentamento e as que contribuem ou são responsáveis pela renda familiar de suas respectivas famílias. Por intermédio das entrevistas, percebemos que a subsistência das/os assentadas/os ainda não é proveniente apenas de atividades pertinentes ao assentamento, o que vai influenciar na renda e em seus modos de obtenção. Ao tocar nesse Gênero, desenvolvimento e território

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aspecto, as entrevistadas destacam o número de mulheres que trabalham fora do assentamento, chegando a 41% das assentadas, isto é, 69 mulheres que trabalham nos mais variados tipos de serviços nos municípios limítrofes. Nas entrevistas, perguntamos como essas mulheres viam esses serviços e como elas se posicionavam diante da renda familiar. Em nenhum dos relatos as mulheres se autoafirmaram como chefe de família. A maioria das mulheres, responsáveis pela renda familiar, se aponta como principal responsável pelo sustento da casa, e isso ocorre mesmo quando ela é a única a introduzir renda e trabalho na família. As frases mais comuns nas falas dessas mulheres são: “Não, meu menino é que cuida disso” (chefiar a casa), ou “eu quase nem paro pra pensar nisso aí, mas eu não tomo conta disso, não”. Na definição do Incra quanto às atividades relacionadas à renda, as mulheres se dividem em: • Mulheres chefes de família (mulheres que mantêm a renda da casa só, no geral são solteiras ou viúvas); • Mulheres responsáveis pela renda familiar (mulheres que possuem renda maior na casa, incluindo aí as chefas de família); • Mulheres contribuintes da renda familiar (mulheres que trabalham dentro e fora do assentamento); • Mulheres que não contribuem para renda familiar (mulheres que se autointitularam como não contribuintes, mesmo trabalhando na roça no assentamento).

No Padre Josimo I e II, quem mais atua no espaço de discussão e militância são as solteiras, e, por causa dessa condição, segundo as entrevistadas, são sujeitas a situação de constrangimento e preconceito das pessoas, talvez até pelo fato de elas serem as principais participantes do movimento. As mulheres casadas que participam são consideradas “ousadas”. As entreAutonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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vistadas afirmam que os comentários existem e essas mulheres não são bem-vistas pela comunidade em que vivem. Foi o que percebemos na fala de Sol: Eu sou vista como uma sem o que fazer, porque vou nas

reuniões e falo. O pessoal aqui tem a língua que não cabe na boca, não veem que trabalho fora, que cuido do meu

filho sozinha, e porque não tenho marido acha que pode

falar o que quiser comigo – e falam, o pior é que eles falam. E as mulheres também, essas são as que mais falam,

pensam que sou mãe solteira, mas eu não sou, não, na

época eu morava com um homem, mas elas só vê isso aqui, já que vai falar da vida dos outros fala o certo, né?

Pior que a gente não tem nem o apoio das mulheres

aqui, mulher é bicho nojento; os homens se une e elas

brigam, mas eu não tô nem aí. Nas reuniões eu falo mesmo. As coisas tão erradas mesmo. Quem abre a boca aqui

é malvisto, eu nunca vi isso! (Entrevista realizada dia 12/12/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II).

Para Sol, essa discussão já deveria ter sido feita, e nela apontadas algumas soluções. Para ela, outras discussões que organizam a vida social dos assentados estão atrasadas, atrasando também as discussões relacionadas às questões de gênero no assentamento. Percebemos, por essa fala, que até o momento tais discussões são consideradas tanto por homens quanto por mulheres como não prioritárias, mesmo havendo a percepção por parte de algumas mulheres e homens que as condições destinadas às mulheres são bem diferentes das que ocorriam no acampamento, quando havia um modo mais igualitário nos papéis atribuídos aos gêneros e que não mais são vistas no assentamento Padre Josimo I e II. Segundo Amorim (2007, p. 60), 140

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Pela própria cultura, o machismo não está somente no

homem, muitas mulheres, nos assentamentos, não se envolvem por preconceito da sua própria condição e consideram que esse tipo de envolvimento é coisa de homem. A articulação e convencimento da importância delas par-

ticiparem no movimento e no próprio assentamento se torna difícil.

Por outro lado, no Assentamento Padre Josimo I e II, os homens, ainda em pequeno número, começam a observar a luta de algumas mulheres pela igualdade de gênero. Isso não quer dizer que eles estejam engajados na luta, mas já começam a respeitar a luta de suas companheiras dentro do assentamento e a ligação delas ao movimento de mulheres. Na fala de Nego, podemos perceber isso: Na verdade, eu acho que a gente pecou muito na implantação do assentamento, a gente avexou muito na divisão dos lotes e passou por cima de muitas coisas que o mo-

vimento pediu pra gente olhar. Essa questão da mulher

é uma delas. O movimento o tempo todo falou. Vamos lutar contra o latifúndio juntos, homens e mulheres, va-

mos repartir as vitórias juntos, homens e mulheres, mas quando chega na hora, é cada um por si, ninguém vê o de

ninguém, não. Acho mesmo que elas têm que se organi-

zar, porque se for esperar pelos outros, pelo Casi, hum! A coisa não sai, não. A minha mulher mesmo tá aí nessa bagunça (Entrevista realizada dia 8/2/2009 no Assentamento Padre Josimo I e II).

Mesmo como início dessa sensibilização por parte dos homens, a discussão em torno das questões de gênero dentro do assentamento anda em passos lentos. O setor de gênero – a divisão interna do MST destinada a resolver problemas ligados Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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à questão de gênero no movimento – não consegue chamar a atenção das mulheres nem consegue ampliar o debate e levá-lo às mulheres assentadas. Mesmo quando a coordenação do setor de gênero é liderada por uma mulher (comum nos assentamentos rurais, mas isso não chega a ser uma regra), ela não consegue adotar políticas de gênero que atinjam as assentadas e suas demandas. Para os assentados do Padre Josimo I e II, parece complicado querer discutir como as pessoas devem se relacionar dentro do assentamento, quando o próprio assentamento ainda não está consolidado. Há problemas com a produção, com a educação, saúde e transporte, que são preocupações imediatas dos assentados. Esse é um pensamento tanto de homens quanto de mulheres. Na opinião do coordenador do assentamento, Eu acho até importante que a gente fale sobre como as

pessoas têm que se comportar aqui no Padre Josimo, acho até que já tá passando da hora. Olha que a gente vê

muita “absurdagem” aqui. É homem bebendo na frente

de criança, é mulher que num cuida dos filhos, que num

quer mais saber da casa. Se bem que depois que a coordenadora do MST teve aqui e conversou com os coordenadores de família e com as famílias também, melhorou mais, porque aqui era coisa, aqui tinha até homem que

punha pano na boca da mulher e metia peia nela den-

tro do barraco. Hoje não, hoje num se vê mais isso. As

mulher aqui até tão conversando sobre educação, gênero, saúde, essas coisas. Mas eu acho que o que a gente

tem que fazer agora é organizar o assentamento, senão o

povo morre de fome, num é?! Mas eu acho importante as mulher se organizar aqui, acho mesmo, porque as coitadas tem que fazer alguma coisa aqui senão elas endoida,

digo isso porque quando eu fico sem fazer nada, eu fico agoniado, tonto, tonto! Então, tem sim que vê tudo isso 142

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aí, né? (Entrevista realizada dia 8/2/2009 no Assentamento Padre Josimo I e II).

Na fala do coordenador, podemos perceber explicitamente que as políticas de discussões de gênero do MST não vêm tendo resultados positivos com relação às questões de gênero. O coordenador, além de não ver como prioridades tais discussões, não percebe as funções que as mulheres exercem no cotidiano ao afirmar que elas têm de procurar o que fazer – uma visão estereotipada sobre o gênero feminino ao afirmar as mulheres como coitadas. Embora tenha admitido a importância das discussões de gênero, percebemos que suas preocupações são de ordem estrutural. Mesmo as mulheres mais engajadas no movimento ou nas questões do assentamento estão perdendo parte das expectativas que construíram ainda no acampamento. Segundo elas, havia uma interação maior entre mulheres e homens nas tarefas do cotidiano do acampamento e do movimento. Havia um discurso de emancipação da vida social dessas pessoas e um discurso específico para as mulheres no assentamento segundo os moldes do MST, ou seja, igualitariamente. Mas, segundo as entrevistas, a mulher não tem liberdade de agir nem no assentamento nem no movimento. Nas palavras de Guerreira, a realidade é que, [p]or mais que a gente se organize aqui, enquanto o In-

cra cozinhar o pessoal aqui, discutir nossa condição aqui,

vai ser difícil, até porque quem é que vai condenar uma mulher que prefere ver como tá a situação do crédito e do lote do que ver como ela é tratada no assentamento?

Ninguém. Olha, vou te dizer, eu não desanimo de tudo

porque eu sei que resulta muita coisa boa. Nós criamos o setor de gênero e batizamos de Mulheres que plantam. Eu

tive na maioria das reuniões regionais do MST, do MMC Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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e até do MMTR e eu sei que a luta não é fácil, não. Mas as

mulheres aqui são esmorecidas, coitadas! Mas tudo no

começo é uma provação, né verdade?! Tem horas que até eu acho que não vamos ter é nada. Acho que aqui deveria ser chamado assim: Mulheres que plantam, mulheres que não colhem. Mas é na luta que entramos aqui e é na luta

que vamos conseguir nossas coisas e vamos ser tratada

direito (Entrevista realizada dia 8/2/2009 no Assentamento Padre Josimo I e II).

As mulheres do assentamento parecem estar em consenso quanto à questão de uma urgência na organização, pois adotam a mesma opinião de priorizar a produção para depois falarem sobre as relações sociais. Percebemos que há uma conformidade nisso. Os primeiros anos do assentamento, nas falas das entrevistadas, não são fáceis. Principalmente para as mulheres. Desde o primeiro passo da luta, que é a ocupação, a mulher está presente. Ela se destaca ao lado dos homens, muito embora a cultura e os preceitos que referenciam a organização familiar tenham, na mulher, a dona de casa, a senhora do lar, a mãe, a esposa. Ou seja, os principais aspectos que caracterizam o espaço privado.

ENGAJAR, MOBILIZAR E SOCIALIZAR: A POLÍTICA DO SETOR DE GÊNERO NO PADRE JOSIMO I E II A partir daqui faremos uma discussão sobre como as mulheres do Assentamento Padre Josimo I e II estão se organizando para viabilizar melhorias de vida no campo e nas suas relações sociais no espaço onde estão inseridas. Dessa forma, nos atemos à configuração dessas instâncias organizativas (o 144

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assentamento, as coordenações e o setor de gênero), tendo como base o universo da luta pela e na terra. Pelas entrevistas, percebemos que, no decorrer do processo de luta pela terra, seus contextos e histórias foram se tornando distintos e resultaram em características organizacionais, metas e estratégias significativamente diferentes – daí o pressuposto para o surgimento do setor de gênero nos assentamentos, entendendo este como a divisão interna do MST destinada a resolver problemas ligados à questão de gênero no movimento, envolvendo mulheres, homens e crianças, já que o setor é um trabalho de base do MST. Surgiu como um espaço de formação e ação das mulheres (MST: CARTILHA DA MULHER SEM-TERRA, 2006). Ele visa a padronizar as demandas e organizar as reivindicações das mulheres, vislumbradas ainda nos acampamentos. O próprio MST (2006, p. 15) reflete sobre isso quando afirma que [a]s mulheres ligadas ao Setor de Gênero do MST pos-

suem a estratégia de desafiar os papéis tradicionalmen-

te identificados como sendo de mulheres, construindo novos espaços de socialização e participação política.

Os setores são amadurecimentos de discussões primor-

diais das relações, daí a necessidade de um setor de gênero e de posteriormente de um movimento autônomo de mulheres.

Segundo Garcia (2004, p. 163), isso é o desdobramento de um processo muito anterior, que teve início com outros movimentos, ainda nos acampamentos, e que caminha particularmente para esse movimento autônomo (ou paralelo) de mulheres, o qual o MST põe também como organizado e pautado nas questões que reverenciam mulheres trabalhadoras sem-terra e particularmente as condições das mulheres no campo. Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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Assim, analisando os processos pelas falas das assentadas, bem como as organizações pelas quais as mulheres no Padre Josimo I e II passaram e estão passando, nos fez perceber como as relações de gênero estão sendo tecidas nesse espaço, onde é possível afirmar que elas reproduzem relações sociais antigas, onde a reprodução dos papéis femininos mais uma vez põe a mulher num lugar de submissão aos papéis masculinos. No Assentamento Padre Josimo I e II, identificamos que uma das funções do setor de gênero é vencer o paradoxo da estagnação, já que as discussões não despontaram por si só. Percebe-se que, apesar da criação do setor, não está havendo avanço para uma organização interna das mulheres e muito menos para um movimento paralelo ao do MST, uma vez que o setor responsável por essa discussão também é responsável por outras demandas tidas como prioritárias no assentamento, como educação e saúde. Do total de assentadas/os atualmente no Padre Josimo I e II, há uma participação relativamente baixa de mulheres inseridas no setor de gênero. Outra característica é que nos encontros e reuniões relatados nas entrevistas percebemos que as mulheres discutem assuntos que reforçam, ainda, a luta pela terra, a reforma agrária, a emancipação dos trabalhadores, pois seguem um roteiro dos demais setores de gênero no país. Consideramos isso um fator negativo, já que as pautas e reivindicações gerais não atendem às particularidades locais de cada região ou de cada assentamento. O setor de gênero do Padre Josimo I e II ainda não se atentou que suas reuniões obedecem a uma padronização nacional de pautas e não atendem às demandas locais. Analisando as pautas das reuniões, podemos detectar alguns dos principais assuntos discutidos pelo coletivo nos setores de gênero no decorrer desses últimos anos: a) a construção de hortas medicinais dentro dos assentamentos; b) a implantação e organização dos Projetos de Saúde Familiar (PSF); c) o Gênero, desenvolvimento e território

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lançamento e consequente utilização de material para cursos e palestras, como cartilhas sobre saúde feminina e educação política; d) a organização de ações e manifestações específicas das mulheres e ações gerais da organização dos trabalhadores, como Encontro Estadual das Assentadas e Acampadas, Encontro Regional do MST e a organização para mobilização das mulheres etc. (VALENCIANO, 2006). Mesmo essas pautas não são postas em prática no Assentamento Padre Josimo I e II. Na fala de Rosa, podemos detectar que, além de não serem executadas no assentamento, não são realidades também do local. O fator negativo não consiste somente na padronização das pautas, mas no próprio aceite das mulheres dessa ação, mesmo percebendo as diferenças entre o que é dito e o que é visto. Vê se você vê alguma horta comunitária aqui. As hortas

que tem aqui é das mulher mais zelosas, mas não tem nada a ver com o que as mulher tava falando lá na reu-

nião do setor. [...] No começo eu até que participava das reunião, mas depois vi que num tinha futuro, não, é uma

coisa de Marte sabe?! Saúde, educação, aqui mesmo não,

até o eixão aí (via de transporte) passa perto de uns e de outros não, então não sei pra que tá servindo, não.

Nem as costureiras se entende, os bordados o pessoal parou, aquela coisa do artesanato que você via no acam-

pamento, hum! Acabou foi tudo! (Entrevista realizada dia 13/12/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II).

Sempre que é necessário decidir ou organizar determinada ação, as mulheres são convocadas para as reuniões, de forma que não existe uma relação de datas preestabelecidas para os encontros e reuniões. As decisões estão ancoradas na deficiência de algo no assentamento, na eleição de algum problema em discussão. São tiradas daí as linhas de atuação do setor. Essa é Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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uma característica do setor de gênero no Assentamento Padre Josimo I e II. A falta de recursos seria uma das explicações para a paralisação deles, já que a estrutura que possui o movimento não é suficiente para atender as demandas que existem dentro dos assentamentos e acampamentos na região. Esse problema foi apontado durante entrevistas com algumas militantes no Assentamento Padre Josimo I e II. Essa também foi a justificativa do setor de gênero do assentamento, que não é apontado como organizador de nenhuma das ações acima citadas. Não flagramos nenhuma reunião do setor no Assentamento Padre Josimo I e II em que as pautas estivessem diretamente ligadas às relações de gênero no assentamento. Trazer para as mulheres assentadas as notícias do que ocorre em termos de política e de conquistas do movimento parece um desafio, sobretudo no Padre Josimo I e II, onde tudo parece ser mais prioritário que as relações sociais. Mas o engajamento mais profundo nessa forma de organização, realizada pelas mulheres do MST, esbarra muito numa série de condições peculiares ao próprio assentamento. A questão da produção ainda não resolvida entre os assentados do Padre Josimo I e II com certeza é um dos empecilhos para se discutir gênero no assentamento. Tais discussões, porém, esbarram em outras dificuldades, sendo a principal delas a divisão interna feita no assentamento em duas áreas: Padre Josimo I e Padre Josimo II, que, mais do que a divisão de área, há também a divisão de ideias entre as assentadas: parece que divisão física do assentamento influencia numa divisão ideológica do local. As associações nesse momento de implantação do assentamento podem estar tendo um papel de divisão dele, reforçando que essa divisão se concretiza física e politicamente. Mulheres de um mesmo assentamento são regidas por duas associações internas e diferentes que não conseguem se entender. Não discutem gênero, não discutem o assentamento, Gênero, desenvolvimento e território

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não discutem desenvolvimento. Apenas discordam sobre esses eixos e os transformam em polêmica dentro do assentamento. Essa divisão faz surgir ou acirrar outra problemática para as discussões de gênero no assentamento. A divisão por área e por associação divide os assentados e as mulheres em simpatizantes do MST (Padre Josimo I) e em não simpatizantes do MST (Padre Josimo II), onde de um lado as proposições do MST sobre gênero são bem aceitas, e, do outro, às vezes não são nem mesmo ouvidas. Essa divisão poderia ser considerada natural, uma vez que algumas mulheres têm características relacionadas ao campo, enquanto outras já se apresentam mais ligadas aos moldes urbanos. A contradição se dá no fato de que as mulheres com característica campesinas não conseguem se familiarizar com os preceitos do MST, enquanto as mulheres mais ligadas ao MST (Padre Josimo I) têm características urbanas. Essa talvez seja a principal dissidência das assentadas no Padre Josimo I e II, essa não relação de campo/cidade entre as assentadas. Dessa forma, as idealizações do setor de gênero no Assentamento do Padre Josimo I e II não ganharam as pretensas extensões. Talvez por isso ainda não tenha avançado nos trabalhos e na realização dos objetivos postos. Para Estrela, que tem uma visão otimista acerca do setor no assentamento, [a] conquista no futuro é transformar a mulher trabalha-

dora para defender a nossa classe. Esse é o maior desafio e será a maior conquista. Nós não conseguimos muitas

coisas ainda. Nós simplesmente não queremos culpar

o setor porque não existe ainda uma coisa que deveria existir. Existe um grupo que pensa, que discute, um

grupo onde estão inseridos militantes que buscam for-

mar mais militantes no futuro. Exatamente transformar nossas bases em guerreiras. E essa transformação, sem dúvida, passa por politizar as companheiras. Esse será Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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o nosso grande desafio, não só do setor, como da organização (Entrevista realizada dia 14/12/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II).

Isso parece ser uma boa discussão para os assentamentos no geral. A posição ocupada por mulheres no MST mostra que a forma como ele encontra-se estruturado, apesar de ainda estar dominado por valores conservadores, fortalece a participação feminina nos espaços de debate e de formação política (GARCIA, 2004). No entanto, mais do que desenvolver um trabalho de militância, essas mulheres poderiam ser engajadas noutras esferas do trabalho, que não ligadas a atividades domésticas no campo. Apesar das ocupações no âmbito do lar, algumas mulheres estão presentes nas discussões, desempenhando, assim, mais do que uma mera terceira jornada de trabalho. A partir da análise das entrevistas realizadas com assentadas, sobretudo no que diz respeito ao momento anterior ao acampamento, ou seja, à trajetória de vida da família, observam-se inúmeras características que nos dão pistas para compreender esse universo do trabalho, da dupla jornada de trabalho, do trabalho precarizado. No geral, essas trabalhadoras residiam em municípios pequenos, onde se ocupavam de atividades de trabalhos informais, desqualificadas, mal remuneradas. Parte dessas mulheres encontrava-se inserida no mercado de trabalho na condição de domésticas, caseiras ou ocupando funções dentro do setor de serviços e comércio, como balconistas, atendentes, serventes, acumulando ainda as tarefas ligadas à manutenção da família, do lar. Seus companheiros, como diaristas, caseiros, vaqueiros, ou ainda no ramo da construção civil, como ajudantes, serventes, pedreiros etc., também se encontravam inseridos no mercado 150

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de trabalho informal, ganhando salários reduzidos, desfrutando de uma condição de vida muitas vezes extremamente precária. Essa condição de dificuldade e necessidades os conduziu à organização de trabalhadores na tentativa de tornar seus anseios de uma vida melhor uma realidade menos dura. Isso revela a pluralidade de atores sociais envolvidos na luta pela terra, vindos de experiências distintas, mas marcados pelo mesmo processo de exclusão e expropriação: na cidade, pelas transformações tecnológicas que envolveram a atividade produtiva; no campo, pelas mesmas transformações, somadas ainda à concentração fundiária (VALENCIANO, 2006). Assim, para o setor de gênero no Assentamento Padre Josimo I e II, que na sua fase inicial ainda não possui uma função nas relações de gênero de seus assentados, embora ainda pouco visíveis, essas ações se constituem importantes, muito embora não consigam detectar que as relações entre homens e mulheres são desiguais, mesmo no discurso e prática do MST de igualdade. E são influências que possivelmente devem crescer com a organização do assentamento, apesar de toda dificuldade e adversidade.

COTIDIANO NO ASSENTAMENTO PADRE JOSIMO I E II As atividades exercidas no assentamento, embora consideradas como característica de vidas comunitárias, comuns a todos, já que estão no mesmo lócus, se diferem pelo fato de que esses assentados irão reproduzir, ali, o modo de vida que tinham antes do assentamento – e antes do acampamento. As assentadas localizadas na área do Padre Josimo I, que têm perfis mais ligados às discussões do MST e antes estavam ligadas a cotidianos urbanos, reproduzem no assentamento essas características. Enquanto isso, na área do Padre Josimo II, embora Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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não simpatizantes das premissas do MST, elas estão engajadas no movimento, possuem perfis mais ligados à vida no campo. Isso porque, segundo as falas das assentadas do Padre Josimo I, esse retorno ao campo é doloroso, uma vez que, adquiridos modos de vidas urbanos com todas as facilidades (água encanada, luz elétrica, eletrodomésticos como televisão, máquina de lavar roupa, liquidificador, fogão elétrico), desfazer-se dessas condições urbanas não é fácil. Por isso, o retorno ao campo se torna difícil, pois elas perdem essas facilidades que regiam seu cotidiano doméstico. O que se pode inferir é que as assentadas do Padre Josimo I são mais engajadas na luta de melhorar as condições e a qualidade de vida no assentamento porque elas já tiveram essas facilidades enquanto moravam na zona urbana. Dentro das reivindicações para o assentamento, está a construção de poços artesianos e a introdução de energia elétrica (já iniciada), que podem ilustrar as falas de Estrela: Eu sempre morei no sítio, desde pequena com minha família. Só que aí os irmãos foram casando e foram todos

embora, e eu também acabei casando, mas ainda fiquei

na roça por algum tempo. Depois, quando o serviço acabou, porque a gente era empregado numa fazenda aqui

perto, aí a gente veio pra Porto. O meu marido conseguiu emprego na barragem lá, e eu logo entrei de doméstica

também. Fiquei três anos, mas não aguentei, a saúde não

deixou. Meu marido também perdeu o emprego quando a obra acabou, e foi aí que a gente resolveu entrar pro movimento, pra ver se a gente conseguia um pedaço de

terra, porque a gente sempre gostou, sempre foi de lá

mesmo, não é?! (Entrevista realizada dia 27/9/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II).

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As assentadas do Padre Josimo I vão aos poucos se adaptando à nova realidade, se readaptando aos modos de vida e atividades no campo, enquanto as assentadas do Padre Josimo II estão mais ligadas à vida no campo e cada vez mais afastadas das políticas de organização do MST. Logo, as discussões de gênero dentro do assentamento, que ainda são incipientes, não destacam essa divisão interna. A participação das mulheres é pequena. As atividades pertinentes às assentadas, por mais que queiram buscar uma construção fora dos parâmetros machistas, ou de uma moldura sexista, continuam a reproduzir papéis e atividades consideradas femininas. A título de exemplo, as principais atividades executadas na reunião de mulheres do assentamento se “resumem” quase que exclusivamente a artesanato (crochê, tricô, bordados, costura geral etc.), a fabricação de doces e bolos caseiros e atividades ligadas à educação ou palestras do MST. O setor de gênero do assentamento também reproduz essas atividades femininas ao propor suas metas para o assentamento. Ao discutir tópicos que interessam aos assentados, quase sempre educação e saúde ficam a cargo das mulheres, enquanto tópicos sobre produção e organização do assentamento ficam designados aos homens. Nas reuniões gerais e de setores, quase sempre a incumbência do “cafezinho” ou do “almoção” é delegada às mulheres. Salvo raras exceções, quando o movimento encomenda a comida por fora, essas são as atividades que as mulheres executam. Percebe-se que as reuniões sobre produção, em princípio, procuram reverter a precariedade de alimentação dos assentados – mas, numa escala maior, em médio prazo, tem como objetivo desenvolver o Assentamento Padre Josimo I e II, visando à introdução da prática da agricultura familiar. Isso pode ser um aspecto positivo, já que, para a Política Nacional de Reforma Agrária, há uma relação entre desenvolvimento, agricultura familiar e gênero, uma vez que tanto a produção Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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como a reprodução são formas de trabalho importantes para o desenvolvimento da sociedade e suas relações. Mas, apesar da precariedade citada, é possível perceber que a participação das mulheres no Assentamento Padre Josimo I e II a partir da posse e título dos seus lotes garante, sim, um mínimo de autonomia, que é a permanência na terra, mas não garante colherem as vitórias emanadas nas lutas diárias no assentamento, ligadas à sua condição de gênero em que vivem as mulheres por nós pesquisadas. A realidade está bem próxima da sensação das assentadas, expressa, principalmente, na fala de Guerreira, ao dizer que “tem horas que até eu acho que não vamos ter é nada, acho que aqui deveria ser chamado assim: Mulheres que plantam, mulheres que não colhem. Mas é na luta que entramos aqui, é nela que vamos conseguir nossas coisas e vamos ser tratadas direito”.

EM SÍNTESE...

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Este trabalho sobre as mulheres do Assentamento Padre Josimo I e II teve como objetivo analisar as relações de gênero sob o viés do desenvolvimento nos assentamentos implantados com base na Política Nacional de Reforma Agrária, esta como um viés para que as mulheres possam participar, cada vez mais, do desenvolvimento local/regional a partir dos assentamentos de reforma agrária. Ao analisarmos as falas dessas mulheres, pudemos perceber que o alcance da igualdade formal entre mulheres e homens – no que diz respeito aos direitos à propriedade – não implicou necessariamente uma igualdade de fato, pressuposto para atingir o desenvolvimento. Apesar das legislações existentes no Brasil, que preveem o direito de mulheres e homens à propriedade, na prática essa igualdade é desmentida por uma série de interferências culturais, políticas e econômicas, que Gênero, desenvolvimento e território

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intensifica a desigualdade nas relações de gênero no campo. Essa foi uma das constatações que tivemos em nossa pesquisa, além da ausência em se discutir tais relações no processo de posse e título da terra implicando o desenvolvimento. No Assentamento Padre Josimo I e II, essa prática da discussão não é feita nem mesmo pelo setor de gênero, que não consegue ainda conciliar diferentes formas de pensamentos e de ações das mulheres, discussões essas relacionadas a como viver no campo. Por consequência, o setor não conseguiu criar, até o momento, um espaço de discussão sobre as relações de gênero e sobre as condições das mulheres no assentamento. Com base em nossas análises, entendemos que cada assentamento deve ter um olhar específico por parte das políticas públicas advindas dos programas de reforma agrária, pois todos os lócus possuem suas particularidades. No Padre Josimo I e II, essa particularidade é percebida, principalmente, pela divisão interna entre o grupo e entre as mulheres, que, por possuírem procedência, pensamentos e costumes diferentes, também reproduzem sobre o assentamento e sobre a terra suas diferenciações, sua forma de pensar e agir diferente. O ser e o estar, embora as identifiquem numa posição de subordinação a papéis ditos femininos, também possuem diferenciações, já que elas pensam de modo diferente sobre esses papéis. Essa divisão evidencia que cada grupo de mulheres que se assenta nesses locais deve ter esses olhares diferenciados. Num mesmo assentamento, há percepções e perspectivas diferentes sobre a terra e sobre o desenvolvimento nela. No caso do Assentamento Padre Josimo I e II, essas diferenciações culminaram na divisão de duas áreas internas. Nesse sentido, não há como desenvolver somente “parte” de um local, nem desenvolvê-lo deixando à margem uma parcela de pessoas, como é o caso do assentamento. Identificamos, com as leituras e com as entrevistas, que outros fatores também impedem o acesso e o controle da terra às Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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mulheres – entre esses, o discurso de que as mulheres não possuem experiência na agricultura e que elas não têm capacidade de administrar seus lotes. Em nossos estudos, percebemos que a igualdade de gênero na propriedade da terra deve-se a tradições fortemente arraigadas na família e no Estado, uma vez que os dois adotam o homem como o principal, senão o único chefe de família, aquele capaz de administrar o lote e a produção nele. Percebemos, pelo processo de divisão dos lotes e das propriedades de terra e comprovadas por meio das entrevistas, que existe uma preferência dada aos homens – se não a eles, aos filhos mais velhos no processo de titulação do lote. Analisando o regime de titulação do Incra, pode-se perceber que há privilégios masculinos no casamento, isto é, uma tendência de favorecimento dos homens nos programas estatais de distribuição de terra, pelo menos nos parâmetros do Incra/TO. Nas falas das mulheres assentadas no Padre Josimo I e II, percebemos inúmeros tipos de perspectivas, a maioria delas ligadas a família (filhos e maridos), mas há também perspectivas em que elas se envolvem visando a obter maior visibilidade, terem melhorias nos seus lotes e até mesmo espaço para discussão. Essas formas de visibilidades são negadas na sociedade, já que o Estado destina aos movimentos sociais tal função. E os movimentos sociais ainda não se atentaram para essa questão. Contudo, entendemos que essa não é uma função e nem uma obrigação dos movimentos sociais, e sim uma forma de sensibilização e politização voluntária deles. Mas, para as mulheres do Assentamento Padre Josimo I e II, é necessário que essas discussões avancem, deixem de discutir apenas a terra e passem a discutir as relações sociais sobre a terra, que passem da questão agrária à questão de gênero. Um dos pressupostos para isso seria a divisão equitativa da posse e títulos das terras com base na reforma agrária, uma vez que a autonomia sobre os lotes dá a mulheres e homens Gênero, desenvolvimento e território

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autonomia também sobre suas ações. Não há como ter igualdade e equidade entre os gêneros se as formas práticas não caminham junto às formas discursivas. Nesse sentido, assim como mencionado pelas assentadas do Padre Josimo I e II, elas irão continuar plantando, sem ter ainda perspectivas de colher os frutos dessa igualdade/equidade, ou seja, o desenvolvimento local/regional tão esperado não pode ser construído sob a tutela de desigualdades de gênero no campo.

