Gênero, documentos e interpretações: Um estudo sobre Agrippina minor

May 23, 2017 | Autor: Fábio Faversani | Categoria: Roman History, Historia Antiga, Imperio romano, Antiguidade Clássica, Agrippina Minor
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Gênero, documentos e interpretações: Um estudo sobre Agrippina minor.



(Conferência apresentada no Ciclo Mare Nostrum, promovido pelo LEIR-MA-USP,
em 2013)


"Não era Sancho, não, tão desonesto
Como Nero, que um moço recebia
Por mulher, e depois horrendo incesto
Com a mãe Agripina cometia;
Nem tão cruel às gentes e molesto,
Que a cidade queimasse onde vivia."

CAMÕES. Os Lusíadas, III, 92.


Os historiadores, tradicionalmente, são vistos como aqueles
profissionais altamente treinados e eruditos que podem descobrir, desvelar,
revelar o que foi o passado. Curiosamente, os próprios historiadores não
acreditam que é isto que eles fazem. Aliás, os historiadores estão bem
divididos sobre o que de fato eles fazem.

Sobre uma coisa todos eles concordam: a história que fazemos é
profundamente influenciada pelo contexto em que vivemos. As perguntas que
fazemos para o passado, aquelas coisas que nos interessa estudar na
história, são profundamente influenciadas pelo presente, por nossos
conflitos, por nossos dramas. Cada época tem seus problemas e, assim, cada
época produz sua própria história. Acho que poderia dizer que cada tempo
não produz uma história, mas muitas histórias. Uma vez que os historiadores
não têm as mesmas visões, as mesmas experiências do presente, eles acabam
produzindo muitas, diferentes e até mesmo contraditórias visões do passado,
diferentes histórias. Penso que poderíamos repetir para os historiadores
contemporâneos a mesma acusação que Flávio Josefo lançou contra nossos
colegas gregos em um distante século I d.C. Ele afirmou que eles "referem-
se uns aos outros em seus livros e não hesitam em dizer o mais
contraditório sobre as mesmas coisas" (Contra Ápio. 3,15).

Quando tratamos de Agrippina isto é perceptível. Sabemos que a
emergência dos movimentos feministas, a partir dos anos 70, sobretudo,
levou a uma promoção dos estudos sobre mulheres e, posteriormente, após uma
fase inicial que poderia ser chamada de "combativa", temos um momento em
que se passou a pensar as relações de gênero, a partir do binarismo
feminino-masculino e chegamos atualmente a uma crítica cada vez mais
intensa quanto à suficiência dos pólos masculino e feminino para a análise
das relações de gênero[1].

Nos Estudos Clássicos, as relações de gênero receberam uma atenção
notável, como sabemos. Da década de 90 para cá, tendo se consolidado o
universo dos estudos de gênero na Antiguidade enfocando mais centralmente o
feminino, começa a se perceber uma valorização do masculino nos Estudos
Clássicos. Assim, tanto para os estudos do campo feminino nas relações de
gênero quanto, mais recentemente, para repensar o campo masculino nestas
mesmas relações, os estudos são abundantes[2]. Para constatar este novo
direcionamento, marca talvez do esgotamento de parte expressiva da agenda
das lutas do feminismo, bastará ler certos títulos de obras que povoam as
prateleiras: Thomas Van Northwick Imagining men: Ideals of masculinity in
Ancient Greek Culture (2008); e When men were men: masculinity, power, and
identity in classical antiquity e, para um último exemplo, Thinking men:
Masculinity and its self-representation in the classical tradition, ambos
editados por Lin Foxhall and John Salmon (1998). Natalie Boymel Kampen, no
prefácio deste último livro, exclama: "Que dias ensolarados para os estudos
de gênero!"[3]