REFERÊNCIAS DEERE, Carmen Diana. Diferenças regionais na reforma agrária brasileira: gênero, direitos à terra e movimentos sociais rurais. Porto Alegre: UFRGS, 2002. GARCIA, Maria F. O enfoque de gênero na luta pela terra: os lugares da diferença no Pontal do Paranapanema. Tese (Doutorado). Faculdade de Ciências e Tecnologia. Universidade Estadual Paulista (Unesp), Presidente Prudente, 2004.

LANG, A. B. S. G. “História Oral: procedimentos e possibilidades”. In: __________. Desafios da Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Ceru, 2001. MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM-TERRA (MST). “O Coletivo de Gênero do MST”. In: Cartilha 102, 2006.

SCOTT, S. A. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. In: Educação e Realidade. Porto Alegre, UFRGS, vol. 1, nº 1, 1996. VALENCIANO, Renata C. A participação da mulher na luta pela terra: discutindo relações de classe e gênero. Presidente Prudente: [s./nº], 2006. Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES NO ESTADO DO PARÁ: A EXPERIÊNCIA DOS SEMINÁRIOS REGIONAIS Rosana Ribeiro Moraes

INTRODUÇÃO

N

o Brasil, segundo dados dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) (2014),24 ainda persistem indicadores negativos quanto à desigualdade das mulheres em relação aos homens. Isso é visibilizado, por exemplo, no mercado de trabalho e nos rendimentos, na política e nas práticas recorrentes de violências contra as mulheres. Assim, o governo brasileiro, por meio da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR) – criada em 2003 para coordenar e articular políticas públicas na ótica de gênero e promover a inserção das mulheres na sociedade, combatendo todas as formas de discriminação e violência –, tem se mostrado como uma estratégia importante para a redução das desigualdades. Portanto, compreender a dimensão do que seja desenvolvimento, nessa perspectiva, remete a 24 Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) foram estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2000, fruto de uma pactuação realizada entre 191 nações que se comprometeram diante de uma agenda de metas prioritárias, até 2015, vencendo oito desafios, a saber: 1 – acabar com a fome e a miséria, 2 – oferecer educação básica de qualidade para todos, 3 – promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres, 4 – reduzir a mortalidade infantil, 5 – melhorar a saúde das gestantes, 6 – combater a aids, a malária e outras doenças, 7 – garantir qualidade de vida e respeito ao meio ambiente, 8 – estabelecer parcerias para o desenvolvimento.

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uma noção de desenvolvimento que vai além de seu sentido econômico, pois promover políticas que favoreçam as oportunidades e a inclusão de mulheres na ocupação de espaços no mundo econômico, social e político é uma ação essencial para a superação das desigualdades de gênero e, por conseguinte, contribui para o desenvolvimento de países, Estados e regiões. Tal entendimento leva ao importante debate sobre desenvolvimento. Numa breve aproximação, cabe destacar que foi em fins do século 18, na onda da Revolução Industrial, que correntes dominantes do pensamento econômico passaram a fazer a relação entre população e desenvolvimento, mas esse olhar se dava numa perspectiva meramente do desenvolvimento econômico (produção x acumulação de capital). Apenas com pensadores iluministas como William Godwin (17561836) e Marquês de Condorcet (1743-1794) o desenvolvimento econômico ganha novos olhares, isto é, passa a ser analisado pela ótica da justiça social, da igualdade econômica e com igualdade entre homens e mulheres. Então, nesse momento, observa-se uma tênue articulação teórica entre população, desenvolvimento e as questões das mulheres. Foram contribuições pioneiras que, posteriormente, não foram incorporadas pelo pensamento econômico. Segundo Heilborn et. al. (2010), as questões de gênero são pontuadas incisivamente, na relação população e desenvolvimento, apenas no século 20, em especial depois do Ano Internacional da Mulher, em 1975. Posteriormente, em 1994, é realizada a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, na cidade do Cairo, demarcando a necessidade da equidade entre homens e mulheres na perspectiva de garantia de direitos e de desenvolvimento humano sustentável. Assim, afirmam Heilborn et. al. (2010, p. 103): A equidade de gênero é considerada pelo Fundo de Po-

pulação das Nações Unidas um direito humano, sendo 160

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o empoderamento das mulheres ferramenta indispen-

sável para promover o desenvolvimento e a redução da pobreza. Mulheres com maiores níveis de educação e participação no mercado de trabalho estão, em geral,

mais capacitadas para contribuir para a saúde e a produ-

tividade de suas famílias e localidades, criando melhores perspectivas para as novas gerações.

Portanto, essas análises se aprofundam na década de 1980 e têm a contribuição de importantes organismos internacionais, como o Programa das Nações para o Desenvolvimento (PNUD), o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial, em que se aponta para o grave problema das desigualdades de gênero e seus impactos no desenvolvimento das nações. Isso é confirmado quando hoje existem indicadores importantes para medir tais disparidades, como: Índice de Desenvolvimento Ajustado do Gênero (IDG), Medida de Empoderamento de Gênero (MEG) e Índice Global de Desigualdade de Gênero (IGDG). Traduzindo: a existência desses indicadores demonstra que o empoderamento das mulheres se tornou uma ferramenta indispensável para promover o desenvolvimento e a redução da pobreza, ou seja, a redução ou até a eliminação das desigualdades de gênero impacta positivamente na produtividade e no crescimento econômico e social na perspectiva de ser sustentável e equitativo entre homens e mulheres. Nesse momento, cabe explicitar sob qual análise nos respaldamos para pensar a categoria gênero. Dentre tantas teorias, num entendimento geral, explicita-se que, embora complementares, há diferenças fundantes entre sexo e gênero. Enquanto o primeiro tende a fazer referência à diferença biológica entre macho e fêmea (o que é um fato natural), o segundo refere-se ao sexo socialmente construído (o que é um fato social), isto é, Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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Quando falamos de sexo nos referimos às diferenças que a biologia e as ciências médicas estabelecem entre ma-

cho e fêmea, como, por exemplo, o sexo cromossômico, gonodial, hormonal, anatômico, fisiológico [...]. Quando

falamos de gênero, estamos considerando que os seres humanos não são unicamente produtos da natureza, mas também são produtos de uma certa cultura, quan-

do dizemos que alguém é mulher estamos supondo um sexo; mas também supomos outras coisas: dona de casa,

mãe, sensível, afetiva, má motorista...; quando dizemos homem, junto ao sexo, atribuímos qualidades como: intelectual, racional, inteligente, pouco detalhista. Homem e mulher são palavras que vão além do âmbito biológico (SANTIN, 1996, p. 7).

Logo, gênero se refere a construções sociais porque, historicamente, são determinados papéis sociais rígidos e diferentes, próprios de mulheres e de homens, os quais são definidos e reproduzidos por instituições sociais como a família, a igreja. Essas observações encontram respaldo nas afirmações de Scott (1991, p. 14), que diz: O gênero não é só uma relação entre homens e mulheres, é um elemento constitutivo das relações sociais em geral

[...] e que se expressa ao longo do tecido, das relações e instituições sociais em símbolos, normas, organização política e social e nas subjetividades pessoais e sociais.

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Então, analisar sob a ótica de gênero é romper com a visão naturalista e determinista, ou seja, a ideia de que as diferenças entre homens e mulheres, muito mais que naturais, são frutos de construções sociais advindas dessas diferenças biológicas, gerando com isso a desigualdade entre os sexos ou a chamada desigualdade de gênero. Esse entendimento leva à seguinte Gênero, desenvolvimento e território

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conclusão: são passíveis de manipulação humana essas construções sociais que tendem a determinar o lugar de homens e mulheres na sociedade, pois não são naturais. Isso significa que a opressão de gênero não é um problema apenas da mulher, mas de toda a sociedade que engendra as relações de poder inscritas nas relações sociais entre os corpos sexuados, a partir das construções de gênero. Nesse contexto, não há como não referenciar que as desigualdades de gênero se aprofundam quando são olhadas na perspectiva das desigualdades regionais, em que a implantação, a implementação e o acesso às políticas públicas se tornam algo bastante difícil diante das realidades e diversidades espaço-demográficas, populacionais, econômicas e sociais, sobretudo, para serem empreendidas com o olhar de gênero. Confirmando essa tendência, em 2009, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), realizou um estudo sobre a gestão da política de gênero nos municípios brasileiros. A constatação, nada surpresa, revelou que existiam no país, naquele ano, 1.043 municípios com algum tipo de estrutura direcionada para a temática de gênero (18,7% do total dos municípios brasileiros). E, desse total, em pouco mais de 70% desses municípios, a institucionalidade dessa política se dava por intermédio de alguma secretaria específica de governo. Diz mais o relatório: Entre os municípios com até 5.000 habitantes, apenas 10,3% possuíam alguma estrutura para tratar da temá-

tica [...], 1,6% eram secretarias exclusivas [...]. Entre os

municípios mais populosos, não apenas a presença de organismos de políticas para mulheres é significativa-

mente mais elevada (alcançando 90,0% entre aqueles

com mais de 500.000 habitantes), como também a natureza destes mecanismos é bastante diferenciada, camiAutonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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nhando em direção a instâncias mais fortalecidas e com maiores recursos e possibilidades de ação. Dos municí-

pios com mais de 100.000 habitantes, reduzidos 58,0% contavam com setores dentro de secretarias temáticas,

16,0% possuíam organismos diretamente vinculados ao gabinete do prefeito e 15,0% instituíram secretarias

exclusivas [...]. É importante considerar que a existência de organismos de políticas para mulheres não assegura a

existência de condições adequadas de desenvolvimento dos trabalhos, o que, por consequência, impacta na re-

duzida possibilidade de articulação com órgãos locais e de implementação direta de políticas e ações na área.

Em geral, os mecanismos possuem escassez de recursos, seja financeiro, seja humano ou material (2009, p. 3).

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Nesse contexto, em que pesem vários debates teóricos a respeito, são consideradas políticas públicas as ações ou medidas governamentais como respostas às demandas da população. Ou seja, segundo Souza (2006, p. 26), “a formulação de políticas públicas constitui-se no estágio em que os governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real”. Esse entendimento possibilita conceber essas políticas como instrumentos de garantia de direitos e devem se configurar como políticas de Estado (permanentes/continuadas), e não de governo (de gestões/passageiras), para que seus efeitos resultem em eficácia, eficiência e efetividade. Diante do que se expôs, este estudo busca enfatizar o processo de interiorização das políticas públicas às mulheres no Estado do Pará, numa perspectiva de gênero, compreendendo as desigualdades e fazendo uma ação contrária com o objetivo de promover a inclusão das demandas, sobretudo, das mulheres – o que se torna um desafio, considerando que essa quesGênero, desenvolvimento e território

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tão ainda não é prioridade na agenda política de maior parte dos(as) gestores(as) públicos(as). Assim, o artigo será desenvolvido em três partes. Num primeiro momento, busca-se situar o debate das políticas públicas para as mulheres no Brasil e no Estado do Pará, com a criação dos organismos de políticas no âmbito nacional e local, compreendendo a missão e os impactos resultantes dessas criações. A seguir, serão apresentadas as experiências dos 13 Seminários Regionais de Políticas para as Mulheres ocorridos nas doze regiões, sendo que a região de Marajó foi subdividida em dois polos, considerando as dimensões territoriais (dificuldade de acesso e mobilização). Esses eventos promoveram um importante processo de interlocução entre governo e sociedade civil organizada, por meio dos movimentos de mulheres e suas reivindicações, como uma estratégia para interiorização das políticas às mulheres e, consequentemente, corroborando para a promoção do desenvolvimento regional nessa perspectiva, pois o fruto desses seminários, em suas proposições às diversas áreas das políticas públicas, foi impactante à revisão do 1º Plano Estadual de Políticas para as Mulheres, lançado em 2010 e revisado em 2012. Por fim, será realizada uma análise desses processos, no intuito de visibilizar os efeitos e os desafios nos cenários regional e estadual quanto à implementação das políticas na perspectiva de gênero.

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES EM PAUTA: A CRIAÇÃO DO ORGANISMO DE POLÍTICA DO ESTADO DO PARÁ E SEUS IMPACTOS Durante décadas, as mulheres brasileiras sofreram com o processo de exclusão social, econômica e política e, mais que isso, foram vitimadas por discriminações e diversos tipos de violência, especialmente no âmbito privado. Nesse cenário, é Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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inegável que os movimentos feministas e de mulheres foram fundamentais para o processo de mudança legislativa e social no país, denunciando as desigualdades e propondo políticas públicas às mulheres nas diversas áreas. A Constituição Federal (CF) de 1988 – 1º marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil – foi fundamental para mudar tais situações, pois garante, entre outros direitos, o: • • • •

Reconhecimento da igualdade na família; Repúdio à violência doméstica; Reconhecimento de direitos reprodutivos; Reconhecimento de direitos trabalhistas.

A CF de 1988 foi reforçada pelas Convenções, Tratados, Declarações e Planos de Ação das Conferências das Nações Unidas, que criaram um novo direito internacional dos direitos humanos. Em seu art. 226, § 8º, dispõe: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Assim, pela primeira vez, o Estado chama para si, legal e formalmente, a responsabilidade de dar respostas às situações de violência no âmbito privado ou da família, comungando e respondendo a outras normativas internacionais. Em 1993, a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos proclamou que os direitos da mulher e da menina são parte inalienável, integrante e indivisível dos direitos humanos universais – grito universal contra as formas cruéis de desrespeito aos direitos humanos das mulheres, principalmente contra as diversas violências. Aqui, cabe destacar alguns instrumentos internacionais ratificados pelo Estado brasileiro, como:

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• Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – 1979;

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• Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – 1994; • Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing/1995) – diagnóstico e políticas para a promoção e defesa dos direitos humanos das mulheres.

Todos esses instrumentos retratam a força e a organização dos movimentos que lutam em prol dos direitos das mulheres. No Brasil, a década de 1970 foi marcante, pois se publicizou, sobretudo, a violência no âmbito privado. Os resultados dessa luta foram lentos, mas significativos para o início de uma mudança social e cultural no país. Na década de 1980, emergem ações pontuais e fragmentadas sob um novo discurso: políticas públicas para as mulheres na perspectiva de gênero. Era a pressão dos movimentos para alterar as condições estruturais da desigualdade de gênero, erradicando a violência contra a mulher, em todas as suas expressões. De modo geral, políticas públicas devem ser permanentes, coerentes e articuladas com os distintos poderes e diferentes esferas de governo; ser elaboradas considerando-se as demandas da sociedade (diálogo) e ter garantido orçamento para dar conta das demandas. Num significado amplo, elas podem ser entendidas como tudo aquilo que o governo, em qualquer uma das esferas, faz no que diz respeito às leis, medidas reguladoras, decisões e ações. Um dos grandes desafios que se põem hoje na formulação de políticas públicas é reconhecer a necessidade de pensá-las na perspectiva de gênero e raça, pois se parte do pressuposto de que há problemas na sociedade referentes ao tratamento desigual dado às mulheres e aos/às negras/os e outros grupos discriminados e, por isso, é preciso dar um tratamento diferenciado à questão. Logo, as/os gestoras/as possuem papel primordial na identificação das desigualdades e na promoção de condições de igualdade. Isso favorece o desenvolvimento humano, social, econômico e político. Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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Forçar o processo de pensar as políticas públicas sob novos paradigmas foi algo que muito impulsionou os movimentos sociais. Em 1996, o governo federal lançou o I Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNHD) reconhecendo, então, os efeitos do racismo e do sexismo no país, apontando para a necessidade de se implementarem políticas públicas para os grupos historicamente excluídos, como mulheres, negros e indígenas. Na década de 1990, o olhar para a questão da mulher, sob o enfoque de gênero, ganhou uma dimensão de destaque, e a academia teve um papel importante nesse cenário, criando-se vários grupos de estudos em universidades públicas. A noção de violência contra a mulher é considerada como questão mais ampla de política de direitos humanos: o Estado precisava de políticas não só para criar programas de prevenção, atenção e punição, mas ações que pudessem gerar uma mudança de tradição cultural, sob o enfoque de gênero. Entre as muitas conquistas e avanços obtidos, não se pode negar que a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR), criada em 1º de janeiro de 2003 com status de Ministério, inaugurou um novo momento da história do Brasil no que se refere à formulação, coordenação e articulação de políticas que promovam os direitos humanos das mulheres e busquem corroborar com o fim da desigualdade de gênero. A realização da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM), em julho de 2004, foi um marco na afirmação dos direitos da mulher e mobilizou, por todo o Brasil, cerca de 120 mil mulheres que participaram diretamente dos debates e apresentaram as propostas para a elaboração de políticas para as mulheres, visando a enfrentar as desigualdades de gênero por meio de ações e políticas públicas importantes que contribuíram em muito para a mudança de cenários desfavoráveis à mulher brasileira, entre as quais: 168

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• 2005: I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM); • 2005: Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher; • 2006: Lei Maria da Penha; • 2007: II PNPM; • 2007: Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher.

Nos últimos dez anos, as políticas públicas às mulheres, nas diversas áreas, ganharam um impulso significativo, seja na formulação, na implementação, na definição de recursos ou no monitoramento e avaliação. A partir daí, a SPM passou a incentivar a criação de Organismos de Políticas para as Mulheres (OPM),25 tanto na esfera dos governos estaduais como dos municipais, sendo uma estratégia para avançar as políticas no país com base nas unidades federativas. No Estado do Pará, observaram-se mudanças nesse sentido. A primeira delas veio com a Lei nº 7.029, de 30 de julho de 2007, a qual altera a denominação da Secretaria de Justiça (Seju) para Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh). Com isso, o governo do Estado promove uma reestruturação organo-funcional que possibilitou a instalação de várias coordenadorias, entre as quais a Coordenadoria Estadual de Promoção dos Direitos da Mulher (CPDM), que surge com a missão de promover no Estado políticas públicas, em todas as áreas, para a população feminina, independentemente de idade, cor/raça/etnia, orientação sexual, condição de deficiência, orientação religiosa, opção política, classe social e espaço geográfico. Entre as atribuições da CPDM, contam: 25 Segundo o site da SPM/PR, até o mês de novembro de 2014, havia sido cadastrados 27 OPMs em nível estadual e cerca de 500 em nível municipal, no país.

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• Formular, coordenar, articular e monitorar/avaliar políticas públicas de proteção, defesa e promoção dos direitos das mulheres; • Executar ações de competência da Sejudh relativas à implementação do Plano Estadual de Políticas para as Mulheres, avaliando-o periodicamente; • Realizar o atendimento às mulheres nos casos de violação dos direitos humanos, articulando e encaminhando as demandas para a rede de serviços; • Reaplicar no Estado do Pará o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340); • Fortalecer o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e o movimento social de mulheres; • Fomentar a criação de organismos de políticas para as mulheres e de conselhos municipais dos direitos da mulher para o avanço das políticas com a participação do controle social.

Nesse mesmo ato, o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDM) fica vinculado à Sejudh e também demarca a adesão do governo do Estado ao Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e ao Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra a Mulher. Portanto, considera-se que esse momento demarca um avanço para a gestão das políticas às mulheres, pois, com a CPDM coordenando e articulando, o processo avançaria mais facilmente. Os desafios foram imensos nesse processo, mas há de se pontuar importantes avanços obtidos desde 2007. Entre as grandes ações da CPDM, em parceria com SPM/PR e outros órgãos e/ou setores da sociedade, destacam-se: 170

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• Implantação e implementação de ações de impacto para o enfrentamento à violência contra as mulheres no Estado, incluindo criação/reestruturação de serviços como Delegacias Especializadas, Casas-Abrigo e Centros de Referência; capacitações de agentes públicos da rede de atendimento; produção e distribuição de materiais informativos/educativos; dotação da OPM e do CEDM de melhor infraestrutura, entre outros; • Implantação e implementação do I Plano Estadual de Políticas para as Mulheres; • Articulação permanente com a SPM/PR e com os OPMs do Estado, potencializando a criação desses importantes mecanismos. No Estado, até junho de 2014, registra-se a existência de 12 organismos municipais de políticas para as mulheres como importantes articuladores das políticas às mulheres nos municípios, a saber: Belém, Ananindeua, Parauapebas, Goianésia, Breves, Bragança, Barcarena, Itupiranga, Anajás, Curionópolis, Jacundá e Tucuruí; • Realização de ações de impactos (eventos em geral, como em torno das campanhas do Dia Internacional da Mulher – 8 de março, e do Dia Internacional pela Não Violência à Mulher – 25 de novembro); • Articulação permanente com as secretarias de Estado e gestores municipais, por meio de várias instâncias, para potencializar ações e políticas às mulheres, sobretudo nas áreas de assistência social, educação, geração de emprego e renda, combate à violência e acesso à Justiça; • Realização de conferências (estaduais e regionais/municipais).

No período de 2011 a 2013, destacamos, então, importante parceria entre a CPDM e a SPM/PR, com repasse de recursos, por intermédio de convênios, que foram importantes para imAutonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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plantação e implementação de políticas na perspectiva de gênero, a saber: Tabela 1 – Repasse de recursos, por intermédio de convênios, para implantação e implementação de políticas na perspectiva de gênero. PROJETO

VALOR CONCEDENTE (SPM)

VALOR PROPONENTE (Estado)

TOTAL

Apoio a iniciativas de prevenção à violência contra a mulher

R$ 263.660,40

R$ 29.295,60

R$ 292.956,00

R$ 540.000,00

R$ 60.000,00

R$ 600.000,00

R$ 189.000,00

R$ 21.000,00

R$ 210.000,00

R$ 281.660,40

R$ 31.295,60

R$ 312.956.00

R$ 1.210.660,40

R$ 134.517,82

R$ 1.345.178,22

Ampliação e fortalecimento das ações da CPDM e do CEDM

Monitoramento das ações do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher (nos municípios com rede mínima) Sensibilização e capacitaçãoda rede de atendimento TOTAL

Fonte: Relatórios da CEPDM, 2012/2013.

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Portanto, nota-se a sensibilidade de gestões para com o investimento às políticas para mulheres. Isso foi importante, pois o movimento social, há muito tempo, sempre pressionou o Estado a dar respostas satisfatórias às suas reivindicações. Um reflexo disso foi a realização das conferências estaduais, ocorridas respectivamente em 2004, 2007 e 2008, consubstanciadas no I Plano Estadual de Políticas para as Mulheres (PEPM), Gênero, desenvolvimento e território

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lançado no ano de 2010. Esse foi um grande marco na história do movimento social da gestão pública e das políticas para as mulheres no Estado do Pará. Essas conferências reuniram cerca de quatro mil mulheres, oriundas de cem municípios, além de reunir organismos institucionais (estaduais e municipais), movimentos sociais diversos e instituições de Ensino Superior. As diretrizes do I PEPM Pará foram definidas na III Conferência Estadual de Políticas, servindo de base para todos os órgãos do Governo do Estado do Pará na elaboração, ampliação e implementação de políticas para as mulheres, a saber:

• Pautar ações e políticas visando à autonomia das mulheres do meio rural e urbano, combatendo a pobreza das mulheres e promovendo o desenvolvimento com a criação de mecanismos de geração de renda, além da qualificação profissional; • Combater as discriminações, articulando educação, arte, cultura e comunicação, com respeito à livre orientação sexual e direitos humanos das mulheres; • Fortalecer o Sistema Único de Saúde sob a perspectiva de gênero, replicar ações do Plano Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher com qualidade no atendimento à saúde das mulheres. Considerar o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, a Política Nacional sobre Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, incluindo ações específicas para as adolescentes, assim como a implementação da Lei de Notificação Compulsória – mecanismo de indicadores para subsidiar políticas para as mulheres. Especial atenção ao combate à feminização da epidemia de HIV e à prevenção das DSTs e AIDS; • Pautar ações para ampliar a rede de serviços de enfrentamento à violência contra a mulher, consolidar a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres; aprofundar a implementação da Lei Maria da Penha; Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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combater a exploração sexual de meninas e adolescentes e o tráfico de mulheres; fortalecer os direitos humanos das mulheres em situação de prisão; • Fortalecer a gestão articulada entre as esferas de governo para a implementação de políticas públicas para as mulheres com o fortalecimento da CEPDM e o incentivo à criação de organismos de políticas para as mulheres nos municípios; e, principalmente, garantir infraestrutura necessária para o pleno funcionamento do CEDM, a fim de desenvolver ações com o objetivo de ampliar o número de conselhos nos municípios, consolidando nos municípios o exercício do controle social contribuindo na construção de políticas para as mulheres no Estado.

O I PEPM contemplou oito eixos de políticas públicas, com 29 prioridades e 126 ações. Os eixos foram:

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• Eixo I – Autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho com inclusão social; • Eixo II – Educação inclusiva, não sexista, não racista, não homofóbica e não lesbofóbica; • Eixo III – Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; • Eixo IV – Enfrentamento a todas as formas de violência contra as mulheres; • Eixo V – Participação das mulheres nos espaços de poder e decisão; • Eixo VI – Direito à terra, à moradia digna e à infraestrutura social nos meios rural e urbano, considerando as comunidades tradicionais; • Eixo VII – Cultura, comunicação e mídia igualitárias, democráticas e não discriminatórias; • Eixo VIII – Enfrentamento ao racismo, ao sexismo e à lesbofobia.

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Além desses, houve um eixo que tratou sobre a gestão, o monitoramento e a avaliação do I Plano Estadual, com quatro prioridades e onze ações. Portanto, esse primeiro plano teve grande importância na promoção de políticas às mulheres, sendo um marco regulador, inclusive, para os movimentos de mulheres. Contudo, houve uma fragilização quanto ao monitoramento para se mensurar os reais impactos desse processo na vida das mulheres como um todo.

OS SEMINÁRIOS REGIONAIS: POLÍTICAS PÚBLICAS E DESENVOLVIMENTO PARA AS MULHERES PARAENSES Segundo dados do IBGE (Censo de 2010), a população feminina no Estado do Pará representa 49,59% da população (3.762.833 mulheres), vivendo na vasta dimensão territorial do Estado,26 tendo uma população miscigenada (formada por índios, negros e descendentes de imigrantes asiáticos e europeus) e marcada por uma rica diversidade cultural. Esse cenário se apresenta para a implantação e a implementação de políticas públicas às mulheres na perspectiva de superação das desigualdades e discriminações em decorrência das questões de gênero, raça/etnia, classe, orientação sexual, em especial, que ainda são latentes. E, embora não haja um diagnóstico oficial sobre a desigualdade de gênero e as condições de vida das mulheres no Estado, é visível a dificuldade que elas têm para acessar as políticas públicas em toda a extensão territorial. Tal 26 Para maior conhecimento das características das 12 regiões do Estado (Araguaia, Baixo Amazonas, Carajás, Guamá, Lago de Tucuruí, Marajó, Metropolitana, Rio Caeté, Rio Capim, Xingu, Tapajós e Tocantins) em itens como meio ambiente, demografia, economia e emprego, educação, saúde e saneamento, segurança e justiça, infraestrutura e finanças públicas, consultar os dados do Instituto de Desenvolvimento Social e Ambiental do Pará (IDESP, 2011). É uma síntese regional elaborada para auxiliar os gestores na tomada de decisão das políticas públicas e para os demais interessados em obter maior conhecimento a respeito do assunto.

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situação foi comprovada baseada na realização desses seminários regionais, pelos quais se observou incisivamente a ausência de políticas públicas direcionados à mulher nos vários municípios do Estado e que compromete a promoção dos direitos humanos dessa mulher, além de refletir um desenvolvimento tardio nas regiões do Estado. Portanto, embora o I PEPM tenha buscado superar essas fragilidades, há ainda muitas lacunas que comprometem sua ideal implementação. Logo, a realidade revela que o desenvolvimento de políticas públicas na perspectiva de gênero, no Estado do Pará, deve se dar a partir de um cofinanciamento e de uma cogestão participativa entre União, Estados e municípios, articulando e pactuando essas políticas públicas com a sociedade civil organizada, em especial com os movimentos de mulheres. Por isso, o governo, por intermédio da CPDM, vem buscando criar estratégias que possam corroborar mais para a ampliação do acesso às políticas públicas pelas mulheres. Essas políticas, na perspectiva de gênero, devem considerar o desenvolvimento sustentável, nas várias dimensões, no meio rural, na cidade e na floresta, e exigem uma compreensão além das políticas universais, ou seja, requerem um refletir sobre o impacto dessas políticas na vida das mulheres. Nesse cenário, cabe enfatizar que a experiência dos seminários regionais foi uma estratégia para interiorização das políticas, considerando os desafios que o Estado tem na implantação e implementação de política em um território complexo, vasto e diversificado, recortando os atuais 144 municípios (na época da realização dos seminários eram 143). A ideia que se tinha era de que, antes da realização da IV Conferência Estadual dos Direitos da Mulher, o governo precisava reafirmar seu compromisso com a demanda das mulheres e, por meio da CPDM e do CEDM, conclamou todos e todas para continuarem no processo de execução de tal política, avaliando o I PEPM, por meio da IV Conferência, e Gênero, desenvolvimento e território

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redefinindo os rumos de novas políticas públicas para as mulheres paraenses. Nesse sentido, na busca de envolver a sociedade, especialmente as mulheres, o governo do Estado realizou os seminários regionais intitulados: “Políticas Públicas para as Mulheres no Estado do Pará: com todas as mulheres, por todos os seus direitos!”, e com o lema: Saúde, combate à violência e não feminização da pobreza. Foram realizados 13 seminários regionais, pois a região de Marajó foi subdividida em duas pela complexidade demográfica do arquipélago, que é recortado por muitas localidades dispersas. Esses eventos foram realizados pelo Governo do Estado do Pará, por intermédio da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos/Coordenadoria Estadual de Promoção dos Direitos da Mulher, com o apoio do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e de gestores municipais, além do cofinanciamento da SPM/PR (projeto aprovado). No total, participaram 95 municípios, tendo como sedes os municípios de: Breves, Santarém, Itaituba, Altamira, Marabá, Tucuruí, Xinguara, Castanhal, Abaetetuba, Capanema, Paragominas, Soure e Belém. O período de realização foi de 11 de junho a 16 de novembro de 2011, antecedendo a realização da conferência. Os referidos eventos serviram de preparação para a IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres, realizada no mês de outubro de 2011. Os seminários regionais incentivaram vários municípios, sobretudo aqueles onde existem OPM e Conselhos Municipais dos Direitos da Mulher, a promover suas conferências, elegendo suas delegadas para a conferência estadual. Nessas condições, houve a participação de centenas de mulheres debatendo, refletindo e propondo quais políticas são necessárias às mulheres, do campo, da cidade, das águas ou das florestas, independentemente de classe social, geração, idade, credo religioso, orientação sexual e raça/etnia, pois, até então, nem sempre era possível a participação de todas, mesmo nos municípios. Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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A Coordenadoria e o Conselho da Mulher participaram de várias conferências municipais, mesmo ocorrendo os seminários regionais, principalmente nos maiores municípios, onde foram discutidos os mesmos temas e eixos, uma vez que se fez facultativa a presença do município no seminário regional. Com os seminários se reuniram, em cada polo, aproximadamente 200 lideranças do movimento de mulheres/feministas e outras mulheres, independentemente de cor/raça/etnia, classe, orientação sexual, religião, geração e local de origem. Detalhadamente, participaram, além de vários prefeitos(as), vereadores(as) e demais autoridades municipais e estaduais, cerca de duas mil mulheres. O tema dos debates esteve focado no desenvolvimento de políticas na perspectiva de gênero, com o objetivo de revisar o I PEPM, fortalecendo-o em sua execução por meio dos eixos básicos, com destaque ao Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar; Implementação da Lei Maria da Penha; Autonomia Econômica e Renda para Mulheres. Além disso, os seminários serviram para sensibilizar e qualificar gestores(as) municipais nas temáticas, visando à implantação e à implementação de políticas públicas integrais e integradas às mulheres. Entre as temáticas que emergiram durante as discussões, podem ser citadas algumas que despertaram maior interesse aos participantes, como:

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• Trabalhar a implementação do II Plano Estadual de Políticas para as Mulheres, numa perspectiva de transversalidade entre as políticas; • Maior investimento nos serviços de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, com capacitação dos agentes, criação de protocolo de rede de serviços e humanização do atendimento; • Criação do Sistema Unificado de Informação sobre violência doméstica e familiar praticada contra as mulheres

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no Estado, favorecendo uma rede informatizada para registro e demonstração de dados; • Implementar políticas públicas específicas e afirmativas voltadas às mulheres, com a execução de ações, programas e projetos com recorte em gênero, objetivando tratar desigualmente os desiguais, o que requer pleno reconhecimento das necessidades próprias dos diferentes grupos de mulheres; • Recomendar aos prefeitos do Estado a criação de organismos de controle social da política para mulheres a fim de aumentar o número de Conselhos Municipais dos Direitos da Mulher.

Os seminários regionais foram importantes porque reuniram uma diversidade de mulheres que apresentaram suas demandas. Em 2012, o Estado criou o II Plano Estadual de Políticas para as Mulheres (II PEPM) com base na sistematização dos resultados da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres, realizada de 25 a 27 de outubro de 2011, na capital, momento de socialização, discussão e proposições acerca de políticas para as mulheres de nosso Estado, nas diversas áreas, na certeza e reafirmação da importância de avançar nesse processo, em todos os 144 municípios e suas 12 regiões de integração. Segundo o relatório da IV Conferência, ela foi precedida de seminários/conferências regionais preparatórias à etapa estadual. Reuniu 760 participantes (214 representantes do governo estadual; 65 representantes do governo municipal e 216 representantes da sociedade civil organizada) de 53 municípios de todas as regiões de integração, contemplando a diversidade das mulheres paraenses: quilombolas, pescadoras, extrativistas, parteiras, prostitutas, domésticas, trabalhadoras rurais e urbanas, estudantes, jovens, idosas, lésbicas, negras, afro-religiosas, católicas e evangélicas. Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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Sob a coordenação da Coordenadoria Estadual de Promoção dos Direitos da Mulher (CPDM) e do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDM), a IV Conferência foi palco de um intenso processo democrático, refletindo o anseio de centenas de mulheres, dos diversos cantos do Estado, por políticas públicas amplas, eficientes e eficazes, considerando, ainda, um cenário em que milhares sofrem com discriminações e diversas formas de violências. Organizadas em nove grupos de trabalho temáticos, foi possível às mulheres avaliarem o I Plano Estadual e fazerem as novas proposições para o II Plano nos próximos quatro anos (2012 a 2015), quando será novamente posto à avaliação. Diferente da construção do I PEPM, para o qual se constitui um GT composto por representações do governo e da sociedade civil organizada, além de contar com uma assessoria, resultado de convênio com a SPM/PR, a construção do II PEPM foi coordenada e sistematizada pela CPDM, como organismo de políticas que têm tal prerrogativa, segundo orientações da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, contando com o apoio de conselheiras do CEDM. Tudo foi feito em consonância com os princípios da Política Nacional e as diretrizes da Política Estadual, sendo baseado no modelo anterior, com ajustes, mas dentro dos mesmos eixos estratégicos de políticas, a saber: • Eixo I – Autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho com inclusão social; • Eixo II – Educação inclusiva, não sexista, não racista, não homofóbica e não lesbofóbica; • Eixo III – Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; • Eixo IV – Enfrentamento a todas as formas de violência contra as mulheres;

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• Eixo V – Participação das mulheres nos espaços de poder e decisão; • Eixo VI – Direito à terra, à moradia digna e à infraestrutura social nos meios rural e urbano, considerando as comunidades tradicionais; • Eixo VII – Cultura, comunicação e mídia igualitárias, democráticas e não discriminatórias; • Eixo VIII – Enfrentamento ao racismo, sexismo e lesbofobia; • Eixo IX – Gestão, monitoramento e avaliação.

Ao todo, são nove eixos de políticas, compostos por 35 prioridades e 187 ações que refletem as necessidades das mulheres do Pará. O II PEPM apresenta novos desafios diante de uma realidade complexa, de um Estado que é marcado por sua amplitude espacial e uma população tão diversa. Nesse contexto, cabe enfatizar que, em 2013, a CPDM realizou, em Belém, nos dias 21 e 22 de novembro de 2013, o II Encontro de Sensibilização de Gestores e Gestoras de Políticas Públicas para as Mulheres do Pará, tendo como objetivo central a discussão e avaliação das políticas públicas para as mulheres no Estado do Pará, pela transversalidade de gênero na gestão pública. Além disso, a intenção era sensibilizar gestores(as) públicos(as) municipais para a criação de Organismos de Políticas para as Mulheres. Nesse evento, houve a participação de 110 municípios, com cerca de 250 participantes, sendo um momento muito significativo para a avalição e a proposição de políticas para as mulheres no Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscar a implantação e a implementação de políticas às mulheres na perspectiva de gênero significa reafirmar a PlataAutonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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forma de Ação de Pequim aprovada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher (2005), a qual incorporou a perspectiva de gênero nas políticas e programas governamentais com ações e estratégias em áreas como combate à pobreza, educação, saúde, enfrentamento à violência, conflitos armados, economia, espaços de poder e decisão, mídia, meio ambiente, mecanismos institucionais e direitos humanos, entre outras, além de considerar o importante papel da mulher na economia e relações de produção para o desenvolvimento do mundo. Alcançar tal patamar não é algo tão fácil, considerando que esse processo é recente, datado de poucas décadas, e exige mudanças de paradigmas e concepções da sociedade como um todo. Todavia, não há como negar que os movimentos de mulheres são mecanismos de pressão e impulsionam mudanças importantes nesse processo. Diante de tal contexto, avalia-se que os momentos dos seminários regionais e das próprias conferências municipais foram de grande efeito, mesmo diante de tantos desafios e de divergências político-ideológicas. A intenção foi que se avançasse cada vez mais em prol das políticas públicas, fortalecendo a sociedade em respeito aos direitos humanos das mulheres paraenses. Não se chegou ao ideal, mas se pode afirmar que o Estado do Pará apresenta, sim, um novo momento para as políticas às mulheres. São ações, programas e serviços que se põem no centro das políticas públicas em diversas áreas. E, nesse cenário, não se pode negar que as regiões foram ouvidas, ampliando as possibilidades para o desenvolvimento econômico, social e político, mesmo que ainda num processo lento. O II Plano Estadual de Políticas para as Mulheres se coloca como uma referência, e suas ações devem ser implementadas, também, pela criação de planos municipais para um efeito mais tangível na vida das mulheres. Para isso, cabe à CPDM continuar numa profunda articulação e monitoramento das Gênero, desenvolvimento e território

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políticas, do mesmo modo que cabe ao conselho estadual fiscalizar as políticas implementadas e não implementadas. Portanto, de um modo geral, avalia-se que as públicas para as mulheres avançaram no Estado do Pará, fortalecendo os direitos humanos, mas ainda há um caminhar longo para que se possa galgar uma sociedade pautada nos valores da igualdade de gênero. É preciso que a igualdade de gênero seja parte de um compromisso não apenas dos governos, em suas três esferas, e da sociedade civil organizada, mas de toda a sociedade num grande projeto de cooperação.

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__________. “Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh)”. Relatório de Atividades da CPDM. Belém, 2007-2012. Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas

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__________. ‘Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh). Coordenadoria de Promoção dos Direitos da Mulher (CEPDM)”. I Plano Estadual de Políticas para as Mulheres. Belém, 2011. __________. “Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh). Coordenadoria de Promoção dos Direitos da Mulher (CEPDM)”. II Plano Estadual de Políticas para as Mulheres. Belém, 2013. __________. “Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh). Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDM)”. Relatório da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres (outubro de 2011). Belém, dez., 2011. HEIBORN, Maria Luzia; ARAÚJO, Leila; BARRETO, Andreia (Orgs.). Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – Módulo II. Rio de Janeiro: Cepesc; Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2010. SANTIN, Myrian A. “Gênero: uma categoria de análise”. Caderno de Textos Ciências Sociais, Belém, vol. 1, nº 1, abr., 1996. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Recife: S.O.S Corpo, 1991.

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PARTE 3 OS LIMITES DO DESENVOLVIMENTO NA PERSPECTIVA DE GÊNERO

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ENTRE ENREDOS, ENCANTOS E DESENCANTOS: UM ESTUDO SOBRE SAÚDE E O COTIDIANO DE MULHERES EM CONTEXTOS DE MUDANÇAS SOCIOAMBIENTAIS Virginia Caroliny Silva Alexandre Maria Teresa Nobre

INTRODUÇÃO

E

ste artigo é resultado de um processo longo e intenso de pesquisa realizada no povoado de Areia Branca, na chamada “Zona de Expansão Urbana” da cidade de Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Foram quase dois anos de acompanhamento junto às agentes comunitárias de saúde (ACS), lotadas na Unidade Básica de Saúde local. Entre visitas domiciliares e caminhadas pelo povoado, foi possível registrar acontecimentos importantes, que marcam as consequências de um desenvolvimento urbano voltado aos interesses comerciais e de especulações imobiliárias. Com isso, as necessidades dos moradores e a qualidade de vida no povoado, do ponto de vista de quem mora no local, ficam secundariamente considerados. O atendimento à saúde e as práticas de cuidados estudados pelo cotidiano de mulheres constituem o foco deste trabalho. Iremos analisar mais especificamente o cotidiano de mulheres e refletir sobre o contexto sócio-histórico em que estão inseridas. Durante o trabalho de campo, a movimentação das mulheres pelo povoado foi chamando a atenção: a presença das mulheres nas ruas, na Unidade Básica de Saúde e nas suas casas direcionou algumas formas de pensar o cotidiano das mulheOs limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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res. Diversas formas de resistência foram aparecendo: no primeiro olhar se visualiza somente a “mesmice” e a reprodução da vitimização e da vulnerabilidade social das mulheres. No entanto, é nesse mesmo cotidiano que elas reinventam formas de existir, de se mover perante um modo de vida que insiste em ser difícil, principalmente para as mulheres. Aracaju é uma das capitais mais jovens do país, com apenas 159 anos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2012 contava com uma população de 580 mil habitantes. Apesar de ter nascido como uma cidade planejada, seu crescimento foi paulatinamente perdendo essa característica, e a expansão urbana foi ocorrendo com graves impactos ambientais: o aterramento de manguezais e lagoas, a artificialização dos seus canais naturais, o desmonte de dunas, tudo isso acompanhado de condições precárias ou ausentes de drenagem e escoamento sanitário, o que a faz conviver com graves problemas de inundações em períodos chuvosos (FRANÇA; RESENDE, 2010). A “Zona de Expansão Urbana” corresponde ao litoral sul da cidade de Aracaju, que, além de ser foco do “boom imobiliário”, é também foco da especulação turística, uma vez que ela localiza-se entre várias praias e o rio Vaza Barris, que circunda grande parte da cidade, numa região de grande beleza. Tal posição geográfica culminou na construção de hotéis, bares e restaurantes, a ponte Joel Silveira – ligação viária entre a região metropolitana da capital ao litoral sul do Estado, além de ser uma nova rota que torna menor o percurso até a cidade de Salvador –, o calçadão da praia de Aruana e do Terminal Hidroviário de Travessia Aracaju/Caueira, a orla Pôr do Sol no Mosqueiro, dentre outros investimentos com fins de estímulo ao turismo. Além disso, há uma expansão do mercado imobiliário na região, na qual estão sendo construídas mansões de grandes empresários e políticos, condomínios fechados, muitos loteamentos e novos conjuntos habitacionais, levando ao Gênero, desenvolvimento e território

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incremento do comércio e da rede de prestação de serviços públicos e privados. O potencial de crescimento urbano, associado ao incentivo do turismo, para além das perspectivas promissoras de desenvolvimento e progresso, tem provocado inúmeros problemas à população local, referentes não só à ocupação do território, com a expulsão de moradores e pequenos comerciantes de seus lugares de moradia e trabalho, mas também às mudanças de modos de vida, subsistência e práticas culturais e comunitárias, incluindo o adoecimento gerado pelas novas configurações urbana e ambiental. Com aproximadamente seis mil habitantes, a região do povoado de Areia Branca – onde foi realizada a pesquisa que deu origem a este trabalho – também se tornou alvo do crescimento e desenvolvimento da cidade. Com o aumento de investimentos imobiliários e do comércio em geral, a região do povoado passa por mudanças expressivas no cenário local, que por vezes se apresenta em grandes contrastes: há o aumento de condomínios fechados em contraste com os sítios dos moradores locais; a diminuição da prática pesqueira artesanal ao lado do incremento da pesca esportiva; maior fluxo de carros com maior dificuldade de mobilidade dos moradores locais; crescimento da imigração, tanto oriunda de cidades do interior e de moradores dos bairros mais centrais da cidade para a nova região quanto de turistas nacionais e internacionais; casas simples e sem infraestrutura básica ao lado de casas com muros altos e cerca elétrica, o que dificulta ainda mais o trabalho dos agentes comunitários de saúde (ACS). O povoado conta com uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e um Programa de Saúde da Família (PSF). O trabalho de campo foi desenvolvido junto às agentes comunitárias de saúde (ACS), com acompanhamento de visitas domiciliares, andanças pelo povoado e reuniões na Unidade Básica de Saúde (UBS). Pela equipe do Programa de Saúde da Família (PSF), foi possível Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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acompanhar o cotidiano da UBS e do povoado, conhecer as famílias: o meio ambiente e os impactos da degradação ambiental, as práticas de saúde e de resistência, assim como o próprio funcionamento da Unidade de Saúde e o tipo de assistência prestada, as hierarquias e relações sociais entre os profissionais e os moradores, usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Pelos agentes de saúde, acompanhamos práticas cotidianas do cuidado da saúde que são também constituídas por práticas de resistência ligadas à saúde e à degradação ambiental, as quais foram sendo observadas na medida em que o trabalho de campo foi ganhando forma e familiaridade. Essas práticas dizem respeito ao modo como as pessoas se mobilizam – individual ou coletivamente – para enfrentar as mudanças na região, muitas vezes usando-as ao seu favor, por meio de táticas cotidianas que “metaformoseiam” o curso dos acontecimentos, no sentido usado por Michel de Certeau (1999). A pesquisa objetivou analisar aspectos referentes às consequências da degradação ambiental e às diferentes formas de adoecimentos provocados por esse cenário de transformações de uma área considerada mais rural, pesqueira e interiorana para um cenário de crescimento urbano da cidade. Com isso, as formas de atendimento institucionalizado à saúde, bem como as práticas locais e culturais de cuidados com a saúde, estão diretamente relacionadas a esse processo de intensas mudanças. A rotina das famílias, as formas de trabalho, os modos de adoecer e de produzir saúde, as resistências são atravessados por esse processo de crescimento urbano.

A PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA E OS MODOS DE FAZER PESQUISA

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A perspectiva etnográfica foi adotada para o desenvolvimento da pesquisa, possibilitando o diálogo e a aproximação Gênero, desenvolvimento e território

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da produção de um conhecimento que se faz “no caminhar”. Os imponderáveis, os afetos, os desejos e as crenças estão nesse emaranhado, e a perspectiva etnográfica nos permite pensar e conviver, nos deixar afetar pelo campo, nos relacionar, “nos contaminar” pelas práticas e sermos ao mesmo tempo praticantes (CERTEAU, 1999). Deixar o campo de pesquisa nos guiar e “gastar” tempo no campo requer um rigor diferente, de outras dimensões: a dimensão da “impregnação” e do “distanciamento”, como observa Laplantine (2007). A impregnação seria um convívio assíduo, de encontros e experiências, enquanto o distanciamento seria um afastamento, um momento de pensar sobre tais encontros e experiências vividas entre o pesquisador e o seu objeto, “sobre o que lhes escapa e só pode lhes escapar” (LAPLANTINE, 2007, p. 183). Essas noções de impregnação e distanciamento estão, não necessariamente, remetidas a uma separação, mas serve para perceber que na pesquisa há inevitavelmente essa afetação pelo objeto de estudo. O que Laplantine chama de distanciamento é uma valorização do momento de pensar sobre os acontecimentos, sobre o processo de pesquisa e sobre o que não pode ser controlado e premeditado para ser analisado. Para esse autor, a “busca etnográfica” tem algo de errante, “as tentativas abordadas, os erros cometidos no campo, constituem informações que o pesquisador deve levar em conta, bem como o encontro que surge frequentemente com o imprevisto, o evento que ocorre quando não esperávamos” (LAPLANTINE, 2007, p. 151). As pesquisas de inspiração etnográfica possibilitam uma relação com o que Malinowski chamou de “os imponderáveis da vida real”, ou seja, os detalhes da vida cotidiana, as rotinas, o comum, o corriqueiro, os cuidados, os laços de simpatia ou aversões, enfim, os modos de viver, que escapam à previsão e ao controle. “Então, a carne e o sangue da vida nativa real preenchem Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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o esqueleto vazio das construções abstratas” (MALINOWSKI, 1978, p. 19). Dessa maneira, esta pesquisa tenta olhar por meio de um ângulo em que as potencialidades das mulheres sejam ressaltadas e valorizadas em meio às vulnerabilidades e vitimizações que sofrem constantemente. Para isso, Michel de Certeau (1999) nos ajuda e expressa esse modo de olhar as mulheres que contribuem para a desnaturalização da noção de fragilidade, docilidade e impotência dos atores sociais, criado pelo discurso do Estado capitalista e reproduzido cotidianamente. Esse autor destaca que “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”. Analisando as práticas, as “maneiras de fazer”, uma arte de combinar e utilizar, Certeau faz um estudo sobre as “estratégias e táticas”, onde não há ideia de passividade. Ao contrário, ressalta as práticas cotidianas e as “astúcias” no relacionamento com o poder coercitivo e com os padrões unificadores de “normalidades”. O trabalho de Certeau permite “olhar” as formas de resistências e desconstruir a ideia de legitimação e adesão total por parte dos atores sociais, de um modelo de sociedade regulador e homogeinizante. As mulheres de Areia Branca nos permitem pensar por esse viés de análise. Nos entremeios das irrisórias práticas cotidianas existem mecanismos de movimentação criados pelas mulheres os quais as fazem criar estratégias e táticas de sobrevivência e busca por melhores condições de vida. Neste trabalho, utilizaremos alguns enredos ou fragmentos de histórias de vida das mulheres para costurar a análise sobre o seu cotidiano e sobre o cuidado com a saúde em meio às transformações socioambientais que o povoado de Areia Branca vem passando com o processo de crescimento da cidade de Aracaju. 192

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ENTRE MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS A pesca era uma atividade muito corriqueira no povoado. Nos dias de hoje, percebe-se uma significativa diminuição dessa prática – tanto do ponto de vista da diminuição da quantidade de peixes do rio Vaza Barris como da própria prática de pescar, da perda de tradição da pescaria, fazendo surgir outras formas de trabalho e de sustento, como pedreiro, caseiro, diarista, terceirizados etc. Segundo alguns moradores, quem vivia da pescaria trocava o peixe por outros alimentos, especialmente por carne. Com a gradativa escassez, o peixe foi ficando para o consumo próprio da família, tendo-se de encontrar outras fontes de renda para complementar o sustento familiar. A dinâmica do povoado vai mudando lenta e silenciosamente, como o aumento do movimento de carros; o aumento de empregos fora da região, no centro da cidade, e com isso o uso mais frequente de ônibus; o crescente medo da violência, o uso frequente de cercas elétricas, muros altos com alarmes; a diminuição da circulação das pessoas nas ruas à noite, especialmente das mulheres, por se sentirem ameaçadas por notícias de furtos e assédios. Diante dessas transformações, podemos questionar o tipo de desenvolvimento regional que o povoado vem sofrendo. Entendemos que o desenvolvimento ocorre quando melhoram as condições de vida da população moradora do lugar, e não quando a dificulta – sendo esse, inclusive, o discurso do Estado e do mercado turístico e imobiliário ao defender a criação da chamada Zona de Expansão Urbana de Aracaju (SANTOS; NOBRE, 2014). Entretanto, esse progresso viabiliza os interesses de especuladores e investidores, que contam com a aliança do poder público. Com isso, resta aos moradores buscar formas de driblar as difíceis consequências causadas por esse direcionamento do crescimento da cidade, como, por exemplo: a falta de saneaOs limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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mento básico, o crescimento desordenado das casas e condomínios, o aumento do lixo nas ruas com a coleta irregular, as grandes chuvaradas que inundam casas e ruas, a poluição das praias, o desemprego e subemprego, a violência e a drogadição, a perda das antigas tradições, a vulnerabilidade de crianças, adolescentes e jovens diante das novas condições de vida e dos “perigos” que elas comportam, a mudança na lida das mulheres etc. Esse quadro também tem produzido muitos impactos na saúde das pessoas, com muitos adoecimentos físicos e sofrimentos psíquicos, produzindo um crescimento das demandas na unidade de saúde. Certa vez, visitamos uma casa logo cedo, pela manhã. As crianças ainda estavam de pijamas, esperando para tomar o café que sua mãe preparava. O pai já havia saido para o trabalho. A agente de saúde começou por essa casa por ser de moradores mais conhecidos e que não se importariam com o horário precoce da visita.27 Nessa família, a mãe contou que passou muito tempo levando a filha de hospital em hospital, por um problema sério no coração. A criança já está bem, se recuperou rápido. As duas filhas de uns seis e oito anos pareciam ser boas companheiras na lida cotidiana de sua mãe. A preocupação maior foi aparecendo quando a agente comunitária de saúde (ACS) fez a pergunta: “E ele... como está?”. Uma pergunta que mereceu outra performance vocal e corporal para disfarçar a preocupação perante as filhas: “...daquele mesmo jeito...”. A visita foi rápida, teríamos de ver muitas famílias naquela manhã. O sol forte nos fazia andar rápido entre uma sombra e outra. 27 É interessante pensarmos na dinâmica ambivalente do trabalho das ACS: algumas famílias não gostam de recebê-las e a nossa companhia muitas vezes conforta a agente de saúde, que diz se sentir muito sozinha nesse trabalho. Disse que tem medo de ir visitar as casas mais distantes, e que alguns moradores não a recebem muito bem. Ao contrário, porém, a ACS relata que na maioria das casas ela é bem recebida, que consegue fazer o seu trabalho, pois este depende da contribuição e aceitação dos moradores. Por isso, às vezes a presença e estranhos na visita pode causar um distanciamento.

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O esposo de Bia, como é chamada, sofre de forte depressão, segundo a agente de saúde. Não sabem o porquê dessa doença, mas Bia tem um palpite: ela pensa que é por causa do trabalho, “ele não gosta do que faz como porteiro, [...] ele gosta mesmo é de pescar, quando ele pesca, ele fica outra pessoa, muito melhor [...]”. As novas condições de trabalho no povoado impedem que consigam viver somente com a renda da pescaria. Com isso, os novos tipos de trabalho acessíveis para os moradores são de porteiro nos residenciais próximos ao povoado, de pedreiro e pintor, de motorista, serviços gerais etc. – atividades estas que diferem muito da rotina de quem era acostumado a viver da pescaria. Dentre muitas histórias de descontentamento com o trabalho, esse é um exemplo típico de um novo tipo de adoecimento disfarçado: o sofrimento psíquico lento e traiçoeiro, muitas vezes invisível por estar ligado à mudança de modos de vida que já não são valorizados ou não encontram lugar na dinâmica das relações econômicas atuais. Assim como seu marido, Bia também teria fortes motivos para ficar depressiva. Uma mulher se sentindo sozinha, lutando pela saúde de suas filhas, por um trabalho e cuidando de um esposo doente. Ela possui táticas de enfrentamento para driblar as dificuldades financeiras e de saúde, tenta diariamente reinventar um modo de vida que garanta a saúde de suas filhas, o teto onde moram e o alimento que consomem. Talvez esse cuidado seja o sentido maior que Bia possui como engrenagem no seu recomeço diário. O trabalho das mulheres no povoado prevalece no âmbito doméstico: babá, faxineira, empregada em “casa de família”. Durante nossas caminhadas e conversas, percebemos que muitas mulheres participam da atividade pesqueira, como marisqueiras. A pescaria ainda é muito praticada entre as mulheres, mas parece ser uma prática pouco avistada. Vimos alguns grupos de mulheres indo e retornando da pescaria, com baldes e redes nas mãos. Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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Conhecemos dona Ceiça, já abordada anteriormente por outro pesquisador da nossa equipe durante suas andanças pelo povoado. Ele nos contou que viu dona Ceiça limpando o peixe e alguns crustáceos na rua, em frente à casa dela. Ela mesma pesca, limpa e vende. Muitas vezes já tem comprador certo. Ele, para esticar a conversa, comprou alguns crustáceos. Dona Ceiça é uma mulher alta, magra, vaidosa, com as unhas pintadas e ajeitando sempre seu cabelo. Com os seus poucos dentes, nos acolheu com um sorriso tímido. Depois de muita conversa, perguntamos se ela nos levaria um dia desses em suas pescarias, e ela disse que sim, que era só marcar. Ao comentar com as agentes de saúde que estava planejando pescar com dona Ceiça, elas ficaram surpresas e disseram: “Sua louca... a pesca de Ceiça é pesada”. Com isso, elas queriam dizer que dona Ceiça pescava para além do mangue e da beira do rio, prática não muito comum entre as mulheres pescadoras. Talvez para dona Ceiça esse movimento de progresso e crescimento urbano ainda não lhe tenha afetado totalmente a ponto de mudar sua prática de trabalho. Talvez ela esteja fazendo um uso desse processo a seu favor para assim vender mais o seu peixe. Ela é uma das poucas mulheres que não deixaram de pescar e viver da pescaria para trabalhar em casa de família ou em outro trabalho no “centro da cidade”. Dona Ceiça nos faz lembrar o estudo de Martins (2009) sobre as mulheres “narradoras de Itaoca” (RJ), o qual, a partir do trabalho de campo junto às rodas de “descarnadeiras de siri”, traz algumas reflexões a respeito do trabalho de homens e mulheres na atividade pesqueira. Para essa pesquisadora, “o trabalho das mulheres, por exemplo, obedece a um tempo duplo – dividido entre o cuidar da casa e ‘esperar o peixe’”. Sobre as práticas de trabalho, essa mesma autora ressalta que “o papel da mulher é marcado pela hierarquia mar versus terra, definindo as tarefas e o território” (MARTINS, 2009, p. 250-1). 196

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No campo de pesquisa, percebe-se que as mulheres não se reconhecem e nem são reconhecidas como pescadoras: o mar é para os homens e as atividades que restam às mulheres são complementares, como consertar as redes, a pesca de mariscos, caranguejos e outros crustáceos. São atividades que não necessitam navegar o “mar adentro”, pois essa é considerada uma tarefa masculina. Em algumas famílias, a pesca parecia ser a principal atividade de sustento, o que está ficando mais raro nos dias de hoje. Segundo alguns moradores, “o rio não dá mais o peixe que dava antes”, pois pescavam mais e sobrava para vender nas redondezas. Nas ruas encontram-se marcas da pesca, como algumas canoas e tarrafas estendidas na varanda. Algumas vezes, durante as visitas, passamos por homens e mulheres que voltavam da pescaria, sem muitos peixes em seus baldes, e com suas redes já arrumadas e realinhadas. Mesmo com a diminuição dessa prática, ela ainda deixa suas marcas, pois pensar na diminuição da pescaria é pensar nas mudanças socioambientais que têm consequências para o cotidiano das famílias.