No século XXI, além da continuidade do questionamento da masculinidade
no âmbito das relações de gênero, nota-se a emergência de uma crítica ao
binarismo das relações de gênero[4]. A partir de estudos da antropologia já
conhecidos há muito tempo, como o caso de hijras no sul da Ásia e berdaches
na América do Norte, tem sido proposta uma nova agenda para as relações de
gênero tendo em vista a luta dos transexuais. Hijras são pessoas que
nascidas com o sexo masculino usam roupas femininas e, em muitos casos,
retiram o pênis e o saco escrotal sem anestesia. Hijras são atestados desde
o império Mughal, que se estendeu de 1526 a 1582. Berdache, por sua vez,
era o termo usado para qualificar diversas experiências transgênero entre
diferentes populações autóctones da América do Norte. Este termo assumiu um
caráter pejorativo pelas sociedades que entraram em contato com estas
culturas, importante lembrar. Desde a década de 90, a designação que os
transgêneros preferem receber é de pessoas com "dois espíritos", ou seja,
homens e mulheres a um só tempo. A chamada teoria do terceiro gênero propõe
que sejam superadas as limitações biológicas, como se fez particularmente
para a questão da raça, para se pensar também as relações de gênero em uma
perspectiva mais aprofundada das opções culturais, de uma leitura
antropológica mais aberta das relações de gênero como experimentadas pelas
sociedades mais do que pela pré-determinação universal do binarismo
biológico. As relações de gênero deveriam levar em conta não só masculino e
feminino, mas todas as outras possibilidades, como as básicas MtF, ou FtM e
todas as demais[5]. Como nos mostra um artigo recente "Antropólogos têm
argumentado contrariamente à base biológica da raça, do mesmo modo que eles
têm se oposto à base biológica do gênero" (…) "A existência da 'terceira'
categoria pode implicar – erroneamente, a nosso ver – que a 'primeira' e
´segunda' categorias são invioláveis e sem problemas ('unproblematic'),
pelo menos para os propósitos de explorar a variabilidade de gênero"[6].

Nós, classicistas, teríamos muito que estudar neste sentido, é claro.
Basta lembrar dos eunucos ou mesmo de experimentações como a de Nero que se
casou cinco vezes, sendo que por três vezes com mulheres e duas vezes com
homens[7]. O epítome de Dion Cássio nos diz que: "Nero sentiu tanto a falta
dela (Sabina, esposa de Nero que havia morrido) depois de sua morte, que
vendo uma mulher parecida com ela, tentou se aproximar dela e tê-la.
Contudo, mais tarde, ele tomou um jovem liberto, que ele costumava chamar
de Sporus, e o castrou, uma vez que ele também parecia com Sabina e o teve
bem exatamente como uma esposa; No tempo devido, ainda que ele já tivesse
se casado com Pitágoras, um liberto, ele se casou formalmente com Sporus e
destinou ao jovem o dote regular de acordo com o contrato, e os Romanos
assim como outros celebraram o casamento deles". Dio, 62, 28, 2-3.
Em Tácito, Anais. XV, 37, 4, temos a descrição do outro casamento de
Nero: "um dos mais depravados do bando, de nome Pitágoras, se uniu a ele em
núpcias solenes. O imperador recebeu o flammeum; foram consultados os
auspícios; fez-se a escritura do dote; preparou-se o leito nupcial e
acenderam-se as luzes nupciais. Nada faltou e publicamente se permitiu ver
tudo que se faz com as mulheres à noite."[8]

Como se vê, caso as lutas do presente sobre a união entre pessoas do
mesmo sexo, a condição dos transgêneros e todos os debates contemporâneos
quiserem bater à porta dos Estudos Clássicos, encontraram um enorme
manancial para análise. Este debate já se inicia no Brasil. Em artigo
recente com o sugestivo título "Entre macho e fêmea: santas travestidas na
Antiguidade", Pedro Ipiranga ressalta que "a imagem da santa travestida não
deixa, é claro, de ultrapassar os modelos de construções das imagens do
feminino e do masculino (...), mas também não deixa de se exibir enquanto
espetáculo que simulando aspectos icônicos masculinos franqueia o poder de
inserção e atuação da mulher aquém e além de fronteiras e categorias de
gênero"[9].