FRAGMENTOS DE HISTÓRIAS COTIDIANAS: AS MULHERES E SEUS MODOS DE CUIDAR DA VIDA As mulheres do povoado lidam com diferentes circunstâncias desde muito cedo. Diferentes lugares e comportamentos deixam impressa a marca do lugar ao qual pertencem. Em muitos outros lugares mais interioranos, a vigilância sobre o comportamento da mulher é mais assídua e visível. Muitas vezes, as mulheres do interior dependem da sua “boa reputação” para arranjar um bom casamento. Às que não buscam o casamento, sobra-lhes a dedicação aos estudos e a escolha apropriada dos lugares que podem ser frequentados por “meninas-moças”. Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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Conhecemos duas irmãs, “moças”, estudantes, diferentes e inseparáveis. Suas vidas estão envolvidas em estudar para “ter uma vida melhor e ser alguém na vida”. Suas atividades resumem-se em ir à escola, estudar em casa e ajudar sua mãe nas tarefas domésticas. Moram em um terreno compartilhado entre alguns familiares, tendo cada família a sua casa. As conversas foram inspiradas sobre “o estudar”, as dificuldades no colégio, o vestibular e as escassas formas de diversão no povoado, ou sobre as que existem, mas que não podem ser frequentadas por elas. A mais velha tem 18 anos, e a mais nova, 16. Lamentam que seu colégio “não é forte”. Estudam em outro bairro da capital, pois no povoado não tem “segundo grau”. A internet chega muito lenta, e os professores não conseguem dar conta das imensas turmas e de alunos “irresponsáveis e desinteressados, que acabam prejudicando quem quer aprender e passar no vestibular”, disse uma delas. A elas resta estudar por “conta própria”, sentar na primeira cadeira para mostrar interesse ao professor, “lá atrás não se ouve nada o que o professor explica... e isso quando ele não desiste de falar porque ninguém presta atenção!”. No povoado, suas diversões estão relacionadas a passear com a família, visitar amigas, fazer uma caminhada antes de escurecer. As “danceterias”, barezinhos do povoado, “moça de família não frequenta..., fica mal falada... como minha família vai me apoiar nos estudos se fico mal falada?”. Para muitos pais, a vizinhança serve de escudo protetor das filhas para que não corram o risco de arrumar namorado cedo e desistir de estudar. Citam exemplos de meninas que frequentaram a danceteria e “engravidaram cedo e agora não podem mais estudar, agora têm que sustentar e cuidar do filho”. As “meninas-moças” do povoado também não podem passar no posto de saúde e pegar preservativos gratuitamente. Há uma vigilância que “paira no ar”, pois se pegarem os preservativos todos saberão que não é mais “moça”, e resta articular com alGênero, desenvolvimento e território

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guém mais velho para que lhes distribua, “mas isso é pras mais ousadas, que arriscam mais...”. A necessidade de se “resguardar” para obter respeito, não sair depois que escurece e nem frequentar locais considerados inapropriados para “moças” se torna parte do cotidiano de mulheres mais jovens e solteiras, que buscam uma vida “independente” pelos “estudos” ou uma “ficha limpa” na vizinhança caso queiram arranjar um marido, “um bom partido”. O cuidado para que as moças da vizinhança se “comportem e não fiquem mal faladas” faz parte do cotidiano de suas mães. Em A história da vida privada, Michelle Perrot descreve os processos de vizinhança, do período da Revolução Francesa à Primeira Guerra, no qual “os vizinhos estabelecem um código de decência da casa e da rua” (PERROT, 2009, p. 161). As reflexões dessa autora sobre o cotidiano de cidades nesse período nos faz pensar sobre as formas como as relações sociais e de vizinhança estabelecem códigos e criam imagens que podem determinar o futuro das “meninas-moças”, suas ações e táticas para compor seu cotidiano e garantir uma “vida melhor”. “O olhar da vizinhança pesa sobre a vida privada de cada um e o que dela aflora: O que dirão? A desaprovação, a tolerância, a indulgência dos vizinhos tem a força dos Dez Mandamentos” (PERROT, 2009, p. 161). O trabalho das mulheres de Areia Branca está diretamente ligado à prática do cuidado. Quando não possuem familiares para cuidar dos filhos, elas encontram dificuldades em manter uma atividade fora de casa, que gere remuneração. Muitas mulheres relataram que gostariam de ter alguma atividade que contribuísse financeiramente com as despesas da casa e que com isso viabilizariam mais facilmente uma possível independência financeira perante os maridos. Mesmo as mulheres tendo relatado que não trabalham “fora de casa”, com o passar dos dias e das conversas, percebe-se que elas encontram maneiras de ter uma renda extra, às vezes entre elas mesmas, sem muiOs limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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to considerar essa atividade como um trabalho. Por exemplo, algumas vendem roupas nas casas, bijouterias, artigos de catálogos por encomendas etc. Nessa prática, as mulheres fortalecem uma rede de apoio entre elas, dividem as dificuldades e as estratégias de negócios. Pelas ruas, passam mulheres com seus filhos na garupa ou no quadro da bicicleta; a pé e de mãos dadas com seus filhos. Passam por nós, conversam com a agente de saúde e dizem aonde estão indo: levar o filho no posto de saúde, fazer uma entrega, uma cobrança, mostrar as novidades que estão vendendo, um catálogo novo que chegou... Levam recados, trocam “iguarias”, uma receita, uma novidade e, muitas vezes, uma tristeza... As mulheres inventam essas práticas de cuidado, cotidianamente. Uma rede que se compõe como campo de força às intempéries da vida. Nesse cenário, essa composição é um processo de ambulante. As mulheres recorrem a parentes, vizinhos, migram, passam tempo fora com os filhos para tratar de alguma doença ou para um exame médico no outro lado da cidade. Isso tudo para se desviarem da desistência e da aceitação de um modo de vida que insiste em ser difícil. Dona Nair é uma senhora moradora do povoado há muitos anos. Ela tem uma vida simples. Está construindo, aos poucos, uma casa nova no mesmo terreno onde mora. Além de sua casa atual e a que está construíndo, tem uma outra casa, de outros familiares. Dona Nair vai à Unidade de Saúde frequentemente. Conversamos com ela algumas vezes em que esteve por lá. Seu esposo vivia da pescaria e hoje é aposentado. As dificuldades financeiras e os adoecimentos decorrentes da idade mais avançada não aparentam ser o motivo do semblante triste e quieto de dona Nair. Ela não teve filhos, criou todos os filhos de seu esposo, que enviuvou cedo, uns ainda bem pequenos. Seu Nelson e dona Nair formam um casal com história instigante e ao mesmo tempo incomum. Eles estão casados há Gênero, desenvolvimento e território

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uns 30 anos, mas, como já dito, não tiveram filhos juntos. Seu Nelson não gosta de ir ao médico e nem de tomar remédios, principalmente depois que um médico afirmou que ele caiu por causa da cachaça, e ele disse: “Eu nem bebo”. Dona Nair também comentou que ele não bebe e que não gostou quando o médico falou: “Velho que bebe dá nisso, cai”. Seu Nelson estava na varanda, sentado em uma cadeira de plástico branca, ao lado da casa. Ainda na varanda havia um banco de madeira já bastante usado e uma cadeira de balanço mais antiga. Ele começou a contar suas histórias, de quando se acidentou e machucou a perna, mas que conseguiu se recuperar bem. Comentou também que costumava pescar e que pegava muito peixe, geralmente para consumo próprio, mas sempre sobrava e então vendia ou trocava por carne. Da janela avistei uma mesa pequena na sala, com dois tipos de chapéus sobre ela, prontos para quando sair; de certo, cada um serve para ocasiões diferentes. Ele puxou conversa, começou a falar de sua outra esposa, com quem teve seus filhos e que faleceu havia uns 30 anos. Ele convidou para entrar e mostrou a foto dela no quadro. Um quadro antigo, daqueles feitos por “viajantes” que passavam nas casas antigamente, oferecendo esse serviço. É uma pintura de fotos estilo três por quatro, de cada um, colocadas uma ao lado da outra, formando o casal. A moldura do quadro é de ferro, trabalhada em formatos de flores. Fiquei na varanda de frente para a porta e ele dizendo que ainda sente muita falta de sua esposa, que às vezes passa a mão na cama, no lugar dela, e gostaria que ela ainda estivesse ali. Ele olhava para o quadro e acariciava. Um coração saudoso, de um amor sem igual. Dona Nair ficou do lado de fora, quieta, com a mão na boca e olhando para o chão, seu lenço na cabeça cobrindo seus cabelos brancos mexia com o vento e seu olhar não parava de fitar o chão. Com isso, podemos pensar que a construção social da masculinidade marca traços violentos nos homens, que também Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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passam por preconceitos e sofrimentos, tendo muitas vezes que esconder sentimentos para afirmar-se como homens. No entanto, seu Nelson desconstrói esse modelo de “masculinidade” e demonstra um amor raro, que, mesmo depois de 30 anos e de ter casado novamente, não faz esquecer sua antiga companheira. Ficamos inquietas para conversar com dona Nair, pequeninha, de cabelos brancos e lenço na cabeça, rugas marcam o tempo vivido em seu rosto. Por que será que ela não teve filhos? Como será essa relação do casal, tendo ela que viver com o amor saudoso de seu Nelson? Foi ela quem criou os filhos de seu Nelson desde pequenos, depois que sua primeira esposa faleceu... Não voltamos para conversar com dona Nair, outros acontecimentos foram tomando espaços no processo de pesquisa. Mesmo assim, podemos pensar sobre este enredo “breve”, mas com uma grande profundidade, principalmente sobre o cotidiano de dona Nair em cuidar dos filhos de seu Nelson: talvez ela tenha feito isso também por um grande amor. Dona Nair está construindo uma nova casa em frente à sua atual, a casa ainda no salpicado do cimento; ela se encosta na porta e olha para seu Nelson na varanda de sua outra casa. Temos essa foto registrada. Um olhar que sente algo, que diz uma história, que revela uma esperança, de quem sabe um dia também ser amada. A nova casa, “só sua”, parece ser uma forma de resistência/re-existência de dona Nair: a construção de um espaço próprio, que diz de um não assujeitamento. É um gesto firme, porém discreto, que não faz alarde, após toda uma vida de dedicação ao esposo e aos filhos dele, que ela mesma criou. Em muitas outras casas que visitamos, percebe-se que há, de uma forma ou de outra, um conflito entre os cuidados com a saúde impostos pelo atendimento biomédico e os cuidados dos moradores e as formas como lidam com tais imposições. Dona Nair insiste que seu companheiro vá às consultas regularmente. Do contrário, será ela quem vai ter de cuidar das dores e Gênero, desenvolvimento e território

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arrumar remédios pela vizinhança para cuidar de seu Nelson. Para dona Nair, fazer com que seu Nelson vá ao médico é retirar um pouco do peso da responsabilidade de ter cuidar da saúde de seu companheiro, além dos filhos e da própria saúde. Um outro enredo que nos diz sobre o cotidiano de mulheres e a prática do cuidado é o de dona Moça. Apesar de o nome lembrar jovialidade, dona Moça está com os seus 91 anos. Acamada, já não abre seus olhos, nem fecha sua boca para molhar-lhe de saliva. Seus dentes ficam escondidos por trás da fina camada dos seus lábios rígidos, sem expressar um sorriso, nem sua dor. Seu corpo querendo morrer, penalizando de velhice, já cansado de lidar. A casa era grande, bem arejada. Na sala cinco mulheres, vizinhas e filhas estavam conversando, cuidando e, de certa forma, “velando” o penar de dona Moça, que está à espera “da sua hora”. Quando chegamos com a agente de saúde, pensaram que éramos enfermeiras. Elas estavam esperando uma visita de alguém da Unidade de Saúde havia alguns dias. Comentaram, depois, que, como não éramos enfermeiras, “não poderiam dizer nada” ou avaliar o “quadro” de saúde de dona Moça. É fato que todos sabiam que não restava mais nada a fazer, mas a esperança e os procedimentos de cuidar de quem está acamado refletem a vontade de extinguir o sofrimento. Uma “cura” para dona Moça, infelizmente, a humanidade não possui. A morte faz parte da vida, e esse é um assunto que mexe com os sentimentos humanos e que difere entre crenças religiosas, ou para quem não as tem. O que a morte vem representar em nossa sociedade é um assunto interessante e polêmico. Sabemos que vamos morrer um dia, mas nunca estamos preparados. A morte provoca muito medo e insegurança. Certamente esse assunto não é nosso foco, mas são questões que aparecem no trabalho, e que ficam difíceis de serem varridas. Há, nos dias de hoje, uma luta incansável, investimentos e especulações em driblar o envelhecimento, cirurgias plásticas, Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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cosméticos, remédios que prometem rejuvenescimento das células... O envelhecimento é (e sempre será) parte de nossa maneira de viver, tanto aceitando-o quanto rejeitando-o incansavelmente. No contexto de dona Moça, sua maneira de viver estava relacionada a mais uma aceitação do que rejeição de seu processo de envelhecimento: o que não parecia aceitar é sua morte lenta e penosa. Seu viver estava chegando ao fim, assim como seu processo de morrer também. Sua pele pálida, enrolada em lençóis brancos, suas rugas e expressões de sofrimento, quarto fechado e seus resmungos são o que sobressaem de lembrança desse processo. Como teria sido a história de dona Moça? O que sofreu, o que lhe alegrou? Isso poderemos saber por outros, mas não mais por ela mesma. O que as mulheres presentes estavam fazendo era esperar que dona Moça desse seu último suspiro e terminasse seu sofrimento. A situação de dona Moça mexeu com as mulheres. Deixaram suas rotinas nesse dia para confortar, apoiar e retribuir os cuidados que circulam entre elas. Era a hora de se dispor para dona Moça e seus familiares, “pode ser que precisem de alguma coisa neste momento...”, dizia uma das mulheres. As mulheres passaram a conversar sobre dona Moça, o que gostava de fazer, relembrando alguns dos seus momentos, lamentando sua futura ausência com uma certa aceitação, respeito e amor. Em Escritos sobre a medicina, Georges Canguilhem (2005, p. 25) comenta sobre as doenças e a saúde, e afirma que “o sofrimento, a redução de uma atividade habitual escolhida ou obrigada, o enfraquecimento orgânico, a degradação mental, são constitutivos de um estado de mal”. E que tais características desse mal “não são por si mesmo os atributos específicos do que o médico hoje identifica como doença no exato momento em que ele se esforça para fazer cessar o mal ou somente atenuá-lo”. Canguilhem discute a saúde em termos filosóficos. As maneiras de pensar a saúde também mudaram conforme as Gênero, desenvolvimento e território

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transformações sociais, econômicas e culturais foram ocorrendo. Comenta que “a ampliação histórica do espaço no qual se exerce o controle administrativo da saúde dos indivíduos desembocou, nos dias de hoje, em uma Organização Mundial da Saúde” (CANGUILHEM, 2005, p. 43), que também elaborou uma definição de saúde para poder delimitar seu domínio de intervenção. Eis a famosa definição: “A Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não consistindo somente na ausência de enfermidade ou doença”. De acordo com as inúmeras e diversas definições, as dimensões que englobam as possibilidades de uma vida saudável estão sendo consideradas legalmente, embora o estado de completude apregoado seja inatingível. No entanto, as formas de reinventar as maneiras de viver perante o modo de sociedade atual, os imponderáveis e as ações humanas ficam de certa forma desconsiderados, em atrito com uma forma de dominação da biomedicina operante nos corpos ditos “enfermos” e nos ditos “saudáveis”, determinando as condições de vida, as formas de adoecimentos e os modos de tratá-los. A história mostra que não faltam definições de saúde. Das mais completas e bem elaboradas às mais toscas e reducionistas, a saúde continua sendo atravessada por inúmeros fatores que diferem, dependendo do contexto social e cultural, assim como também de momentos político-econômicos e de crises financeiras. A questão que este trabalho propõe é pensar a saúde em suas dimensões mais corriqueiras, momentâneas ou duradouras, onde o andar do cotidiano, as mudanças de um dia para o outro fazem esse cuidado da saúde mudar de vez em quando.

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MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO CUIDADO: AS MULHERES ENTRE A (DES)VITIMIZAÇÃO E A PRODUÇÃO DE RESISTÊNCIAS

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Durante os dois anos da pesquisa, foi possível conviver com mulheres que se encontravam nesse processo de busca pela saúde por meio do cuidado de seus familiares, tanto pela rede de apoio entre amigos e vizinhança quanto pelo atendimento institucionalizado. Como protagonistas, essas mulheres tecem redes: são elas, principalmente, que fazem uso de alternativas para buscar as melhores condições de vida. Um caminho nada fácil e na maioria das vezes bastante árduo. É por isso que potencializar essas ações de cuidado das mulheres, ao invés de vê-las apenas como vítimas, traz um aspecto desafiador para a pesquisa. A noção de cuidado dentro da teoria feminista possui algumas ambiguidades. Ao mesmo tempo em que buscamos potencializar essa prática do cuidado, há inúmeros estudos feministas que veem essa prática do cuidado como vitimizadora das mulheres. Não se trata de negar esse aspecto: há evidências de que a maioria das atividades cotidianas que envolvem o cuidado é feita por mulheres, o que dificulta, por exemplo, seu desenvolvimento profissional e muitas vezes suas realizações pessoais. As limitações são muitas, de fato, quando a prática do cuidado é socialmente pensada como responsabilidade exclusiva das mulheres. No entanto, e é importante salientar, esse cuidado pode ser pensado como algo para além de práticas depreciativas, e sim como algo elaborado e articulado tática ou estrategicamente pelas mulheres, envolvendo o contexto familiar, delegando funções e tarefas para os membros da família, espaço no qual ela também exerce poder. Algumas autoras, como Carol Gilligan (1993), por exemplo, tratam dessa questão do care como uma moral sofrida pelas Gênero, desenvolvimento e território

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mulheres, que as põe em situações de submissão e inferioridade perante os homens. Marcela Lagarde (1997) diz que as mulheres são “seres para os outros”, deixam sempre em segundo plano as questões de realização pessoal. Afirma que a maternidade é considerada como algo natural, como experiência vital básica de todas as mulheres, “como centro positivo de sua feminilidade e de sua ‘natureza’” (LAGARDE, 1997, p. 189). Neste trabalho, é importante considerar essas noções de cuidado dentro da teoria feminista para trazer problematizações em relação ao campo de pesquisa estudado. Como essa noção de care estaria presente no cotidiano das mulheres? Que tipo de relação encontramos entre esse cuidado e as práticas de saúde? Susan Sherwin (1998), ao contrário, analisa a prática do cuidado como instrumento potencializador das mulheres. Essa autora afirma que, enquanto várias análises consideram as mulheres como vítimas da opressão, elas mesmas não se veem como meras vítimas, como passivas e insignificantes. Mesmo dentro de um cenário opressor, as mulheres encontram possibilidades de resistir e desafiar as forças que as oprimem (SHERWIN, 1998, p. 3). Sherwin faz uma importante observação: ela acredita que os serviços de saúde têm grande potencial, tanto para aprofundar ou aliviar as formas de opressão como também para piorar ou aliviar problemas de saúde específicos. Além disso, Sherwin enfatiza que a biomedicina ignora o valor que a contribuição das práticas “não médicas” têm a oferecer ao sistema de saúde. E conclui que a medicina vem contribuindo em muitos aspectos na “perpetuação” da opressão das mulheres (SHERWIN, 1998, p. 4). Anne-Marie Sohn (1991), em seu texto “Entre Duas Guerras: os papéis femininos em França e na Inglaterra”, fala sobre a “mãe e a Garçonne”, no qual relembra questões históricas marcantes sobre os papéis que eram (e ainda são) atribuídos Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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às mulheres ao longo dos anos na França e na Inglaterra no período entre as duas guerras. O século 19 foi marcado por muitas transformações,e uma delas foi a luta contra a mortalidade infantil. Com isso, o discurso médico reforçou a pressão a favor da mulher no lar, “culpabilizar as mães, e depois educá-las e transformá-las em auxiliares do médico” (SOHN, 1991, p. 118). Com isso, as novas responsabilidades que os médicos investem nas mulheres passam a dificultar ainda mais a realização do trabalho fora de casa. As mulheres que não podiam dispor de tempo integral para a família eram vistas como “mães desnaturadas”. O cenário era composto com o trabalho das mulheres fora do lar. Na França e na Inglaterra, as mulheres tinham uma profissão, ou, quando não, trabalhavam como operárias. O retorno da mulher ao lar levantou questões históricas que voltaram a demarcar espaços e responsabilidades entre homens e mulheres – como, por exemplo, os espaços públicos, que passaram a ser mais dos homens; e o espaço privado do lar, que passou a pertencer mais às mulheres. A relação do público versus privado repercute grandes discussões no que se refere às mulheres. Historicamente, o espaço privado vem sendo destinado como espaço exclusivo das mulheres e o espaço público como sendo dos homens. No entanto, a história não se dá dessa forma linear e definida. Segundo Perrot (2005, p. 462), “certamente nem todo o público é masculino no espaço da cidade onde circulam as mulheres”. As donas de casa, segundo Perrot, tinham um tempo de trabalho considerável, pois a sociedade do século 19 não poderia crescer e se reproduzir sem esse trabalho não contabilizado e não remunerado da dona de casa. Os recursos monetários da dona de casa provêm especialmente de atividades do setor de serviços, como faxina, lavagem de roupas, entregas; e também pequenos comércios e vendas em domicílio, atividades que realizam carregando as crianças, ou deixando estas nas vilas e pátios brincando com as demais crianças da vizinhança. NesGênero, desenvolvimento e território

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sa época, as crianças ocupavam mais o espaço das ruas e brincavam mais em conjunto enquanto as mães trabalhavam. Isso constitui também numa ruptura na utilização do espaço, onde a dona de casa tenta manter esse papel monetário que desempenhou na sociedade tradicional, que é trazer dinheiro para casa. Segundo Perrot (2006), a dona de casa de alguma forma se desdobra na cidade do século 19. A maioria das tarefas implica deslocamentos. A autora faz um estudo mais aprofundado sobre os “usos do espaço” e ressalta as diferenças de que o que vale para a “mulher do povo” não vale para a “mulher burguesa”. No que se refere aos níveis de classe, os usos sociais da cidade se diferenciam claramente. As mulheres burguesas têm um modo de circulação mais “rígido”, uma regulação mais forte da relação interno/externo, pois constituem modelos de como a mulher “deve ser”, onde o espaço privado está mais isolado e valorizado. No decorrer de nossas andanças pelo povoado, percebe-se que as mulheres são atrizes importantes por terem uma ligação a mais com o “cuidado da vida”. Ressaltamos as mulheres por estarem mais presentes quando visitamos as famílias com os agentes de saúde. Nas visitas são as mulheres, na maioria das vezes, que ficam em casa, na lida dos afazeres domésticos e no cuidado dos filhos. Algumas histórias de mulheres nos chamam a atenção. Elas se tornam imagens descritas, provocativas e instigantes sobre o cotidiano de mulheres que ainda dedicam suas vidas ao cuidado dos filhos, da casa e do esposo. Como é a história de dona Jovita. Uma senhora de aproximadamente 60 anos, casada com seu Altran. Eles moram na rua principal do povoado, em uma casa azul de frente para a rua alagada pela água das chuvas. Por conta da água acumulada no bueiro perto da estrada e de sua casa, criam-se muitos girinos, e em alguns dias ficou “tudo infestado de sapo”, disse seu Altran, que chegou a “tirar de pá os que conseguiu matar”. Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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Esse foi o início da conversa quando chegamos à sua casa. Ele estava na rede da varanda escutando um rádio daqueles antigos, pretos, com detalhes de madeira, o qual estava sobre a mesa de seis lugares que ocupava o final da varanda. Quando entramos, ele se levantou e ficou de pé. Depois de alguns minutos, dona Jovita chegou até a varanda, puxou uma cadeira e sentou de lado com um dos braços na mesa e outro no escoro da cadeira. Ela estava com a blusa molhada da lida de lavar roupa no tanque. Cansada, apoiou seu rosto em uma de suas mãos, com o cotovelo na mesa, e ficou olhando para nós, escutando a agente de saúde e os “causos” contados por seu esposo. Seu Altran é aposentado e, de pé, conversa e anda, agitado e dizendo o que gosta de fazer, de andar de bicicleta, de ler os jornais, do que participa e que, agora que se aposentou, pode “curtir mais a vida”. E ela, desanimada na cadeira, parecendo moribunda. Do jeito que sentou, ali mesmo ficou: seu corpo parecia estar jogado, desistindo de se animar, cansado de lidar. A lida de casa é algo que atormenta muitas mulheres – nem todas, certamente, mas há algo de cansativo na lida das mulheres, a mesmice, que oscila com o passar dos tempos. E o invisível vai aparecendo aos poucos, impresso no corpo, no jeito de olhar, nas expressões de “tanto faz”, de desagrado, de “deixar rolar”, de desinteresse. A cena ficou registrada de tal forma que nos fez pensar nas diferenças entre eles, na condição dela, de mulher que trabalha em casa e cuida dos afazeres domésticos, onde não vai se aposentar tão cedo, e ele, homem cheio de desejos e energia para viver depois que se aposentou, fazendo gestos e contando suas histórias. Ela sentada na cadeira, em silêncio, como aquela expressão de quem não está pensando e nem planejando nada, sem ânimos e sem desejos. Com isso, ficou uma pergunta que não pôde ser respondida naquele momento: quais seriam os desejos de dona Jovita? A imagem está registrada, foi um momento rápido, quase despercebido, mas que nos fez pensar. Gênero, desenvolvimento e território

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A historiadora brasileira Mary Del Priore escreve em seu livro, História das mulheres no Brasil (2009), que a construção da história das mulheres não é somente delas, ou do desejo delas. Ao mesmo tempo, enfatiza as mulheres como sendo praticantes, como protagonistas desse processo sócio-histórico: A história das mulheres não é só delas, é também aquela

da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da

violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos (DEL PRIORE, 2009, p. 7).

Essa é uma importante reflexão. Ela contempla as diferentes formas de ser praticantes (CERTEAU, 1999). Ou melhor, ela põe as mulheres como praticantes; enfatiza as relações sociais e o contexto em que as mulheres estão inseridas. A construção da história das mulheres não pode ser baseada somente na violência que sofrem, por exemplo, e sim nas diferentes formas de reinventar modos de vida; de resistir; de driblar preconceitos e moralismos que atormentam o corpo e a alma de muitas mulheres, especialmente aquelas que carregam o “cuidado” como sendo a principal tarefa esperada pelos outros – como, por exemplo, a de “ser uma boa mãe”, o que difere em relação ao contexto histórico, cultural, econômico e social nos quais essa ação de cuidar é vivenciada. Nesse sentido, este trabalho também é uma proposta de potencializar a coletividade desenvolvida entre mulheres e a capacidade de formar circuitos de cuidados e apoio em relação à saúde de seus filhos e aos cuidados com a casa, com suas famílias e seus trabalhos. Nisso se inserem os cuidados de saúde institucionalizados, bem como as diversas práticas comunitárias de saúde que também compõem esse processo de cuidar. Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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No que concerne a este trabalho, é importante pensar em como as mulheres reinventam suas rotinas no enfrentamento de suas dificuldades. Sem intenção de pensar na vida de mulheres em contraposição à dos homens, este artigo procura descrever um percurso das mulheres, onde elas mesmas são protagonistas, sem enquadrá-las como vítimas e nem passivas. E é nessa perspectiva que nos debruçamos sobre o entendimento do que é desenvolvimento regional. As intenções deste trabalho são inspiradas pela perspectiva de mulheres que escreveram sobre a história de forma contextual, dinâmica e diversa, como Michelle Perrot. Em seu texto, “A mulher popular rebelde”, publicado em 1988, traz uma intrigante maneira de pensar a construção da história das mulheres. Ela diz: “no entanto, o que importa reencontrar são as mulheres em ação, mulheres dotadas de vida, e não absolutamente como autônomas, mas criando elas mesmas o movimento da história” (PERROT, 2009, p. 187). Pensar na construção da história é pensar em como os acontecimentos ficam registrados. Para Michele Perrot, há muita coisa que fica longe dos escritos, como, por exemplo, a história das mulheres, operários e prisioneiros (PERROT, 2006). Nesse sentido, não se trata de “dar a voz” aos supostos excluídos, mas problematizar tais acontecimentos e seu “pano de fundo” sócio-histórico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O contexto regional no qual a pesquisa foi realizada e todo o processo de trabalho de campo nos remete a muitas reflexões. O cotidiano das mulheres do povoado de Areia Branca passa por constantes transformações, de inúmeras maneiras: de um lado porque, embora tenha uma aparente “mesmice”, apresenta-se como algo dinâmico e surpreendente nesse conGênero, desenvolvimento e território

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texto de expansão urbana; de outro, aponta as consequências desse desenvolvimento regional, o qual não está ocorrendo em parceria com a dinâmica de funcionamento da população local, produzindo inúmeros desafios para as mulheres, inclusive o cuidado em saúde. Tais aspectos são próprios de processos de desenvolvimento que fazem promessas de progresso com base em uma racionalidade instrumental, defendida pelo mercado e pelo Estado, sem levar em conta as necessidades, desejos, tradições e valores das populações atingidas por esses projetos. Nesse contexto, no qual se insere a grande maioria dos projetos contemporâneos de urbanização e expansão das cidades, é comum assistirmos à degeneração crescente da qualidade de vida, tanto em nível público quanto privado, a destruição da natureza, a devastação das tradições, a degradação das relações sociais e um conjunto de prejuízos materiais e simbólicos. Em paralelo às grandes obras que caracterizam projetos de urbanização das cidades, tem-se como saldo sociedades marcadas por profundas desigualdades, que não compartilha democraticamente os ganhos que esses projetos instauram, em termos de acessos aos benefícios socioeconômicos e aos dispositivos de exercício de poder. No processo da pesquisa que desenvolvemos em Areia Branca, a perspectiva etnográfica contribuiu para adentrarmos no cotidiano do povoado e, em especial, na vida das mulheres, nos quais suas práticas de resistência se apresentam como algo inerte, quando vistos a “olho nu”, mas que se revelam potentes: vivenciando e participando da rotina local, percebemos os impactos do propalado “progresso” em uma área almejada para ser o foco de grandes investimentos imobiliários, turísticos e comerciais da cidade, sobre os modos de existir da população local e os modos como as pessoas, e de modo particular as mulheres, criam e recriam seu cotidiano, entre a mudança e a permanência de práticas sociais, culturais e comunitárias. Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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Nesse contexto de mudanças locais, familiares e históricas, existem muitos encantos e desencantos que permeiam os enredos das histórias que conhecemos na área. Entremeados com histórias de vida, os relatos vão descrevendo as formas de funcionamento do povoado e as transformações pelas quais ele vem passando ao longo dos anos, especialmente nos momentos mais críticos da implantação dos projetos de expansão urbana da região. Essa é uma área que se tornou alvo precioso de investidores, pois geograficamente a cidade não tem mais para onde se estender, exceto para o sul, onde ficam antigos povoados de pescadores e pequenos agricultores e as praias, antes pouco frequentadas. O processo de pesquisa e o papel do pesquisador foram alvos de análises e afetações durante todos os momentos. Havia muitas expectativas, por parte das famílias visitadas, de que pudéssemos resolver seus problemas – o que revela, por um lado, a magnitude e a complexidade dessas questões, e, por outro, a ausência de espaços institucionais com dispositivos capazes de encaminhar a solução desses problemas e de potencializar iniciativas que possam fazer o enfrentamento necessário, sobretudo direcionado ao Estado, a quem, entre outros atores sociais, cumpre fazer cumprir um Plano Diretor.28 Esperamos que este artigo possa despertar questões sobre o tipo de desenvolvimento regional que realmente ocorre e o que desejaríamos que estivesse acontecendo. Não se trata de ir contra o progresso e o desenvolvimento da cidade. Trata-se de questionar de que forma esse processo vem ocorrendo e a 28 Em Aracaju há um processo longo e lento de revisão desse Plano Diretor na Câmara de Vereadores. Formulado em 2000, foi entregue à Câmara de Vereadores em 10 de novembro de 2010, e desde então vem passando por leituras, modificações e discussões na própria Câmara e em audiências públicas. Atualmente intitulado “Plano de Desenvolvimento Urbano Sustentável”, inclui várias restrições à expansão da chamada Zona de Expansão Urbana e tem sido objeto de constantes debates conflituosos, entre diversos atores sociais.

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quem está interessando. Se os problemas de saúde se agravam, se a desigualdade social aumenta, então esse desenvolvimento não está acontecendo de fato para atender aos interesses da sociedade e, particularmente, da população que vive em Areia Branca e nos povoados vizinhos. Como consta neste trabalho, as mulheres estão sempre presentes, lutando cotidianamente por melhores condições de vida. Acreditamos, assim, que um desenvolvimento sustentável somente se efetivaria se as melhorias pelas quais os moradores esperam e lutam estivessem se tornando realidade. Para esse momento, os enredos como os de dona Jovita, das “meninas-moças”, de dona Nair, de Ceiça, de Bia e de dona Moça nos fazem pensar nas práticas cotidianas de cuidado com a saúde e dos processos de adoecimento nesse cenário de mudanças. A solidão e a tristeza, a falta de diversão e educação, as diferenças de trabalho entre homens e mulheres, a morte... Tudo faz parte do cuidado à saúde, os quais não são considerados plenamente pelo atendimento institucionalizado na rede de saúde. A busca incessante por melhores condições de vida ultrapassa e foge dos trâmites institucionais, e é por esse caminho que o pesquisar se faz presente, nesse entremeio, por mais corriqueiras e indiferentes que as práticas cotidianas possam aparecer, mas que demarcam o funcionamento da vida social, as regras, os enfrentamentos e as resistências.

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GÊNERO, POBREZA E QUESTÕES DA ADOÇÃO: OS IMPACTOS SOCIAIS DA LEI Nº 12.010/2009 NA VIDA DE MULHERES NA CIDADE DE NITERÓI/RJ Maria Izabel Valença Barros Nívia Valença Barros Rita de Cássia Santos Freitas

INTRODUÇÃO: A CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES E A ADOÇÃO – ALGUMAS REFLEXÕES Eu quero morar com minha mãe e ter uma casa para eu poder cuidar da minha mãe e ela ficar boa logo. Eu não

I

quero uma família nova (M. E.).29

niciamos este artigo com a fala de uma criança acolhida em uma das instituições do município de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, a cujo depoimento tivemos acesso em uma das audiências concentradas, onde o juiz a questiona sobre o fato de ter uma nova família. A essa resposta – emblemática ao demonstrar o desejo da criança de ficar em sua família de origem –, o juiz a questiona se realmente queria continuar com a mãe, usuária de crack e moradora de rua. A segunda resposta

29 Fala de uma criança acolhida em uma das instituições de acolhimento de Niterói, a cujo depoimento tivemos acesso no âmbito da pesquisa “Adoção: os impactos sociais da Lei nº 12.010/2009 na vida de mulheres pobres na cidade de Niterói”, desenvolvida no âmbito do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social, da Universidade Federal Fluminense (UFF), sob orientação da professora Rita Freitas.

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da criança também é significativa: ela quer continuar com a mãe, sim, mas pede ajuda para ter uma casa e apoio para a mãe poder se tratar. Em última instância, essa criança demanda o funcionamento da rede de proteção à criança. E, mais especificamente, ela faz referência a uma das principais questões referente a essa seara: o direito de que a pobreza não seja condição para que uma família perca seu poder familiar. Entendemos que, quando a rede de proteção mais próxima falha, a rede secundária (institucional, pública) não tem o direito de falhar. O objetivo do artigo é analisar, na vida das mulheres pobres na cidade de Niterói, os aspectos jurídicos e sociais da nova Lei nº 12.010/2009, que trata sobre a Convivência Familiar e Comunitária para crianças e adolescentes, mais conhecida como a “Lei da Adoção”. Cumpre ressaltar que consideramos fundamental acentuar que todo ordenamento jurídico tem por intenção dialogar com a realidade histórico-social; nesse sentido, faz-se necessário, para elaboração desta análise, um estudo interdisciplinar, onde a perspectiva social seja estudada em relação com a jurídica. Nesse contexto, a análise desenvolvida mostra-se de grande relevância, pois reflete sobre os desdobramentos de uma nova legislação. Como se trata de uma norma jurídica recente que visa mudar uma estrutura preexistente, pouco se sabe sobre seus aspectos práticos na realidade cotidiana, e suas resultantes ainda são preliminares. É interessante observar a importância deste estudo ao analisar uma lei nacional no contexto local, ou seja, procuramos compreender os efeitos que essa lei pode ter no cotidiano de mulheres pobres na cidade de Niterói. Ao incidir sobre todos, as leis e políticas públicas têm efeitos diferenciados na vida da população que atingem, o que terá consequências no desenvolvimento local. As famílias hoje ocupam um lugar de destaque 220

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nas políticas públicas no Brasil.30 Mas é fundamental que tais políticas atuem no processo de fortalecimento e de proteção a essa família, e não como uma forma de controle e de exigências que essas famílias não têm condições de cumprir. O objetivo das políticas em relação à família deveria ser o de dar condições de uma efetiva participação cidadã para estas (PEREIRA, 2006). O mesmo raciocínio aparece quando nos debruçamos sobre essa lei. Quando falamos em famílias, por conta de históricas relações de gênero presentes em nossa sociedade, é comum a associação com as mulheres. Ao discorrer sobre a convivência familiar, a retirada do poder familiar e a adoção propriamente dita, a Lei nº 12.010/2009 prevê o apoio que a mulher deveria ter31 durante a gravidez. Isso poderia atuar numa forma de empoderamento a essas mulheres e fortalecimento das famílias (tomando por base a existência de uma efetiva ação intersetorial). Resta saber como isso vem se dando. Nesse sentido, este artigo busca pensar os efeitos dessa lei, tomando como referência uma localidade específica, a cidade de Niterói. Outrossim, destacam-se nesta análise alguns dos pontos que consideramos negativos e positivos trazidos pela Lei nº 12.010/2009. As mudanças legislativas contribuem para que se possa realizar uma reflexão sobre as inovações da legislação, verificando se de fato a nova lei trouxe um número maior de melhorias ou não para nossa sociedade e ordenamento. Niterói é uma cidade que possui uma rica história envolvendo a área da infância e adolescência, tendo uma rede de prote 30 Por exemplo, na saúde, temos a Estratégia de Saúde da Família. Já a política nacional de assistência social tem como eixo central exatamente a “centralidade na família para concepção e implementação dos benefícios, serviços, programas e projetos”. 31 Vale destacar que, numa perspectiva relacional que caracteriza as relações de gênero, os homens também deveriam ser alvo desse apoio. Isso ratifica a visão de que essa lei subentende a responsabilidade sobre as crianças como algo da alçada das mulheres.

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ção bastante estruturada e tida como representativa junto aos estudiosos do tema. Segundo Siqueira (2014),32 vale ressaltar, a título de informação sobre o município, que as famílias residentes na cidade de Niterói têm perfil de renda média nominal per capita de 5,87 salários mínimos, sendo que 69,8% possuem domicílios próprios. Segundo dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apresentados no boletim do MDS, a caracterização demográfica da extrema pobreza está representada no fato de que 1,9% do total da população municipal e 36,2% dos extremamente pobres têm de zero a 17 anos. Dos 487.562 residentes no município, somente 9.068 se encontraram em situação de extrema pobreza, ou seja, sobrevivendo com renda domiciliar per capita abaixo de R$ 70,00. No que tange aos sujeitos analisados neste artigo – as mulheres pobres –, Siqueira (2014) traz como contribuição dados relevantes quando aponta o número total de pessoas extremamente pobres correspondente a 9.068, sendo 4.974 mulheres, ou seja, 54,9% da população. Retomando a discussão sobre a rede de proteção social da cidade, cabe dizer que ela é fruto do desenvolvimento de grandes movimentações na área da criança e adolescente, bem como na área da saúde e da violência contra as mulheres. Analisar o modo como essa lei vem sendo implementada no município pode nos levar a reflexões mais profundas envolvendo os diferentes atores desse processo e o modo como os direitos dessas mulheres vem sendo garantidos ou não. Por isso, tecemos considerações acerca da relação famílias-gênero-mulheres pobres em nossa cidade. 32 Dados oriundos da pesquisa de mestrado de Patrícia do Couto Siqueira intitulada “Mulheres beneficiárias do PBF: analisando o município de Niterói”.

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CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA ADOÇÃO – DESTACANDO ALGUNS ASPECTOS LEGAIS O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é norma fundamental para o sistema de proteção à criança e ao adolescente.33 Evitando um amplo resgate histórico sobre a temática de adoção que não caberia neste texto, destacamos o ECA – surgido a partir de grande movimentação social que percorreu o país nos anos 1980 – como um marco para dar suporte e eficácia ao atual processo de adoção, junto com as demais legislações, como o Código Civil de 2002. Porém, quase todos os dispositivos sobre o tema foram revogados após a entrada em vigor da Lei nº 12.010/2009.34 Portanto, essa lei, juntamente com o ECA e a Constituição, são, hoje em dia, os mais importantes mecanismos e instrumentos responsáveis em regular a adoção no Brasil. Esta apresenta-se com o objetivo de contribuir com um novo olhar sobre a convivência familiar e comunitária para crianças e ado 33 Esse estatuto trouxe importantes medidas protetivas para crianças e adolescentes, sendo um grande avanço não só jurídico, mas também em termos de políticas públicas. Segundo Barros (2005), o ECA não é apenas fundamento para o sistema de proteção social; é um projeto de sociedade que se pauta na cidadania para todos, dirigida a crianças e adolescentes protagonistas, como sujeitos sociais de direitos. Barros (2005) explica ainda que a proteção social definida no ECA é considerada integral por seu caráter abrangente, que inclui implicações sociais as quais compreendem os níveis de sociabilidade primária e secundária, de forma a integrar a família, a comunidade, a sociedade – incluindo toda a rede social – e o Estado. 34 Destaca-se ainda que o conceito de adoção não é definido por nenhuma das legislações que tratam sobre o tema (ECA, Código Civil, Constituição Federal e a Lei nº 12.010/2009); todas estas dispõem apenas sobre os requisitos da adoção, bem como seus procedimentos, deixando de dar significado para tal instituto. Diante de tais alterações e revogações do Código Civil de 2002, no que tange o tema adoção, é possível verificar que este não mais possui um capítulo regulando o assunto, e sim passa a ter apenas dois artigos se tornando um complemento do Estatuto da Criança e Adolescente, sendo que ambos obedecem, agora, ao que dispõe a nova legislação.

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lescentes e, principalmente, para o processo de adoção. Com base nela, enfatizou-se nacionalmente as crianças em situação de abandono ou que são consideradas “institucionalizadas” por estarem em entidades de acolhimento, ressaltando-se, muitas vezes, de forma a-histórica e descontextualizada, a necessidade e o direito de crianças e adolescentes conviverem e pertencerem a uma família, o que poderia ser, teoricamente, concretizado por meio do processo de adoção que viabilizaria o direito dessa criança ou adolescente a ter um lar. É evidente que o advento da Lei nº 12.010/2009 trouxe mudanças significativas para nossa sociedade no âmbito da adoção. Porém, nem sempre as mudanças consistem apenas em pontos positivos e, da mesma maneira, tais mudanças podem enfrentar obstáculos em solucionar determinados problemas crônicos já existentes, bem como também trazer novas questões. Em primeiro lugar, destacamos, como uma mudança importante, o fato de a lei ter criado o prazo máximo de dois anos de permanência de crianças e adolescentes em abrigos, obrigando os juízes a justificar, a cada seis meses, a permanência nessas instituições (Artigo 19, §§ 1º e 2º da Lei nº 12.010/2009). Depois desse prazo de dois anos, não sendo possível a reintegração familiar da criança e do adolescente, estes entrariam no Cadastro Nacional e só permaneceriam em instituição de acolhimento quando não fosse possível a adoção. Uma das principais alterações nessa legislação e tida como das mais positivas refere-se à obrigatoriedade à assistência psicológica às gestantes e às mães nos períodos pré e pós-natal, inclusive às que manifestam interesse em entregar os seus filhos para a adoção: Incumbe ao poder público proporcionar assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal,

inclusive como forma de prevenir ou minorar as con224

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sequências do estado puerperal (Art 8º, § 4º da Lei nº 12.010/2009).

Além disso, a lei define que o adotado tem o direito de conhecer a sua origem biológica e de obter acesso irrestrito de adoção após completar 18 anos (Artigo 48 da Lei nº 12.010/2009). E, nesses aspectos, a inclusão de tais novidades legislativas revitaliza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ampliando a aplicação de princípios, além de modernizar, organizar e aumentar o sistema de proteção, constituindo-se em uma tentativa de aproximar a norma da realidade de fato no Brasil, compreendendo-a na prática e não somente na teoria. Contudo, um aspecto negativo e alvo de críticas da nova norma está em não se ter assimilado a proposta original de criação de uma lei específica sobre adoção, efetivando-se as mudanças no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, que não trata de nenhum outro tema com tanta profundidade. A opção do legislador foi manter a unidade normativa, com inclusão de artigos no ECA, conferindo densidade a esse diploma. Em razão de o instituto de adoção constituir-se, ele mesmo, sistema jurídico autônomo, o mais adequado para alguns autores/legisladores seria uma lei especial exclusivamente dedicada, que tratasse inteiramente sobre o tema, tanto no que se refere à adoção de crianças e adolescentes quanto à de maiores. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem hoje no Brasil cerca de 30 mil pretendentes à adoção e 4,7 mil crianças e adolescentes cadastrados e “aptos” a serem adotados. São consideradas aptas as crianças e/ou adolescentes que estão em instituição de acolhimento e de que já tenha sido decretada a destituição de sua família “natural”. Além disso, números da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) mostram que cerca de 80 mil crianças e adolescentes estão em abrigos, e apenas 10% desse total podem ser adotados. Sobre Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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esses dados, o vice-presidente da AMB35 alerta que o número de 80 mil não é uma avaliação precisa, pois não existem estatísticas oficiais sobre essas instituições. Com a atual legislação, busca-se, também, uma mudança de paradigma. No contexto brasileiro de adoções, é evidente a preferência do adotante pelo perfil de crianças brancas, do sexo feminino e de até dois anos de idade. A Lei nº 12.010/2009 enfatiza, em seus parágrafos, o incentivo em se realizar as adoções necessárias de crianças mais velhas, dos grupos de crianças especiais, bem como as adoções inter-raciais. Mesmo após o advento da “Lei Nacional de Adoção”, quem defende as crescentes perdas do poder familiar de forma mais ágil ressalta que os principais problemas, para quem quer adotar uma criança ou um adolescente, continuam sendo a burocracia e a falta de estrutura nas Varas da Infância e da Adolescência para atender à demanda das famílias interessadas. O texto da lei evidencia a preocupação voltada para a efetividade do direito fundamental de convivência familiar dentro da família natural,36 inclusive fixando deveres jurídicos no sentido de sua manutenção. Contudo, se postos de forma inflexível e sem proporcionar condições para que sejam cumpridos, esses deveres podem ocasionar efeitos perversos, no que tange às grandes desigualdades socioeconômicas em que vivem muitas das famílias em nosso país. Vale destacar, em relação às famílias pobres, o aumento não apenas das famílias monoparentais, mas também de famílias chefiadas por mulhe 35 Francisco de Oliveira Neto, vice-presidente da Associação dos Magistrados do Brasil para assuntos da Infância e da Juventude, segundo mesmo artigo. Disponível em: . Acesso em: 26 maio 2010. 36 A “família natural”, de acordo com a lei, compreende o ambiente ou espaço social preenchido por pessoas ligadas entre si pela comunhão da identidade genética ou por força do parentesco consanguíneo. É onde a história do indivíduo é contada pela natureza que lhe ofereceu e impôs uma determinada origem biológica. Pode nascer do casamento, da união estável ou do núcleo formado pelos ascendentes e descendentes.

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res, que tendem a ser mais vulnerabilizadas (FREITAS; BRAGA; BARROS, 2010). Sendo assim, nesse cenário, caso não haja políticas sociais atreladas à aplicação da nova lei, as possíveis consequências desta poderão se desdobrar em um contexto de culpabilização dessas mulheres – pobres e mães. A família substituta,37 nesse contexto, somente se mostra aceitável depois de esgotadas as possibilidades de conservação da família natural. Cabe ressaltar que foi introduzida pela nova legislação a necessidade dos grupos de irmãos serem postos sob adoção na mesma família substituta, salvo se for comprovado risco de abuso ou qualquer outra situação que justifique se excepcionar solução diversa. Nesse caso, o que se pretende é não afastar o vínculo fraternal; sendo assim, independentemente de os irmãos estarem na mesma família ou em família diversa, que não percam os laços já estabelecidos anteriormente (Artigo 28, § 4º da Lei nº 12.010/2009). No geral, a nova lei procura adotar o atual conceito de família, que prioriza o laço afetivo, o comprometimento entre os participantes, e não mais se preocupa com a forma “tradicional” de constituição de família, baseada apenas em laços consanguíneos. Assim, em critérios adotivos, não mais importaria de quem é o poder familiar,38 como a família é constituída, organizada, ou quantos são os seus integrantes (monoparental ou pluriparental, por exemplo). No entanto, os termos utilizados que contrapõem “família natural” e “família substituta” podem levar a interpretações dúbias, de forma a tratar a família biológica como mais adequada, enquanto os pais adotivos se 37 A família substituta, legalmente falando, é a que se forma, excepcionalmente, como sucedâneo da família natural, quando esta se desfaz ou deixa de ser ambiente adequado para a criança ou adolescente. No alcance definido pela lei, manifesta-se por meio dos institutos da guarda, tutela ou adoção, após procedimento judicial próprio. 38 O poder paternal ou poder familiar (antes denominado pátrio poder), no direito brasileiro, traduz-se num conjunto de responsabilidades e direitos que envolvem a relação entre pais e filhos.

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riam menos “naturais”. Tal olhar se contrapõe a alguns trechos da própria lei, que valoriza os laços sociais na formação do parentesco. Cabe ressaltar que, mesmo a lei procurando abarcar diferentes expressões afetivas de famílias, a composição delas diante de um contexto de destituição do poder familiar se dá, em sua grande maioria, por mães onde a figura paterna pouco se apresenta – por conta de uma realidade marcada por relações de gênero desiguais (SCOTT, 1991; LOURO, 2008) –, recaindo, assim, sobre as mulheres deveres e responsabilidades do lar e de seus filhos. De acordo com o psicólogo da Vara da Infância e Juventude de Niterói, ao ser perguntado sobre qual o perfil das mulheres que perdem o poder familiar, Elas sempre são mulheres pobres, muito pobres, na

maioria das vezes negras, mas não são todas. Geralmente não têm maridos, ou seja, família mononuclear [sic], elas que geram sua própria renda. Os pais, quando têm,

nunca aparecem. São mulheres com muitos filhos, de

diferentes parceiros, e às vezes abandonam seus filhos porque o novo parceiro não quer o filho do outro casamento, então às vezes ela deixa o filho na instituição, vai lá visitar no início, depois o marido começa a implicar e

aí ela deixa de ir e some. Normalmente são mulheres de mais ou menos uns 30 anos de idade.39

Evidentemente, a Lei nº 12.010/2009 não soluciona todas as questões no que se refere à adoção. Em determinados aspectos, a nova lei se mostra omissa ou até mesmo ineficaz. Continuam sem tratamento normativo questões urgentes como a abertura legislativa para a adoção pela família homoa 39 Entrevista realizada no dia 27 de junho de 2013.

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fetiva,40 a adoção de embriões e outras questões de semelhante interesse. As mudanças introduzidas pela nova lei, com as adequações ao Estatuto da Criança e do Adolescente, visam a agilizar a adoção no país e também a possibilitar o rápido retorno das crianças que estejam em programa de acolhimento familiar ou institucional. Isso, contudo, pode gerar um retorno a um ambiente familiar ainda sem condições de receber essas crianças, bem como uma “depreciação” das entidades de acolhimento, mesmo aquelas que realizam um trabalho de qualidade.41 É nossa opinião que, mesmo ressaltando-se a importância do incentivo as adoções, não se pode abrir mão de certas exigências, que permitem ao Judiciário, por um lado, conhecer a pessoa que quer adotar, saber de suas condições, refletir sobre suas intenções e suas disponibilidades de fato para a concretização de uma adoção.42 Para o atendimento dessas questões, foi necessário que o legislador instituísse alguns procedimentos, fazendo com que tais trâmites burocráticos necessários conflitam com a ideia de agilização desejada por todos. Por ou 40 Durante a tramitação do projeto de lei, por iniciativa da deputada Laura Carneiro e outras intervenções, a deputada Tetê Bezerra refez o relatório, para incluir a emenda referente à adoção por casais homoafetivos. E, no dia 20 de agosto de 2008, a redação final aprovada pela Câmara dos Deputados excluiu peremptoriamente o dispositivo que fazia menção à adoção de crianças e adolescentes por homossexuais (VASCONCELOS, 2001). Contudo, cumpre ressaltar que, na pesquisa que estamos desenvolvendo, até onde pudemos acompanhar, percebemos que na Vara da Infância e Juventude de Niterói o juiz titular não impõe nenhum óbice em relação à adoção por casais homoafetivos, normalmente sendo favorável e colaborando para com eles. 41 Afinal, não se pode negar que, ainda que muitas instituições passem por precárias situações, muitas vezes estar acolhido é uma das mais importantes formas de proteção para as crianças e adolescentes. Podemos dizer que, mesmo para muitas mulheres, mães, saber que o filho encontra-se abrigado pode muitas vezes significar saber que o filho está em segurança. 42 Não cabe discutir aqui, mas a questão do tráfico internacional de crianças é sempre algo a ser levado em conta e que merece do setor público, principalmente do Judiciário, a mais alta atenção.

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tro lado, é importante não perder a dimensão da necessidade de se olhar para as famílias de origem, evitando que, por exemplo, a pobreza não esteja sendo o principal elemento motivador para a inserção dessas crianças e adolescentes em abrigos ou para adoção – dimensão enfatizada no ECA.

A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E A PERDA DO PODER FAMILIAR

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Nesse momento, cabem algumas reflexões acerca do fenômeno da criminalização da pobreza, das relações de gênero e familiares. O que buscamos discutir neste artigo é a forma como essas famílias – especialmente as mulheres – vêm sendo negligenciadas e mesmo violentadas. É o próprio ECA – e a Constituição também – que diz que cuidar das crianças é dever da família, mas também do Estado e da Sociedade – e não deveria existir uma hierarquização nesse dever. Durante longo período na história do país, tem sido constante um processo excludente da população pobre e de suas famílias do cenário social e uma ênfase nos processos de criminalização da pobreza. A preocupação, nesse contexto, da culpabilização das famílias envolvidas em casos de perda do poder familiar não é uma preocupação destituída de sentidos, pois, não tão raramente, relatam-se casos na mídia sobre destituição do poder familiar em lares pobres ou não considerados adequados para os padrões de quem analisa tais casos. Entendemos que, na realidade local, homens e mulheres vivem suas vidas e constróem estratégias de enfrentamento à pobreza, mas também de proteção mútua. A capacidade de estabelecer formas de reorganização social a partir do local envolve a possibilidade de essas pessoas exercerem seus papéis de cidadãos e cidadãs e de controlarem seus destinos. Ouvir esses atores pode – e deve – ser um mecanismo fundamental Gênero, desenvolvimento e território

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para as políticas públicas no sentido de contribuir para a construção de políticas adequadas ao cenário local. E, nesse ponto, a dimensão do gênero (em sua intersecionalidade) necessariamente tem de estar presente. Nesse caso, especificamente voltar o olhar para essa questão – a destituição do poder familiar que atinge prioritariamente mulheres pobres – tem como pressuposto que a escuta atenta dessas mulheres, bem como a construção de mecanismos que façam essa lei funcionar de acordo com essa escuta, pode apontar para o empoderamento dessas mulheres pobres. Mesmo que o Estatuto da Criança e do Adolescente preconize que não se pode retirar o poder familiar com o argumento de pobreza, o que se vê é que a pobreza e o afastamento de famílias e de seus filhos tem ainda acontecido – e é o que temos percebido também pela observação que estamos realizando na cidade de Niterói (mesmo sendo essa uma cidade que desenvolveu uma importante história na luta contra a violação de direitos de crianças e adolescentes). Ainda assim, tem sido a população pobre que ainda perde a guarda de seus filhos. Mas vale refletir: De que negligência está se falando? As representações sociais da população pobre como “classe perigosa” expressam a singularidade dos espaços sociais no processo de reprodução social, espaço onde a miséria e a ausência das garantias de cidadania são peculiares, acrescidas da negação dos padrões próprios culturais e das estratégias de sobrevivência desenvolvidas. No âmbito familiar, principalmente as mulheres43 é que são denunciadas como mães negligentes. Dessa forma, um grande contingente de famílias brasileiras é liderado por mulheres que, além do papel maternal, assumem o de provedoras (MESQUITA et. al., 2010). Concordamos com as autoras acerca da necessidade de se refletir sobre a negli 43 É raro o caso de uma denúncia de negligência, por exemplo, envolvendo homens (BARROS, 2005).

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gência que essas famílias – normalmente excluídas de um padrão mínimo de proteção social – sofrem em seu dia a dia. Em vez de negligentes, poderíamos falar, isso sim, de famílias – de mulheres mães – negligenciadas.

DE QUE FAMÍLIAS ESTAMOS FALANDO? Mas se faz necessário apresentar o conceito de família – na verdade, famílias, no plural, que adotamos, pois entendemos famílias “enquanto um processo de articulação de diferentes trajetórias de vida, que possuem um caminhar conjunto e a vivência de relações íntimas, um processo que se constrói a partir de várias relações, como classe, gênero, etnia e idade” (FREITAS, 2000, p. 8). Concordamos com a linha argumentativa de autoras como Sarti ao entender as famílias não como um núcleo, mas como uma rede, uma rede que se ramifica e envolve a gama de parentes e vizinhos (SARTI, 2003). E não esquecemos a advertência de Fonseca (1995, p. 38, grifo nosso): A família moderna não deveria ser pensada [...] como meta a alcançar; sua ausência não significa um vácuo

cultural. A circulação de crianças é o exemplo de uma dinâmica alternativa; é indicação de formas familiares em grupos populares que, longe de serem uma etapa anterior

à família moderna, vêm crescendo e se consolidando ao mesmo tempo que ela.

A circulação de crianças é um fenômeno fundamental que não podemos deixar de levar em conta ao pensarmos na adoção e na vida das mulheres pobres.

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Entendemos famílias como uma das estruturas de proteção social.44 Esta deve ser vista aqui não apenas como políticas públicas e serviços de assistência social, mas também como práticas protecionistas exercidas pela rede familiar e comunitária45 – onde as famílias se inserem. Nesse sentido, como muito bem destacado por Freitas (2002), “o recurso a uma rede de solidariedade tornou-se uma prática fundamental de sobrevivência em nossas classes populares”. Atualmente, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, prevê que, além do casamento, a união estável entre homem e mulher são formas de constituição familiar, para efeito de proteção do Estado. E ainda a mesma legislação entende como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, ou seja, caindo por terra o antigo princípio existente do pátrio poder (poder do pai). No âmbito das relações de gênero, essa dimensão traz importantes efeitos na vida de homens e mulheres. 44 Ainda que saiba que esse espaço pode também ser o da desproteção e violência. Para pensar a família brasileira, é importante entender que esta – seguindo uma trajetória internacional – também mudou. As crises do capitalismo, a reestruturação do trabalho, a entrada cada vez maior das mulheres no mercado de trabalho; o aumento do nível de escolaridade, a diminuição do índice de fecundidade e o adiamento do primeiro filho; o aumento da expectativa de vida (principalmente para as mulheres), o aumento do número de famílias monoparentais, de pessoas vivendo sozinhas e se casando mais tarde são realidades que marcam nossa sociedade (IBGE, 2010). Se as famílias mais vulneráveis são aquelas onde existe a presença das crianças (LAVINAS, 2006), não podemos esquecer que estas ficam normalmente com suas mães. Além disso, para alguns estudiosos, a presença feminina contribui para a redução da vulnerabilidade em que vivem os que estão sob seus cuidados: “As famílias monoparentais feminina e pobreza acabam, de um lado, por construir outro estigma, o de que as mulheres são menos ‘capazes’ para cuidar de suas famílias ou para administrá-las sem um homem. De outro, é apontado que as mulheres, hoje, ganharam maior independência e, portanto, podem assumir suas famílias. No entanto, enquanto houver a associação maciça entre monoparentalidade e pobreza [...] acaba por fortalecer-se muito mais a adjetivação dessas famílias como vulneráveis ou de risco do que como potencialmente autônomas” (FALLER VITALE, 2002, p. 51). 45 Mesquita (2012) e Costa (2002).

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Em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 25, entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes, e por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Sendo assim, acompanhando o que as legislações brasileiras hoje conceituam como famílias, percebe-se que, além de laços biológicos e consanguíneos, a afinidade por meio dos vínculos de afetos também são formas de construção de entidades familiares, ultrapassando muitas vezes as relações de parentesco. Nesse caso, como exemplo pode-se utilizar a adoção por casais homoafetivos se tornando cada vez mais comum. Nesse momento, uma reflexão acerca das relações de gênero se faz presente. Partilhamos da definição seminal veiculada por Joan Scott (1991), de que as relações de gênero são construídas socialmente e trazem embutidas em si as relações de poder hierarquizadas entre mulheres e homens. Ocorre que, quando se fala em família, principalmente no tocante à proteção social, é inevitável não associar a figura materna, pois ela historicamente sempre foi vista como a grande responsável pela função do cuidado, da proteção, visto que tanto no estabelecimento como na implementação das políticas sociais dirigidas às famílias o contato dessas com a sociedade e com o Estado se dá em grande parte pela figura da mulher (CARLOTO, 2006). Assim sendo, como muito bem discutido por Suarez e Libardoni (2007), As políticas públicas sociais dirigidas a esse público

tomam como pressuposto a presença de alguém em casa para cuidar daqueles, e esse lugar é “naturalmen-

te” identificado com a mulher. Dessa forma, as políticas

veem continuamente reafirmando os papéis de gênero, 234

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contribuindo pouco para a transformação destes. O ad-

vento de muitas dessas políticas efetivamente vem ao

encontro dos desejos de muitas mulheres. Porém, não

podemos deixar de enunciar como esse fato recoloca

a responsabilidade por esses cuidados nas mãos das mulheres – desresponsabilizando os homens (SUAREZ; LIBARDONI, 2007, s./p.).

Podemos dizer que, na verdade, as atuais políticas vêm desenvolvendo menos uma política de gênero (onde deveria se levar em conta não apenas as relações de gênero, mas também o objetivo de modificar essas relações), mas políticas perpassadas por essas relações – o que faz com que sejam naturalizados os papéis de homens e mulheres. Na tentativa de trazer equilíbrio para os papéis de gênero, o artigo 226 da Constituição Federal de 1988, em seu § 5º, prevê que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal sejam exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. Ocorre que, na prática, a lei acima mencionada está bem distante da realidade, contribuindo pouco para a luta por igualdade de direitos entre homens e mulheres, pois as relações de gênero ainda são extremamente desiguais e desequilibradas, sendo certo que a mulher, na sociedade conjugal, algumas vezes possui muito mais deveres do que direitos em relação ao homem. Nesse sentido, diante das desigualdades de gênero46 existentes, bem como diante de todas as responsabilidades que são imputadas às mulheres em todos os momentos, estas criam es 46 Para Joan Scott (1995), em seu artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, gênero pode ser entendido como uma percepção sobre as diferenças sexuais, havendo uma relação inseparável entre o saber e o poder. Gênero estaria sobreposto a relação de poder, sendo uma primeira forma de dar sentido a essas relações. Porém o que interessa para a autora são as formas como se constroem significados culturais para essas diferenças sexuais, dando sentido para elas e consequentemente posicionando-as dentro de relações hierárquicas.

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tratégias de vida e sobrevivência para a condução de suas vidas e da vida daqueles pelos quais elas são responsabilizadas, sejam eles marido, filhos e parentes. Essas estratégias variam desde o delegar suas atividades a outras ou sobrecarregar as próprias atividades, ambos com o propósito da manutenção de sua família.

A “ADOÇÃO À BRASILEIRA” E O CHAMADO “ABANDONO” A chamada “adoção à brasileira” é uma dessas estratégias. Primeiramente, é preciso entender do que se trata essa estratégia. Legalmente falando, a adoção à brasileira é um crime de falsidade ideológica, com pena de prisão, pois a adoção é realizada de forma irregular, sem o conhecimento do Estado. O interessado em adotar registra criança de outrem sem nenhuma autorização legal, ou seja, os pais adotivos providenciam uma certidão de nascimento, sem nenhuma intervenção da Vara da Infância e Juventude, como se fossem eles mesmos os pais biológicos. Ocorre que, no Brasil, a prática da adoção à brasileira entre as camadas mais pobres da população é superior47 à adoção legal, visto que a figura do juiz está muito distante dessas classes, pois representam muitas vezes mais uma forma de punição do que de garantias de direito. Tal cenário é ilustrado por Fonseca (1996): podemos supor que, evitando os serviços públicos, essas mães pobres afastavam-se das imagens estereotipadas, produzidas pela imprensa brasileira, de “mães abandonantes”. É importante destacar que, mesmo na ilegalidade, a adoção à brasileira tem sido uma forma de reorganização familiar cultu 47 Cláudia Fonseca (Circulação de Crianças). Entrevista com um juiz de instrução, citado na revista IstoÉ, 26 ago. 1990. Ver também: ABREU, Domingos. No bico da cegonha.