Mas minha pergunta aqui é a seguinte: não haverá limites para impormos
às perguntas do presente que queremos impingir ao passado? O problema que
coloco não é simples nem novo. O primeiro aspecto que salta aos olhos é o
seguinte: Os antigos nem sonhavam que agora, em 2012, o tema do terceiro
gênero surgiria com força. Deste modo, poderíamos qualificar Nero como um
transgênero? Nenhuma fonte o trata enquanto tal. Neste caso, claramente,
atribuiríamos a ele um comportamento e uma racionalidade com a qual ele nem
sonhava. A meu ver, está transposição do presente para o passado faz com
que percamos o que de mais rico o passado tem: a alteridade, sua
irreconciliável diferença com o presente. Creio que o passado nos permite
entender muito mais coisas por ser diferente do presente do que por nos
mostrar como as coisas sempre foram, que elas sempre foram assim ou assado.
Prefiro pensar como L. P. Hartley, que afirma logo na abertura de seu livro
publicado em 1953, The go-between: "O passado é um país estrangeiro: eles
fazem as coisas de um modo diferente por lá". "The past is a foreign
country: they do things differently there."

Este legitimidade que se procura na Antiguidade pode ser boa para a
militância, mas não para os eruditos; pode render bons panfletos, mas não
bons textos científicos. Outro perigo desta transposição do presente ao
passado é que se damos centralidade ao presente para construir nossas
questões em detrimento do passado, então o passado que estudamos se torna
indiferente. O passado se torna ilustração do presente. Estudar diferentes
passados seria um mero exercício de reafirmação repetitiva do presente.

Assim, defendo que podemos pensar o passado a partir de múltiplas
leituras que valorizem os particularismos e a riqueza deste passado
específico. Assim, reduzir os estudos das mulheres apenas a estudos de
gênero talvez seja algo empobrecedor e que "pausterize" as experiências
históricas das mulheres a uma uniformização. Não acho que seja produtivo
estudar as mulheres sempre através das relações de gênero. As mulheres não
são só mulheres, elas são também pobres ou ricas, cristãs ou judias, livres
ou escravas, urbanas ou rurais[10]. Darei um exemplo de uma mulher que
acabou tendo nas fontes outras características e vieses de interação social
marcados como tão ou mais importantes do apenas e simplesmente uma mulher
em suas relações de gênero. Refiro-me a Agripina Menor.

Agripina é apresentada na tradição textual como um verdadeiro monstro.
Criada no centro do poder, atravessou os reinados de Calígula, Cláudio e
Nero sempre no centro das disputas sangrentas que envolveram estes
imperadores. Era irmã de Calígula, casou-se com seu tio, Cláudio, a quem
assassinou para levar ao poder seu filho Nero, que ordenou que a matassem.
Foi morta com cerca de 43 anos. Todos conhecem a fama desta domina. A
imagem que temos dela deriva desta tradição textual e, especialmente, das
leituras que foram feitas destas fontes. Mais tradicionalmente, Agripina é
retratada como uma mulher odiosa porque buscou a todo custo o poder,
especialmente usando da sua beleza para manipular os homens e de seu poder
para aterrorizar as mulheres, os libertos e os escravos. Assim, Agripina
seria o símbolo da malícia e da desfaçatez das mulheres em geral.

Para citar dois exemplos destas visões que temos de Agrippina na
tradição textual, trago para vocês uma passagem de Suetônio e outra de
Tácito. Cláudio, depois de ter repudiado Messalina, fica indeciso quanto a
quem seria sua próxima esposa. Ele acaba decidindo se casar com sua própria
sobrinha. Suetônio nos dá as razões desta escolha: "As carícias de
Agrippina, filha de seu [de Cláudio] irmão Germânico, que tinha o direito
de lhe abraçar e beijar, acabaram por lhe despertar o amor". Suet. De vita
Caesarum. Cl. 27, 7.[11] Não custa lembrar que Agrippina também foi
acusada, Tácito nos lembra, de tentar seduzir do mesmo modo seu próprio
filho, o imperador Nero. Mas a passagem que quero trazer de Tácito lança
luz sobre outro aspecto do retrato de Agrippina nas fontes textuais, sua
ambição desmedida. Quando Tácito relata o assassinato de Agrippina, ele
lembra que alguns diziam que: "Quando consultou os astrólogos sobre os
destinos de Nero eles responderam que ele governaria e mataria a mãe; ao
que ela respondeu "Que me mate, desde que governe!" Tac. Ann. 14,9,1. [12]




Muitos dos estudos tradicionais de Agripina a mostram como a
demonstração do mal que as mulheres não dominadas podem fazer para a
realização dos seus desejos insaciáveis. Nos estudos renovados pela
perspectiva de gênero, busca-se explicar que Agripina se tornou inaceitável
para os romanos porque exerceu papéis reservados aos homens. Ao se mostrar
uma mulher masculinizada, foi criticada por seus contemporâneos. De algum
modo, é apresentada como uma heroína que busca um espaço, afirmar sua
autonomia em um mundo dominado pelos homens. Confesso que estas leituras
não me agradam por uma série de razões. Mas não é este meu ponto hoje.
Quero ver com vocês que Agripina nós encontraremos se formos vistá-la em
outros documentos. Vamos ver se encontramos esta Agripina que transgride
todas as regras aparece também, por exemplo, nas moedas.




MOEDAS:



Gaius. RIC I, 33. (ref. BMC 37) Sestertius

As irmãs Agrippina, Drusilla e Iulia aparecem como "segurança",
"concórdia" e "fortuna". Tratando da posição assumida pelas personagens
cunhadas nesta moeda, Miriam Griffin afirma que: "As suas [de Calígula]
três irmãs foram exaltadas acima da posição previamente dedicada às
princesas imperiais. Não somente foram feitas Virgens Vestais e receberam
honrarias, mas permitiram-lhes assistir aos jogos do Circo nos assentos
imperiais, além de terem sido representadas como figuras alegóricas nas
moedas e incluídas nos preâmbulos das propostas senatoriais, nos votos
anuais pela segurança do Imperador, e tanto no juramento de fidelidade a
ele quanto no juramento anual a seus acta. Inclusão nestes juramentos é a
honra mais significativa, uma vez que abertamente as reconhecia como parte
da 'família real'."[13] Deste modo, fica claro que a representação das
irmãs na moeda tem pouco ou nada a ver com a sua condição particularmente
feminina ou as relações de gênero estabelecidas por elas[14]. Figuram nas
moedas e são honradas por diversas outras vias para evidenciar a dignidade
não delas como indivíduos, portadoras de uma identidade, e de
subjetividade, mas da família a que pertencem. O que está no centro da
representação é uma unidade coletiva por excelência, a domus. O fundamento
do poder imperial está colocado na existência de uma casa governante desde
Otaviano. Tender compreender a posição destas três personagens apenas como
mulheres imersas em relações de gênero seria empobrecedor.



Gaius. RIC I, 55. Sestertius.

Aqui nos voltamos para outro tema que em certa medida independe das
questões de gênero. Trata-se de Calígula, através de uma sanção pública
(note-se a legenda SPQR) homenageando sua mãe, que havia falecido. Aqui o
que está em foco é a devoção filial. Esta devoção filial é devida tanto à
mãe quanto ao pai indistintamente, inclusive incluindo-se no caso do pai os
vínculos criados pela adoção. Assim, Calígula se esforçou ainda por
demonstrar esta devoção filial também a Tibério, e não só a Germânico. Do
mesmo modo procederá posteriormente Nero com seus pais biológico e por
adoção.