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ral e historicamente disseminada em nossa sociedade, caracterizando-se como um processo de longa duração. Dessa forma, Fonseca (1996) propõe a reflexão sobre o termo “circulação de criança”, definido como a transferência de uma criança entre uma família e outra, seja sob a forma de guarda temporária ou de adoção propriamente dita. Essa realidade de “transferência de uma criança entre uma família ou outra” é tão antiga que Venâncio (1997) narra que, no mundo colonial, no espaço geográfico do campo, raramente ocorriam abandonos de crianças, pois estes acabam se tornando filhos de criação ou agregados por outras famílias com melhores condições. O autor ressalta ainda que o termo criança abandonada é atual, visto que estes antigamente eram chamados de enjeitados ou expostos. Fonseca (1996) afirma que, ainda que a adoção à brasileira também apague a mãe biológica do registro oficial, ela lhe confere uma margem de manobra muito mais ampla: não apenas ela desempenha um papel ativo na escolha dos pais adotivos, como também pode acompanhar, de longe, o desenrolar de sua vida. Porém, há de se refletir se a adoção, seja ela à brasileira ou legal, é a única estratégia a ser tomada. É comum, nos dias de hoje, principalmente entre uma realidade social de bairros menos abastados, parentes e vizinhos se relacionarem, frequentarem um a casa do outro quase que diariamente e se ajudarem mutuamente. Nesse sentido, muitas vezes essa ajuda vai desde o empréstimo do açúcar até o cuidado dos filhos uns dos outros. Essa circulação não importa em uma adoção necessariamente, mas é uma alternativa para mães que trabalham, por exemplo, de deixarem seus filhos com pessoas de confiança, sem precisarem recorrer a creches ou babás – realidade distante das mulheres que aqui se aborda, pertencentes a estratos de classe pobres. Isso se dá pelo fato de faltarem creches, mecanismos públicos de proteção soOs limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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cial que efetivamente apoiassem essa mulher e protegessem essas crianças.48 Essa circulação de crianças reflete-se não só no aspecto financeiro, em que a avó ou o avô, ou até mesmo a vizinha, se dedicam ao cuidado, alimentação, vestuário dessas crianças, ou pelo fato de a família natural não possuir condições para assim o fazer, ou ainda pelo fato de estarem passando por uma crise familiar, divórcio, como também podem ocorrer por questões de simples laços afetivos, identificações pessoais e carinho, criando uma espécie de parentesco, sendo certo que nesses casos não foi necessária uma adoção no sentido legal. Ainda nesse sentido, a circulação de criança e até mesmo de adolescente também reflete o aspecto cultural, visto que em nossa cultura brasileira é comum o fato de recebermos em nossa casa amigos e parentes, seja por dias, semanas, ou até mesmo por temporada, como no caso, por exemplo, de um sobrinho que precisa ir morar com a tia para estudar, para ficar mais próximo da faculdade. Segundo Sarti (2003), o cuidar dos filhos dos outros – muitas vezes, os próprios netos – faz com que se mantenha “acesos” os vínculos de sangue, junto aos de criação, atuando ambos na definição dos laços de parentesco, o que vem atualizar um padrão de incorporação de agregados o qual lembra aquela mesma família brasileira descrita por Freyre (2005). Costa (2002) utiliza a ideia de “maternidades transferidas” referindo-se à estratégia que muitas mulheres se utilizam para dividir, e muitas vezes delegar as atividades do dia a dia de seu lar, para outras mulheres. Nesse diapasão, a autora permite 48 Porém não se pode deixar de destacar alguns aspectos negativos que a circulação de criança pode trazer, como, por exemplo, em alguns casos, a sensação de abandono que algumas crianças podem sentir em relação aos seus pais, ou o fato de perderem a referência de quem são realmente seus pais, fato que pode ocorrer quando a criança circula por várias famílias, além da sua, vivendo costumes, princípios e rotinas diferentes.

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ainda uma reflexão: mulheres que precisam sair para o mercado de trabalho transferem suas maternidades para mulheres ainda mais pobres que elas, formando-se assim um grande ciclo, visto que essas que receberam a transferência da maternidade (sejam babás, ajudantes do lar etc.) necessitam também deixar seus filhos com alguém (vizinhos, parentes) para saírem para o trabalho. E, no fim desse ciclo, o que se encontra? Formas de proteção ou a retirada do poder familiar? O que temos percebido em nosso dia a dia é que, muitas vezes, a estratégia de algumas mães pobres pode ser a alternativa de seus filhos estarem em abrigos, que não precisa necessariamente ser um espaço da exclusão, visto que nesse espaço as crianças terão escola, lazer, alimentação e – fundamental nos dias de hoje – segurança. Nesse sentido, a necessidade de se discutir as instituições de proteção à criança devem ser repensadas, e um bom caminho seria, em nossa opinião, começar por ouvir as famílias, especialmente as mulheres, responsáveis – e responsabilizadas – pelo cuidado de nossas crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Em toda a análise feita anteriormente, o instituto da adoção não foi privilegiado – não pelo fato de não se concordar com tal instituto; pelo contrário, mas pelo fato de entender que essa não é a fórmula nem a última opção a ser tomada. Afinal, a entrega de um filho para adoção é algo na maioria das vezes bastante sofrido, ficando demonstradas aqui formas e alternativas possíveis para que esse não seja o único caminho – e também que não necessariamente é uma forma de abandono. Há de se pensar que, em muitos casos, a não judicialização das relações sociais permite que se construam estratégias de sobrevivência que podem se tornar alternativas importantes para a consolidação de vínculos afetivos e construção de sujeiOs limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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tos sociais mais felizes. Mais uma vez se faz importante dizer que, com isso, não se enfatiza aqui de forma alguma o “jeitinho brasileiro” de levar vantagem e desrespeitar normas legais que atendam o interesse da coletividade, mas apontar as necessárias singularidades que existem e devem ser reconhecidas. Apontar para a necessidade de ações e práticas de proteção à infância e adolescência, levando em conta as demandas desses sujeitos e suas famílias é uma forma de avançar nesse debate. A proteção social – em seu viés institucional – deve ser pensada não como uma alternativa ou opção, mas como um direito. Um direito que envolve as crianças e adolescentes, mas também as suas famílias, especialmente suas mães. Desde a infância, é imputado às mulheres o dever de serem mães, sendo dificilmente possível “escapar” desse destino. Esse peso e responsabilidade muitas vezes se faz tão estruturante na vida de algumas delas que as mulheres as quais, por alguma circunstância, não quiseram seguir esse caminho, rompendo com a maternidade, são criminalizadas. Por outro lado, algumas mulheres, ainda que optem pela maternidade, em alguns casos não conseguem sentir o amor incondicional – que muitas dizem sentir – por seus filhos e viver o chamado “mito do amor materno” (BADINTER, 1985). Em razão disso, Motta (2001) alerta que não se pode apenas se chocar com a irresponsabilidade das mães que abandonam seus filhos: é preciso ir além, é necessário assumir a responsabilidade pela situação do abandono dessas mulheres numa realidade social da qual todos nós fazemos parte. E imprescindível que a sociedade assuma o desconforto ao lidar com situações que expõem velhos mitos e ao recobrir as próprias imperfeições como mães e pais meramente humanos, cujo amor nem sempre é tão “natural”, automático, infinito ou incondicional. Todos esses questionamentos, dúvidas e conflitos vivenciados por essas mães se dão muitas vezes pelo fato de o papel do cuidado com a família e com o filho ainda serem destinados a Gênero, desenvolvimento e território

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elas, as mulheres. Esse cuidado da mulher para com sua família, em muitos casos, é responsabilidade quase que exclusiva dela, onde pouco se percebe a participação do homem nessa realidade. Ou, quando presente a figura paterna nesse contexto, esta sempre se mostra em um cenário de “ajuda”, e nunca de responsabilização. Nessa linha de raciocínio, por toda essa responsabilidade que recai sobre a mulher e da forma como esta fica exposta à maternidade, às cobranças e expectativas que lhes são impostas, quando não cumpridas, faz dessa mulher/mãe alvo de criminalização, sendo muitas vezes tachadas como negligentes. O que a sociedade cobra e espera de uma mãe é o cuidado com excelência de seu(s) filhos(s). E, quando isso não ocorre, por diversos fatores, sejam eles de cunho social ou pessoal – lembrando que esta pesquisa trabalha com a perspectiva de mulheres pobres –, esses são retirados de suas mães, de suas famílias. A preocupação – profundamente válida – com as crianças não pode nos fazer esquecer a subjetividade das mulheres envolvidas. É preciso desconstruir a concepção de que a responsabilidade do cuidado com os filhos e com a família é exclusivamente da mãe, bem como a visão de que, quando o pai cuida dos filhos, este é um superpai, enquanto a mulher está apenas cumprindo suas obrigações. E mais: é de suma importância que a sociedade tenha um olhar mais acolhedor e menos julgador em relação às mulheres que não conseguem vivenciar o suprassumo do “mito do amor materno”, ou ainda por aquelas que não conseguem criar seus filhos – o que é tachado pela mídia de “abandono” – entregando-os para a adoção ou afins. Entender a subjetividade que envolve cada uma, caso a caso, é um esforço necessário e prudente para que essas mulheres não sejam tachadas como “mães más” (LIMA, 2011). A proposta deste escrito também se faz no sentido de discutir o que o Estado oferece como políticas públicas para esOs limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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sas mulheres – afinal, a retirada do filho de uma mãe, apenas como uma medida de punição ou coação, sem a garantia de direitos, mostra-se como atitude de um Estado apenas regulador, sem preocupações com o bem-estar social. É necessário refletir toda a subjetividade envolvida na vida de uma mulher (sentimentos) na hora da retirada ou até mesmo entrega de um filho para a doação, ou seja, para o Estado. Ainda que na lei esteja previsto o apoio às mulheres no pré e pós-puerpério, o que temos assistido, na maioria das vezes, é a um Estado que, sob a alegação de priorizar o atendimento ao bem-estar das crianças e adolescentes, desconsidera a realidade local, as vidas dessas mulheres e suas famílias, bem como o próprio desejo das crianças. Motta (2001) reflete no sentido de que, quando se fala em adoção, pensa-se apenas nas angústias da criança e dos adotantes, mas nunca das inquietudes da mãe biológica que entregou seu filho para adoção (e mais ainda naquelas que não deram os filhos, mas que estes foram retirados). Isso porque essas são “mães abandonadas”, visto que a sociedade as põe à margem, até mesmo de suas considerações pessoais. Sendo assim, a autora alerta ainda que é preciso observar a situação de abandono vivenciada por essas mulheres, principalmente durante a maternidade, para então perceber que o ato do “abandono do filho” apenas retrata a identidade de uma mãe “abandonada desde a gestação”. Importante tecer breves comentários quanto aos casos em que a mulher decide entregar seu filho para a adoção, direito esse assegurado às gestantes conforme disposto no parágrafo único do artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo Walter Gomes,49 supervisor da Seção de Colocação em 49 Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2013.

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Família Substituta da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal (JDF), as principais razões que levam as mulheres a optar por entregar o filho em adoção são: o abandono por parte do companheiro e/ou da família; o fato de a gestação advir de uma violência sexual; ou por a mãe já possuir prole numerosa, havendo também, segundo ele, aquelas que engravidaram em um encontro casual e não desenvolveram laços afetivos com a criança. Ressalta-se que a perda do poder familiar para uma mãe, e para toda sua família, é um rompimento brusco dos laços familiares, tanto afetivos quanto consanguíneos. Além de ser uma ruptura irreparável e imutável! O que se pode adiantar aqui é que, na maioria dos casos que temos acompanhado, o poder familiar foi destituído por ausência de políticas públicas para as mulheres e suas famílias, tendo sido constatado mulheres que, ao receberem do juiz a notícia de que seus filhos, a partir daquele momento, “deixariam de ser seus”, sofreram muito, e mais: percebeu-se que tal medida extrema poderia ter sido evitada se o Estado – e a rede de proteção existente nesse espaço – fizesse um trabalho de prevenção ou até mesmo de intervenção no problema, e não apenas de remediação e de soluções imediatistas. A existência de uma rede local envolvendo Estado e sociedade poderia atuar como importante mecanismo de apoio a essas mulheres e suas famílias e, portanto, como um elemento de desenvolvimento local. Por isso, faz-se necessário questionar qual é o verdadeiro papel do Estado na realidade dessas mulheres, principalmente quando se trata de um momento tão dolorido, delicado e conflituoso como o da entrega de um filho para a adoção. E mais: é preciso ainda questionar qual é o amparo e o apoio que o Estado oferece a essas mulheres pobres, principalmente no que tange à cidade de Niterói. Diante das modificações apontadas anteriormente, fica evidente que o advento da Lei nº Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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12.010/2009 trouxe mudanças significativas para nossa sociedade no âmbito da adoção. Porém, nem sempre as mudanças consistem apenas em pontos positivos e, da mesma maneira, tais mudanças podem enfrentar obstáculos em solucionar determinados problemas crônicos já existentes. Por fim, é importante refletir: de que valem novas e modernas legislações, se possuirmos um Judiciário precário, falho, sem estruturação para atender as demandas que surgem na sociedade? É preciso, antes de qualquer outra alteração, uma reestruturação em todo o sistema judiciário, uma reforma do Estado, para dar condições e amparo à Justiça para atender a sociedade e suas demandas de forma digna e justa.

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GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS DE TRABALHO Ariane Serpeloni Tavares Temis Gomes Parente

INTRODUÇÃO

O

conceito de gênero suscita debates e envolve inúmeras controvérsias que não podem ser compreendidas por conceituações limitadas. Apesar da dificuldade de construir um consenso, a definição de gênero adotada neste trabalho é a proposta por Scott (1990, p. 14), que o define como “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” e também “um primeiro modo de dar significado às relações de poder”. Assim, compreende-se que o gênero, além de permear a construção do que é feminino e do que é masculino, estabelece uma relação de poder entre os sexos. Tendo essa definição em vista, pode-se considerar que as questões de gênero, construídas socialmente, levam a uma relação desigual entre homens e mulheres. Essa desigualdade tem suas bases nas relações sociais e de poder, que naturalizaram as diferenças sexuais, tornando “normal” a permanência da mulher no espaço privado, atribuindo-lhe funções sociais reprodutivas e dificultando seu acesso ao espaço público, da política, do trabalho (BOURDIEU, 2002; KERGOAT, 2009) e, portanto, dos direitos políticos e sociais integrais. Considerando as contribuições de Amartya Sen (2000), têm-se bons argumentos para compreender que o cerceamenOs limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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to de liberdades, como o desemprego, a falta de autonomia das mulheres e as restrições decorrentes das desigualdades entre os sexos, são empecilhos ao desenvolvimento. Dessa forma, uma sociedade, ao restringir as possibilidades de emprego e desprezar a capacidade das mulheres, por exemplo, restringe também as suas possibilidades de desenvolvimento. A superação dessa condição tem sido buscada por meio da promoção da autonomia das mulheres, desvencilhando-as da dependência econômica em relação ao homem. Essa autonomia pode e deve ser incentivada por meio das políticas públicas, desde que alinhadas com a perspectiva de gênero e promotoras da equidade entre homens e mulheres. Tomando como pressuposto que ações do Estado podem atuar na busca da independência financeira da mulher, e que isso é um passo importante para a equidade de gênero, este artigo tem como objetivo analisar algumas metas e ações propostas pelo Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), de 2013, que estejam relacionadas à busca pela igualdade e por maior participação das mulheres no mundo do trabalho. O intuito não é chegar a conclusões sobre a adequação do plano, mas sim retratar aspectos da condição das mulheres no mercado de trabalho e debater sobre algumas ações e metas estabelecidas no capítulo I do PNPM/2013 que estejam voltadas para a elevação da participação e igualdade das mulheres no mercado de trabalho, e que contribuam, portanto, para o desenvolvimento. Utilizando a metodologia quantitativa, foram coletados dados secundários sobre as metas estabelecidas, obtidos por meio das Pesquisas por Amostra de Domicílios (PNAD), realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2004 a 2012), informações fornecidas pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e dados sobre os cursos do Programa Mulheres Mil, coletados nos sites dos institutos federais e fornecidos pelo Ministério da Educação (MEC) por intermédio do Sistema Eletrônico do Serviço Gênero, desenvolvimento e território

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de Informação ao Cidadão (e-SIC). A partir das informações, produziram-se gráficos e tabelas, que foram analisados e relacionados com as ações dirigidas para o atendimento das metas selecionadas. Procurou-se também, quando disponível, avaliar os dados de anos anteriores ao especificado na meta, a fim de verificar a evolução histórica do indicador. Diante da complexidade e da grande quantidade de metas, objetivos e ações propostas no PNPM, efetuou-se um recorte, sendo analisadas cinco metas contidas no capítulo I do plano: aumento da taxa de ocupação e de participação das mulheres no mercado de trabalho; diminuição da desigualdade de rendimentos entre mulheres e homens; capacitação de mulheres por meio do Programa Mulheres Mil; ampliação da formalização das mulheres no mercado de trabalho; e garantia de ao menos 50% das bolsas-formação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) para mulheres. Essas metas foram selecionadas por estarem mais relacionadas com a busca da autonomia feminina e da igualdade nas relações de trabalho, tema do presente capítulo.

POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO A incorporação das questões de gênero nas políticas públicas no Brasil é um tema ainda pouco estudado. Seu surgimento está relacionado às demandas trazidas pelos movimentos sociais de mulheres à época da redemocratização do país (FARAH, 2004), bem como às orientações e pressões de organismos internacionais, destacando-se as Conferências Mundiais das Mulheres, em 1975, no México; em 1985, em Nairóbi; e em 1995, em Pequim. Ao tratar das políticas públicas relacionadas à mulher, é importante destacar que existe diferença entre políticas públicas para as mulheres e políticas públicas de gênero. As políticas de Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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gênero consideram as diferenças nos processos de socialização de homens e mulheres e suas consequências no relacionamento entre os sexos. As políticas para as mulheres, entretanto, são centralizadas na mulher e em sua responsabilidade na reprodução social (educação dos filhos, demanda por creches, saúde etc.). Essas políticas estão voltadas para a manutenção da família e não para o empoderamento e autonomia das mulheres (BANDEIRA, 2005). Segundo a autora, [a]s políticas para as mulheres não são excludentes das

políticas de gênero, embora tenham uma perspectiva

restrita, pontual, de menor abrangência, atendendo a demandas das mulheres, mas sem instaurar uma possibili-

dade de ruptura com as visões tradicionais do feminino (BANDEIRA, 2005, p. 9).

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Dessa forma, para que as políticas sejam efetivas para a equidade entre os sexos, não bastam apenas políticas para as mulheres, sendo imprescindíveis políticas de gênero capazes de promover o empoderamento e a igualdade. O empoderamento, segundo Lisboa (2008), implica a alteração dos processos e das estruturas que reproduzem a posição subalterna das mulheres, garantindo-lhes a autonomia em relação ao controle dos seus corpos, da sua sexualidade, do seu direito de ir e vir, bem como a eliminação da violência. O empoderamento e a autonomia econômica não trazem benefícios exclusivamente para as mulheres, tendo sido apontados também como fatores importantes para o desenvolvimento, tanto pelo fato de as mulheres representarem uma importante força de trabalho – cada vez mais qualificada – quanto pelo impacto que o trabalho e renda femininos exercem sobre as próximas gerações. Isso se dá porque, em geral, a renda obtida pelas mulheres é utilizada para o bem-estar da família, como o cuidado com a saúde, nutrição e estudo das crianças. Gênero, desenvolvimento e território

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Assim, o investimento nas mulheres hoje tem importância também para o desenvolvimento das próximas gerações, promovendo efeitos de longo prazo (WORLD BANK, 2012). O desenvolvimento está diretamente relacionado com o progresso das mulheres em sua vida pública e privada, e com o exercício pleno de seus direitos. Países que têm atuado nesse sentido, promovendo modificações na vida das mulheres e fortalecendo o exercício dos direitos femininos dentro e fora do lar e na vida econômica, política e cultural, têm avançado também no desenvolvimento (CEPAL, 2011). Para que o Estado atue na direção do empoderamento feminino, tem sido apontada como imprescindível a organização das mulheres em busca da garantia de acesso integral aos seus direitos. Miranda (2013, p. 3) considera que [m]ulheres organizadas nos mais diversos movimentos e regiões do Brasil têm buscado acessar diferentes componentes do desenvolvimento – a saúde, educação, oportunidades econômicas, direitos e participação política – em dinâmicas plurais que as colocam como agentes ativas de mudanças.

Barroso (2013) também aponta que as políticas públicas de gênero nos diversos Estados brasileiros têm sido criadas em função das pressões e negociações dos movimentos de mulheres, com apoio de organizações não governamentais. Entretanto, no Estado do Amazonas, alvo do estudo da autora, apesar da atuação das mulheres, o modelo de desenvolvimento ainda não leva em consideração as necessidades específicas das mulheres. Essa mesma constatação é feita por Miranda (2013) ao estudar as políticas de desenvolvimento e gênero no Estado do Tocantins, onde se verifica que a estrutura de participação e controle social é bastante frágil, impossibilitando resultados Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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concretos em termos de políticas de gênero e seu impacto sobre o desenvolvimento regional. A promoção do empoderamento e da autonomia econômica das mulheres pode ser e, geralmente, só é alcançada por meio de políticas públicas. Conforme aponta Rosa (2007), a autonomia e o direito ao trabalho são elementos centrais para o exercício da cidadania, sendo, assim, imprescindíveis as políticas que contribuam para a alteração da divisão sexual do trabalho na família. Para reduzir as disparidades de gênero, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) sugere o estreitamento das diferenças de participação da força de trabalho entre mulheres e homens; isto é, deve-se facilitar o acesso ao mercado de trabalho para as mulheres e à educação, bem como ampliar as oportunidades de emprego nos diversos ramos e níveis hierárquicos. Assim, políticas públicas são necessárias para diminuir as barreiras de entrada da mulher no mercado de trabalho, aumentando sua autonomia e promovendo o desenvolvimento da sociedade. Ao construir as políticas públicas, os governantes devem estar atentos aos impeditivos da livre participação da mulher no mercado de trabalho, considerando os vários tipos de família e as diferentes necessidades de cada uma delas. Embora, conforme o conceito estabelecido por Bandeira (2005), políticas como creches e infraestrutura não possam ser consideradas como políticas de gênero, verifica-se que essas políticas podem, como resultado secundário, promover a autonomia, pela possibilidade de que as mulheres, principalmente as das classes sociais menos favorecidas, tenham acesso ao trabalho. Por outro lado, é importante ressaltar que o trabalhar fora de casa não garantirá progresso na condição das mulheres se estas forem discriminadas, exploradas no ambiente de trabalho ou ainda utilizadas como mão de obra barata. Verifica-se, portanto, que a busca pela equidade de gênero é um tema bastante complexo, o que demanda envolvimento Gênero, desenvolvimento e território

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de todas as esferas governamentais. Para melhores resultados das ações que visam à equidade de gênero, é necessário que se efetive a transversalidade, ou o gender mainstreaming,50 o que implica a inclusão da questão das desigualdades entre os sexos na pauta de todas as esferas governamentais. Assim, busca-se uma ação integrada das várias instâncias governamentais para a superação das assimetrias de gênero, promovendo resultados mais eficazes das políticas públicas e uma governabilidade mais democrática para as mulheres (BANDEIRA, 2005): A incorporação da dimensão de gênero nas políticas pú-

blicas aconselha a implementação de projetos específicos voltados às mulheres que respondam à singularidade da situação das mulheres e à necessidade de implemen-

tar medidas de discriminação positiva para neutralizar

as desvantagens iniciais que alguns grupos de mulheres compartilham (LISBOA; MANFRINI, 2005, p. 71).

Importante ressaltar que, embora tratadas em conjunto, cada grupo de mulheres apresenta sua necessidade em termos de políticas públicas, devendo-se levar em conta a intersecção entre etnia, geração, classe e gênero. Chappell (2002) ressalta que, dada a enorme variedade de vivências, há dificuldade de se definir o que são necessidades femininas. Entretanto, para a autora, há dois tipos de interesses que têm sido considerados como de todas as mulheres. O primeiro relaciona-se à questão biológica, de reprodução e saúde. O segundo está relacionado às necessidades oriundas da posição histórica e social da mulher, isto é, demandas relacionadas à dependência econômica, acesso à educação e baixa representação política. 50 Gender mainstreaming pode ser traduzido como integração das políticas de gênero no Estado. Segundo Miranda (2012), o conceito foi formalizado em 1995, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim.

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No Brasil, o documento que reúne as diversas demandas das mulheres, dos diferentes segmentos, e que nos serve de referência em termos de políticas de gênero é o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que será apresentado a seguir.

PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES 2013-2015

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O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015 (PNPM) foi produzido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) em conjunto com os movimentos sociais de mulheres rurais, urbanas, feministas, sociedade civil e organismos estaduais e municipais de políticas para as mulheres. O PNPM 2013-2015 é um instrumento de fortalecimento da Política Nacional para as Mulheres, aprovada em 2004, cujos princípios orientadores são a autonomia das mulheres, busca pela igualdade entre homens e mulheres em todos os âmbitos, respeito à diversidade, universalidade dos serviços, participação das mulheres em todas as fases das políticas públicas e transversalidade como princípio orientador (BRASIL, 2013). Cabe, dentre todos os princípios citados, destacar a questão da transversalidade, que, como definida no tópico anterior, consiste na incorporação da perspectiva de gênero na construção de todas as políticas públicas. Por meio dela, não se deixa apenas a cargo da SPM, a responsabilidade de pensar e propor ações de igualdade de gênero, mas se divide entre todos os órgãos, dos três níveis administrativos, a incumbência de promover a equidade. Pelo fato de o PNPM ser um plano implementado com base na transversalidade, a execução das ações nele contidas nem sempre são de responsabilidade da SPM, que tem, juntamente com os demais membros do Comitê de Articulação e Monitoramento do PNPM, o papel de coordenar as ações, acompanhar e avaliar os resultados. Gênero, desenvolvimento e território

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O foco do presente trabalho será o primeiro capítulo do PNPM: Igualdade no mundo do trabalho e autonomia econômica. O principal objetivo desse eixo é a autonomia econômica e a igualdade, que “estão fundamentadas em ações específicas que visam à eliminação da desigual divisão sexual do trabalho, com ênfase na erradicação da pobreza e na garantia de participação das mulheres no desenvolvimento do Brasil” (BRASIL, 2013, p. 14). O capítulo I possui cinco objetivos específicos, 14 metas e sete linhas de ação. Cada uma das sete linhas é, ainda, desdobrada, totalizando 46 ações planejadas. Os objetivos específicos envolvem: ampliação da participação e permanência das mulheres no mundo do trabalho com garantia da equidade de rendimentos; promoção de organizações produtivas; valorização e reconhecimento do trabalho das mulheres dos mais diversos segmentos para o desenvolvimento do país; promoção de políticas de compartilhamento das atividades domésticas; e ampliação da formalização do trabalho das mulheres (BRASIL, 2013). Nosso foco será a análise das ações e metas relacionadas ao objetivo de ampliar a participação das mulheres no mundo do trabalho, com busca da equidade de rendimentos e formalização. Assim, as metas presentes no plano, que podem ser consideradas como indicadoras do progresso desse objetivo, e que serão avaliadas, são: A. Buscar o aumento em 10% das taxas de participação e de ocupação das mulheres, em relação a 2009.

B. Trabalhar para a diminuição da taxa de desigual-

dade de rendimentos entre mulheres e homens, em relação a 2009. [...]

E. Capacitar 100 mil mulheres até 2014 (Mulheres Mil).

F. Ampliar a taxa de formalização das mulheres no mercado de trabalho. [...]

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M. Garantir que no mínimo a metade dos beneficiários do Bolsa-Formação Inclusão Produtiva para be-

neficiárias do Bolsa-Família, no âmbito do Pronatec, sejam mulheres.

A seguir, buscar-se-á identificar a situação atual das cinco metas elencadas acima e debater sobre as ações pertinentes à consecução dessas metas na atualidade.

ANALISANDO AS METAS DO PNPM A primeira meta estabelecida no capítulo I do PNPM a ser analisada é “Buscar o aumento em 10% das taxas de participação e de ocupação das mulheres, em relação a 2009”. Essa meta corresponde a dois indicadores medidos pelo IBGE: a taxa de ocupação51 e o nível de atividade52 (população economicamente ativa), apresentados na Figura 1. A Figura 1 demonstra que o nível de atividade, que corresponde à população economicamente ativa (PEA), tem diminuído nos últimos dois anos, tanto para homens quanto para mulheres. Pode-se atribuir essa redução da PEA ao envelhecimento da população, ao maior tempo de estudo dos jovens e a fatores econômicos. Entretanto, há de se verificar que a meta estabelecida no PNPM – aumento de 10% na taxa de participação – é algo bastante improvável, pois o indicador não tem variado muito nos últimos anos. 51 É a porcentagem das pessoas ocupadas em relação às pessoas de dez anos ou mais de idade, por sexo. 52 É a porcentagem das pessoas economicamente ativas em relação às pessoas de dez anos ou mais de idade, por sexo. A população economicamente ativa engloba as pessoas ocupadas e desocupadas (que buscam emprego).

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Figura 1 – Nível de atividade, por sexo, 2004 a 2012 .53

Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados das PNADs de 2004-2012 (IBGE).

Conforme se pode verificar no gráfico acima, a maior elevação deu-se entre 2004 e 2005, quando a taxa cresceu 1,3 ponto percentual . O mesmo tem ocorrido com a taxa de ocupação, conforme pode ser observado na Figura 2 .

Figura 2 – Taxa de ocupação, por sexo, 2004 a 2012 .54

Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados das PNADs de 2004-2012 (IBGE). 53 Não foi realizada PNAD no ano de 2010 . Para o ano de 2012, o IBGE alterou o cálculo da população em idade ativa (PIA), que passou de maiores de dez anos para maiores de 15 anos. A fim de manter o mesmo cálculo do ano anterior, as taxas foram recalculadas pela autora, levando em consideração o mesmo critério de PIA dos anos anteriores . Assim, o percentual apresentado está diferente do que pode ser encontrado no documento do IBGE . 54 Ver nota anterior .