Claudius. RIC I, 119. Cistophoros.

Nesta moeda, cunhada na oficina de Éfeso, vemos as efígies de Cláudio
e Agrippina sobrepostas, indicando a união entre o Augusto e a Augusta. A
tópica da união familiar comparece uma vez mais, neste caso em uma oficina
distante de Roma. Assim, esperamos deixar claro que a presença da figura
feminina nas moedas dificilmente poderá ser atribuída a um esforço de
afirmação de Agrippina no interior da casa reinante, apenas. A circulação
da sua imagem deve ser compreendida com a veiculação de uma imagem menos
personalista, ligada à ideia de uma casa governante e dos vínculos
familiares que contribuem para a legitimidade de sua posição proeminente.
Assim, a casa governante é mais do que tão somente a casa do Imperador.
Trata-se da casa do Imperador e também de outros membros que contribuem
para compor um patrimônio genético que remonta a diversas famílias em
aliança.

As moedas, assim como a estatuária, era uma ferramenta importante para
difundir ao longo de um imenso império não apenas a imagem do próprio
imperador, mas também de seus familiares. Elites locais, nos diversos
municipia, usavam destas imagens para produzir novas imagens dos membros da
familia imperial que decorariam não apenas espaços públicos destas cidades,
mas também suas próprias casas, procurando construir vínculos entre si
mesmos e a casa reinante do império. Do mesmo modo, os augustales, um
collegium formado por libertos espalhados por todo o império, dedicava-se a
reproduzir, difundir e cultivar estas imagens dos membros da domus
Caesarum, incluindo tanto aqueles já falecidos, especialmente os
imperadores divinizados, e sua descendência.

Para tal propósito também serviam as estátuas, especialmente os
bustos, como o que tivemos em uma exposição recente no Brasil sobre Roma e
seus imperadores:


Para além da honra ou do poder individuais, tinham enorme importância
a honra e o poder da casa imperial, o poder doméstico, em especial, mas não
apenas, o poder da domus Caesarum. A reputação positiva ou negativa de cada
membro da família implicava em consequências para todos os demais. Para
citar um exemplo, lembramos de um episódio narrado por Tácito. Diz o
historiador que, na escolha de uma nova Virgem Vestal em 19 d.C., a filha
de Fonteius Agrippa não recebeu qualquer restrição no que se referia a ela
mesma. No entanto, deixou de ser escolhida porque sua casa foi considerada
maculada pelo divórcio de seu pai. (nam Agrippa discidio domum imminuerat,
Tac. Ann. II, 86).

Neste sentido, a honra do governante está ligada à de sua família como
coletividade, independente da condição feminina ou masculina. O que ganha
destaque neste ponto não são os indivíduos que compõem a domus nem mesmo as
relações entre eles, mas o grupo.
Como nos ensina Saller, a família como entidade composta por
parentescos consangüíneos vai perder importância no Império. Passa a ter
cada vez mais peso as relações de parentescos ágnatas, geradas por
casamentos e adoções, por exemplo. A família vai deixando de ser
progressivamente o resultado de uma ascendência genética – a respeito da
qual nada se pode fazer – para corresponder a um conjunto de relações que
se pode construir. Nas palavras de Saller: "Um círculo de parentesco
respeitável e bem construído era outra medida da posição de um homem. Como
Lívia claramente demonstrou, este parentesco não tinha que ser ágnato para
ser um laço valioso. (...) Conforme critérios alternativos de status social
se mostraram mais solidamente posicionados, família como linhagem teria
começado a aparecer como algo vazio."[15]


Nero. RIC, I. Aureus.

Neste aureus temos um claro exemplo da projeção de uma familia nos
termos que acima expusemos. Estão aqui unidos no verso Augusto e Cláudio e
no anverso Nero e Agrippina. A própria designação compósita que damos à
dinastia que se encerra com Nero, Júlio-Cláudia, é uma mostra eloqüente
desta nova forma de difundir e apresentar a familia. Deste modo, queremos
crer que fica reforçada nossa hipótese que nos mais das vezes Agrippina
menor não aparecerá figurada porque é uma mulher. Ainda mais, a melhor
chave de leitura das imagens não será simplesmente reduzi-la a sua condição
de mulher, mas pensá-la em sua multifacetada existência. Além de pensá-la
como indivíduo, pensá-la também como parte de grupos, neste caso em
especial, familia, mas também e especialmente de uma domus, e de uma domus
muito particular: a domus Caesarum.

AGRIPPINA NOS RELEVOS



Relevo de mármore de Agripina segurando uma cornucópia e coroando Nero.
Sebasteion de Aphrodisias, na Caria, na costa sudoeste da Ásia Menor.

Passemos, agora, das moedas aos relevos. Nestas representações me
parece que o mesmo é válido. Agrippina, para um exemplo, é figurada no
famoso Sebasteion de Aphrodisias coroando Nero. O que se tem aqui não é um
exemplo de usurpação feminina do poder, como poderia ser lido em uma
perspectiva de gênero, um caso de dux femina, como se quer depreender das
interpretações que se fazem das fontes literárias. Projeta-se neste relevo,
que faz parte de um conjunto maior, a união familiar, que remonta a
Augusto. A ênfase não recai nos indivíduos e nem mesmo nas relações entre
eles, mas em simplesmente eles formarem um conjunto, um grupo, uma familia
e uma domus, sendo que a sua composição qua domus ganhará cada vez mais
preponderância com relação à formação familiar.

Não é por outra razão que em outra parte deste relevo, Cláudio
desnudo aparece dando a mão para uma figura feminina (Agrippina?), que
segura espigas de algum cereal (trigo?) e é coroada por uma figura
masculina, togada (o Senado, o Povo de Roma?).


Se o monumento afirmasse o poder de uma mulher, como explicar este
relevo que está no mesmo monumento, onde Cláudio é figurado conquistando a
Britânia?


AGRIPINA NAS PAREDES:

Passamos, por fim, a um último tipo documental para chegar a nossas
conclusões. Sabidamente, uma das grandes dificuldades que nos impõe o uso
de inscrições é a quase onipresente impossibilidade de datá-las. As
inscrições de Pompéia, ainda que tenham um claro delimitador cronológico na
erupção do Vesúvio que soterrou a cidade, também apresenta o mesmo
problema. Mesmo que não tenhamos inscrições posteriores a 79 d.C., não é
fácil na imensa maioria dos casos determinar quanto antes desta data elas
foram produzidas. Podemos supor que as intervenções parietais teriam uma
vida relativamente mais curta do que aquelas monumentais em razão do
trabalho dos dealbatores. Os municipia contavam com estes trabalhadores que
tinham por função limpar as paredes para que novas inscrições pudessem ser
feitas. Sendo assim, podemos pensar que havia uma relativamente rápida
sucessão neste tipo de produção documental e que a maior parte das
intervenções parietais não fosse muito antiga. No entanto, podemos estar
certos que algumas delas eram de período neroniano – ou ao menos referidas
ao tempo de Nero. Este é o caso explicitamente desta inscrição:



CIL IV, 8075

Autorizados, assim, a pensar algumas inscrições como sendo referidas
ao contexto que estamos estudando, vamos à análise deste pentâmetro que me
parece muito apropriado para a nossa discussão:



CIL IV, 6893

Três conclusões são possíveis a partir da leitura desta inscrição. A
primeira delas é que este seria o primeiro manifesto feminista da história.
Uma mensagem lembrando que não há grandes homens sem que tenhamos mulheres.
A segunda é que teríamos aqui um ataque sexista a Agrippina ou a outra mãe
de imperador qualquer. A mensagem seria lida de outro modo, portanto.
Poderia se pensar em algo como a mãe do imperador era mulher e, por ser
mulher, era ardilosa, perigosa, sensual, uma ameaça pública que deve ser
controlada. Ou, por fim, uma terceira conclusão, qual seja: precisamos nos
afastar de leituras simplistas, de respostas fáceis de aceitar em nosso
próprio tempo por atenderem aos conflitos contemporâneos e, ainda, que
temos muito que estudar para poder dizer algo com segurança a respeito
desta inscrição, considerando o conjunto dos muitos e diversificados
documentos que temos e que podem nos ajudar a compreender o contexto de sua
produção e recepção, evitando impor a ela nossos próprios preconceitos como
critério único de leitura. Obviamente, estamos com a terceira opção. A
opção do diálogo. Um diálogo em que a Antiguidade no tem sentido em si
mesma, como algo separado de nós, mas em que nos diga algo que é próprio
dela. A Antiguidade é vista assim como um país estrangeiro de nos falava
Hartley. Não devemos invadir este país estrangeiro nem destruí-lo, apenas
visitá-lo, respeitando suas características próprias e os costumes de seus
habitantes. Em minha opinião, este imperialismo do presente faz mais mal do
que bem.



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[1] Agradeço imensamente a Camila Condilo e Sarah Fernandes Lino de Azevedo
que permitiram que eu me beneficiasse muito do debate que temos tido sobre
este tema e, ainda mais, propiciaram acesso aos textos que têm produzido e
forneceram importantes referências para este estudo.

[2] Ainda que Sarah Pomeroy, no Prefácio que escreveu para a obra When men
were men, diga que "Men's studies is still in its infancy". Claro que ela
se refere a estudos sobre os homens em uma perspectiva de gênero, uma vez
que é bem sabido que a historiografia sempre se dedicou a estudar
preferencialmente os homens. Como tentamos destacar, aqui fica claro que
cada época procurou os homens que lhe interessou na Antiguidade. Tanto é
assim que Lin Foxhall abrirá sua introdução a esse mesmo volume afirmando
que: "The history of classical antiquity is a history of men, though it is
never studied that way". POMEROY, Sarah B. "Preface". In: FOXHALL, Lin;
SALMON, John. (eds.). When men were men: masculinity, power, and identity
in classical antiquity. London: Routledge, 1998. p. xii. e FOXHALL, Lin.
"Introduction". In: Idem. p. 1.

[3] Kampen "Introduction" In: FOXHALL, Lin; SALMON, John. (eds.). Thinking
men: Masculinity and its self-representation in the classical tradition.
London: Routledge, 1998. p. x.

[4] Ou até mesmo dos binarismos em geral como elementos para pensar as
identidades com base na dupla eu-outro. Assim, em obra coletiva recente, os
organizadores apresentam esta oposição aos binarismos como consensual entre
os autores, e apontam para as possibilidades de pensar as fronteiras: "Os
capítulos que constituem este livro se apoiam em visões sobre a vida social
que desejam questionar posições fincadas em binarismos fechados,
homogeneizados e bem delineados sobre quem somos. (...) Colocar o pé, por
assim dizer, nos dois lados de tais binarismos ao mesmo tempo é colaborar
na construção de uma epistemologia que, ao prestigiar a fronteira ou o
fluxo entre os dois polos, oferece uma lente alternativa para compreender a
vida social em trânsito, em movimento ou nos entrelugares." LOPES, Luiz
Paulo da Moita e BASTOS, Liliana Cabral. "Introdução. A experiência
identitária na lógica dos fluxos. Uma lente para se compreender a vida
social." In: LOPES, Luiz Paulo da Moita e BASTOS, Liliana Cabral. (orgs.)
Para além das identidades. Fluxos, movimentos e trânsitos. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010. pp. 9 e 11.