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A taxa de ocupação, que indica o percentual de pessoas empregadas, encontra-se em queda, havendo poucas diferenças entre a redução nas taxas de ocupação de homens e mulheres. Esse indicador pode variar de acordo com a geração de empregos, que influi de forma diferenciada sobre a ocupação de homens e mulheres, dependendo do setor em que se gerou ou se reduziu o número de empregos. Apesar de as reduções nas taxas – tanto de ocupação quanto de atividade – ocorrerem de forma semelhante entre homens e mulheres, fica evidente a menor participação das mulheres no mercado de trabalho em todos os anos analisados. É importante observar, entretanto, que a participação das mulheres em atividades remuneradas fora do lar não segue uma linha de crescimento contínuo, tem taxa de crescimento bastante reduzida e está muito relacionada a questões econômicas, além das culturais. Adotando uma perspectiva histórica, na sociedade brasileira do século 20, embora o trabalho do homem tenha se apresentado com relativa constância, o mesmo não se deu com o trabalho feminino. O nível de inserção da mulher no mercado de trabalho, bem como a forma que toma essa participação, sofreram grandes alterações ao longo do tempo. A industrialização, que promoveu a abertura de inúmeros postos de trabalho a partir da década de 1930, excluiu as mulheres do espaço público das fábricas (NOGUEIRA, 2008). Já a crise e a recessão, que trouxeram dificuldades de sustento para as famílias na década de 1980, impulsionaram a maior participação feminina no mercado de trabalho (BALTAR, 1996). Assim, fatores econômicos tiveram e têm influência sobre o nível de inserção da força de trabalho feminina, dando-se destaque ao aquecimento de um setor da economia em relação a outro. Um exemplo disso é que, diante da elevação dos empregos no setor terciário, a participação feminina no mercado de trabalho eleva-se consideravelmente, visto ser esse um setor com atividaGênero, desenvolvimento e território

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des culturalmente vinculadas às mulheres, como o atendimento ao público. Mas fatores econômicos, entretanto, não explicam tudo. Os valores da sociedade, as relações de gênero e o papel social designado à mulher também tiveram seu impacto, atuando, principalmente, na restrição das possibilidades de acesso de muitas mulheres ao mercado de trabalho (BRUSCHINI, 2007). Nas últimas décadas do século 20, ocorreram muitas modificações demográficas, culturais e sociais que levaram a um aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho. Entre elas, pode-se citar o movimento feminista, a redução da quantidade de filhos por mulher, a redução do tamanho das famílias, o envelhecimento da população, a maior expectativa de vida ao nascer, o crescimento de arranjos familiares chefiados por mulheres e a maior escolarização feminina (BRUSCHINI, 2007). Todos esses aspectos contribuíram para a elevação relativamente contínua da participação das mulheres no mercado de trabalho a partir da década de 1970. Mas como será debatido a seguir, a elevação da participação não promoveu equidade de gênero no mundo do trabalho. Essa não equidade reflete-se nos números da segunda meta analisada, que é “Trabalhar para a diminuição da taxa de desigualdade de rendimentos entre mulheres e homens, em relação a 2009”. Essa meta é de fundamental importância quando se fala em equidade de gênero. Por mais que as mulheres adentrem o mercado de trabalho, observa-se que as questões de gênero fazem com que elas se mantenham em profissões menos valorizadas socialmente e, mesmo quando exercem atividades iguais às masculinas, tenham remuneração menor. Por meio da Figura 3, observa-se que a renda das mulheres proporcionalmente à dos homens vem crescendo, ano a ano, exceto por um leve decréscimo entre 2011 e 2012. Como esse é o único decréscimo, não se pode afirmar que haja tendência de retração da renda das mulheres em comparação com a dos homens. Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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Figura 3 – Proporção do rendimento médio mensal das mulheres em relação aos homens .55

Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados do IBGE (2013).

Outra forma de verificar a diferença entre o rendimento recebido por homens e por mulheres é pela proporção de pessoas que recebiam até um salário mínimo em 2012: 23,7% dos homens e 33,3% das mulheres. Além disso, havia proporcionalmente mais mulheres ocupadas sem rendimentos ou recebendo somente em benefícios (9,0%) do que homens (4,9%) nessa mesma situação (IBGE, 2013). Assim, apesar da redução das diferenças salariais ao longo dos anos, verifica-se que as mulheres continuam a receber menos do que os homens, a despeito de sua maior escolarização . Um fato interessante é que tem ocorrido um aumento significativo na porcentagem de mulheres empregadas que têm mais de 11 anos de estudo . Em 2001, essas mulheres correspondiam a 35,1% de todas as pessoas do sexo feminino empregadas. Essa taxa veio crescendo, e, em 2012, 55,8% de todas as mulheres empregadas têm mais de 11 anos de estudo (IBGE, 2013).

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55 Considera pessoas com 15 anos ou mais de idade ocupadas na semana de referência. Valores inflacionados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) com base em setembro de 2012 .

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Se, por um lado, esse indicador sinaliza que as oportunidades de emprego para as mulheres escolarizadas vêm aumentando, por outro, pode indicar que as menos escolarizadas vêm perdendo espaço no mercado de trabalho e, ainda, que as mulheres têm necessitado ter mais anos de estudo para conseguir empregos equivalentes aos masculinos. Essa última hipótese é reforçada pelo fato de que o aumento de renda das mulheres tem sido bem menor do que o aumento da quantidade de mulheres escolarizadas no mercado de trabalho (IBGE, 2013) – ou seja, apesar da elevação da escolaridade, elas podem estar atuando em funções aquém da sua formação e, portanto, com nível de remuneração inferior ao que poderiam obter. Outro indicador importante é a taxa de ocupação diferenciada entre homens e mulheres com 11 ou mais anos de estudo: enquanto 84,1% dos homens com esse nível de escolaridade estavam empregados, apenas 66,4% delas se encontravam na mesma situação em 2012 (IBGE, 2013). Assim, a maior escolarização não se tem revertido, necessariamente, em maiores níveis de emprego e renda para as mulheres. Pode-se verificar, portanto, que essa meta estabelecida no PNPM tem boas perspectivas de evolução. Entretanto, há muito que se trabalhar para atingir igualdade de remuneração entre os sexos. Essa condição de menor remuneração é influenciada por diversos fatores, mas é evidente a presença de questões de gênero, entre as quais se pode destacar a divisão sexual do trabalho, que ocorre também fora do lar por meio da destinação de profissões menos valorizadas para as mulheres (BOURDIEU, 2002; KERGOAT, 2009); a necessidade de engajamento em atividades de meio período por conta das obrigações familiares; da desaceleração da carreira diante do nascimento e criação dos filhos (ARAÚJO; SCALON, 2005); e também da discriminação das mulheres no mercado de trabalho. A terceira meta analisada neste trabalho é “Ampliar a taxa de formalização das mulheres no mercado de trabalho”. Esse é Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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um indicador importante, que reflete a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Em 2012, 31,2% das mulheres não tinham registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), enquanto 26,8% dos homens encontravam-se na mesma condição . Esse indicador, no entanto, vem apresentando melhora significativa, como pode ser verificado na Figura 4, que retrata a queda do percentual de trabalhadoras e trabalhadores sem registro . Figura 4 – Proporção de trabalhadores sem registro em CTPS, por sexo .

Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados das PNADs (IBGE, 2013).

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Embora o PNPM não estabeleça uma meta específica, pode-se considerar que esse indicador tem apresentado evolução . Não se verifica, entretanto, até 2012, uma melhoria específica para um gênero, pois o índice de trabalhadores sem registro em CTPS caiu para ambos os sexos . Esse quadro, entretanto, pode ter melhor prognóstico para as mulheres nos próximos anos, pelas mudanças referentes ao trabalho doméstico na legislação trabalhista. Dado que mais de 92,6% dos trabalhadores domésticos, em 2012, eram mulheres (IBGE, 2013), a maior regulamentação e exigência de registro em CTPS para esses trabalhadores beneficiará mais a elas do que a eles.

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As duas últimas metas analisadas são: “Garantir que no mínimo a metade dos beneficiários do Bolsa-Formação Inclusão Produtiva para beneficiárias do Bolsa-Família, no âmbito do Pronatec, sejam mulheres”; e “Capacitar 100 mil mulheres até 2014 (Mulheres Mil)”. Ambas têm como intuito capacitar as mulheres para sua melhor inserção no mercado de trabalho, constituindo-se, portanto, em uma ação que apoia o objetivo de aumentar a taxa de ocupação e participação das mulheres, bem como a meta de reduzir as disparidades de renda. O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), criado pela Lei nº 12.513, de 26 de outubro de 2011, é de responsabilidade do Ministério da Educação (MEC). Sua finalidade é “ampliar a oferta de educação profissional e tecnológica, por meio de programas, projetos e ações de assistência técnica e financeira” (BRASIL, 2011, art. 1º). O Pronatec oferta cursos gratuitos e auxílio a estudantes de cursos técnicos da rede pública de ensino (Bolsa-Formação Estudante) e também se vincula ao Plano Brasil sem Miséria (BSM), ofertando Bolsa-Formação Trabalhador a pessoas inscritas ou em processo de inclusão no CadÚnico (BRASIL, 2011; 2014). Segundo dados fornecidos pelo MDS (MDS, 2014), as mulheres receberam 68% das Bolsas-Formação Trabalhador do Pronatec/Brasil Sem Miséria entre 2012 e 2014. A região em que houve maior participação de mulheres dentre os bolsistas foi a Centro-Oeste, com 73%, e a região com menor percentual de Bolsas-Formação para mulheres foi a Sul, com 64%. Dessa forma, a meta proposta pelo PNPM está sendo atingida, muito além dos 50% de bolsas propostas. Entretanto, quando se agrupam as duas modalidades de bolsas (estudante e trabalhador), de acordo com os dados recebidos do Ministério da Educação, em nenhum dos Estados da Federação há maioria de mulheres entre os bolsistas, sendo que, desde a implantação do programa, as mulheres receberam 40,6% das Bolsas-Formação disponibilizadas no país (MEC, 2013a). Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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É importante ressaltar que os cursos do Bolsa-Formação Estudante são cursos técnicos de nível médio, de longa duração, enquanto os cursos da Bolsa-Formação Trabalhador são de Formação Inicial e Continuada (FIC), de menor duração e destinados a pessoas com baixa escolaridade (BRASIL, 2011). Assim, seria interessante que a meta de 50% de Bolsas-Formação para mulheres não se restringisse ao âmbito do Programa Brasil Sem Miséria, mas se estendesse aos demais cursos do Pronatec, já que eles são de nível técnico, que geram uma melhor qualificação e oportunidades de inserção profissional em funções com maior remuneração. O Programa Mulheres Mil tem foco na promoção da equidade, igualdade entre sexos, combate à violência contra mulher e acesso à educação. O programa busca capacitar exclusivamente mulheres, com vistas à autonomia e criação de alternativas para a inserção no mundo do trabalho. Em 2012 foi realizada uma chamada pública de propostas para execução do programa, sendo pré-selecionados projetos dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) de todas as regiões do país. O programa, atualmente, é executado em 235 campi de 37 institutos federais. Em relação ao número de matrículas em 2013, foram beneficiadas 17.784 mulheres, sendo 42,5% das matrículas registradas na Região Nordeste, 13% na Sudeste, 15,5% no Norte do Brasil, 10% no Centro-Oeste e 19% no Sul (MEC, 2013b). Na Região Norte, a título de exemplo, foram selecionados projetos dos IFs do Tocantins, Acre, Pará e Rondônia. Em sua execução, entretanto, observa-se que, diferentemente do que propõe o PNPM, alguns cursos reforçam a divisão sexual do trabalho, ou seja, parte dos cursos contemplam atividades consideradas femininas e que geram baixa perspectiva de retornos financeiros e de oportunidades formais de trabalho. Na região, os cursos ofertados e/ou programados para 2013, de acordo com levantamento realizado nos sites dos institutos federais acima referidos, foram: Gênero, desenvolvimento e território

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Tabela 1 – Cursos ofertados por meio do Programa Mulheres Mil na Região Norte (2013). ESTADO

CURSO

C.H.

VAGAS

TO

Informática para o Espaço Doméstico e do Trabalho

200

100

Horticultura Orgânica e Preparadora de Pescado

200

100

160

66

AC

Jardinagem e Ornamentação

PA

Artesão de Biojoias

AC PA

PA PA PA

PA

PA PA

RO RO RO

Auxiliar de Cozinha Pintura em Tecido

200 160 160

Corte e Costura

Operador de Computador Pedreiro de Acabamento

Operador de Beneficiamento de Pescado

Manutenção e Reparador de Computadores

160

100 34 25

100

100

200

35

200

200

Processamento de Pescado

200

Formação Inicial e Continuada em Empreendedorismo

200

Alfabetização Digital e Inclusão Tecnológica

50

200

35 30 50 50 46

Considera-se que, conforme proposto no PNPM, o maior acesso das mulheres a oportunidades de qualificação que não reforcem os padrões de gênero é fundamental. Por meio dessas ações, tem-se a oportunidade de dar melhores condições de acesso das mulheres ao mercado de trabalho e em ocupações mais valorizadas, contribuindo para o aumento das taxas de atividade, de ocupação e de formalização, bem como redução das disparidades salariais. Há que se observar, entretanto, a necessidade de que, no momento da execução, essas propostas sejam, de fato, postas em prática. A transversalidade é fundamental e a preocupação, e até mesmo a consciência, sobre as questões de gênero não podem estar limitadas aos formuladores de políticas, mas sim serem estendidas também aos executores destas. Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Diante das metas e propostas analisadas, verifica-se que há ações concretas, contidas no PNPM, no sentido de melhorar a condição das mulheres, como, por exemplo, a qualificação por meio do Programa Mulheres Mil, que, apesar de não estar sendo concretizada exatamente conforme as diretrizes, tem capacidade de promover autonomia para as mulheres atendidas. A cotização de todas as modalidades de bolsas do Pronatec seria uma ação bastante importante, sendo necessária a implementação de mecanismos de controle da destinação dessas bolsas para as mulheres. Considera-se também que a regulamentação da legislação concernente ao trabalho doméstico promoverá importantes ganhos às mulheres que atuam nesse setor, dando-lhes garantias de direitos trabalhistas e previdenciários. Quanto às metas de redução das disparidades salariais e aumento das taxas de ocupação e atividade, considera-se que o PNPM não traz propostas concretas que deem subsídio a essas metas e propiciem igualdade e eliminação da discriminação das mulheres no mercado de trabalho de forma geral. Apesar de propor qualificação e creches, o plano não traz ações afirmativas que visem a compensar as desvantagens anteriores vivenciadas pelas mulheres. Uma exceção é a proposta de articulação para aprovação do Projeto de Lei nº 6.653/2009, que buscava coibir práticas discriminatórias no âmbito das empresas públicas e de economia mista, mas que foi indeferido em março de 2013. Pode-se citar também como uma ação de incentivo à igualdade de gênero o Programa Pró-Equidade de Gênero, que premia empresas que buscam diminuir a discriminação no ambiente de trabalho, mas que ainda apresenta baixa repercussão na iniciativa privada. O plano também trata de forma bastante tímida a questão da licença-maternidade e paternidade, não trazendo propostas de divisão da licença entre os progenitores, o que seria uma Gênero, desenvolvimento e território

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política de gênero fundamental para a redução das disparidades salariais e de acesso das mulheres ao mercado de trabalho. Políticas públicas afirmativas são fundamentais para reverter as desigualdades de gênero no mercado de trabalho, e ainda não se verifica uma proposta de uma política consistente nesse sentido. Apesar de haver críticas ao PNPM, considera-se que ele representa um avanço significativo ao trazer ações e metas fundamentais para a promoção da equidade de gênero. É de extrema importância que o que está proposto no plano seja concretizado e, diante das avaliações realizadas nas conferências, se possa avançar e incluir novas políticas. Além disso, conforme nos lembra Bandeira (2005), para redução das assimetrias de gênero, não basta apenas a eficácia de políticas públicas, pois as desigualdades sofrem influência de outros fatores estruturais, como fatores econômicos, demográficos, de mercado, sociais, arranjos familiares, papéis e padrões sociais. Portanto, é imprescindível que se reconheça que as desigualdades de gênero expressam as relações de poder, estando profundamente institucionalizadas. A superação desse quadro, portanto, não se mostra simples, e envolve a participação efetiva das mulheres como sujeitos de sua história, como cidadãs ativas. A organização das mulheres em cada Estado ou região tem importante papel na construção e melhoria das políticas nacionais, visto que as necessidades das mulheres e os níveis de desenvolvimento são diferentes em cada localidade. Isso faz com que a promoção da autonomia das mulheres envolva um foco diferenciado por região, que pode ir de políticas de educação básica a demandas por equidade em cargos de liderança, por exemplo. Apesar das diferenças regionais, os responsáveis pela formulação de políticas públicas precisam estar sensíveis a questões de gênero, incluindo essa perspectiva nas políticas de desenvolvimento regional. Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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Diante de uma maior presença e representatividade feminina nos espaços públicos, seja na política ou nas empresas, e atentando-se para a transversalidade de gênero na construção de políticas públicas, muito teremos progredido na busca da equidade de oportunidades e direitos para ambos os sexos. Somente assim se conseguirá progredir também na busca pelo desenvolvimento, pois, como debatido por Amartya Sen (2000), o desenvolvimento consiste na expansão das liberdades reais que as pessoas usufruem. Essa expansão da liberdade é o fim prioritário e, simultaneamente, o meio principal para o desenvolvimento. Dessa forma, o desenvolvimento humano não pode ocorrer diante do desemprego, da falta de autonomia das mulheres e das desigualdades presentes no mercado de trabalho. Ou seja, uma sociedade ou região que restringe as possibilidades de emprego e despreza a capacidade das mulheres limita também as suas possibilidades de desenvolvimento.

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REFLEXÕES SOBRE O MULTI(INTER) CULTURALISMO E RELAÇÕES DE GÊNERO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO AMAZONAS Marcos André Ferreira Estácio Diana Andreza Rebouças Almeida

INTRODUÇÃO

A

s primeiras experiências escolares com os indígenas, no Brasil, datam do início da colonização portuguesa, no século 16, e ocorreram em um contexto onde o poder político e econômico e a evangelização eram indissociáveis, cabendo aos jesuítas catequizar os índios para promover uma educação do tipo escolar e difundir o cristianismo. Nesse contexto, as diversidades culturais e de gênero eram suprimidas do processo educativo e a centralização das ações estava apenas na “suposta” necessidade de “civilizar” os índios aos moldes da cultura ocidental. O surgimento da monarquia no Brasil e a “proclamação da Independência” no século 19 não trouxeram mudanças significativas na área educacional em relação à população indígena, continuando a ser realizada nos moldes tradicionais da catequese, agora não mais pelo exclusivismo jesuítico, mas também por outras ordens religiosas. O advento da República representou uma continuidade em relação à fase anterior, não acarretando mudanças no âmbito da educação para o indígena, pois na Constituição de 1891 ela foi ignorada. No início do século 20, a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas pautava-se pela política integracionista que visava a preparar os índios para ingressarem na “civilização”. Tais ações contribuíram para o quase aniquilamento da diverOs limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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sidade étnica e cultural, e o marco dessa política foi a criação, em 1910, do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), posteriormente denominado de Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Nesse período, a ação educativa para as comunidades indígenas tinha por finalidade a formação do trabalhador nacional, com repercussão na “proteção” aos índios e o objetivo de transformá-los em pequenos produtores rurais, a fim de atender à política de regeneração agrícola do país. Ou seja, a função educativa do SPI objetivava a incorporação do indígena ao território brasileiro pela perspectiva do pequeno produtor rural, por meio do ensino primário, com iniciação para o trabalho agrícola ou agropecuário, e também na defesa nacional, com ênfase na disciplina militar, por meio do ensino de moral e cívica e da educação física. Vale ressaltar que, mesmo a educação escolar das comunidades indígenas estando sob a responsabilidade do SPI, ainda permanecia a presença das missões religiosas na tarefa educacional, que incluía uma parcela indígena, sobretudo no Estado do Amazonas. Prova disso é a presença efetiva, a partir de 1915, de missionários salesianos na condução de internatos para crianças índias, na região do alto rio Negro, interior do Amazonas; para tais internatos, meninos e meninas índios eram recrutados e recebiam ensino primário, eram proibidos de falarem suas línguas maternas e eram, ainda, iniciados na religião católica e no aprendizado de hábitos e padrões estranhos à sua cultura (WRIGTH, 2005). Nos anos 1950, iniciou-se a discussão da necessidade de se repensar as escolas indígenas, mas as alterações propostas restringiram-se à adequação do ensino regular às diferentes fases do contato entre os índios e a dita “civilização”. Na década de 1960, incorporaram-se “certos avanços” à política indigenista, com a ratificação, pelo Brasil, da Convenção nº 107, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), elaborada em Gênero, desenvolvimento e território

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1957, e os convênios firmados entre o Summer Institute of Linguistics (SIL) e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Por meio de tais convênios, ampliaram-se os trabalhos linguísticos e escolares no interior de dezenas de aldeias no Amazonas, sem, contudo, considerar as especificidades das relações de pertencimento, identidade e gênero no contexto indígena. O modelo educacional implementado pelo SIL, baseado na educação bilíngue, assemelhava-se ao de qualquer missão tradicional: conversão dos gentios e salvação de suas almas (RIBEIRO, 1962). Esse tipo de formação não valorizava a diversidade e não tratava os povos indígenas como sujeitos de direitos. Os anos 1970 marcaram um período de novas experiências na área da educação escolar indígena, pois parcelas influentes do aparelho estatal e diferentes instituições religiosas e indigenistas opuseram-se à perspectiva integracionista e à presença do SIL em áreas indígenas e defenderam uma escola guiada pelo respeito às culturas e identidades indígenas e aos seus projetos de futuro. A partir desse período, iniciaram-se os primeiros movimentos de organização de índios, a busca de representação, a defesa dos seus interesses e a reivindicação de uma instituição escolar em oposição à política de integração e construída por uma perspectiva educacional específica e diferenciada. A luta dos povos indígenas e as experiências de educação escolar indígena, implementadas pelas entidades e organizações não governamentais, somada à força do movimento das organizações em defesa da causa indígena, contribuíram para que se alcançassem as conquistas constitucionais de 1988. Essa Carta Magna reconheceu o direito de organização, de manifestação linguística e cultural, de ser e de viver segundo os próprios projetos de sociedade. O texto constitucional rompeu com a política integracionista de homogeneização cultural e étnica, estabelecendo um novo paradigma baseado na possiOs limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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bilidade de pluralismo, superou a tradição de tratar os índios como “categoria transitória” e afirmou o direito à alteridade cultural (GRUPIONI, 1997). Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) reforçou as disposições da Constituição Federal, incentivando o desenvolvimento de uma educação multi(inter)cultural, com a finalidade de proporcionar às comunidades indígenas o seu reconhecimento perante as demais sociedades. Assim, as reformas educacionais para as populações indígenas propostas pelo governo brasileiro vêm propiciando um grande estímulo à discussão sobre escolarização das e nas aldeias, com inúmeros projetos de formação e capacitação de professores indígenas realizados no país nos últimos anos (BANIWA, 2014), com financiamento público e participação de secretarias estaduais e municipais de educação, universidades e organizações não governamentais (ONGs). A inserção das questões étnico-raciais no contexto das reformas educacionais não tem sido posta como um tema relevante das políticas públicas. No que se refere aos estudos de gênero em relação às comunidades indígenas, nota-se ainda pouca disseminação. Para Milhomem (2012), essa situação ocorre não por falta de interesse de pesquisa na área, mas em razão das dificuldades vivenciadas por pesquisadoras/es em compreender as relações de gênero em comunidades indígenas. Assim, o grande desafio posto é tirar as questões de gênero e etnia da invisibilidade para que seja possível construir uma agenda de políticas públicas educacionais para os indígenas na perspectiva de gênero. Assim, em um exercício preliminar, o presente texto busca promover uma reflexão sobre multi(inter)culturalismo56 e re 56 Neste trabalho, entende-se por multi(inter)culturalismo a postura dialógica, para além da perspectiva da tolerância, entre os diferentes grupos culturais que se entrecruzam nos espaços sociais, destacando as desigualdades que podem marcar essas relações e a necessidade de seu enfrentamento (CANDAU; LEITE, 2006, 2011).

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lações de gênero no contexto da educação escolar indígena no Amazonas, e, nesse processo, apesar da tentativa de enfatizar as diferenças, estas não são consideradas em sua totalidade, pois, como será identificado, as questões de gênero têm sido negligenciadas.

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA? A Constituição Brasileira de 1988, fundada em princípios democráticos, declara que todas e todos são iguais perante a lei, sem distinção de nenhuma natureza, e determina que cabe ao Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e de acesso às fontes da cultura nacional; apoiar e incentivar a valorização e difusão das manifestações culturais, proteger as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e as de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Nesse sentido, a cultura, para a Constituição e para além dela, pode ser vista como elemento importante para o desenvolvimento de uma nação ao permitir que a população acesse os bens culturais favorecendo o processo de inclusão social, econômica, política, e também incentivando a tolerância e o respeito às diversidades. O Ministério da Cultura (MinC),57 organismo federal articulador das políticas públicas de cultura no Brasil, afirma que a concepção de cultura deve abranger três dimensões: a simbólica, a cidadã e a econômica: A dimensão simbólica aborda o aspecto da cultura que considera que todos os seres humanos têm a capacidade

de criar símbolos que se expressam em práticas cultu 57 Para mais informações, acessar o endereço eletrônico do Ministério da Cultura. Disponível em: . Acesso em: 17 maio 2015.

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rais diversas como idiomas, costumes, culinária, modos de vestir, crenças, criações tecnológicas e arquitetônicas,

e também nas linguagens artísticas: teatro, música, artes visuais, dança, literatura, circo etc.

A dimensão cidadã considera o aspecto em que a cultura é entendida como um direito básico do cidadão. Assim,

é preciso garantir que os brasileiros participem mais da vida cultural, criando e tendo mais acesso a livros, espe-

táculos de dança, teatro e circo, exposições de artes visuais, filmes nacionais, apresentações musicais, expressões da cultura popular, acervo de museus, entre outros.

A dimensão econômica envolve o aspecto da cultura como vetor econômico. A cultura como um lugar de ino-

vação e expressão da criatividade brasileira faz parte do novo cenário de desenvolvimento econômico, socialmente justo e sustentável (MINC, 2015, p. 1).

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Logo, investir em políticas que levem em conta as “culturas”, a afirmação da identidade e a diversidade cultural é estimular os valores de autoexpressão de um povo. Segundo Inglehart e Welzel (2009), as sociedades com alto grau de autoexpressão tendem a enfatizar a autonomia individual e a qualidade de vida, e assim estão relativamente propensas a proteger o meio ambiente, bem como favorecer à igualdade de gênero, e mostram-se tolerantes com as minorias. Uma educação que estimule a autoexpressão e reconheça os papéis sociais distintos de gênero é um caminho necessário, tendo em vista que a voz das mulheres indígenas, pela falta do costume, foi silenciada. Segundo Milhomem (2012), o movimento indígena brasileiro foi liderado por homens, e somente a partir da década de 1990 as mulheres começaram a criar organizações próprias para lutar por seus direitos. A Lei nº 9.394/1996 determina que, nos currículos do Ensino Fundamental e Médio, o ensino da história do Brasil leve Gênero, desenvolvimento e território

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em consideração as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente as das matrizes indígena, africana e europeia (Art. 26, § 4º); institui a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio, sejam eles públicos ou privados (Art. 26-A, §§ 1º e 2º); assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, no Ensino Fundamental (Art. 32, § 3º); institui como dever do Estado a oferta de uma educação escolar bilíngue e intercultural para os povos indígenas (Art. 78, caput e Incs. I e II). Ou seja, essa legislação repõe o Brasil como um país plural e reconhece a importância do respeito às culturas, identidades e diferenças, e também exige um repensar das relações entre educação e culturas no espaço escolar. Se, por um lado, essas temáticas passaram a ser explicitamente contempladas nos currículos da rede regular de ensino, por outro lado, as resoluções aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), as quais fixam as diretrizes nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, já defendiam uma educação específica, diferenciada e de qualidade construída em conjunto com os povos. Entretanto, podemos perceber que nas referidas legislações não há referência às questões de gênero, o que evidencia que, mesmo o Brasil tendo avançado nas políticas de gênero há pouco mais de uma década, a partir da criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, em 2003, as políticas não foram plenamente interiorizadas e diversificadas para atender as especificidades das mulheres brasileiras. No Amazonas, conforme afirmam Albuquerque e Peixoto (2006), a educação escolar para as populações indígenas tem Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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sido objeto de desenvolvimento de ações governamentais e são decorrentes da Constituição de 1988, da LDB nº 9.394/1996, das Diretrizes do CNE, da Constituição do Estado do Amazonas de 1989 e das reivindicações do movimento indígena, que ao longo dos anos vem lutando por uma educação escolar específica, multi(inter)cultural, diferenciada e autônoma para os seus povos. E conquistas dessa luta foram o reconhecimento pela política estadual de educação escolar indígena da categoria “escola indígena”58 e a criação do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena (CEEI/AM). Mesmo com esse reconhecimento, observa-se que o acesso à educação ainda é limitado. E um exemplo é a capital do Estado do Amazonas (Manaus), que, segundo dados do Censo Escolar (2013) do Ministério da Educação, possui 726 instituições públicas de educação básica em atividade, sendo que apenas três delas são reconhecidas como escolas indígenas,59 as quais atendem 90 alunos. Logo, é imprescindível a ampliação do acesso escolar diferenciado para as comunidades indígenas, possibilitando-lhes uma educação específica e o respeito às características étnicas e socioculturais. É inegável que essas legislações introduziram o princípio do multi(inter)culturalismo e o desejo de que este se construa nas escolas, ganhando vida e transformando realidades, e que no seu processo desconstrua os modelos padronizadores e monoculturais dos grupos privilegiados que silenciam as diferenças e reproduzem desigualdades e discriminações. Para Candau (2008), faz-se necessário a (inter)relação entre os di 58 As “escolas indígenas” são reconhecidas como estabelecimentos de ensino no âmbito da educação básica e devem estar localizadas em terras indígenas. Ela propicia a autonomia escolar, por meio da criação de programas específicos e a possibilidade de ação interinstitucional, das organizações indígenas e da própria comunidade, para acompanhar e assessorar as atividades de oferta de ensino aos índios (ALBUQUERQUE; PINHEIRO, 2006). 59 Dessas escolas indígenas, uma está localizada na zona urbana e cinco localizam-se na zona rural (MEC; INEP, 2014a, 2014b).

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ferentes grupos e a permanente renovação das culturas, seu processo de hibridização e a desvinculação entre questões de diferença e de desigualdade, e afirma que é no cruzamento, na interação, no reconhecimento da dimensão histórica e social do conhecimento que a escola está chamada a se situar. No que concerne à educação escolar indígena, Bergamaschi (2007, p. 197) aponta que os povos indígenas defendem “práticas escolares que busquem constituir um modo próprio de ensinar, em diálogo com [...] a educação tradicional e a cosmologia de seu povo”. Ou seja, essa educação deverá permitir a cada povo indígena definir e exercitar, no âmbito de sua escola, os processos próprios de ensino e aprendizagem e de produção e reprodução dos conhecimentos tradicionais e científicos de interesse coletivo do seu povo. E por que um povo ou comunidade indígena lutaria por escolas, já que ela é um espaço contraditório e ambivalente? Sobre esse questionamento, Weigel (2003, p. 5) conclui que tal processo é determinado por relações políticas, rela-

ções de força e condições materiais, no qual os segmentos indígenas [...] operam mudanças em: sua cosmologia,

suas concepções míticas e estéticas, sua magia, seus rituais, suas bases materiais e línguas, apropriando-se –

mas também recriando e reelaborando, de acordo com

critérios e paradigmas de suas próprias culturas – dos elementos da cultura dominante.