[5] O grupo Os Satyros, por exemplo, promoveu o projeto Lou-Léo como uma
forma de "financiamento colaborativo" para a realização de mastectomia
total das duas mamas por Léo Moreira de Sá, nascido Lourdes Helena. Mas Léo
não define o procedimento como mudança de sexo, nem a sim mesmo como
transexual. A questão é colocada por ele nos seguintes termos: "Sou um
homem? Não. Nem mulher, nem homem nem transexual. Sou pós-gênero. Não sou
uma resposta. Eu sou uma pergunta." CAPRIGLIONE, Laura. "Em mutação. Perfil
Léo Moreira Sá, 53". In: Folha de São Paulo. São Paulo: Empresa Folha da
Manhã, 09 de outubro de 2011, p. C4.

[6] TOWLE, Evan B.; MORGAN, Lynn Marie. "Romancing the transgender native:
Rethinking the use of the 'third gender' concept. In: GLQ: A Journal of
Lesbian and Gay Studies, vol.8, n. 4, Durham: Duke University Press, 2002
p.469-497. pp.473; 483-484.

[7] Além dos casamentos de Nero com pessoas do mesmo sexo, temos ainda
referências em autores antigos a um estilo de vida que o aproximava de uma
existência assimilada a de mulheres. Dion Cássio, ao transmitir o discurso
da rainha dos Icênios aos Bretões em revolta contra os Romanos, afirma que
ela teria dito: "não governo (...) os Romanos como fez Messalina antes,
Agripina depois e Nero agora (o qual, mesmo com o nome de homem, é na
verdade mulher, como fica provado por cantar, tocar lira e ficar se
embelezando)." Dio. 72,6,3.

[8] "uni ex illo contaminatorum grege (nomen Pythagorae fuit) in modum
solemnium coniugiorum denupsisset. Inditum imperatori flammeum, missi
auspices, dos et genitaleis torus et faces nuptiales, cuncta denique
spectata, quae etiam in femina nox operit"

[9] Revista Letras, n. 80. Curitiba: Editora UFPR, jan./abr. 2010. p. 59-
69. p. 66.

[10] E essa alternativa de estudar as mulheres sem considerar de forma
central as relações de gênero tem sido exercida. Como exemplo de produção
recente no âmbito lusófono, cf. RODRIGUES, Nuno Simões. "Agripina e as
outras. Redes femininas de poder nas cortes de Calígula, Cláudio e Nero".
Gérion. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2008. vol. 26, num. 1,
pp. 281-295. Nesse estudo, o autor procura entender o poder das mulheres em
razão das redes de clientela que algumas delas foram capazes de controlar
no século I d.C.

[11] "uerum inlecebris Agrippinae,Germanici fratris sui filiae, per ius
osculi et blanditiarum occasiones pellectus in amorem"

[12] nam consulenti super Nerone responderunt Chaldaei fore ut imperaret
matremque occideret;atque illa 'occidat' inquit, 'dum imperet.'

[13] GRIFFIN, Miriam. Nero. The end of a dinasty. New Haven: Yale
University Press, 1984. p. 26

[14] Para quem deseje interpretar que esta projeção das irmãs se deva às
relações amorosas que Calígula teria tido com elas, será importante atentar
às interpretações mais contemporâneas que colocam em dúvida que tais
incestos tenham de fato sido cometidos. Uma vez que nem Filo, nem Sêneca,
nem Tácito fazem menção a isto, tais interpretações têm indicado que as
relações incestuosas de Calígula com as irmãs seriam uma acusação
posterior. Nas palavras de Aloys Winterling: "A afirmação de que o
imperador teria violado suas três irmãs, que aparece em Suetônio cerca de
um século depois da morte de Calígula, assim prova ser um calúnia póstuma."
WINTERLING, Aloys. "Meangniful madness. The emperor Caligula". In: Politics
and society in imperial Rome. Chichester: Wiley-Blackwell, 2009. p. 109.

[15] SALLER, Richard. Patriarchy, property and death in the Roman family.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 95.
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