Os povos indígenas diferem entre si, e também de outros povos e segmentos sociais. Entretanto, pela sua história de colonização, massacres e perseguições, tiveram de elaborar estratégias de resistência com a sociedade envolvente, muitas vezes implicando a quase perda das suas identidades e também a ressignificação identitária. Hoje, esse é um ponto a ser considerado, pois subjaz no imaginário da sociedade brasileira Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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uma concepção ideológica naturalista e romântica sobre esses povos, os quais são referidos a um passado mítico, sendo contraditoriamente negada a sua existência no presente. Povos que viram – e hoje ainda veem – as suas línguas, suas cosmovisões e costumes serem diminuídos, desprezados e desrespeitados estão lutando para restabelecer e recuperar seus territórios, vivendo um momento de intenso embate com o etnocentrismo reinante nas sociedades não indígenas. No entanto, se há pontos comuns entre as culturas, trocas entre modos e costumes, isso não põe por terra as identidades de um povo, pois nenhum ser humano ou sociedade vive isolado do contexto e de seu tempo. Não existem grupos superiores ou inferiores, mas grupos diferentes. Um grupo pode ter menor desenvolvimento tecnológico se comparado a outro, mas, possivelmente, é capaz de viver e conviver com determinado ambiente, além de não possuir diversos problemas que esse suposto grupo “superior” possui. Não se pode também negar os recursos tecnológicos da contemporaneidade, mas cada etnia precisa refletir sobre os condicionantes sociais e econômicos que acompanham tais recursos. Os indígenas, ou qualquer outro povo ou população, não perdem suas identidades porque possuem escolas com recursos tecnológicos, por acessarem – de suas comunidades, tribos ou aldeias – a rede mundial de computadores (internet), porque possuem celulares ou estão vestindo roupas sintéticas. Para Meliá (2001, apud SILVA, 2007, p. 138, grifos do autor), a identidade não é a fixação sobre o mesmo; também não

é simplesmente ir para frente, tocar numa outra direção; ela é dinâmica, se constrói em trânsito. Pode ser definida como o nós em movimento. Significa encontrar-se a si

mesmo em novas situações, as quais eu tenho que responder. 284

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Segundo Geertz (1989, p. 15), a cultura é um contexto dentro do qual os acontecimentos sociais podem ser descritos e ganhar significados. O conceito de cultura que ele defende é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max We-

ber, que o homem é um animal amarrado às teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo estas teias e sua análise, portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.

Para esse autor, o importante é aprofundar a busca pelas particularidades e as condições de entendimento das culturas localizadas. É sabido que os ideais da ideologia do discurso do poder também podem ser passados junto com os conteúdos didáticos, podendo chegar a se transformarem em valores. Ao reconhecer os efeitos e o poder do discurso homogeneizador e hegemônico, defende-se, na atualidade, uma educação diferenciada para as comunidades indígenas, buscando formar professores índios, estimulando que eles mesmos produzam seus materiais didáticos, e assim minimizar os efeitos da imposição da globalização excludente e deformante, ou seja, de uma inclusão perversa, a qual classifica, diferencia e exclui. Ressalta-se, também, que preconceitos latentes sobre a representação social dos indígenas precisam ser repensados, pois a representação brasileira em relação às populações

indígenas foi hegemonicamente construída a partir de quatro equívocos básicos: 1 – Considerar os índios ho-

mogêneos; 2 – Identificar as culturas indígenas de forma

“congelada”; 3 – Entender as tradições indígenas como atrasadas e, portanto, portadoras de conhecimentos pertencentes ao passado; 4 – O instituído hegemônico não Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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reconhece a cultura indígena como uma das matrizes de formação da identidade brasileira, em privilégio de uma

perspectiva eurocêntrica (MONTEIRO, 2007, p. 162-63, grifos do autor).

Apesar da diversidade dos povos indígenas, não se pode deixar de identificar suas relações com as desigualdades socioeconômicas e de gênero mais gerais da sociedade. As lutas pela afirmação e positividade das identidades não ocorrem apenas no âmbito do discurso, pois, por exemplo, quando índios se afirmam como tais, estão a reivindicar também direitos correlatos, como a terra, seus recursos naturais, saúde e educação diferenciadas.

A IMPORTÂNCIA DA PERSPECTIVA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA Para Miranda e Parente (2014), por meio do conceito de gênero, as relações entre mulheres e homens passam a ser vistas de uma perspectiva social, cultural e histórica, levando em conta os papéis socialmente atribuídos a cada um dos gêneros na sociedade, no trabalho, na política, na família, nas instituições e em todos os aspectos das relações humanas. O conceito de gênero é portador de uma ampla complexidade que tende a variar de acordo com a linha teórica adotada – o que tem provocado embates, confrontos, negociações e até mesmo retrocessos no âmbito das políticas públicas. A tentativa de adoção das questões de gênero no atual Plano Nacional de Educação (PNE) brasileiro evidenciou essa situação. O novo PNE foi aprovado em 2014 com vistas a estabelecer metas e estratégias para os próximos dez anos. O processo de aprovação 286

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do plano passou por momentos de conflitos no que se refere à tentativa de incorporar as questões de gênero e sexualidade.60 Parlamentares conservadores afirmaram que questões relacionadas a gênero traria às escolas materiais didáticos e diversos tipos de atividades que incentivariam a homossexualidade; já os que estavam a favor dessa incorporação defendiam a promoção do combate contra o preconceito às mulheres e a homofobia nas escolas. Porém, mesmo com as dissidências causadas por ativistas de ambos os lados, a menção de gênero e sexualidade não foi incorporada. A retirada das palavras gênero e sexualidade do PNE evidenciam um retrocesso, pois, enquanto o país tem realizado grandes esforços para criação de políticas de gênero, a educação caminha de forma oposta, sem ressaltar no ensino a necessidade de desconstrução do modo de se portar e pensar sobre os papéis de gênero na sociedade. Esse conflito desmonstra quão caro tem sido pautar as questões de gênero em espaços políticos onde de fato poderiam gerar transformações profundas na sociedade – que dirá então a inclusão desse debate no âmbito da educação escolar indígena? Entendemos que, para essa discussão ser incorporada no contexto indígena, deverá proporcionar condições políticas de participação e decisão, pautadas na construção de um diálogo, firmado em um conjunto de princípios e direitos integrantes da condição e afirmação étnica, os quais deverão direcionar-se para o respeito às diferenças. Ou seja, compreende-se que as especificidades dos interesses e necessidades dos indígenas garantem-lhes, entre outras questões, o direito de somente eles, os detentores dessas especificidades, poderem dizer que modelo de educação e de rela 60 Plano Nacional de Educação: Por que o gênero assusta tanto? Disponível em: . Acesso em: 17 maio 2015.

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ção com as questões de gênero está adequado aos seus modos próprios de viver, pensar e ser. Isso significa que a autonomia61 dos povos indígenas deve ser garantida e resguardada, e mais: indica a vontade dos próprios indígenas de serem os responsáveis e partícipes dos processos voltados aos seus povos, às suas comunidades, e que devem dar concretude, sentido e vida aos seus direitos. Pensar uma educação verdadeiramente inclusiva e plural, a qual busca avançar na igualdade entre os gêneros nos povos indígenas, exige esforço e reconhecimento da gestão pública sobre essa demanda. Existem poucas iniciativas de políticas públicas no âmbito da educação para reverter o quadro da desigualdade entre os gêneros e, quando somada à discussão da perspectiva étnica, é ainda mais invisível. Um exemplo de iniciativa para discutir as questões de gênero na formação de professores é o curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE), idealizado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, no ano de 2005, em parceria com o Conselho Britânico. O curso tem sido oferecido gratuitamente pela Universidade Aberta do Brasil (UAB) no formato de ensino a distância com o objetivo de formar professoras/es nas temáticas de gênero, relações étnico-raciais e orientação sexual. Trabalhar a formação de professores para lidar com as questões de gênero é um passo importante para a mudança dos valores sociais, e o GDE, desde a sua criação, tem cumprido esse papel. A inserção do recorte étnico ou a criação de um curso/programa específico poderia suprir essa lacuna. 61 Compreendemos que a autonomia indígena significa permitir-lhes o uso de suas regras, que, de acordo com Luciano (2006), no âmbito do Estado brasileiro implica duas formas possíveis: a primeira, como permissão para que os povos indígenas se ocupem dos próprios assuntos e mantenham seus usos e costumes; a segunda, como um regime político-jurídico pactuado e não somente concebido, que implica a criação de uma coletividade política na sociedade nacional, não isentando de responsabilidades o Estado e os governos quanto às suas obrigações de prestarem assistência e proteção e de salvaguardarem a cidadania.

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A igualdade de gênero pensada com o recorte étnico é um elemento importante para o desenvolvimento, pois refere-se à igualdade de direitos, às responsabilidades e às oportunidades de que os povos indígenas devem gozar, independentemente de terem nascido homem ou mulher. É por meio da educação que hábitos, costumes e valores são (re)construídos de uma geração para outra. A educação possibilita a construção de ideias políticas, sociais, formas de ser e de se comportar, podendo estimular o exercício da tolerância e do respeito ao diferente. Considerando as questões até aqui expostas, defende-se a necessidade da promoção de planejamentos pedagógicos e produção de material didático com a participação das/os professoras/es indígenas, tanto em português como em suas línguas maternas, para facilitar o processo de ensino e aprendizagem nas escolas das sociedades indígenas e também valorizar e respeitar suas culturas e vivências. Esse material será de grande importância para subsidiar os currículos das escolas, além de desencadear um importante processo de construção do conhecimento e pesquisa pelos professoras/es e alunas/os. Nessa perspectiva, a professora/or não será um receptor passivo dos saberes da cultura escolar, mas sim um/a pesquisadora/or, formuladora/or e intérprete dos saberes socializados por meio do diálogo, do desenho e da escrita. Os materiais didáticos construídos, instrumentos básicos no processo de ensino e aprendizagem, tornam-se, ainda, registros da memória e cultura local, além de servirem como veículo de socialização do saber tanto na própria comunidade como no intercâmbio com outras comunidades indígenas e não indígenas. Enfim, torna-se mister contribuir para o processo de autonomizacão e protagonismo indígena por meio da educação escolar, propondo a elaboração de materiais didáticos pelos próprios membros das escolas indígenas, que, além de estimular a ação criativa, deverá ser socializada com outras comunidades indígenas. Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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É nesse contexto que a diversidade se fortalece como temática central, pois aborda questões que têm estreita relação com as práticas pedagógicas vivenciadas e com as relações de poder exercitadas dentro e fora do espaço escolar. Entende-se igualmente oportuno perceber as relações de gênero na educação, pois não é possível “enfrentar os problemas centrais da educação [...] sem uma adequada apropriação do conceito de gênero” (CARVALHO, 2008, p. 120). Compreende-se por gênero uma categoria classificatória, que, como nos diz Machado (2000), pode ser o ponto de partida para desvendar as mais diferentes e diversas formas de as sociedades estabelecerem as relações sociais entre os gêneros, ou seja, as relações de gênero são “transversais e relacionais”, vinculadas às relações sociais e parte do movimento contraditório que permeia a vida de homens e mulheres. Ao articular o multi(inter)culturalismo com as questões de gênero, aponta-se para a necessidade de não fixidez nem universalização das relações entre homens e mulheres. Remete à ideia de que essas relações sociossimbólicas são construídas e transformáveis, bem como diferentes em cada sociedade, cultura e etnia. “O suposto é que todas as sociedades e culturas constroem suas concepções e relações de gênero” (MACHADO, 2000, p. 6). Mas será que a escola, em geral, e a educação escolar indígena, em particular, tem proporcionado essa articulação? Sabe-se que muitos assuntos ainda são tabus nas escolas, ou sequer são discutidos, e os que envolvem as relações entre homens e mulheres na maioria das vezes são postos na seara privada e/ou naturalizadas como derivados das diferenças de sexo (biológicas). Assim, compreender que a função da escola não é reproduzir modelos – mas sim transformá-los – é o ponto inicial para a constituição de uma escola específica, diferenciada e plural, que na perspectiva freireana é libertadora, pois o homem é um ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o munGênero, desenvolvimento e território

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do resulta de abertura à realidade. Por fim, acreditamos que a convivência com o diverso, o diferente, proporciona a construção de uma sociedade mais plural, justa, igual, solidária e verdadeiramente democrática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As políticas culturais e identitárias na escola devem estar relacionadas aos estudos e práticas pedagógicas, sejam elas indígenas ou não. No cotidiano escolar, as práticas culturais e de afirmação da identidade devem ter por entendimento que os sujeitos se constroem nas relações com os outros, e que, mesmo existindo nos homens e nas mulheres características compreendidas como permanentes, eles estão em constante transformação e construção, visto que se transformar é uma condição essencialmente humana. Logo, os currículos escolares devem respeitar as diferenças étnicas, de gênero, de identidade e de crença dos seus atores, e se firmarem não em características monoculturais, mas sim multi(inter)culturais. As propostas pedagógicas devem proporcionar uma educação que promova o respeito, o reconhecimento e a aceitação do outro, do diferente. Para as escolas indígenas assegurarem uma educação específica, multi(inter)cultural, diferenciada e autônoma, não é suficiente apenas que os conteúdos sejam ensinados por meio do uso das línguas maternas, mas se faz necessário incluir conteúdos curriculares propriamente indígenas e acolher os modos próprios de transmissão e construção do saber indígena. E mais, é imprescindível que a elaboração dos currículos, entendida como processo de permanente construção, se faça em uma estreita relação com a escola e a comunidade indígena a que serve, e sob a orientação desta. Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero

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Entende-se que educação indígena é diferente de escola indígena, pois aquela é anterior a esta e ultrapassa a concepção de se ter alunas/os e professoras/es indígenas na escola, visto que isso não faz de uma escola uma escola indígena. Vale ressaltar ainda que uma instituição escolar não é uma escola indígena só porque está no ambiente de índios; uma escola não se torna uma escola indígena só porque transmite os conteúdos que veem nos livros elaborados pelos não índios, na língua indígena. A educação indígena tem sua identidade em seus conteúdos, métodos de ensino, aprendizagem e avaliação, segundo a diversidade étnica dos povos. Ela é uma realidade que acompanha todo o processo de desenvolvimento dos homens e mulheres indígenas, buscando a valorização das diferenças e diversidades. No Amazonas, além de contribuir para a formação de uma identidade regional, acredita-se que o conhecimento das culturas e das identidades indígenas são necessários para não se incorrer no erro de análises e práticas destituídas de um contexto histórico e cultural específico, pois um desafio a ser alcançado pelos povos indígenas é vivenciar no cotidiano de suas escolas um currículo multi(inter)cultural que favoreça a construção das múltiplas identidades. Nessa direção, a incorporação da perspectiva de gênero para a promoção de uma educação escolar indígena com igualdade de gênero deve ser construída a partir das multiplicidades étnicas e culturais.

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POSFÁCIO: O INTERESSE DO GÊNERO PELOS TERRITÓRIOS62 Sophie Louargant

Certas questões de pesquisa merecem ser mais explicitadas do que outras. A relação de homens e mulheres em seu espaço de forma mais ampla nos territórios faz parte dessas questões. Porque as questões feministas tratam das formas de violências contra as mulheres, das formas de dominação (prostituição, trabalho precário, migração), das formas de reconhecimento, das formas de participação, elas estão no coração do espaço e dos territórios. De fato, o conceito de território é então ligado às questões de gênero para compreender o lugar das mulheres na sociedade, na sua relação com o espaço. A conivência entre as lutas feministas e a constituição de uma pesquisa feminista fundada sobre uma epistemologia da desconstrução das relações entre homens e mulheres conduziu a responder problemáticas sociais e políticas, e a desmascarar a dominação masculina presente nas sociedades. Elas foram igualmente permitidas a compreender a construção masculina nas relações de poder construídas pelos tomadores de decisão da política e da economia. Assim, o número de pesquisas definiu categorias binárias na origem da criação de relações dissimétricas e hierarquizadas nas sociedades: “os opressores”, “os dominadores”, “os oprimidos”, “os dominados” presentes nas sociedades patriar 62 Texto original em francês, traduzido para esta obra por Elaine Cristina Rodrigues Aguiar.

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cais. Esse caminho necessário permitiu “colocar os óculos” do gênero, apontar os efeitos de dominação, mas igualmente as possibilidades de emancipação para as mulheres. Hoje, não se trata mais de olhar unicamente de maneira homogeneizante a categorização, todas as mulheres de uma mesma sociedade evoluindo dentro de um contexto político, cultural e social similar, para questões de classe, de gênero, de origem, não têm as mesmas capacidades de aceder à emancipação, ao reconhecimento, a “ter” lugar no espaço e na sociedade. Compreender a relação de gênero no território (LOUARGANT, 2003; BARD, 2004) é entender a maneira onde as relações sociais de sexo impacta a relação no espaço, no tempo e no lugar. Essa postura liminar desenvolvida nos trabalhos geográficos, sociológicos, antropológicos de gênero conduziu determinar os espaços de diferenciações, de usos, de práticas, de territorialidades, das formas de hierarquizações que se impõem mais do que elas não se jogam ou se negociam. Os efeitos de gênero sobre a construção das sociedades e dos espaços são, então, múltiplos, mas são por trato comum de mostrar as formas de dominação e de hierarquizações. Essas últimas, bem que denunciadas, tiveram por efeito favorecer as formas de conhecimento sem, portanto, reforçar realmente as capacidades das mulheres em se expressarem, em se reconhecerem, em pertencerem aos territórios tanto que utilizadoras, que cidadãs à parte inteira sem acreditar em serem vulneráveis em face das violências verbais, físicas, diante do acesso aos transportes, aos equipamentos, aos parques urbanos, ao mercado de trabalho. Essas constatações explicam que novas relações de dominação são de uma atualidade crucial e acentuam de uma confrontação à austeridade, à sexualidade, à corporeidade, à heteronormatividade e à origem. Eles revelam mais sobre os efeitos de uma maior metropolização, de uma aceleração dos fluxos materiais e virtuais, de uma precarização dos empregos, respostas são esperadas ao nível local. De fato, ele não será capaz Gênero, desenvolvimento e território

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de ter uma leitura unicamente dos efeitos de gênero nos territórios pelos usos, ele não se trata de delimitar, dentro de cada contexto nacional e local, as respostas propostas pelas autoridades locais em se questionando: Como elas são elaboradas? Por quem elas foram portadas (coletivos, eleitas, lobby)? Qual denominação foi retida para expor uma política de igualdade entre homens e mulheres? As feministas reivindicam? Ou, ao contrário da questão de igualdade entre homens e mulheres, esteve ela inserida dentro de uma temática (discriminações), um outro objetivo (desenvolvimento durável, Agenda 21, mobilidade e transportes) para melhor invisibilizá-la? Qual foi o papel das associações? Esses dispositivos foram realmente postos em prática? Qual protocolo gerado na observação pode colocar em prática e experimentado com os primeiros envolvidos? Como os homens se posicionam sobre as evoluções culturais? Eles estavam implicados nas iniciativas conduzidas? Essas questões permitem olhar que o gênero é, antes de tudo, uma questão coletiva e que a categorização produzida pelas instituições internacionais não são sempre adaptadas para serem postas numa aproximação de gênero e do desenvolvimento. Na hora em que as identidades de gênero se abrem nos territórios e se agenciam sob o olhar de uma hibridação cultural, social e espacial, as aprendizagens das aproximações de gênero são necessárias para colocar em prática uma pedagogia do gênero no ato a todas as escalas de decisão e negociação. Para alcançar os novos arranjos presentes entre as relações de gênero e compreender os agenciamentos possíveis entre os coletivos associativos, os cidadãos, os operadores de franquias culturais, a travessia de fronteira é possível se, todavia, a sociedade é preparada democraticamente a aceitar essas travessias. A importância do debate público, o reconhecimento (FRASER, 2005) toma corpo nas sociedades nas quais os espaços são sob contrastes, submetidas nas normas internacionais econômicas e culturais dominantes que reforçam os efeitos de Posfácio

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invisibilização das mulheres, de vulnerabilidade das mulheres. Essas pesquisas não podem ser feitas sem trocas múltiplas na vista da circulação das pessoas em nível mundial e no olhar da circulação dos conceitos de gênero em nível internacional. Essas trocas são então produzidas dentro de uma figura alternativa nas construções territoriais existentes, que as mulheres conhecem bem: as redes, entre universitárias, entre coletivos, mas igualmente construindo as experimentações com as mulheres diretamente interessadas. É necessário, então, abordar os pontos de vista sobre os jogos atuais, como o ecofeminista, a emancipação e os movimentos sociais nos países em desenvolvimento ou resiliência.

REFERÊNCIAS BARD, Christine. Le genre des territoires: masculin, féminin, neuter. Angers: Presses de l’Université d’Angers, 2004. FRASER, Nancy. Qu’est-ce que la justice sociale? Reconnaissance et redistribution. Paris: La Découverte, 2005.

LOUARGANT, Sophie. L’approche de genre pour relire le territoire. Thèse de doctorat. Grenoble: Université Joseph-Fourier, 2003.

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SOBRE OS AUTORES Ariane Serpeloni Tavares é graduada em Psicologia (Universidade Estadual de Londrina), especialista em Gestão de Pessoas (PUC-PR) e Gestão Empresarial (UFT), mestre em Desenvolvimento Regional (UFT). Atua na área de Gestão de Pessoas e na Docência do Ensino Superior e desenvolve pesquisas na área de Gênero e Carreira Científica.

Cynthia Mara Miranda é graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Tocantins (2004), mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (2012). Atualmente é professora-adjunta da Universidade Federal do Tocantins (UFT) no curso de Comunicação Social e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional. Pesquisadora do Núcleo de Estudos das Diferenças de Gênero (NEDiG) da UFT, foi pesquisadora visitante em 2011 na Universidade de Carleton, em Ottawa/Canadá, pelo Programa “Emerging Leaders of the Americas”, e integrou o Grupo de Trabalho sobre Jovens Mulheres na Secretaria Nacional da Juventude da Presidência da República entre os anos de 2011 e 2013. Área de pesquisa: movimentos sociais, desenvolvimento regional na perspectiva de gênero, políticas públicas de igualdade e políticas públicas de juventude. Denyse Côté é graduada em Organização Comunitária, mestre em Política pela Universidade de Ottawa, doutora em Sociologia na Universidade de Montreal. É professora titular do Departamento de Trabalho Social da Universidade do Québec em Outaouais (Québec, Canadá) e dirige o Observatório soSobre os autores

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bre o Desenvolvimento Regional e Análise das Diferenças de Sexo (Orégand): . Área de pesquisa: grupos comunitários e grupos comunitários de mulheres com foco nas relações do setor associativo com as autoridades locais e regionais no quadro da nova governança descentralizada no Québec. Coordenou durante vários anos pesquisas sobre o sujeito e, mais recentemente, estuda as intervenções dos grupos de mulheres haitianas no periodo pós-terremoto. Denyse Mello é pós-doutora pelo Centro de Estudo Latinoamericano da Universidade da Flórida e atua no Programa de Iniciativas de Liderança em Conservação da Floresta Tropical. No doutorado, estudou o efeito dos microempreendimentos no empoderamento socioeconômico das mulheres rurais da Amazônia brasileira, tendo como caso de estudo empreendimentos dos estados do Acre e do Pará. Ela publicou, como coautora (com Francisco Costa e Silvio Brineza Jr.), Mercados e potencialidades dos produtos de floresta secundária (Caderno do Naea 2009), e também como coautora (Edit. por Linda Berrón Sañudo), Project of the Women’s Group from the Sustainable Settlement “Bandeirantes” – in Everything Counts! Valuing environmental initiatives with a gender equity perspective in Latin America (IUCN, 2004). Além disso, presta consultorias voltadas à capacitação e a pesquisas com enfoque gênero, especificamente com foco no papel das mulheres rurais no desenvolvimento econômico socioambiental na Amazônia brasileira. Diana Andreza Rebouças Almeida é bacharel em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) e especialista em Políticas Públicas de Gestão de Seguridade Social pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Assistente social da Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (Semsa) e da Secretaria de Estado da Saúde do Estado do Amazonas (Susam).

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Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Coletiva.

Gleys Ially Ramos dos Santos, geógrafa, mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), doutora em Geografia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e pós-doutora em Geografia pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Professora convidada do curso de Geografia da UFT e professora-adjunta do ITPAC/Porto, é pesquisadora do Núcleo de Estudos das Diferenças de Gênero (NEDiG) e do Núcleo de Estudos Urbanos, Regionais e Agrários (Nurba). Área de pesquisa: Desenvolvimento Regional, Geografia Agrária, Movimentos Sociais, Geografia e Gênero. Marcos André Ferreira Estácio possui graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (Fafidam), da Universidade Estadual do Ceará (Uece), mestrado em Educação pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), é doutorando em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) no Programa de Apoio à Formação de Recursos Humanos Pós-Graduados do Estado do Amazonas – RH-Doutorado. Atualmente é professor assistente da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História Geral da Educação, em História da Educação Brasileira e Amazônica e em Estrutura e Funcionamento da Educação Básica, atuando principalmente nos seguintes temas: Educação, Ensino Superior, Indígenas, Movimentos Sociais, Amazonas, Ação Afirmativa e Democracia.

Maria Izabel Valença Barros é advogada, graduada pela Universidade Cândido Mendes (Ucam, RJ), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal Sobre os autores

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Fluminense (UFF). Desenvolve estudos e pesquisas na área de Gênero e Famílias, principalmente no que concerne ao tema Adoção, mais precisamente sobre os efeitos da destituição do poder familiar na vida das mulheres pobres.

Maria Teresa Nobre é psicóloga, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), professora do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Desenvolve trabalhos de pesquisa-intervenção sob uma perspectiva etnográfica, principalmente junto aos seguintes campos: Saúde Coletiva e Segurança Pública, Políticas Públicas, Direitos Humanos, Relações de Gênero, Violência Institucional e Práticas de Resistência. Membro do Observatório de Saúde Mental da UFRN e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Exclusão, Cidadania e Direitos Humanos (Gepec) da UFS. Marianne Schmink é professora emérita e distinguida docente de Estudos Latinamericanos e Antropologia na Universidade da Flórida, onde serviu como diretora do Programa de Conservação e Desenvolvimento Tropical (TCD) de 1988 a 2010. Ela publicou, como coautora (com Charles H. Wood), Conflitos sociais e a formação da Amazônia (Editora da UFPA, 2012) e (com Mâncio Lima Cordeiro) Rio Branco: a cidade da Florestania (2008, UFPA/Ufac), além de três coletâneas e mais de 50 artigos, capítulos de livros e relatórios.

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Milena Fernandes Barroso é professora assistente da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Campus de Parintins (AM). Doutoranda em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e mestra em Serviço Social e Sustentabilidade pela Ufam. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) no Programa Gênero, desenvolvimento e território

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de Apoio à Formação de Recursos Humanos Pós-Graduados para o Interior do Estado do Amazonas – RH-Interiorização. Assistente social formada pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Experiência nas áreas de Serviço Social Aplicado à Saúde, Direitos Humanos, Gênero e Violência contra a Mulher. Atualmente desenvolve pesquisa sobre Desenvolvimento, Violência e Políticas Públicas para as Mulheres na Amazônia.

Nívia Valença Barros é professora associada do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Psicologia, mestre em Educação e graduada em Serviço Social. Atualmente, pós-doutoranda pelo Centro de Ciências Sociais da Universidade de Coimbra. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Direitos Humanos e Cidadania (Nudhesc-UFF). Desenvolve estudos e pesquisas na área de Gênero, Famílias, Geração, Direitos Humanos, Segurança Pública e Proteção Social, com ênfase na Violência contra Mulheres, Criança e Adolescentes e de Gênero; Direitos Sociais; Assistência, Gênero e Famílias.

Rita de Cássia Santos Freitas é professora associada do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-doutora pelo Centro de Ciências Sociais da Universidade de Coimbra. Vice-coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social (UFF) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social. Área de pesquisa: Gênero, Famílias, Geração e Proteção Social, com ênfase na Violência contra Mulheres e Violência de Gênero; Saúde da Mulher; Assistência, Gênero e Famílias. Rosana Ribeiro Moraes é graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA), especialista em Desenvolvimento de Áreas Amazônicas pelo Núcleo de Altos Estudos Sobre os autores

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Amazônicos e Terapia Familiar pela Universidade da Amazônia, mestre em Políticas Públicas pela UFPA. Atua como técnica da Coordenadoria Estadual de Promoção dos Direitos da Mulher no Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Cram/Ananindeua), que é vinculado à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos. Área de pesquisa: Relações de Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas.

Silvia Lilian Ferro é licenciada em História pela Universidade Nacional del Litoral (Argentina), diplomada em Gênero e Políticas Públicas pela Prigepp-Flacso (Argentina), mestre em Investigações Feministas e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilla (Espanha). É pós-doutora em Economia e Sociedade e professora do Programa de Mestrado em Ciências Agrárias na Universidade Nacional do Entre Rios (Argentina). Foi consultora do Ministério de Agricultura, Ganaderia y Pesa dela República Argentina nos temas relacionados a Gênero, Desenvolvimento Rural e Empresa Familiar Agropecuária, os quais são suas atuais áreas de pesquisa.

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Sophie Louargant é mestre de conferências na Universidade Pierre Mendès France (UPMF) em Grenoble e pesquisadora na UMR Pacte. Ela é membro do Grupo de Interesse Científico de Gênero (Gis Genre, http://www.mshparisnord.fr/gis-institut-genre). Ensina Geografia e Planejamento Territorial. Seus trabalhos de pesquisas se inscrevem no campo de estudos de Gêneros, mobilizando uma aproximação cultural, social, política dos territórios e das territorialidades. Analisa os processos de construção de ação pública (em perspectiva) no olhar das práticas individuais desde sua pesquisa de doutorado, Reler o território por gênero (2003). Ela organizou, em 2012, em Grenoble, o colóquio Masculino e Feminino: diálogos geográficos e além... e co-organizou na École Normale Supérieure (ENS), em Lyon, em 2004, Gênero, desenvolvimento e território

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o colóquio: Gênero, território, desenvolvimento: qual o aspecto geográfico? Ela é a autora de artigos e organizou números de revistas científicas sobre esse tema. Para ver essas publicações, acessar: http://www.pacte-grenoble.fr/blog/membres/louargant-sophie/; para ideias compartilhadas no blog: http://genregeo.hypotheses.org/; para ouvir: .

Temis Gomes Parente possui graduação em História pela Universidade Federal do Piauí (UFPI, 1986), mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 1996) e doutorado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2001). Pós-doutora pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional de Minas Gerais (Cedeplar)/ Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, 2010). Atualmente é professora associada II da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Bolsista de produtividade 2-CNPq. Coordenou o Doutorado Interinstitucional em História (Dinter), UFT/ UFRJ. Coordenadora do Núcleo de Estudos das Diferenças de Gênero (NeDig) da UFT. Atua nas seguintes áreas: História do Tocantins; História Regional; História e Gênero; História das Mulheres; História Cultural; Gênero e Meio Ambiente. Virginia Caroliny Silva Alexandre, assistente social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em Escola e Comunidade, mestre em Psicologia Social e doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Foi pesquisadora visitante na Universidade de Ottawa em 2011 por meio do Programa “Emerging Leaders of the Americas”, onde trabalhou com Saúde, Participação e Migração. É membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Exclusão, Cidadania e Direitos Humanos (Gepec) da Universidade Federal de Sergipe. Áreas de pesquisa: Etnográfica sobre Saúde, Participação, Cotidiano, Politicas Públicas e Relações de Gênero. Sobre os autores

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Este livro foi impresso em Manaus, em outubro de 2015. O projeto gráfico – miolo e capa – foi feito pela Valer Editora.

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